Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:884/21.9 BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:01/30/2023
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:RECLAMAÇÃO
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
DOMICÍLIO
APARTADO
Sumário:I- De acordo com a regra geral estabelecida no artigo 16.º, n.º 1, do CPTA, os processos, em primeira instância, são intentados no tribunal da residência habitual ou da sede do autor.
II-O conceito de “domicílio” a que se alude no artigo 78.º n.º 2, al. b), do CPTA, é um conceito legal preenchido ou consubstanciado pelo conceito de “residência”, a qual deverá entender-se em conformidade com o disposto no artigo 82.º, n.º 1, do Código Civil.

III-Pela própria natureza das coisas, ninguém reside num apartado, que não é mais do que uma mera caixa receptáculo de correspondência postal.

IV-A “residência”, determinante para efeitos da competência territorial do tribunal, não se confunde com o lugar escolhido pelo autor para onde o tribunal deve expedir as comunicações que lhe hajam de ser dirigidas (domicilia notificandi).

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. RELATÓRIO

J…………………………, dizendo-se inconformado com a sentença da Senhora do Juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa que, no âmbito da acção administrativa por si intentada contra a Ordem dos Advogados, declarou a sua incompetência em razão do território para conhecer do pedido, considerando competente o TAF de Sintra e, ordenou, após transito, a remessa dos autos, vem ao abrigo do disposto no artigo 105.º, n.º 4 do CPC, requerer a intervenção deste Tribunal para decidir definitivamente a questão da competência territorial.

Na sua motivação alegou, em síntese, que a Senhora Juíza reclamada recorre a uma interpretação errada do conceito legal de domicílio, vertido no artigo 78.º, n.º 2, al. b), do CPTA, ao ter entendido como domicílio o local onde o interessado tem a sua “morada fiscal e “oficial ”, quando da essência desse preceito, o que se retira é que se deve entender o domicílio como o local civil/residencial / profissional e ou postal para onde o Tribunal possa expedir a correspondência à parte sem a que a mesma se possa furtar.

Aduz ainda que a indicação do Apartado identificado na p.i., não impediu a secretaria judicial de aceitar a acção, sendo esse também o domicílio que a Entidade Demandante e outros organismos reconhecem como sendo o local para onde deve ser enviada toda a correspondência que lhe é dirigida. Pelo que pede, em concordância com a jurisprudência que cita e transcreve, que seja deferida a presente reclamação e os autos sigam seus termos no Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa.



I. 1. Questões a apreciar e decidir:

A questão colocada na presente reclamação consiste em saber o que é exigido pelo artigo 78.º, n.º 2, al. b), do CPTA, ou dito de outra forma definir o conceito de domicílio ali vertido, em conjugação com o artigo 16.º, n.º 1, do CPTA, e, em consequência, determinar qual o tribunal territorialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, tal como defende o ora Reclamante, ou o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, como o entende a Senhora Juíza reclamada.



II. Fundamentação

II.1. De facto

Com relevo para a apreciação da reclamação emergem dos autos as seguintes ocorrências processuais:

1. Em 24.05.2021, J ………………………. instaurou no TAC de Lisboa um acção administrativa de condenação à prática do acto devido, contra a Ordem dos Advogados., indicando nessa p.i. o domicílio na Praça ……………, Apartado …………., ………..-003 Lisboa. (cf. fls. n/numeradas destes autos).

2. A Entidade Demandada veio apresentar contestação, defendendo-se por excepção e por impugnação. Por excepção sustentou, entre o mais, a recusa da petição inicial em virtude do autor ter indicado um apartado postal como o seu domicílio (idem).

3. Na resposta àquela excepção o autor veio informar “que tem morada na Av. ……………… R/C, ……..-149 ………….., tal como consta do seu bilhete de identidade, cartão de eleitor, (idem).

4. Em 7.12.2022 foi proferida pelo TAC de Lisboa decisão através da qual este se declarou incompetente em razão do território para conhecer da presente acção, declarou competente para o efeito o TAF de Sintra e ordenou a remessa dos autos para este último tribunal (idem).

5. Notificado dessa decisão em 9.12.2022, o Autor veio apresentar o requerimento de reclamação dirigido ao Presidente deste TCAS em 4.01.2023 (idem).



II.2. De direito

Antes de mais, importa referir que a Senhora Juíza do processo apreciou e decidiu julgar o tribunal territorialmente incompetente no primeiro despacho proferido após os articulados, logo que o reclamante informou que (afinal) tinha morada na Av. ……………, n.º ………, R/C, …….-149 …………., no que será de considerar que a intervenção judicial é admissível e que mais não faz do que regularizar a instância.

Porém, não concorda o reclamante com a decisão proferida quanto à determinação da competência territorial.

Vejamos.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina, que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” (MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, p. 91 e, i.a., o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc.11/2006, e ainda o Ac. do STJ de 14.05.2009, proc. 09S0232).

Nos termos do artigo 13.º do CPTA,[o] âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.

Por sua vez, o n.º 1 do artigo 5.º do ETAF estipula que “a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.

A regra geral em matéria de competência territorial encontra-se prevista no artigo 16.º do CPTA, no qual se estatui, no seu n.º 1, que “[s]em prejuízo do disposto nos artigos seguintes e das soluções que resultem da distribuição das competências em função da hierarquia, os processos, em primeira instância, são intentados no tribunal da residência habitual ou da sede do autor”. No entanto, esta regra geral comporta várias excepções que são enumeradas nos artigos 17.º a 22.º do CPTA, as quais in casu não se nos impõe apreciar.

A questão que nos é colocada passa, unicamente, por densificar o conceito de “domicílio” a que se alude no artigo 78.º n.º 2, al. b), do CPTA, que é um conceito legal preenchido ou consubstanciado, desde logo, pelo conceito de “residência”, conceito determinante para efeitos de fixação da competência territorial a que se refere o artigo 16.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.

A “residência”, como ensina Castro Mendes, é um elemento de facto: é o sítio preparado para servir de base de vida a uma pessoa singular (cfr. Teoria geral, 1967, 1 vol., p. 228).

Tal como dimana do artigo 82.º do Código Civil, é o elemento factual “residência” que preenche o conceito legal de “domicílio” das pessoas singulares, e isto, apesar de a lei admitir e prever, entre outras situações, o “domicílio profissional” (cfr. artigo 83.º do CC), correspondendo este ao “lugar onde a profissão é exercida” (n.º 1), mesmo quando é exercida em lugares diversos (nº 2), e o “domicílio legal dos empregados públicos, civis ou militares” (cfr. artigo 87.º do CC), os quais quando haja lugar certo para o exercício dos seus empregos, têm nele domicílio necessário, o qual é determinado “pela posse do cargo ou pelo exercício das respectivas funções” (n.º 2), “sem prejuízo do seu domicílio voluntário no lugar da residência habitual” (n.º 1).

Como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha, em anotação ao referido artigo 16.º, n.º 1, do CPTA (cfr. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed., 2017, p. 160):

Este artigo consagra a regra segundo a qual é territorialmente competente para a generalidade das ações o tribunal da residência habitual ou da sede do autor (artigo 16.º), sem prejuízo dos regimes especiais constantes dos artigos 17.º a 21.º. A referência à residência habitual deve entender-se em conformidade com o disposto no artigo 82.º, n.º 1, do Código Civil, pelo que, no caso de o autor residir alternadamente em diversos lugares, deve ter-se como domiciliado em qualquer deles, o que é particularmente aplicável aos cidadãos portugueses com residência no estrangeiro que mantenham também domicílio em Portugal.

A regra deste artigo 16.º é aplicável a quaisquer entidades a quem seja reconhecida legitimidade processual ativa. Nesse sentido, o acórdão n.º 10/2007 do STA (publicado no DR, I Série, de 10 de julho de 2007) uniformizou a jurisprudência sobre a competência territorial em ações propostas por sindicatos em defesa de interesses individuais de trabalhadores, fixando como competente o tribunal da sede do sindicato”.

Importa, também, reter que para que o “domicílio” possa emergir, a lei apenas exige a “residência habitual, como sinónimo do local que indica pela utilização do adjectivo “habitual”, uma certa duração ou o decurso de um razoável lapso de tempo, pois que tal é necessário para a organização e estabilização do modus vivendi pessoal.

E, o que é manifesto, ninguém reside num apartado, que não é mais do que uma mera caixa receptáculo de correspondência postal.

Ora, in casu, o reclamante começou por indicar na pi. que estava “domiciliado” na …………, Apartado …………., …..-003 Lisboa, vindo depois a informar que tem morada na Av. …………, nº159, R/C, ……….-149 ............, morada essa “que consta de toda a sua documentação (cartão de cidadão, cartão de eleitor, etc)” , mas que se encontra “impedido de aí receber toda a sua correspondência” (vg. als. e) e f) da resposta as excepções- artigo 3º) do ponto II.1, supra).

No nosso entendimento, o reclamante não ignora que o conceito de “residência habitual”, relevante para o direito, se identifica como o lugar de estabilidade e continuidade vivencial da pessoa, pois que veio prontamente indicar a sua morada. Isto é o mesmo que dizer que não desconhece que o apartado por si identificado na p.i., ou seja, o local onde é, por certo, depositada toda a correspondência que lhe é dirigida, não pode ser abrangido pelo conceito legal de “residência habitual”. O que vem assumido, diremos nós, é que o requerente embora tenha residência num determinado lugar, pretende que a correspondência que lhe é dirigida seja remetida para lugar distinto.

Na verdade, o sistema de notificações estabelecido pelo artigo 249.º do CPC prevê a possibilidade de a parte escolher ser notificada num apartado. Mas ao fazê-lo o interessado apenas renuncia, na avaliação que faz do seu interesse e a seu risco, à recepção domiciliária da correspondência, e, consequentemente, não pode relevar para efeitos de se densificar o conceito de residência habitual.

Assim, em conformidade com o que se vem de dizer, conclui-se que o lugar que releva para efeitos de se determinar a “residência” à luz do disposto no artigo 16.º, n.º 1, conjugado com o artigo 78.º, n.º 2, al. b), ambos do CPTA, é o que o Autor, aqui reclamante, posteriormente indicou: Av……, n.º …., R/C, ….-149 ............. E é com esse feixe interpretativo que se determinará o tribunal territorialmente competente para apreciar e decidir a presente acção, independentemente do lugar escolhido pelo autor para onde o tribunal deve expedir as comunicações que lhe hajam de ser dirigidas.

Diga-se, por fim, por que a jurisprudência que o ora reclamante cita e transcreve versa sobre a sede de uma sociedade comercial, o qual não acolhe aqui qualquer correspondência.

É quanto basta para que se possa concluir que o Tribunal competente para apreciar e conhecer a presente acção administrativa é o tribunal em que o autor tem a sua residência: ou seja, na Av. …………, n.º ……., R/C, …..-149 ............. Pelo que é o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (secção administrativa) o tribunal territorialmente competente para o efeito, ao invés do entendimento sufragado pelo reclamante, por força da aplicação conjunta dos artigos 16, nº1 do CPTA e 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 325/2003, de 29 de Dezembro e mapa anexo (na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 182/2007, de 9 de Maio).



III. Decisão

Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação e, consequentemente, mantém-se o despacho reclamado que declarou competente para os ulteriores termos dos presentes autos o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

Custas a cargo do reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 0,5 UC (art. 7.º do RCP e Tabela II, A, anexa).

Notifique.


O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques