Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:94/18.2BELLE
Secção:CA
Data do Acordão:09/09/2021
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:LITISPENDÊNCIA
Sumário:I - A litispendência pressupõe a repetição de uma causa, porque estão em curso duas acções idênticas quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
II - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. Há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, sendo nas acções constitutivas e de anulação o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
I - RELATÓRIO
O Ministério Público (MP) interpôs recurso da decisão do TAF de Loulé que julgou verificada a excepção de litispendência.
Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões:”1. Nos presentes autos, o Ministério Público, em defesa da legalidade e do urbanismo, impugnou os actos administrativos praticados pela Câmara Municipal de Olhão no âmbito dos requerimentos para concessão de alvarás de autorização para ocupação dos talhões n.ºs 2.. e 2.., situados na Ilha da Armona, Olhão, e dos pedidos de licença de alteração e ampliação n.ºs 7…./89 e 7…/89, acima identificados.
2. A acção foi interposta contra o Município de Olhão, sendo contra-interessado P…, tendo sido indicados, como fundamentos do pedido, a incompetência da entidade licenciadora, a violação do POOC, do Regime Jurídico da REN e do Parque Natural da Ria Formosa.
3. Na acção n.º 121/17.0BELLE-A veio P… demandar a APA, indicando como contra-interessado o Município de Olhão, pedindo a declaração de invalidade do despacho produzido pela APA em 2 de Fevereiro de 2017, que determinou a demolição do edificado por si nos talhões identificados sitos na Ilha da Armona, e a atribuição de efeitos aos actos de licenciamento produzidos pela Câmara Municipal de Olhão, que assumiu serem nulos por incompetência daquela entidade para os produzir.
4. A sentença proferida considerou verificar-se a excepção de litispendência por haver correspondência entre as partes (sendo que a APA e o Ministério Público, cada um em cada uma das acções referidas, assume a posição de legalidade na defesa do interesse público) e por o pedido formulado na referida acção n.º 121/17 englobar o pedido formulado na presente acção.
5. Considerou o Mm.º Juiz que o pedido daquela acção engloba o formulado neste porquanto, ao pedir a atribuição de efeitos putativos aos actos de licenciamento, reflexamente exige que se aprecie a legalidade daquele licenciamento – precisamente o que é discutido na presente acção.
6. Carece de razão, porém.
7. Assim, e em primeiro lugar, não se pode defender que APA e Ministério Público representam a mesma parte, os mesmos interesses jurídicos.
8. O Ministério Público é uma magistratura dotada de independência e autonomia (art.ºs 219.º da Constituição da República Portuguesa e 3.º do Estatuto do Ministério Púbico), cabendo-lhe a defesa intransigente da legalidade, sob toda e qualquer perspectiva (conforme refere o art.º 4.º do Estatuto do Ministério Público, cabe a esta magistratura “defender a legalidade democrática”);
9. Diferentemente, a APA tem uma natureza distinta: trata-se de um órgão administrativo dependente do Governo e que deverá cumprir as suas ordens.
10. Ora, considerando a diferente natureza das duas entidades em questão, nunca se poderá dizer, salvo o devido respeito por opinião contrária, que uma entidade independente e autónoma se pode colocar no mesmo patamar que uma entidade que depende do Governo de Portugal: basta perspectivar o andamento da acção acima referida, e a posição que a APA pode vir a assumir, para perceber que esta entidade e o Ministério Público podem não assumir a defesa dos mesmos interesses.
11. Não existe, igualmente, coincidência (ainda que parcial) dos pedidos efectuados.
12. Na acção n.º 121/17.0BELLE-A o ali Autor assume a ilegalidade dos actos por os mesmos se reportarem ao licenciamento de construções numa área situada fora da concessão atribuída ao Município de Olhão na Ilha da Armona, sendo que o pedido é o de atribuição de efeitos jurídicos àqueles actos.
13. Uma vez que não são impugnados directamente os actos de licenciamento, não se aplica à apreciação da respectiva validade a excepção consagrada no n.º 3 do art.º 95.º do CPTA, que permite que se apreciem todas as causas que podem determinar a invalidade dos actos impugnados, independentemente de terem, ou não, sendo invocados.
14. Ao invés, aplica-se a regra constante do art.º 95.º, n.º 1, do CPTA, segundo a qual “a sentença deve decidir todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas”.
15. Ora, admitindo-se que a excepção de litispendência pretende, acima de tudo, que não existam duas sentenças que, debruçando-se sobre a mesma situação, se possam contradizer, fácil é de ver que não é esse o caso presente.
16. Não nos esqueçamos que foram formulados dois pedidos na acção 121/17: a declaração de invalidade do acto proferido pela APA e a atribuição de efeitos putativos aos actos de licenciamento.
17. Para termos uma ideia acerca da não total coincidência entre os pedidos formulados nesta acção e na acção n.º 121/17, vejamos quais os limites a que está sujito o Mm.º Juiz que apreciar aquela acção: deverá, em primeiro lugar, apreciar o acto administrativo concretamente impugnado, isto é, o acto proferido pela APA. Depois, deverá apreciar o pedido de atribuição de efeitos putativos aos actos de licenciamento, na perspectiva apresentada, ou seja, na perspectiva de terem sido, ou não, proferidos por entidade que para tal tinha competência.
18. Não tendo, na acção n.º 117/17, sido impugnados os actos de licenciamento, não poderá o Juiz apreciar, sob todas as perspectivas (nomeadamente atendendo às regras constantes dos regimes da REN, POOC e PNRF), aqueles actos sob pena de a sentença a proferir extravasar os seus limites materiais e ser, por isso, inválida.
19. É certo que o objecto material é o mesmo em ambas as acções: reportam-se ambas à existência de uma casa na Ilha da Armona, no Município de Olhão.
20. Porém, na presente acção são concretamente impugnados os actos de licenciamento sendo, por isso, lícito apreciar todas e quaisquer causas que determinem a sua invalidade.
21. Ao invés, a decisão que se formar na referida acção n.º 121/17 nunca se poderá debruçar acerca das concretas causas de invalidade dos actos aqui impugnados, as quais são diversas e mais amplas em relação àquele pedido.
22. No caso presente estamos perante uma causa prejudicial - entendida como “aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21/01/2016, proferido no processo n.º 457/15.5T8BJA).
23. Nestes autos impugnam-se os actos que licenciaram a construção edificada pelo aqui contra-interessado na Ilha da Armona. Na acção n.º 121/17 impugna-se um acto que determinou a demolição do edificado e a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos aos actos de licenciamento por os mesmos padecerem de ilegalidade por incompetência da entidade que os licenciou.
24. É necessário saber se aqueles actos de licenciamento são, ou não, válidos, atendendo não só à competência para os praticar como ainda à necessidade de intervenção de diversas entidades em todo o processo de licenciamento. E, depois de se apurar a (in)validade dos referidos actos é que se poderá verificar se aos mesmos podem ser atribuídos efeitos jurídicos ou, não o sendo, se será válido o acto que determinou a demolição de todo o edificado.
25. Constituindo a presente acção uma causa prejudicial em relação à acção n. 121/17, deverá aquela ser suspensa, ao abrigo do disposto no art.º 272.º, n. 1 do Código de Processo Penal.
26. Ao decidir nos termos em que o fez, violou o Sr. Juiz o disposto nos art.ºs 580.º, 581.º e 272.º do Código de Processo Civil, e o art.º 95.º, n.º 1, do CPTA.“

O Recorrido P… R… R… nas contra-alegações formulou as seguintes conclusões: “A – A presente ação foi intentada pelo MP, pedindo a declaração de nulidade dos atos camarários, sendo partes o MP como Autor em ação pública, o Município de Olhão, como Réu, enquanto autor dos atos impugnados e o ora Recorrido, como Contrainteressado, enquanto destinatário de tais atos constitutivos de direitos.
B – A presente ação foi intentada em momento posterior à propositura da ação que corre sob o n.º de processo 121/17.0BELLE-A, em que o ora Recorrido, enquanto autor, peticionou, ambos a título principal: (i) a declaração de nulidade ou anulação do ato que ordena a demolição do edificado construído ao abrigo dos atos camarários, e (ii) o reconhecimento dos efeitos putativos produzidos pelos atos camarários impugnados nesta ação, derivados dos princípios referidos no artigo 162.º, n.º 3, do CPA.
C – No processo n.º 121/17.0BELLE-A são partes o ora Recorrido, como autor, a Agência Portuguesa do Ambiente, como ré, e o Município de Olhão como contrainteressado.
D – Em sede de contestação oferecida nos presentes autos, o ora Recorrido alegou litispendência entre a presente ação e a que corre sob o número 121/17.0BELLE-A; a sentença recorrida confirmou a ocorrência de litispendência, absolvendo o ora Recorrido da instância.
E – Não conformado, o MP recorreu, considerando não verificada a tríplice identidade de que o CPC faz depender a litispendência.
F – Desde logo porque (alega erradamente o MP) não se verifica a identidade de sujeitos, uma vez que, embora haja coincidência de sujeitos entre as duas ações, tal coincidência seria meramente parcial, já que o MP e a APA não são uma e a mesma pessoa, nem prosseguem os mesmos interesses.
G – A sentença recorrida, sob a qual não pode recair censura, considerou que não seria assim porque o que importa para apuramento da identidade de sujeitos é – como afirmado, por exemplo, pelos Srs. Professores LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE – o caso julgado subjetivo que se forme na ação que pende.
H – A partir do momento em que também o MP será abrangido pelo caso julgado da ação que pende, encontra-se verificada a identidade de sujeitos entre o processo n.º 121/17.0BELLE-A e a presente ação.
I – Desde logo, porque da sentença administrativa se devem retirar todas as consequências e a declaração de nulidade produz efeitos erga omnes quando seja declarada por tribunal administrativo – e não meramente conhecida para efeitos de desaplicação –, nos termos do artigo 162.º, n.º 2, do CPA, algo que aqui ocorrerá.
J – Depois, o MP será abrangido pelo caso julgado do processo n.º 121/17.0BELLE-A uma vez que o atual modelo da ação pública do MP, previsto no CPTA, não lhe permite instaurar uma ação com o mesmo objeto que uma já instaurada pelo particular; resta-lhe exercer a ação pública complementar, nessa ação já intentada.
K – Para além disso, no que toca à defesa da legalidade urbanística, o MP tem competência concorrente com variadíssimas autoridades administrativas; no caso concreto, a APA defende a legalidade urbanística relacionada com o Domínio Público Marítimo e o MP defende a legalidade em geral, o que, se levado à letra, impossibilitaria litispendência relativamente a ação intentada pelo MP.
L – Neste sentido, e como bem avança a sentença recorrida, o facto de o MP não ter legitimidade passiva neste caso concreto, só contribui para conduzir à conclusão de que há litispendência sempre que se discuta em juízo determinado objeto com uma pessoa da Administração Pública e, posteriormente, surja o MP, noutra ação, no âmbito da defesa da legalidade, pretendendo discutir o mesmo objeto com os mesmos sujeitos com que a referida pessoa coletiva pública litiga.
M – Aceitar entendimento oposto ao referido na Conclusão anterior leva à absurda conclusão, como dito, de que o MP nunca se encontra, em caso algum, abrangido pela litispendência, o que vai contra o senso-comum e, mais importante, contra o disposto no artigo 580.º, n.º 2, do CPC, ex vi do artigo 1.º do CPTA, e contra o valor da paz jurídica que a litispendência visa defender.
N – No que toca à identidade de pedidos, o MP considera que não foi pedida a nulidade dos atos camarários, mas tão só o reconhecimento dos efeitos putativos desses atos; salvo o devido respeito, trata-se apenas de um exercício de nominalismo que nem sequer é inteiramente correto à luz da doutrina e da jurisprudência.
O – Se considerarmos como ponto de partida para a análise da litispendência os limites objetivos do caso julgado que se formará a partir do processo n.º 121/17.0BELLE-A (como é de considerar, atenta a finalidade da figura da litispendência), então é-se forçado a reconhecer que a decisão da nulidade dos atos camarários entra nesses limites e, por isso, é apta a gerar litispendência na relação com os presentes autos.
P – A jurisprudência tem afirmado consistentemente que os fundamentos lógicos necessários à pronúncia judicial integram o caso julgado (cfr. § 71, supra) e que, a esta luz, é de admitir o chamado caso julgado implícito.
Q – No presente caso, não há efeitos putativos sem que o ato seja nulo, pelo que a declaração de nulidade dos atos camarários é conditio sine qua non para a peticionada decisão sobre os efeitos putativos, o que leva a que, nem que seja pelo caso julgado implícito, fique o objeto desta ação abrangido pela autoridade de caso julgado que se formará na ação que pende.
R – Ainda que não se considere tal facto, a jurisprudência tem também admitido o reconhecimento de pedidos implícitos, sempre que da interpretação das peças processuais seja facilmente reconhecível que tal pedido corresponde ainda à pretensão de tutela.
S – Também por aqui, não bastassem todos os outros argumentos, se demonstra que ocorre identidade de pedidos porque a declaração de nulidade é absolutamente necessária – e por isso foi densificada pelo próprio impugnante beneficiário dos atos nulos – para dar satisfação ao pedido de reconhecimento de efeitos putativos (cfr. §§ 92-95, supra); neste sentido, bem andou a sentença recorrida ao reconhecer que ocorria identidade de pedidos.
T – Relativamente à identidade de causas de pedir também não pode haver dúvidas que se verificam, desde logo porque o MP – erradamente – sustentou essa falta de identidade no alegado facto de o ora Recorrido, na ação que pende e na qual é autor, ter considerado os atos camarários nulos apenas por incompetência.
U – É manifestamente falsa a alegação reproduzida na Conclusão anterior, pois que as causas de nulidade apontadas são exatamente as mesmas, nem mais, nem menos, do que aquelas que o MP aponta na presente ação (cfr., supra, § 22, identificando as causas invocadas pelo MP nesta ação e § 35 identificando as causas invocadas pelo ora Recorrido, então autor, no processo n.º 121/17.0BELLE-A).
V – Finalmente, não é de identificar aqui qualquer causa prejudicial ou ainda de aplicar o artigo 272.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 1.º do CPTA, pelo simples motivo de que não estamos perante uma causa prejudicial, mas sim perante uma causa que, tendo sido intentada em segundo lugar, tem o seu objeto integralmente consumido por aquela proposta em primeiro lugar.
W – Mais ainda, de um ponto de vista teleológico, como bem se afirma na sentença, “a decisão que viesse a ser proferida, ainda que suspendendo a instância por causa prejudicial, limitar-se-ia a repetir o julgado no processo n.º 121/17.0BELLE-A quando [sic] à (in)validade dos atos impugnados, ou a contradizer o aí decidido, o que em nenhum dos casos é desejado pela lei processual” (p. 13 da sentença recorrida).
X – Verifica-se, assim, a tríplice identidade, sendo igualmente certo que o critério teleológico da litispendência também se verifica.
Y – Não se verifica qualquer causa prejudicial e, mesmo que fosse de aplicar o artigo 272.º, n.º 1, do CPC, ocorreria uma mera repetição de julgados, sem interesse nem para as partes envolvidas, nem certamente para o interesse público, que preza a economia dos meios e dos atos.
Z – Termos em que a sentença recorrida não merece qualquer censura, devendo ser mantida.”

O Recorrido Município de Olhão (MO) nas contra-alegações formulou as seguintes conclusões: “1. Vem o Ministério Público recorrer da sentença que absolveu o R. da Instância por considerar procedente a exceção de litispendência invocada, com os fundamentos constantes nas alegações de recurso, as quais não deverão proceder.
2. O MP vem insurgir-se quanto ao decidido na sentença por considerar que a APA (R. na acção 121/17.0BELLE que corre termos no TAF Loulé) e o Ministério Público não representam a mesma parte, os mesmos interesses jurídicos, por terem natureza distinta, uma dependente do
Governo, outra independente, defendendo que as mesmas não se podem considerar no mesmo patamar.
3. O facto é que a sentença encontra-se perfeitamente fundamentada quando considera que existe identidade partes, para efeitos de decidir pela existência da litispendência, nomeadamente no que refere no paragrafo 1º e 2º da página 7, que remete ainda para a decisão do STJ de 22.02.2015 e no 3º a 5º parágrafo da página 8 da sentença.
4. E a fundamentação apresentada no recurso, pelo Ministério Público não consegue atacar o decidido na sentença, mantendo apenas que as partes têm diferentes naturezas, mas não tirando qualquer consequência prática, que infirme o que foi sentenciado.
5. Que essas partes não têm a mesma natureza, claramente o diz a sentença quando refere: que nominalmente as partes não são as mesmas, porém atribui-lhes um mesmo “pólo de interesse”.
6. E o interesse subjacente, materialmente considerado, é o que deve ser, como foi, apreciado para a verificação da litispendência.
7. Tudo razões pelas quais se entende que a sentença não merece qualquer reparo, devendo ser mantido o decidido na sentença quanto à identidade das partes.
8. Depois defende o Ministério Público, que não existe identidade de pedidos nas duas ações, porém sem razão.
9. E remete-se, por serem claros e esclarecedores, para os argumentos plasmados na sentença, porque a eles se adere, nomeadamente de que a identidade dos pedidos é parcial mas que, a apreciação do peticionado na ação 121/17.0BELLE TAF Loulé e a decisão que sobre essa questão ai recair, vai absolver o pedido do Ministério Público.
10. Tudo como vem referido, no último parágrafo da pág. 11, 1º paragrafo da pág. 12 da sentença.
11. E não se diga que a nulidade dos atos não vai ser apreciada na ação na qual a APA é Ré, já que, atento o pedido de declaração de efeitos putativos de ato nulo, será apreciada a nulidade dos atos, atento os fundamentos invocados na P.I. e tendo em conta a oficiosidade no conhecimento das nulidades de atos.
12. E por isso, não colhem os argumentos invocados pelo Ministério Público, para pôr em crise a sentença ao que à identidade de pedidos diz respeito.
13. E quanto às causas de pedir, subscreve-se também o que vem dito na sentença que não merece reparo: “Ou seja, os factos jurídicos concretos que servem de fundamento às pretensões de ambas acções são os mesmos: a construção pelo Contra-Interessado, nos talhões 203 e 204, alegadamente em domínio público marítimo na ilha de Armona, sustentada em decisões prévias do Município de Olhão, ora Entidade Demandada, susceptíveis de consubstanciar o reconhecimento de efeitos jurídicos das situações de facto em apreço.
Encontra-se assim verificado o requisito previsto no nº 4 do artigo 581º do CPC.”
14. E porque se entende que o que vem explanado na sentença é o direito aplicável ao caso concreto, não se pode considerar aplicável que estejamos perante uma causa prejudicial como defendido no recurso do Ministério Público, o que se rejeita.”

II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
Em aplicação do art.º 663º, n.º 6, do Código de Processo Civil (CPC), ex vi do art.º 1.º e 140.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), por não ter sido impugnada, remete-se a matéria de facto para os termos em que foi decidida pela 1.ª instância.

II.2 - O DIREITO
As questões a decidir neste recurso são:
- aferir do erro decisório e da violação dos art.ºs 272.º, 580.º, 581.º do CC e 95.º, n.º 1, do CPTA, porque entre a presente acção e a acção n.º 121/17.BELLE-A não há coincidência de partes, nem total coincidência de pedidos, pois o MP e a APA não representam a mesma parte e na acção n.º 121/17.BELLE-A não foram impugnados os actos de licenciamento, tal como aqui se faz, ocorrendo, apenas, uma situação de causa prejudicial.
Diga-se, desde já, que o presente recurso procede.
De harmonia com o disposto nos art.ºs 580.º e 581.º do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, há litispendência quando se repete uma causa e repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. Há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, sendo nas acções constitutivas e de anulação o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
Ora, nos presentes autos verifica-se que o A. é o MP. Os RR. são o MO e P… . Na acção administrativa acção n.º 121/17.BELLE-A o A. é P… e o R. é a Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Logo, o MP e o MO não são partes na acção n.º 121/17.BELLE-A e nesta acção a APA também não é parte.
No mais, contrariamente ao julgado na decisão recorrida, o MP e a APA não representam os mesmos interesses jurídicos nem podem ser entendidos como correspondendo a uma mesma parte. O MP não se confunde juridicamente coma APA, sendo o MP e a APA entidades totalmente distintas, que prosseguem diferentes interesses públicos e que têm atribuições diferenciadas.
O MP é uma magistratura dotada de independência e autonomia, a quem cabe a defesa da legalidade democrática – cf. art.sº 219.º da Constituição da República Portuguesa e 3.º do Estatuto do MP, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27/08.
Já a APA é um instituto público integrado na administração directa do Estado a que cabe “propor, desenvolver e acompanhar a gestão integrada e participada das políticas de ambiente e de desenvolvimento sustentável, de forma articulada com outras políticas sectoriais e em colaboração com entidades públicas e privadas que concorram para o mesmo fim, tendo em vista um elevado nível de protecção e de valorização do ambiente e a prestação de serviços de elevada qualidade aos cidadãos” - cf art.ºs 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 56/2012, de 12/03.
Por conseguinte, as duas acções não têm os mesmos sujeitos jurídicos ou processuais.
O pedido – meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor – deve ser encarado sob dupla perspectiva: como pretensão material de obter decisão que declare um direito ou reconheça o direito que o autor (ou o réu reconvinte) se arroga pertencer-lhe, e como pretensão processual, no sentido da ver o réu (ou o autor) condenado a uma dada conduta ou abstenção, em consequência desse reconhecimento.
A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido. Fora dos casos em que a causa de pedir é complexa, a causa de pedir assente normalmente no facto ou acto jurídico que o autor aduz como título aquisitivo do direito que se arroga.
Confrontadas ambas as acções, tal como invoca o Recorrente, também não há identidade de causa de pedir e de pedidos.
Ou seja, não se pode concluir pela identidade de sujeitos e de pedidos, pelo que não pode proceder a excepção de litispendência invocada.
Consequentemente, haverá que revogar a decisão recorrida.
Quanto à alegação do DMMP relativa à eventual existência de causa prejudicial, a mesma não foi apreciada pela decisão sindicada, porque julgou verificada a excepção de litispendência. Por conseguinte, não pode agora este tribunal pronunciar-se sobre uma questão que não foi alvo de uma primeira pronúncia pelo TAF.

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam:
- em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e julgar não verificada a excepção de litispendência suscitada;
- em determinar a baixa dos autos ao TAF de Loulé, para seguirem os seus demais termos;
- custas pelos Recorridos, em partes iguais (cf. art.ºs. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2, do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).

Lisboa, 9 de Setembro de 2021.

(Sofia David)

O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art.º 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1/05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Dora Lucas Neto e Pedro Nuno Figueiredo.