Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12892/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:06/16/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:QUESTÃO INCIDENTAL, CONTRADITÓRIO
Sumário:I - O Código de Processo Civil só prevê dois articulados normais, havendo lugar a um terceiro articulado nos seguintes casos: para responder à reconvenção (réplica: artigo 584º do Código de Processo Civil); para invocar supervenientes factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito em discussão (artigo 588º do Código de Processo Civil).

II - O artigo 591º/1-b do Código de Processo Civil não se refere a questões prévias ou incidentais (laterais ao objeto do processo, secundárias em relação à ação, com caráter de episódio ou acidente), mas sim a exceções.

III – Por isso, no caso de questões incidentais levantadas na contestação, o autor tem logo direito ao contraditório (artigo 3º do Código de Processo Civil), podendo responder, em requerimento próprio, antes do saneador e da audiência prévia, momento até ao qual, aliás, o juiz apreciará a questão prévia ou incidental.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· JOSÉ …………………………………. intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa

Ação administrativa comum contra

· ESTADO PORTUGUÊS.

Pediu o seguinte:

- Condenação do R a indemnizá-lo nos valores de 96.456,95 Euros e 52.380,00 Euros, e juros de mora.

*

Por despacho de 14-4-2015, o Tribunal Administrativo de Círculo decidiu desentranhar e devolver ao A um 3º articulado junto em 6-1-2015 para responder a algo que consta da contestação (sem pedido reconvencional), invocando o tribunal os artigos 3º/4 e 584º/1 do Código de Processo Civil.

*

Inconformado com tal decisão, o autor interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1. A discussão da excepção de caducidade da protecção jurídica prevista para a audição prévia segundo o preceito do art.º 591. º, n.º l, alínea b), do Código de Processo Civil, não esgota o exercício do contraditório quando a sua arguição se sustenta em questões e factos novos, para os quais o A. é chamado a tomar posição através do dispositivo do art.º 587.º, n.º l, devidamente coadjuvado pelo art.º 574.º, n.º l, da mesma lei adjectiva.

2. o ora recorrente no breve articulado inadmitido e mandado desentranhar socorreu-se dos princípios do contraditório e da colaboração com a justiça, sendo manifesto que na contestação do R. se havia suscitado questão nova que carecia de esclarecimento e prova não carreada na antecedente petição inicial, porque sequer prevista tal eventualidade de discussão vista a sua origem em factos criados pelos vários serviços públicos que agem por conta e em representação do próprio R., Estado Português.

3. Tomada de posição que cabe não no âmbito e abrangência dos citados preceitos adjetivos, segundo o princípio do contraditório, como se impõe em vista dos basilares deveres de cooperação e boa fé plasmados nos art.ºs 7.º e 8.º do C.P.C.

4. aliás, a errada interpretação normativa que se extrai do texto da decisão recorrida, sem expressão textual, quanto às aplicáveis e olvidadas normas dos art.ºs 574 .º, n.º 1 , e 587.º, n.º 1 , bem como à ali convocada, a do 584.º , n.º 1, todas do Código de Processo Civil, viola os conjugados imperativos dos art .ºs 3. , n.º 2, 9.º, al. b), 13 .º , n.º 2 , 16.º, n.º 2 , 20º, n5 , 26 .º , n.º 1 , 202.º, n.º 2, e 203 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade interpretativa que se deixa arguida para todos os efeitos legais, tendo-se por correcta a que emerge das conclusões que antecedem, coroando as alegações respectivas, e aqui se têm aqui por transcritas na sua totalidade, desta fazendo parte integrante.

5. Razões bastantes que implicam a revogação da decisão recorrida com a sua substituição por outra, superior, que ordene o atendimento do lacónico mas relevante articulado e das provas novas nele requeridas com vista à boa solução jurídica na sede própria, para os de mais termos até final.

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O recorrido contra-alegou, concluindo:

1. O Código Processo Civil prevê apenas a admissão, na fase dos articulados, da petição inicial, contestação e réplica e, esta última apenas quando à matéria de reconvenção, nos termos do art. 584º do CPC.

2. O Recorrido na sua contestação defendeu-se por excepção invocando a prescrição do direito a indemnização e por impugnação, não tendo deduzido qualquer pedido reconvencional, tendo a título de questão prévia suscitado a caducidade do instituto de protecção jurídica, nos termos do disposto no art.11.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 34/2004, de 29.07, alegado pelo Recorrente no artigo 84.º da petição inicial.

3. A questão colocada na contestação sobre a caducidade da protecção jurídica, não era uma "questão nova", pelo que ao responder da forma como o fez o Recorrente através de articulado superveniente apresentado a 06.01.2015 não é admissível, tanto mais que sobre eles já se havia pronunciado no art. 84.º da sua petição inicial.

4. Os articulados supervenientes são utilizados para a alegação de factos que, dada a sua superveniência, não puderam ser invocados nos articulados normais (art. 588, n.º 1, do CPC) e pode ser objectiva ou subjectiva.

5. O Recorrente alegou na petição inicial beneficiar de apoio judiciário, pelo que lhe cabia juntar os necessários comprovativos de que tal benefício ainda lhe estava atribuído, o que não fez.

6. No presente processo, o Autor/Recorrente veio instaurar uma acção de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado Português, por facto ilícito com fundamento em atraso na justiça, decorrentes mais concretamente da não prolação de decisão judicial em prazo razoável.

7. Não sendo a caducidade da protecção jurídica um facto constitutivo, modificativo ou extintivo do direito a que se arroga Recorrente na presente acção, ou seja, não se trata de qualquer excepção peremptória, não podia o mesmo lançar mão de tal articulado, já que este facto alegado na contestação não está abrangido pelo conceito de facto (constitutivo-modificativo-extintivo) estabelecido no nº 1 do art. 588.º do CPC.

8. Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, sendo que a que a caducidade do apoio judiciário, nada tem a ver com o direito por si invocado ou com a causa de pedir.

9. A presente acção foi proposta depois da caducidade do apoio judiciário devido a uma decisão pessoal do Autor/Recorrente e que só ao mesmo é imputável, sendo que esse seu direito nunca lhe foi negado e o sistema, contrariamente ao por si referido, funcionou devidamente.

10. Deste modo, a decisão recorrida ao não admitir o requerimento de 06.01.2015 por não ser admissível réplica nos termos do art. 584.º do CPC, por ser a audiência prévia a sede própria para o efeito, nos termos do art. 3. n.º 4 do C.P.C, "ex vi" art. 35.º do C.P.T.A. e ao ordenar o seu desentranhamento, fez a correcta aplicação todas disposições legais, aplicáveis "in casu".

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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II. FUNDAMENTOS

II.1. FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão a proferir, está provado o seguinte quadro factual:

1

A presente ação declarativa de condenação em indemnização entrou em 8-7-2014.

2

Damos aqui por reproduzida a petição inicial, em que o A invoca ter proteção jurídica, conforme a Lei nº 34/2004, desde 2009.

3

O R contestou, dando-se aqui por reproduzida a contestação.

4

O A respondeu à “questão prévia” expressamente invocada nos artigos 8 a 13 da contestação, de caducidade da proteção jurídica de acordo com o artigo 11º/1-b) da Lei 34/2004.

5

Pelo despacho do Tribunal Administrativo de Círculo, ora recorrido, tal resposta foi mandada desentranhar e devolver ao A, com fundamento nos artigos 3º/4 e 591º/1-b) do Código de Processo Civil.

*

Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Na contestação, o R invocou a situação prevista no artigo 11º/1-b) do regime de acesso ao direito e aos tribunais (Lei 34/2004, atualizada), exigindo o pagamento de taxa de justiça por parte do A, como se tal caducidade da proteção jurídica não dependesse de uma decisão administrativa a se cfr. o artigo 12º pressupõe:

-A proteção jurídica caduca pelo decurso do prazo de um ano após a sua concessão sem que tenha sido prestada consulta ou instaurada ação em juízo, por razão imputável ao requerente.

De seguida, em articulado, o A veio defender-se contra aquilo a que o A chama (mal) de exceção (vd. artigo 576º do Código de Processo Civil), preocupado ainda com o artigo 33º/4 da Lei 34/2004 («A ação considera-se proposta na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono»).

Como não houve reconvenção com a contestação e, tendo presente o artigo 3º/4 do Código de Processo Civil («Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final»), o Tribunal Administrativo de Círculo não admitiu tal 3º articulado.

Ora, independentemente daquilo que está implicado no artigo 12º da Lei 34/2004, o certo é que o Código de Processo Civil só prevê 2 articulados normais, havendo lugar a um terceiro apenas nos seguintes casos:

-Responder à reconvenção (réplica: artigo 584º do Código de Processo Civil);

-Supervenientes factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito em discussão (artigo 588º do Código de Processo Civil).

Aqui não houve reconvenção. E não estamos ante qualquer factualidade superveniente.

Portanto, a resposta à bem ou mal invocada questão do artigo 11º/1-b) da Lei 34/2004 só pode ser feita na audiência prévia (artigo 591º/1-b do Código de Processo Civil), como manda o nº 4 do artigo 3º do Código de Processo Civil?

Não, porque aqui não é esse o ponto.

O Tribunal Administrativo de Círculo considerou ser este o caso de uma exceção (dilatória: artigo 576º/2 do Código de Processo Civil).

Mas não é uma exceção, porque nada tem a ver com o litígio, mas sim com o apoio jurídico gratuito dado ao A. ao abrigo da Lei 34/2004, o que é um prius em relação à lide

Trata-se, assim, de uma questão incidental (= questão secundária em relação à ação, com caráter de episódio ou acidente) levantada pelo R como “questão prévia” (em sentido lato), que pode ter consequências tributárias imediatas (!) nos autos e na proteção jurídica gratuita de que o A vinha beneficiando ao abrigo da Lei nº 34/2004.

Também pode ter a ver com a prescrição do direito indemnizatório invocado na petição inicial (cfr. artigo 498º do Código Civil)

Assim sendo, como questão incidental (nada tendo a ver com o objeto do processo) que é, não está abrangida pelo claríssimo artigo 3º/4 do Código de Processo Civil.

Está, legal e normalmente, sujeita às regras do contraditório e da igualdade processual (cfr. artigos 3º/2 e 4º do Código de Processo Civil).

Note-se ainda que, ao contrário do referido pelo recorrido, o artigo 84 da petição inicial não abordou esta questão incidental.

E não há aqui nenhum motivo legal para o contraditório deste incidente, desta questão incidental (que tem consequências tributárias que devem ser imediatas no caso de o R ter razão - e sem prejuízo do artigo 12º cit. - não considerado pelas partes), ser feito apenas na audiência prévia; até porque o artigo 591º/1-b do Código de Processo Civil não se aplica estritamente ao caso.

Portanto, a Mmª juiz a quo deveria tratar esta questão como incidental (lateral ao objeto do processo) e não como exceção (o que nem o R fez) e assim resolvê-la logo, após o devido contraditório, até porque não faria sentido o processo andar no caso de o A não ter proteção jurídica gratuita e não vir a pagar a taxa de justiça.

Outra questão (posterior, consequente) já será a de a ação estar fora de prazo. Também por isto, a questão incidental deve ser resolvida até ao saneador, com o contraditório prévio.

Concluindo: o Tribunal Administrativo de Círculo errou, não por violar a Constituição da República Portuguesa nos termos vagamente invocados no recurso, mas porque entendeu a “questão prévia” ou incidental levantada pelo R como sendo uma exceção processual (dilatória ou perentória) e, por isso, aplicou mal o artigo 3º/3/4 do Código de Processo Civil.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os Juizes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido e admitir a resposta do A à questão prévia ou incidental colocada nos artigos 8 a 13 da contestação, prosseguindo os autos.

Custas a cargo do R.

Lisboa, 16-6-2016

(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)