Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:28/18.4BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:06/28/2018
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; RELAÇÃO ENTRE O PROCESSO DISCIPLINAR E O PROCESSO CRIME; VINCULAÇÃO DO JUIZ
Sumário:I. Em sede de processo disciplinar, a Administração está vinculada aos factos dados por provados na decisão penal condenatória do recorrente, sem prejuízo da sua valoração e enquadramento jurídico para efeitos disciplinares.
II. A autonomia e a independência do processo crime e do processo disciplinar impede a condenação disciplinar por mero efeito automático da condenação penal, mas não obsta à consideração em sede de procedimento disciplinar dos factos dados como provados no processo crime.
III. Apurando-se ter existido actividade instrutória no âmbito do procedimento disciplinar, mediante a produção de prova testemunhal, assim como a análise da defesa apresentada e a análise crítica dos factos dados como provados, não se mostra violado os citados princípios da autonomia e independência dos processos crime e disciplinar,
IV. Em consequência, atenta a prova produzida quanto aos factos pelos quais o trabalhador foi acusado, falta o requisito do fumus boni iuris, necessário ao decretamento da providência cautelar de suspensão de eficácia do ato de aplicação da pena disciplinar de demissão.
Votação:COM VOTO VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

O Ministério da Administração Interna, devidamente identificado nos autos, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, datada de 13/03/2018, que no âmbito do processo cautelar de suspensão de eficácia de ato administrativo movido por ......, julgou procedente o pedido, decretando a suspensão de eficácia do despacho do Ministro da Administração Interna, datado de 28/11/2017, que aplicou ao Requerente a pena de demissão.

Formula o aqui Recorrente, Ministério da Administração Interna nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“A. A Sentença Recorrida padece do erro de direito acima assinalado.

B. E por assim se violou a norma do artigo 120.º, n.º 1 do CPTA.”.

Termina pedindo a procedência do recurso e revogada a decisão recorrida.


*

O ora Recorrido não apresentou contra-alegações.

*

O Ministério Público junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto no art.º 146.º do CPTA, emitiu parecer, pugnando pela procedência do recurso, com o fundamento de que não se verifica o requisito do fumus boni iuris, uma vez que se deve atender à fundamentação de facto e de direito da decisão criminal, considerando a vasta jurisprudência sobre a matéria.

*

O processo vai, sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento por se tratar de um processo urgente.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento, por violação do artigo 120.º n.º 1 do CPTA, por não ser provável a procedência da ação principal.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

“a) O requerente foi alistado nos quadros da Polícia de Segurança Pública com o ingresso no curso de agentes de 1999 [acordo].

b) O requerente é, actualmente, agente principal e é efectivo da Divisão da Polícia de Segurança Pública da …. [acordo].

c) Em 21/03/2012, o Ministério Público comunicou ao Director Nacional da Polícia de Segurança Pública que tinha sido proferido, no âmbito do processo de inquérito n.º 65/11.0SLLSB, despacho de acusação contra o requerente pela prática de um crime de recebimento indevido de vantagem [documento de fls. 3 a 11 do processo administrativo apenso].

d) Por despacho do Comandante Metropolitano de Polícia de Lisboa, de 04/04/2012, foi determinada a instauração de processo disciplinar contra o requerente, a que foi atribuído o n.º NUP…. [documentos de fls. 1 e 2 do processo administrativo apenso].

e) Em 13/04/2012, o requerente foi notificado do despacho referido em d) [documentos de fls. 14 a 27 do processo administrativo apenso].

f) Em 29/04/2016, foi deduzida acusação contra o requerente [documento de fls. 446 e 447 do processo administrativo apenso].

g) Em 22/06/2016, o requerente apresentou defesa escrita [documento de fls. 475 a 585 do processo administrativo apenso].

h) Em 22/11/2016, o instrutor do processo disciplinar elaborou o Relatório Final, onde consta, designadamente, o seguinte:

“(…)

(Texto no Original)

(…).” [documento de fls. 702 a 711 do processo administrativo apenso].

i) Por despacho do Ministro da Administração Interna, de 28/11/2017, foi aplicada ao requerente a pena disciplinar de demissão [documento n.º8 junto com o requerimento inicial].

j) O despacho referido em i) tem o seguinte teor:


(Texto no Original)

[documento n.º8 junto com o requerimento inicial].

k) Por sentença proferida no Processo n.º65/11.0SLLSB, que correu termos na 1.ª Secção do Juízo de Média Instância Criminal de Sintra do Tribunal da Comarca da Grande Lisboa – Noroeste, transitada em julgado, o requerente foi condenado, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de recebimento indevido de vantagem, previsto e punido pelo artigo 372.º, n.º1, do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo [documentos de fls. 201 a 225 e 379 a 408 do processo administrativo apenso].

l) Na sentença referida k), foram considerados provados os seguintes factos:


(Texto no Original)

[documento de fls. 201 a 225 do processo administrativo apenso].

m) O requerente aufere mensalmente cerca de €1.443.62 líquidos [acordo e documento n.º2 junto com o requerimento inicial].

n) O que inclui os serviços remunerados, cujo valor médio mensal é de €159.00 [acordo e documento n.º2 junto com o requerimento inicial].

o) O requerente paga a quantia mensal de € 619.99 relativa ao empréstimo bancário que contraiu para aquisição de uma casa na sua terra natal [acordo e documento n.º3 junto com o requerimento inicial].

p) O requerente despende mensalmente €350.00 com o pagamento da casa onde reside, água, luz e gás [acordo].

q) O requerente paga mensalmente a quantia de €138.29 relativamente à prestação do automóvel que adquiriu [acordo].

r) O requerente paga a quantia de € 151.00 relativa à pensão de alimentos da sua filha menor [acordo].

s) O requerente tem, ainda, as despesas contraídas com o cartão Visa no montante mensal de €125.19 [acordo].

t) O requerente não dispõe de outro rendimento além da sua remuneração como agente da Polícia de Segurança Pública [acordo].

u) O requerente esteve sempre ao serviço até ser notificado da decisão de aplicação da pena de demissão, com excepção do período de tempo em que tal foi determinado pelo Tribunal antes de existir decisão judicial [acordo].


*

Não resultaram indiciariamente provados nos autos outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente, o seguinte:

a) Foi a Polícia de Segurança Pública que deu conhecimento ao Tribunal dos factos que deram origem ao processo-crime identificado em k).


*

A decisão da matéria de facto assentou no acordo das partes e na análise dos documentos constantes dos autos, conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.

Quanto à matéria das alíneas m) a t), que corresponde aos factos alegados nos artigos 139.º, 140.º, 143.º a 147.º e 214.º do requerimento inicial, o Tribunal tomou em consideração que os mesmos não foram impugnados pela entidade requerida, o que, atento o disposto no artigo 118.º, n.º2 do CPTA, na redacção introduzida pelo Decreto- lei n.º214-G/2015, de 2 de Outubro, determina que se considerem admitidos por acordo [artigo 574.º, n.º2 do CPC, aprovado pela Lei n.º41/2013, de 26 de Junho].

Relativamente ao facto não provado, cumpre apenas referir que não foi produzida prova quanto ao mesmo, sendo certo que não consta do processo administrativo qualquer documento que permita concluir que foi a PSP que deu conhecimento ao Tribunal dos factos que deram origem ao processo-crime.”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

Erro de julgamento, por violação do artigo 120.º n.º 1 do CPTA

Sustenta o Recorrente como fundamento do recurso, o erro de julgamento da sentença recorrida, por violação do disposto no artigo 120.º, n.º 1 do CPTA, sobre os critérios de decretamento da providência cautelar requerida, de suspensão de eficácia do ato sancionatório, de aplicação da pena disciplinar de demissão.

Alega que a factualidade considerada provada encontrou o seu fundamento na sentença proferida no processo-crime e que a prova dos factos feita em processo-crime não pode deixar de implicar a prova desses mesmos factos em processo disciplinar, como a jurisprudência administrativa o tem reconhecido, como no Acórdão do STA, de 19/06/2007, Proc. n.º 01058/06 ou no Acórdão de 25/02/2010, Proc. n.º 01035/08.

Os meios de investigação disponíveis no processo criminal são superiores aos do processo disciplinar, oferecendo o máximo de garantias ao arguido.

Vejamos.

A questão que se coloca para decisão consiste a de saber se incorre a sentença recorrida em erro de julgamento de direito ao julgar verificados os requisitos de decretamento da providência cautelar de suspensão de eficácia do ato de aplicação da pena disciplinar de demissão do Requerente, previstos no n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, o fumus boni iuris e o periculum in mora.

A sentença recorrida conheceu de todos os requisitos e julgou-os verificados, decretando a providência cautelar de suspensão de eficácia.

Segundo a alegação do Recorrente no presente recurso, coloca-se, em particular, a questão de saber se se verifica o requisito do fumus bonis iuris, por segundo a sentença recorrida enferma o ato suspendendo do vício de violação de lei, por se basear na prova produzida no processo crime e se ter entendido no sentido de a prova feita no processo crime não relevar para o processo disciplinar, exigindo-se ao instrutor do processo disciplinar que efetue um juízo sobre a prova produzida no processo disciplinar.

A par, a sentença recorrida julgou ainda verificado o requisito do periculum in mora, com fundamento na falta de rendimentos do Requerente que assegurem a sua subsistência, por se ter provado que o vencimento é o único rendimento de que dispõe.

Considerando aqueles que são os fundamentos do presente recurso, assim como a alegação do Recorrente, importa apreciar o alegado erro de julgamento, em separado, em relação a cada um dos critérios de decretamento da providência cautelar de suspensão de eficácia, previstos no n.º 1 do artigo 120.º do CPTA.

Do critério do fumus boni iuris

No que respeita ao critério do fumus boni iuris, extrai-se da fundamentação de direito da sentença recorrida, o seguinte, com relevo para o fundamento do recurso:

No âmbito do processo disciplinar n.º NUP……, foi aplicada ao requerente, por despacho do Ministro da Administração Interna de 28/11/2017, a pena disciplinar de demissão [alíneas i) e j) dos factos provados].

Analisado o Relatório Final do instrutor, conclui-se que a factualidade considerada provada no processo disciplinar e que determinou a aplicação da pena de demissão ao requerente coincide com a factualidade provada na sentença, transitada em julgado, proferida no Processo n.º65/11.0SLLSB, que correu termos na 1.ª Secção do Juízo de Média Instância Criminal de Sintra do Tribunal da Comarca da Grande Lisboa – Noroeste, que condenou o requerente, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de recebimento indevido de vantagem, previsto e punido pelo artigo 372.º, n.º1, do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo [alíneas h), k) e l) dos factos provados].

Com efeito, todos os factos considerados provados no Relatório Final do instrutor foram considerados provados na sentença proferida no processo-crime, não se verificando, assim, e ao contrário do que o requerente alega, qualquer discrepância entre os mesmos, sendo que os factos dos pontos 10.7, 10.8, 10.9, 10.15, 10.17 e 10.18 do Relatório Final constam, respectivamente, dos n.ºs 7, 8, 9, 15, 17 e 18 da fundamentação de facto da referida sentença [cfr. alíneas h) e l) dos factos provados].

A questão que se coloca, assim, e tendo presente os vícios que o requerente imputa ao acto suspendendo, é a de saber se a aplicação de uma pena disciplinar pode encontrar o seu fundamento na factualidade considerada provada no processo- crime, sem que seja produzida qualquer prova no processo disciplinar ou, sendo-o, a mesma não seja tida em consideração para efeitos de fixação da factualidade provada.

Até recentemente, a jurisprudência, que cremos dominante, ia no sentido de que a decisão disciplinar não podia deixar de atender aos factos que a decisão penal transitada tinha julgado provados que fossem objecto de apreciação no processo disciplinar [neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 19/06/2007, proferido no Processo n.º 01058/06].

Contudo, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25/03/2015, proferido no Processo n.º01402/13, foi adoptado o entendimento segundo o qual “o processo-crime e o processo disciplinar, constituem dois tipos de processo em que a salvaguarda do bem jurídico é distinta, os interesses e fins que salvaguardam são diferentes e, assumem, por isso, prevenções gerais e especiais diferentes, pelo que a prova feita no processo-crime não releva para o processo disciplinar”.

Ora, não obstante resultar do Relatório Final do instrutor que foram realizadas diligências de prova no âmbito do processo disciplinar, certo é que a factualidade considerada provada neste processo encontrou o seu fundamento na sentença proferida no processo-crime, tendo, aliás, o instrutor do processo, em sede de apreciação da defesa apresentada pelo requerente, referido, designadamente, o seguinte: “Ora, estando o instrutor vinculado à decisão judicial, transitada em julgado, mormente à sua factualidade, mostra-se mais que suficiente a prova produzida naquela sede e por isso, como é óbvio, recebeu-a em sede disciplinar” [alínea h) dos factos provados].

Em suma, o instrutor não efectuou qualquer juízo sobre a prova produzida no processo disciplinar, tendo-se limitado a considerar provados os factos constantes da sentença proferida no processo-crime.

Assim sendo, admitindo-se como possível o entendimento segundo o qual a prova feita no processo-crime não releva para o processo disciplinar, é de admitir que o acto suspendendo padeça de vício de violação de lei, por ter encontrado o seu fundamento na factualidade provada no processo-crime, sem que tenha sido efectuada qualquer valoração da prova produzida no processo disciplinar, violando-se, deste modo, o princípio da independência do processo disciplinar relativamente ao procedimento criminal, consagrado no artigo 37.º, n.º1, do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, aprovado pela Lei n.º7/90, de 20 de Fevereiro [RDPSP]. Nesta medida, concluímos, numa apreciação sumária, que é provável a procedência da pretensão a formular pelo requerente no processo principal, uma vez que é de admitir a possibilidade do acto suspendendo padecer do referido vício de violação de lei.

Não obstante, refira-se, não se mostra provável a procedência da acção principal com fundamento nos demais vícios que o requerente imputa ao acto suspendendo. (…)”.

Este julgamento não se pode manter, incorrendo a sentença recorrida no erro de julgamento que contra ela se mostra invocado.

Alicerça a sentença recorrida o seu entendimento quanto à relação entre processo crime e processo disciplinar na doutrina que emana no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), datado de 25/03/2015, Proc. n.º 01402/13, mas sem que se possa retirar de tal citado aresto a interpretação e o entendimento que ora se mostram assumidos na decisão sob recurso, incorrendo a sentença recorrida em erro de interpretação e valoração da doutrina do citado acórdão, de que resulta a violação do critério de decretamento da providência cautelar relativo ao fumus boni iuris.

Ao contrário do que se afirma na sentença sob recurso, não se mostra afirmado pelo STA que a prova produzida no processo crime não possa ser valorada no processo disciplinar, tanto mais que nesse aresto se remete quanto à sua fundamentação para outros Acórdãos do STA, que apontam para interpretação e entendimento diferente.

A questão decidenda sobre a verificação do requisito do fumus boni iuris passa no presente caso por apreciar a relação existente entre processo crime e processo disciplinar.

Como a jurisprudência e a doutrina têm entendido, existe autonomia do direito disciplinar dos trabalhadores em funções públicas em relação ao processo crime.

“A autonomia do ilícito disciplinar encontra-se expressa na possibilidade de cumulação das responsabilidades disciplinar e criminal pela prática do mesmo facto, sem violação do ne bis in idem. Reafirmando um lugar-comum: o ilícito disciplinar não é um minus relativamente ao criminal, mas sim um aliud. Aliás, a conhecida subsidiariedade da intervenção do direito penal é suficiente para justificar a referida possibilidade de aplicação cumulativa de uma medida disciplinar e de uma sanção criminal pela prática do mesmo facto.” – Luís Vasconcelos Abreu, “Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português Vigente: As Relações com o Processo Penal”, Almedina, 1993, pp. 32-33.

Por isso, os vários ramos do direito têm funções distintas: “O direito disciplinar da função pública visa precisamente assegurar a capacidade funcional da Administração - sem disciplina não há produtividade -, condição da perfeita realização do interesse público. A responsabilidade disciplinar pode e deve ser completada por outras formas de responsabilidade, designadamente a civil e a penal.” – ibidem, pp. 18.

A responsabilidade criminal deriva do que for estabelecido pelo Direito Penal, que é o ramo do Direito que “em cada momento histórico, enuncia, de forma geral e abstracta, os factos ou condutas humanas susceptíveis de pôr em causa os valores ou interesses jurídicos tidos por essenciais numa dada comunidade, e estabelece as sanções que lhes correspondem” – M. Simas Santos e M. Leal-Henriques, “Noções Elementares de Direito Penal”, 3ª edição revista e atualizada, Editora Rei dos Livros, 2009, pp. 13.

Por a prática de um crime poder simultaneamente figurar uma atuação suscetível de constituir infração disciplinar, podendo o comportamento do trabalhador no exercício de funções públicas consubstanciar a prática de um crime, coloca-se a questão de saber qual a linha de separação entre responsabilidade disciplinar e responsabilidade penal.

“Entre o procedimento disciplinar e o processo penal (e os processos de apuramento de outras formas de responsabilidade) não existe, no entanto, consumpção, por serem diferentes os fundamentos, o recorte da relação jurídica pertinente e os fins.” – neste sentido, vide Ana Neves, “O Direito da Função Pública”, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. IV, Almedina, 2010, pp. 527.

Neste sentido o tem decidido a jurisprudência administrativa, afirmando a autonomia do poder e do procedimento disciplinar face ao procedimento penal.

Com relevo, remete-se para o Acórdão do STA, de 21/09/2004, Proc. n.º 047146, segundo o qual:

I - São diferenciados o ilícito disciplinar (que visa preservar a capacidade funcional do serviço) e o ilícito criminal (que se destina à defesa dos bens jurídicos essenciais à vida em sociedade) e autónomos os respectivos processos, sendo que o facto de o arguido ser absolvido em processo crime, não obsta, em princípio à sua punição em processo disciplinar instaurado com base nos mesmos factos.

II - Sem unidade de ilicitude o desvalor jurídico de natureza penal releva, no âmbito disciplinar como índice de qualificação da infracção, pelo alarme social que provoca e pela danosidade associada que, em regra, terá para a eficiência do serviço, a prática de uma falta que seja, ao mesmo tempo, qualificada como crime.”.

Segundo a fundamentação de direito exarada nesse aresto, que ora se acolhe, por inteira concordância e aplicação ao caso configurado em juízo:

Na verdade, os vários ramos do direito têm funções distintas e, por via disso, como diz EDUARDO CORREIA, (“Direito Criminal”, II, p. 5) “todos sabem que há factos passíveis de sanções criminais que o não são de sanções civis e inversamente.”

Na relação processo disciplinar/processo criminal é inequívoco que os mesmos factos podem desencadear cumulativamente, sem violação do princípio ne bis in idem, responsabilidade disciplinar e responsabilidade penal (vide, por exemplo, o art. 7º nº 1 do Estatuto Disciplinar aprovado pelo DL nº 24/84 de 16.).

A diferenciação entre o ilícito disciplinar (que visa preservar a capacidade funcional do serviço) e o ilícito criminal (que se destina à defesa dos bens jurídicos essenciais à vida em sociedade) é um dado adquirido na Doutrina (EDUARDO CORREIA, “Direito Criminal”, I, pp. 35/39 MARCELO CAETANO “Manual de Direito Administrativo”, II, 9ª ed., p. 777 e seguintes e “ Do Poder Disciplinar...”, pp. 43/44 LUIS VASCONCELOS ABREU, “Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português Vigente: As Relações com o Procedimento Disciplinar”, p. 87) e na Jurisprudência do STA (Vide, neste sentido, os acórdãos STA de:

1999.06.23 – recº nº 37 812

1999.11.24 – recº nº 41 997

2000.02.29 – recº nº 31 130

2001.04.03 – recº nº 29 864 (Pleno)), sendo que à independência dos ilícitos corresponde a autonomia dos respectivos processos, (…).

(…) Antes de mais, porque é, precisamente, a distinção de ilícitos que justifica a implicação disciplinar dos factos passíveis de sanção penal e disciplinar em simultâneo. Depois, porque, sem unidade de ilicitude, o desvalor jurídico de natureza penal, releva no âmbito disciplinar como mero índice de qualificação da infracção disciplinar, pelo alarme social que provoca e pela danosidade associada que, em regra terá para a eficácia funcional do serviço a prática de uma falta disciplinar que seja, ao mesmo tempo, tipificada como crime. Finalmente, porque no quadro da autonomia de ilícitos e independência de processos, justificados pela diferenciação dos bens a proteger, os comportamentos são apreciados à luz de normativos diversos, a partir de enfoques distintos, com critérios de prova diferentemente orientados, sem perigo de contradição entre a decisão disciplinar e a sentença penal, em termos que ponham em causa a unidade da ordem jurídica.

Assim se compreende, por um lado, que não haja norma expressa que determine a suspensão do processo disciplinar quando este e o processo criminal corram em paralelo, com incidência sobre os mesmos factos e que, portanto, em princípio, o procedimento disciplinar não tenha que aguardar o desenrolar do processo penal (acórdão STA de 2000.02.29 – recº nº 31 130) e, por outro lado, se justifica a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido que “o facto de o arguido ser absolvido em processo crime, não obsta, em princípio, à sua punição em processo disciplinar instaurado com base nos mesmos factos” (acórdão de 2002.01.24 – recº nº 48 147).”.

Por sua vez, nos termos do Acórdão do STA, de 12/01/2005, Proc. n.º 0930/04:

I - O ilícito disciplinar (que visa preservar a capacidade funcional do serviço) e o ilícito criminal (que se destina à defesa dos bens jurídicos essenciais à vida em sociedade) são diferenciados e autónomos, como diferenciados e autónomos são os processos em que se visa apreciação e punição de cada um deles e, sendo assim, o facto de o arguido ser absolvido em processo crime não obsta, em princípio, à sua punição em processo disciplinar instaurado com base nos mesmos factos e vice versa.

II. – Sendo que os vários ramos do direito têm funções e objectivos próprios e distintos nada impede que os mesmos factos possam desencadear, cumulativamente, sem violação do princípio ne bis in idem responsabilidade disciplinar e responsabilidade penal.

III. – Nesta conformidade, e por maioria de razão, aquele princípio não será violado se os mesmos factos servirem de fundamento à instauração de procedimento disciplinar e à fixação da respectiva sanção e, juntamente com outros, fundamentarem a apreciação e valoração do mérito e competência profissionais.”.

No mesmo sentido, o Acórdão do STA, de 06/12/2005, Processo n.º 42203.

Também no Acórdão do STA, de 27/01/2011, Processo n.º 01079/09:

IV. O processo disciplinar é distinto e autónomo do processo penal, assentando essa autonomia (…) na diversidade de pressupostos da responsabilidade criminal e disciplinar, bem como na diferente natureza e finalidade das penas nesses processos aplicáveis, podendo ser diversas as valorações que cada um deles faz dos mesmos factos e circunstâncias.”.

As relações que se estabelecem entre a responsabilidade criminal e a responsabilidade disciplinar são, sobretudo, relações de independência e autonomia, pois as responsabilidades são autónomas, podendo um facto dar origem às duas responsabilidades, sem que seja ofendido o princípio do ne bis in idem, preservando as finalidades dos sistemas disciplinar e penal.

Com relevo, “Referem-se outros exemplos jurisprudenciais históricos nesta matéria: o Acórdão do STA (Pleno), de 16-12-1946, Col.(P), v, pp. 129); Acórdão do STA de 15-10-1991, in BMJ, 410-846; Acórdão do STA de 22-04-1993, in processo n.º 28 804; Acórdão do STA de 14-10-1993, in processo n.º 031885; Acórdão do STA de 21-04-1994, in processo n.º 32 164; Acórdão do STA de 13-10-1994, in processo n.º 29716; Acórdão do STA de 24-1-2002, in processo n.º 48147; Acórdão do STA de 6-12-2005, in processo n.º 42203; Acórdão do STA de 21-05-2008, in processo n.º 0989/07; Acórdão do STA de 7-1-2009, in processo n.º 0223/08 e Acórdão do STA de 25-2-2010, in processo n.º 01035/08.” – Ana Sofia de Magalhães e Carvalho, “Responsabilidade criminal e o procedimento disciplinar”, e-book do Centro dos Estudos Judiciários, Direito das Relações Laborais da Administração Pública, junho 2018, nota 69, pp. 683.

Importa considerar o disposto no artigo 623.º do CPC, o qual, sobre a oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória, determina que a condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas de crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.

Considerando todo o exposto, devemos entender que à luz dos citados princípios da autonomia e da independência entre os processos crime e disciplinar, não se pode extrair do processo crime, designadamente, de uma condenação penal, quaisquer efeitos automáticos em sede de ilícito disciplinar, sob pena de inconstitucionalidade, por violação do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.

Por isso, decidiu o Tribunal Constitucional, a propósito do Estatuto Disciplinar de 1984 e da norma do artigo 38.º, n.º 1, do Regime Disciplinar da Polícia de Segurança Pública (RDPSP), constante da Lei n.º 7/90, de 20 de fevereiro, nos Acórdãos n.ºs 107/2016, de 24 de fevereiro de 2016, 62/2016, de 3 de fevereiro de 2016 e 273/2016, de 4 de maio de 2016, a inconstitucionalidade do artigo 38.º, n.º 1 do RDPSP, na parte em que determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base por efeito do despacho de pronúncia em processo penal, por infração a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos, por violação do princípio da presunção da inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP, conjugado com o princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.”.

A questão que se encontra em apreciação consiste a de saber se a Administração fica vinculada à decisão judicial penal quanto à factualidade dada como provada, designadamente, para o caso configurado em juízo, no caso de existir uma condenação penal transitada em julgado.

A questão não é obtém resposta unívoca entre a doutrina.

No sentido de que a força de caso julgado da sentença penal se impõe à Administração relativamente aos factos que foram dados por provados pelo Tribunal, no âmbito de uma sentença condenatória ou absolutória:

“(…) os factos dados por provados na sentença penal condenatória são incontestáveis em sede de procedimento disciplinar, tendo a Administração que dar por assentes tais factos e apenas podendo proceder à qualificação jurídica dos mesmos para efeitos de ilícito disciplinar. Por sua vez, os factos dados por provados na sentença penal absolutória também têm que ser dados por assentes para efeitos disciplinares, pelo que, se em sede criminal foi provado que os factos não ocorreram ou que não foi o arguido que os praticou, não pode em sede disciplinar fazer-se prova nem dar por provados os factos contrários. Já relativamente aos factos que não foram dados por provados pelo Tribunal criminal, nomeadamente por falta ou insuficiência de prova, nada impede que a Administração sobre eles faça prova em sede disciplinar e considere como assente aquilo que no procedimento criminal não foi tido como provado” – vide Paulo Veiga e Moura e Cátia Arrimar, “Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas”, 1.º Vol., Coimbra Editora, 2014, pp. 520-521.

Em termos idênticos, entendendo que o procedimento disciplinar instaurado após sentença penal condenatória implica vinculação à apreciação factual feita em juízo e que no que respeita aos factos provados, eles não podem ser ignorados pela Administração no procedimento disciplinar que instaurar, mas deverá existir espaço instrutório para a valoração disciplinar dos citados factos e ainda para o apuramento de eventuais factos que relevam apenas em sede disciplinar – Ana Fernanda Neves, “O Direito Disciplinar da Função Pública”, Vol. I, Lisboa, 2007, pp. 464 e 469-470 (http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/164/1/ulsd054620_td_vol_1.pdf).

Para outra doutrina, “Independentemente da força de caso julgado e respetivo alcance unanimemente aceite, a verdade é que, dada a independência das infrações, algum espaço juridicamente valorativo há-de ficar na disponibilidade da Administração. O poder disciplinar não é jurisdicional, mas administrativo. Portanto, pelo menos quanto à relevância dos factos em sede disciplinar, mantém-se a autonomia da Administração Pública, sob pena de intolerável intromissão na reserva de função administrativa.” – cfr. Raquel Carvalho, “Comentário ao Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas”, Universidade Católica Editora, outubro 2014, pp. 139.

A jurisprudência administrativa tomou já posição sobre esta matéria, não apenas nos termos do Acórdão do STA, datado de 25/03/2015, Processo n.º 01402/13, citado na sentença recorrida e que lhe serve de fundamento, como também, no Acórdão do STA, de 19/06/2007, Processo n.º 01058/06, onde se extrai o seguinte:

II - A decisão penal condenatória, transitada em julgada, vincula a decisão disciplinar no que respeita à verificação da existência material dos factos e dos seus autores, sem prejuízo da sua valoração e enquadramento jurídico para efeitos disciplinares”.

Por relevante, extrai-se a fundamentação de direito constante deste aresto do STA, cuja doutrina consideramos transponível e aplicável ao caso configurado em juízo, assumindo-se uma total concordância, a qual, por isso, se passa a reproduzir, por facilidade e economia de meios:

A questão da relevância, no processo disciplinar, de decisões proferidas em processo crime que versaram sobre o mesmos factos, tem sido abundantemente discutida na doutrina e na jurisprudência.

Como já observava, o Prof Eduardo Correia cf. citados autor, in Direito Criminal II, Coimbra 1992, p.5 e Parecer da PGR nº24/95, de 07.12.1995, citado no Parecer do Conselho Consultivo da PGR nº24/95, de 07.12.1995, «um mesmo facto pode constituir ao mesmo tempo uma falta penal e uma falta disciplinar; mas, igualmente pode acontecer que esse facto constitua uma infracção penal sem ter o carácter de falta disciplinar e que, inversamente, um facto constitua uma falta disciplinar, sem reunir as condições de uma infracção penal (…).

E isto porque, a autonomia dos campos disciplinar e penal caracteriza-se, «pela coexistência de espaços valorativos e sancionatórios próprios», desde logo, «só as faltas cometidas no exercício da função ou susceptíveis de comprometer a dignidade desta podem ser objecto de repressão disciplinar. (…)

«Na verdade, enquanto a repressão penal é exercida no interesse e segundo as necessidades da sociedade em geral, a repressão disciplinar é-no no interesse e segundo as necessidades do serviço. A sanção penal atinge o cidadão na sua liberdade e nos seus bens, a sanção disciplinar atinge o funcionário na sua situação de carreira (…). A valoração é, assim, autónoma e independente, donde resulta, pois, que a mesma conduta pode ser apreciada simultaneamente no campo penal e no campo disciplinar, sem que isso envolva violação do princípio “ne bis in idem”, que apenas funciona no âmbito de cada específico ordenamento sancionatório».

É também jurisprudência assente deste STA, que «o processo disciplinar é autónomo do processo criminal, uma vez que são diversos os fundamentos e fins das respectivas penas, bem como os pressupostos da respectiva responsabilidade, podendo ser diversas as valorações que cada uma delas faz dos mesmos factos e circunstâncias. Por isso, a existência de ilícito disciplinar não está prejudicada ou condicionada pela decisão que, sobre os mesmos factos, tenha sido, ou venha a ser tomada em processo penal»

«Pelo que, em princípio, torna-se irrelevante em processo disciplinar a invocação do facto de o processo crime ter sido arquivado. O invocado arquivamento ou uma eventual absolvição em processo criminal, não é factor impeditivo de a mesma conduta vir posteriormente a ser dada como demonstrada em procedimento disciplinar e se apresente violadora de determinados deveres gerais ou especiais decorrentes do exercício da actividade profissional exercida e, por isso, susceptível de integrar um comportamento disciplinarmente punível» cf. acs. STA de 25.02.99, rec. 37.235, 11.12.02, rec. 38.892, 09.10.2003, rec. 856/03, 11.02.04, rec. 42.203, 15.02.04, rec. 797/04, e do Pleno de 24.01.02, rec. 48.147, de 15.01.02, rec.47.261, de 22.10.98, rec. 42.519, de 25.09.97, rec. 38.658 e de 06.12.2005, rec. 42.203.

Aliás, a autonomia do procedimento disciplinar relativamente ao processo penal é hoje um dado adquirido.

O ilícito disciplinar não é, assim, um minus, mas um alliud relativamente ao ilícito criminal, sem prejuízo de algumas projecções, especialmente previstas na lei, do processo penal no ilícito disciplinar (cf. por exemplo, os artºs 4º, nº3 e artº 7º, nº3 do ED).

Tem-se discutido, a propósito, ainda da referida autonomia do processo disciplinar relativamente ao processo crime, qual a repercussão que tem, no ordenamento jurídico, a decisão proferida em processo crime, e para o que aqui nos interessa, quais os efeitos do caso julgado penal (condenatório ou absolutório) no âmbito do processo disciplinar.

No nosso caso, a discussão interessa apenas relativamente ao caso julgado penal condenatório, quando este abrange os mesmos factos objecto do processo disciplinar, como é aqui o caso.

Com efeito, a questão que se suscita é tão só a de saber se a decisão a proferir em processo disciplinar terá ou não de atender à factualidade provada no processo crime, ou poderá alhear-se dessa mesma factualidade, produzindo prova, em sede disciplinar, sobre esses mesmos factos, ou seja, abrindo a possibilidade de o arguido, depois de condenado por eles, em sede criminal, voltar a discuti-los agora em sede disciplinar.

Ora, é entendimento da doutrina e da jurisprudência deste STA que pese embora a afirmada autonomia entre os dois processos, a decisão disciplinar, nesse caso, não pode deixar de atender aos factos que a decisão penal transitada julgou provados e que são também objecto de apreciação no processo disciplinar.

É que a autonomia apontada não pode afirmar-se em prejuízo da unidade superior dos órgãos do Estado. Daí que a absolvição em processo criminal, mesmo por falta de provas, não constitui caso julgado em processo disciplinar, já a condenação do réu em processo criminal por certos factos não pode deixar de implicar a prova desses mesmos factos em processo disciplinar. cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 1972, p.39 e segs e acs. STA de 15.10.91, rec. 29.002, de 28.01.99, rec. 32.788 e de 18.02.99, rec. 37476

«A repressão disciplinar e a repressão criminal baseadas no mesmo facto, são independentes, uma vez que aquela visa a satisfação de interesses próprios de um grupo social, enquanto esta se preocupa com a defesa dos interesses essenciais da comunidade política.

As duas formas de repressão são exercidas separadamente sem que uma prejudique a outra, não envolvendo a condenação ou a absolvição numa necessariamente a condenação ou a absolvição na outra. Só assim não será, em nome da unidade superior do Estado, no caso da condenação do Réu em processo criminal por certos factos: nesta hipótese, a prova desses factos naquele processo deixa de implicar a prova desses mesmos factos em processo disciplinar». Cf. Ac. STA de 15.10.91, BMJ 410-846

Assim, «O caso julgado penal apenas abrange os factos provados (e os seus autores), já não os factos não provados», por isso, «a decisão proferida em processo penal, transitado em julgado, vincula a decisão disciplinar no que respeita à verificação da existência material dos factos e dos seus autores, podendo, contudo, a Administração proceder a uma qualificação jurídica diversa dos mesmos, à luz do direito disciplinar». acs. do STA de 28.01.99, rec. 32788 e de 18.02.99, rec. 37476 e L. Vasconcelos Abreu, Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português vigente: As Relações com o Processo Penal, Almedina, p. 116. (…)

Portanto, de acordo com esta doutrina e jurisprudência e em respeito do caso julgado penal (artº 84º e 467º, nº1 do CPP, artº 673º do CPC ex vi artº 4º e artº 205º,nº 2 da CRP), estava o Tribunal a quo vinculado aos factos dados por provados na decisão penal condenatória do recorrente, relevantes para a decisão destes autos, sem prejuízo da sua valoração e enquadramento jurídico para efeitos disciplinares.

E, com isso, em nada fica prejudicada a tutela judicial efectiva, pois, como é sabido, os meios de defesa do arguido, em processo penal, estão particularmente assegurados e os meios de investigação, são muito mais amplos e eficazes que os existentes em processo disciplinar, pelo que não ocorre a invocada violação do nº 4 do artº 268º da CRP.

De resto, o recorrente não refere nas suas alegações de recurso jurisdicional que existam outros factos concretos, além dos que se provaram na decisão penal condenatória, que sejam eventualmente relevantes para a decisão disciplinar e que tenham sido por si alegados na petição de recurso contencioso, e também não ofereceu, nem requereu, qualquer meio de prova no Tribunal a quo. (…)”. (sublinhados nossos).

O decidido pelo STA no acórdão que ora se transcreve é inteiramente transponível para o presente processo, pois também no caso dos autos o Requerente foi condenado, mediante decisão penal, pela prática de um crime de recebimento indevido de vantagem, na forma consumada, previsto e punido nos artigos 372.º, n.º 1, 66.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 67.º, do Código Penal, tendo os factos dados como provados no processo crime sido considerados em sede de procedimento disciplinar, mediante uma análise e enquadramento da sua atuação em sede da prática de ilícito disciplinar.

De acordo com o Relatório Final, em que se baseia o ato sancionatório disciplinar, ora suspendendo, é dada nota de toda a prova documental considerada no processo disciplinar, constante do seu ponto 2.1., assim como da prova testemunhal, referida no seu ponto 2.2., tendo sido produzidos meios de prova no âmbito do procedimento disciplinar, conforme resulta do ponto 7. do referido Relatório.

Por outro lado, é de entender que no caso em apreço, além de ter existido actividade instrutória, também existiu a análise crítica da defesa, nos termos em que consta do ponto 8. do Relatório Final, existindo a discriminação dos factos provados, segundo o ponto 10. e a apreciação jurídico-disciplinar dos factos provados, subsumindo-se os factos provados na violação do dever de isenção, previsto no artigo 8.º, n.ºs 1 e 2, alínea g) e do dever de aprumo, previsto no artigo 16.º, n.ºs 1 e 2, alínea f), ambos do Regime Disciplinar da PSP, conforme ponto 12. do Relatório Final.

Além do que antecede, existiu a apreciação da medida e da graduação da pena e a proposta da pena, nos termos dos pontos 13. e 14. do citado Relatório.

Nestes termos, é de entender que existiu por parte da entidade com competência disciplinar, a apreciação e a valoração dos factos dados como provados em sede do processo criminal, em sede do processo disciplinar, tendo também sido realizada actividade instrutória, garantindo-se ao arguido do processo disciplinar a oportunidade de apresentar a sua defesa e de apresentar e requerer meios de prova, não existindo, sem mais, o acolhimento dos factos dados por provados no processo crime.

Acresce que, na presente instância judicial, o Requerente não alega no requerimento inicial qualquer facto que não tenha sido anteriormente apreciado, não alegando, por isso, quaisquer outros factos, limitando-se a remeter para as declarações prestadas no seu depoimento, assim como de outras testemunhas, alegando existirem contradições e discordando da valoração que foi feita dos factos, considerando que devem determinar decisão diferente.

O Requerente não põe em crise que foram dados como provados factos que implicam a sua condenação, pois chega a alegar que “deveriam ter sido expurgados da acusação os factos dados como provados que implicavam a condenação do arguido” (cfr. artigo 45.º do requerimento inicial).

Por isso, toda a divergência radica na valoração da prova produzida, pois não nega o Requerente que resultaram demonstrados factos que determinam a sua condenação penal, quando vigora o princípio da livre apreciação da prova, salvo no tocante aos meios de prova legal.

Por outro lado, não logra o Requerente, ora Recorrido, impugnar a prova produzida, assim como não apresenta ou requer a produção de qualquer outra prova no presente processo.

Nestes termos, nos termos e pelas razões antecedentes, forçoso se tem de concluir pelo erro de julgamento em que incorre a sentença recorrida, sobre a verificação do requisito do fumus boni iuris, já que este se deve considerar como inverificado.


*

Em consequência do decidido, fica imediatamente prejudicado o conhecimento dos demais requisitos de decretamento da providência cautelar de suspensão de eficácia do ato, por serem de verificação cumulativa.

*

Pelo exposto, será de julgar procedente o recurso, por não provados os seus respetivos fundamentos.

*

Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Em sede de processo disciplinar, a Administração está vinculada aos factos dados por provados na decisão penal condenatória do recorrente, sem prejuízo da sua valoração e enquadramento jurídico para efeitos disciplinares.

II. A autonomia e a independência do processo crime e do processo disciplinar impede a condenação disciplinar por mero efeito automáticoda condenação penal, mas não obsta à consideração em sede de procedimento disciplinar dos factos dados como provados no processo crime.

III. Apurando-se ter existido actividade instrutória no âmbito do procedimento disciplinar, mediante a produção de prova testemunhal, assim como a análise da defesa apresentada e a análise crítica dos factos dados como provados, não se mostra violado os citados princípios da autonomia e independência dos processos crime e disciplinar,

IV. Em consequência, atenta a prova produzida quanto aos factos pelos quais o trabalhador foi acusado, falta o requisito do fumus boni iuris, necessário ao decretamento da providência cautelar de suspensão de eficácia do ato de aplicação da pena disciplinar de demissão.


*

Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, por provados os seus respetivos fundamentos, em revogar a decisão recorrida e, em consequência, não decretar a providência cautelar de suspensão de eficácia de ato administrativo, por falta dos seus legais pressupostos.

Sem custas.

Registe e Notifique.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)


(Pedro Marchão Marques)


(Helena Canelas)

Declaração de Voto:
Voto vencida por não concordar com a posição, que obteve vencimento, no sentido da não verificação do requisito do fumus boni iuris.
Isto porque entendo, que constituindo o processo-crime e o processo disciplinar dois tipos de processo distintos, em que são também distintos os bens jurídicos salvaguardados, a prova feita no processo-crime não releva sem mais, e automaticamente, para o processo disciplinar, como não deixa também em certa medida de ser referenciado na fundamentação do acórdão (neste sentido, entre outros, os acórdãos do STA de 21/09/2004, Proc. nº 047146; de 06/12/2005, Proc. n.º 42203; de 12/01/2005, Proc. nº 0930/04; de 19/06/2007, Proc. n.º 01058/06, de 27/01/2011, Proc. n.º 01079/09 e de 25/03/2015, Proc. 01402/13).
Isso implica, como é posição da jurisprudência mais recente do STA que “…a prova feita no processo-crime não releve para o processo disciplinar” (cfr. acórdão do STA de 25/03/2015, Proc. 01402/13), em termos que, como defende, aliás, a doutrina referida, deva existir um espaço instrutório para apuramento e valoração disciplinar dos factos. Em igual sentido já nos pronunciámos, também, em declaração de voto emitida no acórdão deste TCA Sul de 06/10/2016, Proc. nº 12.718/15.
Na situação dos autos existiu atividade instrutória, porém, como foi reconhecido na sentença recorrida, não só a factualidade que foi considerada provada no processo disciplinar, e que determinou a aplicação da pena de demissão ao requerente, coincide com a factualidade provada na sentença proferida no processo-crime, como também não existiu análise crítica da defesa, tendo o instrutor apontado como único fundamento a circunstância dessa mesma factualidade resultar provada na sentença crime, referindo, designadamente, que “…estando o instrutor vinculado à decisão judicial, transitada em julgado, mormente à sua factualidade, mostra-se mais que suficiente a prova produzida naquela sede e por isso, como é óbvio, recebeu-a em sede disciplinar (alínea h) do probatório)”.
Nesta medida, no meu entender, seria de fazer, mesmo numa apreciação perfunctória, próprio da sede cautelar, um juízo positivo quanto à probabilidade (que é o que é exigido pelo artigo 120º nº 1 do CPTA) da pretensão impugnatória dirigida ao ato disciplinar punitivo, com tal fundamento, como o fez a sentença recorrida.
Pelo que, verificando-se, também, o requisito do periculum in mora, negaria provimento ao recurso e confirmaria a sentença recorrida.
Lisboa, 28 de junho de 2018
(Helena Canelas)