Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:350/12.3 BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:02/24/2022
Relator:MARIA CARDOSO
Descritores:IMPUGNAÇÃO
CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
NULIDADE
Sumário:I. Os vícios do acto constituem, regra geral, fundamento da sua anulabilidade, só implicando a nulidade quando se verifique a falta de qualquer dos elementos essenciais do acto ou quando houver lei que expressamente preveja esta forma de invalidade (cfr. artigos 133.º, n.º 1, e 135.º do CPA, na redacção aplicável).

II. Para além dos actos a que faltem os elementos essenciais, são ainda nulos os actos referidos, a título de exemplificativo, no n.º 2 do artigo 133.º do CPA, situações que a lei comina expressamente com essa forma de invalidade, nomeadamente, na alínea d), os «actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental».

III. A violação do artigo 60.º da LGT ou a sua incorrecta realização pode ter como consequência normal a ilegalidade do próprio acto final e a sua consequente anulabilidade, mas não a nulidade (ao contrário do que ocorre nos procedimentos sancionatórios, art.º 32.º, n.º 10 CRP), porque não estamos perante um direito fundamental ou um valor ligado à dignidade do ser humano.

IV. O invocado vício de forma por alegada preterição de formalidades relativas à notificação do relatório de inspecção tributária não tem por efeito a sua nulidade.

V. Assim, não sendo os vícios alegados pela Recorrente, no âmbito do procedimento de inspecção tributária, susceptíveis de gerar a nulidade dos actos impugnados não é de aplicável o disposto no artigo 102.º, n.º 3, do CPPT.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a 1.ª Subsecção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO

1. D……, Lda. veio interpor recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou procedente a excepção de caducidade do direito de ação, absolvendo a Fazenda Pública da instância, no âmbito da impugnação judicial intentada contra os atos de liquidação de IRC, referentes aos anos de 2007, 2008 e 2009, no valor global de €56.469,34.

2. O Supremo Tribunal Administrativo, por decisão sumária, decidiu declarar a incompetência em razão da hierarquia para decidir o recurso interposto e a competência do Tribunal Central Administrativo Sul.

3. A Recorrente apresentou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

«1. A douta decisão “sub judice”, assimilou ao regime da anulabilidade, a sanção decorrente dos vícios invocados, por contraposição à nulidade sindicada pela Recorrente, D....., Lda;

2. Houve preterição do direito de participação dos cidadãos, na formação das decisões e deliberações que lhes digam respeito, tal como decorre do disposto no n° 5 do artigo 267° da Constituição da República Portuguesa.

3. A necessidade de adequação da tramitação ao princípio do contraditório, por forma a que o contribuinte participe activamente na formação da decisão, decorre do estabelecido no n° 1, do artigo 45° do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

4. Houve preterição da formalidade essencial da audição, antes da conclusão do relatório final da inspecção tributária, atento o disposto na alínea e), do n° 1, do artigo 60° da Lei Geral Tributária.

5. A inquirição pretendida era absolutamente essencial para suporte da importância/montante a determinar em sede de liquidação, no âmbito do relatório final do projecto de decisão.

6. A preterição pela administração fiscal da pretendida inquirição não assegurou o exercício do direito de audição, na sua plenitude, na justa medida em que não foi viabilizado o direito de contraditar a existência de valores facturados mas não recebidos.

7. O disposto nos n°s 3 e 4, do artigo 60°, do Regime Complementar de Procedimento da Inspecção Tributária, institui a inequívoca prerrogativa da entidade inspeccionada se pronunciar sobre o projecto de conclusões do relatório, nomeadamente quanto aos fundamentos para determinação da liquidação.

8. A omissão da inquirição pretendida pela entidade inspeccionada, importa preterição de uma formalidade manifestamente essencial, conducente à posterior liquidação em conformidade com a justiça do caso concreto, preterição esta que consubstancia uma nulidade.

9. O n° 2 do artigo 62°, do Regime Complementar de Procedimento da Inspecção Tributária, determina a necessidade do relatório final ser notificado por carta registada dirigida ao contribuinte, o que não aconteceu.

10. A administração fiscal preteriu uma formalidade entendida como essencial, corporizada na obrigação legal de promover a correlativa notificação do contribuinte, por via postal registada.

11. A administração fiscal não justificou a preterição da formalidade essencial de notificação do relatório final por via pessoal ou por via postal registada, sendo que nunca se valeu de nenhuma destas duas modalidades de comunicação, consignadas, de forma imperativa, no procedimento tributário.

Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, com a consequente revogação da douta sentença proferida, só assim se fazendo

Justiça»

3. A recorrida, Fazenda Pública, não apresentou contra-alegações.

4. Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo Sul, e dada vista ao Exmo. Procurador – Geral Adjunto, emitiu parecer, no qual renovou o parecer elaborado junto do STA, por com o mesmo concordar, no sentido de julgar improcedente o recurso.

5. Colhidos os vistos legais, vem o processo à Conferência para julgamento.


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II – QUESTÕES A DECIDIR:

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir se a sentença enferma de erro de julgamento de direito por ter julgado procedente a excepção da caducidade do direito de acção.


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III - FUNDAMENTAÇÃO

1. DE FACTO

A sentença recorrida proferiu a seguinte decisão relativa à matéria de facto:

«A) Em cumprimento das Ordens de Serviço n.°s OI2….., todas de 16.11.2010, a Administração Tributária efetuou uma ação inspetiva à sociedade Impugnante abrangendo os exercícios de 2007, 2008 e 2009 - facto não controvertido e cf. o Relatório de Inspeção Tributária (RIT) a fls. 32 a 45 do Processo Administrativo Tributário apenso (PAT).

B) No âmbito do procedimento inspetivo identificado em A), em 05.07.2011 a ora impugnante exerceu o direito de audição prévia, conforme requerimento de fls. 235/236 do PAT apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual arrola uma testemunha, e do qual resulta, além do mais, o seguinte:

«[...]

1. A Inspeccionada, D.... .Lda, admite, expressa, livre e inequivocamente, como devidas à Fazenda Pública, a título tanto de correcções a efectuar em sede de IRC, como em sede de IVA, as importâncias aferidas no âmbito da presente inspecção, tudo sem prejuízo da compensação a operar nos termos do disposto no artigo 89.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

[...]

Termos em que há lugar à compensação a operar nos termos do disposto no artigo 89°do Código de Procedimento e de Processo Tributário.»

- cf. fls. 235/236 do PAT apenso.

C) Em 08.07.2011 foi elaborado o relatório final no âmbito do procedimento de inspeção referido em A), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e no âmbito do qual, face a posição assumida pelo sujeito passivo no exercício do direito de audição prévia, se converteram em definitivas as correções propostas, sendo os valores em falta, em relação a IRC dos exercícios de 2007, 2008 e 2009, de € 67.295,09, € 64.369,59 e € 57.106,13, respetivamente, mais se concluindo, a propósito do pedido formulado a final no requerimento de exercício do direito de audição prévia, que «o procedimento de inspecção não é a sede própria para fazer o pedido de compensação […] o sujeito passivo vai ter que aguardar pela liquidação, elaborar um dossier identificando os créditos em mora de clientes com as facturas não recebidas de clientes […] e solicitar a sua compensação junto do Serviço de Finanças competente.

Face ao exposto consideramos desnecessária, nesta fase, a audição da testemunha apresentada.» - cf. fls. 32 a 45 do PAT apenso.

D) No dia 12.07.2011 foi efetuada a notificação do relatório de inspeção á ora impugnante “por afixação, em virtude de o(a) não ter encontrado no seu domicílio fiscal, na data/hora marcada [...]. A Nota do objecto de notificação ficou afixada na porta da sede/residência do sujeito passivo” - cf. fls. 238 a 244 do PAT apenso.

E) Por ofício de 13.07.2011, sob registo postal n.° RC 634...., foi enviada à ora impugnante a carta a que se refere o art.° 241.° do Código de Processo Civil - cf. fls. 245 do PAT apenso.

F) Atos impugnados: Em 03.08.2011, e na sequência das conclusões da ação de inspeção identificada em A), foram emitidas as liquidações adicionais de IRC relativas aos exercícios de 2007, 2008 e 2009, respetivamente com os n.°s 2011 83….., 2011 83…. e 2011 83…., no montantes de € 20.047,43, € 18.493,61 e € 15.747,51, com datas limite de pagamento voluntário em 12.09.2011, 15.09.2011 e 21.09.2011- cf. fls. 19, 21 e 23 do PAT apenso.

G) A presente impugnação judicial deu entrada nos serviços da Administração Tributária em 13.03.2012 - cf. fls. 4 dos autos (suporte físico).»


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MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:

Não existem outros factos alegados cuja não prova seja relevante para a decisão da causa.


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MOTIVAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO:

A convicção do Tribunal fundou-se na consideração dos factos provados no teor dos documentos reportados em cada uma das alíneas do probatório.


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2. ADITAMENTO OFICIOSO DA MATÉRIA DE FACTO

Por ser relevante para a decisão da causa, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 662.º do Código de Processo Civil (CPC), importa aditar ao probatório a seguinte matéria que igualmente se encontra provada nos autos:

H) A liquidação de IRC relativa ao exercício de 2007, melhor identificada na alínea F) supra, foi notificada à Impugnante, por carta registada, em 19/08/2011 (cfr. fls. 246 a 248 do PAT apenso);

I) A liquidação de IRC relativa ao exercício de 2008, melhor identificada na alínea F) supra, foi notificada à Impugnante, por carta registada, em 19/08/2011 (cfr. fls. 249 a 251 do PAT apenso);

J) A liquidação de IRC relativa ao exercício de 2009, melhor identificada na alínea F) supra, foi notificada à Impugnante, por carta registada, em 23/08/2011 (cfr. fls. 252 a 254 do PAT apenso).


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Além do aditamento oficioso realizado nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1 do CPC, considera-se a decisão da matéria de facto estabilizada.

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3. DE DIREITO

A única questão que importa apreciar e decidir é a de saber se a sentença recorrida errou ao ter julgado procedente a excepção da caducidade do direito de acção.

A sentença recorrida julgou extemporânea a impugnação judicial instaurada pela ora Recorrente, contra as identificadas liquidações adicionais de IRC, por considerar que os vícios invocados eram gerados de mera anulabilidade e quando a presente impugnação judicial deu entrada nos serviços da AT, tinha já, há muito, caducado o respecivo direito de acção.

A Mma. Juíza a quo para assim decidir expendeu a seguinte fundamentação:

(…) como bem invoca a Fazenda Pública, o prazo de 90 dias para deduzir impugnação judicial, previsto na al. a) do n.° 1 do art.° 102.° do CPPT, ocorreu em 12.12.2011 relativamente à liquidação de IRC do ano de 2007, em 15.12.2011 quanto à liquidação de 2008 e em 20.12.2011 relativamente à liquidação de 2009.

Assim, em 13.03.2012, data em que a presente impugnação judicial deu entrada nos serviços da AT [cf. al. G) dos factos provados], tinha já, há muito, caducado o respetivo direito de ação, pelo que a sua interposição se mostra extemporânea.

E não se diga, como defende a Impugnante, reconhecendo que foi ultrapassado o prazo previsto no na al. a) do n.° 1 do art.° 102.° do CPPT, que está em causa a nulidade dos atos de liquidação e que, por isso, a impugnação podia ser deduzida a todo o tempo.

Na verdade, os vícios dos atos de liquidação constituem fundamento, em regra, da sua anulabilidade, só implicando a sua nulidade quando se verifique a falta de qualquer dos elementos essenciais do ato ou quando houver lei que expressamente preveja essa forma de invalidade, nos termos do disposto nos artigos 161.°, n° 1, e 163.° do CPA.

No caso, os fundamentos invocados pela Impugnante com vista à eliminação dos atos de liquidação da ordem jurídica, não acarretam a respetiva nulidade, em face da doutrina que emerge dos artigos 161.°, n° 1, e 163.° do CPA, uma vez que a invocação de vícios de forma por alegada preterição de formalidades atinentes ao procedimento de inspeção, a proceder, sempre envolveria a mera anulabilidade dos atos, donde decorre que não o desvalor dos atos de liquidação objeto dos presentes autos não era invocável a todo o tempo.

Insurge-se a Recorrente contra esta decisão, alegando, em síntese, que a sanção decorrente dos vícios invocados é a nulidade.

Vejamos.

O artigo 102.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (na redacção aplicável) estatuíam o seguinte:

1 – A impugnação será apresentada no prazo de 90 dias a partir dos factos seguintes:

a) Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias igualmente notificadas;

(…)

3 – Se o fundamento for a nulidade, a impugnação pode ser deduzida a todo o tempo.

(…)

Das normas acabadas de transcrever resulta que nos casos em que os vícios imputados ao acto de liquidação sejam geradores de anulabilidade, a impugnação judicial que assente na invocação desses vícios deve ser apresentada no prazo de 90 dias, contando-se esse prazo, na situação dos autos, a partir do termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte.

Porém, a impugnação pode ser feita a todo o tempo, se o acto impugnado enfermar de vício para qual esteja prevista a sanção da nulidade.

A Recorrente não questiona que o prazo de 90 dias para deduzir impugnação se mostrava ultrapassado como ficou expresso na sentença recorrida, mas que os vícios invocados – preterição de formalidades legais no procedimento de inspecção tributária – consubstanciam nulidades, por violação dos artigos 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), 60.º da Lei Geral Tributária (LGT) e 62.º, n.º 2 do Regime Complementar de Procedimento da Inspecção Tributária (RCPIT).

Importa, assim, saber se se os vícios invocados pelo Recorrente são geradores de nulidade ou anulabilidade.

Os vícios do acto constituem, regra geral, fundamento da sua anulabilidade, só implicando a nulidade quando se verifique a falta de qualquer dos elementos essenciais do acto ou quando houver lei que expressamente preveja esta forma de invalidade (cfr. artigos 133.º, n.º 1, e 135.º do CPA, na redacção aplicável).

O artigo 133.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), na redacção aplicável, dispõe o seguinte:

1. São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.

2. São, designadamente, actos nulos:

a) Os actos viciados de usurpação de poder;

b) Os actos estranhos às atribuições dos ministérios ou das pessoas colectivas referidas no artigo 2º em que o seu autor se integre;

c) Os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime;
d) Os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental;

e) Os actos praticados sob coacção;

f) Os actos que careçam em absoluto de forma legal;

g) As deliberações de órgãos colegiais que forem tomadas tumultuosamente ou com inobservância do quórum ou da maioria legalmente exigidos;

h) Os actos que ofendam os casos julgados;

i) Os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente.

Por sua vez, o artigo 135.º do CPA, preceitua:

São anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja oura sanção.

Nas palavras de Jorge Lopes de Sousa:

«Na falta de dedução de impugnação judicial dentro do prazo legal aplicável, os interessados perdem o direito de impugnar o acto respectivo, se o vício do acto é gerador de anulabilidade . Como resulta do disposto no art. 135.º do CPA, a sanção da anulabilidade é residual, sendo aplicável sempre que a lei não preveja outra sanção para os actos administrativos (em que se incluem os tributários) praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis.

A impugnação dos actos anuláveis tem de se fazer no prazo que estiver previsto na lei, para cada caso. Se a impugnação não for deduzida nesse prazo, caduca o direito de impugnar com fundamento em vícios geradores de anulabilidade.

(…)

Para os actos que enfermem de vício para que esteja prevista a sanção de nulidade a impugnação pode ser feita a todo o tempo, como resulta do preceituado no n.º 3 do art. 102.º do CPPT, que está em sintonia com o disposto no art. 134.º, n.º 2, do CPA e no art. 58.º,n.º 1, do CPTA.» (in Código do Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentada, Vol. II, Áreas Editora, 6.ª Edição, 2011, págs. 155 e 156).

A Recorrente invoca como vícios dos actos de liquidação, a preterição do direito de audição prévia (por falta de inquirição de testemunha) em sede de inspecção tributária e a violação das regras relativas à notificação do relatório final tributário.

Como se viu, para além dos actos a que faltem os elementos essenciais, são ainda nulos os actos referidos, a título de exemplificativo, no n.º 2 do artigo 133.º do CPA, situações que a lei comina expressamente com essa forma de invalidade, nomeadamente, na alínea d), os «actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental», que nos parece ser a única que, das previstas nesse normativo, poderá equacionar-se nos presentes autos.

Ora, é entendimento da jurisprudência e da doutrina que não é qualquer ofensa de um direito fundamental que gera a nulidade do acto, mas apenas as ofensas do seu «conteúdo essencial».

«Uma ofensa deste tipo só ocorrerá quando perante ela o direito fundamental afectado fique sem expressão prática apreciável, o que não é o caso de uma liquidação ilegal, que apenas atinge limitadamente o direito de propriedade dos seus destinatários.

Por outro lado, entre as violações possíveis de direitos por normas tributárias, a sanção mais grave da nulidade, por razões de proporcionalidade, terá de ser reservada para os actos que representam mais graves violações dos direitos tributários.

No acórdão do STA de 23-11-2005, processo n.° 612/05, entendeu-se que os actos que afectam o conteúdo essencial de um direito fundamental hão-de ser aqueles que contendem com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, mas não aqueles que contendem com o princípio da legalidade, que são, assim, anuláveis e não nulos.» (Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., pág. 330).

Sobre esta matéria pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 25/05/2011, proferido no processo n.º 091/11, cujo discurso fundamentador sufragamos, do qual se transcreve a seguinte passagem:

«(…) em regra, os vícios dos actos administrativos e tributários implicam a sua mera anulabilidade, só ocorrendo nulidade quando falte qualquer elemento essencial (a inidentificabilidade orgânica e material mínima, nas palavras de MARCELO REBELO DE SOUSA) (in “Inexistência Jurídica” DJAP, volume V, página 242.), quando a lei expressamente o determine, ou quando se verifiquem as circunstâncias expressamente referidas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 133.º do CPA, designadamente quando ocorra ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental.
E, assim sendo, nem todos os actos que ferem princípios constitucionais são nulos, só o sendo aqueles que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental, isto é, que brigam com direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, e já não aqueles que brigam com o principio da legalidade tributária. Os actos violadores do princípio da legalidade tributária são anuláveis, e não nulos.» (no mesmo sentido veja-se, entre outos, Ac. do STA de 10/02/2014, processo n.º 0628/14; disponíveis em
www.dgsi.pt/).

Regressando ao caso dos autos.

A Recorrente alega a preterição de formalidade essencial, por não ter sido ouvida uma testemunha por si indicada no procedimento de inspecção, por violação dos artigos 60.º da LGT e 267.º, n.º 5 da CRP, invocando a nulidade resultante da omissão desse acto, ao abrigo do artigo 165.º do CPPT.

Em primeiro lugar de referir que o artigo 165.º do CPPT não tem aqui aplicação à situação dos autos, por as nulidades insanáveis previstas nesta norma apenas têm aplicação ao processo de execução fiscal.

O direito de audiência consagrado no artigo 60.º da LGT visa assegurar aos contribuintes o direito a ser ouvidos e a pronunciar-se nos procedimentos que lhes digam respeito, antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados do sentido dela. O direito de audição no procedimento tributário inclui, para além do direito de pronúncia sobre as questões que constituem objeto do procedimento, o de requerer a realização de diligências e juntar documentos, como resulta do teor expresso do n.º 3 do artigo 101.º do CPA (na redação aplicável), subsidiariamente aplicável (cf. alínea d) do artigo 2.º do CPPT).

Assim, o direito de audiência constitui não só uma manifestação do princípio do contraditório, visto ser através dele que se possibilita o confronto dos pontos de vista da Administração Tributária com o contribuinte, como uma importante garantia de defesa dos direitos deste, o que tem como consequência que o seu cumprimento seja considerado uma formalidade essencial.

Daí que a violação do artigo 60.º da LGT ou a sua incorrecta realização possa ter como consequência normal a ilegalidade do próprio acto final e a sua consequente anulabilidade (neste sentido vide Acs. STA de 31/01/12, processo n.º 0927/11, de 17/10/2012, processo 0187/12, e de 10/9/2014, processo 01681/13, todos disponíveis em www.dgsi.pt/), mas não a nulidade (ao contrário do que ocorre nos procedimentos sancionatórios, art.º 32.º, n.º 10 CRP), porque não estamos perante um direito fundamental ou um valor ligado à dignidade do ser humano.

Nesta maneira, não será de mais repetir que é entendimento unânime e consolidado da nossa jurisprudência que o vício resultante de falta de audição, tem como forma de invalidade correspondente a mera anulabilidade (neste sentido, entre muitos, acórdãos do STA de 8/6/1999, processo 44565, de 25/06/2009, proc. 0151/09, de 16/10/2002, processo 941/02, de 24/10/2002, processo 44052, de 25/6/2009, Processo 151/09, de 17/10/2012, Processo 0187/12, de 10/9/2014, processo 01681/13, disponíveis em www.dgsi.pt/).

O Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se sobre esta matéria, no acórdão n.º 594/2008, de 10/12/2008, proferido no processo n.º 1111/07, não julgou inconstitucional a interpretação dos artigos. 100.º, 123.º, n.º 1, alínea d), 124.º, n.º 1, alínea a), e 133.º, n.º s 1 e 2, alínea d), do CPA, no sentido de que nem a deficiência da fundamentação nem a falta audiência prévia geram a nulidade deste acto.

Alega ainda a Recorrente que a Administração Tributária preteriu uma formalidade essencial corporizada na obrigação legal de promover a correlativa notificação ao contribuinte do relatório final da acção inspectiva, por via postal registada, nos termos do n.º 2, do artigo 62.º do RCPIT.

Acresce deixar expresso que a Recorrente não questiona que a notificação não chegou à sua esfera de cognoscibilidade, mas tão só que não chegou pela forma legalmente exigida.

Ora, também aqui, constitui jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Administrativo que as formalidades procedimentais previstas na lei são essenciais, mas desgraduam-se em não essenciais se, apesar delas, foi atingido o fim que a lei visava alcançar com a sua imposição (vide entre muitos outros Acs. do STA de 08/09/2010, proc. n.º 0437/10, de 19/04/2012, proc. 0852/11, de 15/11/2018, proc. 0278/16 e de 14/10/2020, proc. 01554/14, todos disponíveis em www.dgsi.pt/).

Logo, o invocado vício de forma por alegada preterição de formalidades relativas à notificação do relatório de inspecção tributária não tem por efeito a sua nulidade.

Donde resulta que, a Recorrente apenas invocou factos integráveis em ilegalidades com o desvalor jurídico da anulabilidade.

Assim, não sendo os vícios alegados pela Recorrente, no âmbito do procedimento de inspecção tributária, susceptíveis de gerar a nulidade dos actos impugnados não é de aplicável o disposto no artigo 102.º, n.º 3, do CPPT, pelo que estava a impugnação judicial sujeita ao prazo legal de 90 dias a contar do termo do prazo para pagamento voluntário das dívidas tributárias, que no caso, manifestamente, já havia decorrido, como bem se decidiu na decisão recorrida.

Improcedem assim todas as conclusões do recurso.

Pelo exposto, o recurso não merece provimento, devendo confirmar-se a sentença que julgou verificada a excepção de caducidade do direito de acção.


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Conclusões/Sumário:

I. Os vícios do acto constituem, regra geral, fundamento da sua anulabilidade, só implicando a nulidade quando se verifique a falta de qualquer dos elementos essenciais do acto ou quando houver lei que expressamente preveja esta forma de invalidade (cfr. artigos 133.º, n.º 1, e 135.º do CPA, na redacção aplicável).

II. Para além dos actos a que faltem os elementos essenciais, são ainda nulos os actos referidos, a título de exemplificativo, no n.º 2 do artigo 133.º do CPA, situações que a lei comina expressamente com essa forma de invalidade, nomeadamente, na alínea d), os «actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental».

III. A violação do artigo 60.º da LGT ou a sua incorrecta realização pode ter como consequência normal a ilegalidade do próprio acto final e a sua consequente anulabilidade, mas não a nulidade (ao contrário do que ocorre nos procedimentos sancionatórios, art.º 32.º, n.º 10 CRP), porque não estamos perante um direito fundamental ou um valor ligado à dignidade do ser humano.

IV. O invocado vício de forma por alegada preterição de formalidades relativas à notificação do relatório de inspecção tributária não tem por efeito a sua nulidade.

V. Assim, não sendo os vícios alegados pela Recorrente, no âmbito do procedimento de inspecção tributária, susceptíveis de gerar a nulidade dos actos impugnados não é de aplicável o disposto no artigo 102.º, n.º 3, do CPPT.


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IV – DECISÃO

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da 1.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Notifique.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2022



Maria Cardoso - Relatora
Catarina Almeida e Sousa – 1.ª Adjunta
Isabel Fernandes – 2.ª Adjunta

(assinaturas digitais)