Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:611/21.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:09/09/2021
Relator:ANA PAULA MARTINS
Descritores:PROTECÇÃO INTERNACIONAL;
RETOMA A CARGO (ITÁLIA);
FALHAS SISTÉMICAS;
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO;
LÍNGUA;
Sumário:I - Não cabe ao Estado português apreciar e decidir o pedido de protecção internacional se outro país é o responsável pela retoma a cargo.

II - Não resultando do procedimento em causa qualquer indício sério e concreto de que a transferência do Autor para Itália o colocará em risco sério de aí vir a ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, é de afastar que, da aplicação do princípio do non-refoulement, resulte a imposição ao SEF de averiguar acerca das condições no procedimento de asilo e no acolhimento em Itália.

Votação:VOTO DE VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo, do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

A…, melhor identificado nos autos, instaurou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, processo urgente, nos termos do artigo 37.º n.º 4 e 5 da Lei 27/2008, de 30 de Junho, contra o Ministério da Administração Interna, pedindo a declaração de nulidade da decisão do director do SEF, de 10/02/2021, que determinou a transferência do Autor para Itália e a sua substituição por outra que permita a análise do pedido de protecção internacional que formulou pelo Estado Português, de acordo com o previsto nos artigos 161.º n.º 1 e 2 alínea d) e g) ex vi artigos 152.º nº 1 alínea a) e 153.º n.º 1 e 2, todos do Código de Procedimento Administrativo.
Por sentença de 30.05.2021, a acção foi julgada improcedente e a Entidade Demandada absolvida do pedido.
Inconformado com a decisão proferida, o Autor recorre da mesma.
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Concluiu as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
− A decisão de expulsão do Recorrente foi-lhe comunicada verbalmente em língua fula, porém o suporte escrito e respetiva documentação não foram traduzidos da língua portuguesa para a língua fula. Tal facto, consubstancia um vicio de forma, uma vez que a decisão é impercetível e incognoscível por parte de Recorrente, que desconhece a língua portuguesa e, ainda mais em concreto, a linguagem de jargão utilizada pelo SEF.
− Acresce que, para além de a decisão não estar redigida em língua que o Recorrente consiga compreender, o Recorrente desconhece as demais informações contantes dos documentos anexos à decisão, onde estão descritos os elementos essenciais que realmente fundamentam a decisão e que lhe permitiriam compreender o conteúdo da mesma.
− Este vício, propaga-se ao ato, ao contrário do que se refere na douta sentença recorrida, uma vez que o Recorrente não compreende e por isso não pode fazer uso de outros mecanismos previstos no CPTA, nomeadamente do artigo 60.º deste mesmo diploma.
− A douta decisão, incorre num terceiro vício de forma, por não verificar todas as condições pessoais do refugiado, nomeadamente o facto de o regresso ao país de origem poder originar tratamento desumano para o refugiado.
− Situação esta que o coloca em risco no momento de expulsão e em situação de incumprimento dos mais elementares Direitos Humanos do refugiado, nomeadamente de condições de vida, e bem-estar, nomeadamente os previstos no artigo artigos 2.º, 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 19.º n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
- Tudo em violação dos artigos 152.º nº 1 alínea a) e 153.º n.º 1 e 2 do Código de Procedimento Administrativo, pois cabe à entidade administrativa Recorrida verificar se a sua decisão, não colocará em risco, nomeadamente em situação de perigo para a vida o Recorrente, uma vez que no seio da sua família existe uma situação de tensão, em virtude de diferenças de religião.
- A entidade Recorrida apenas constata, sem analisar, a situação pessoal do Recorrente e os eventuais impactos da decisão de expulsão nos mais elementares direitos do Recorrente.
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O Recorrido, devidamente notificado, não contra-alegou.
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O Ministério Público, regularmente notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147º, ambos do CPTA, não emitiu parecer.
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Sem vistos, atento o disposto nos arts. 36º nºs 1 e 2 e 147º do CPTA e 37º nº 5 e 84º da Lei 27/2008, de 30/6, mas com prévia divulgação do projecto de acórdão pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos, o processo vem submetido à Conferência.
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II - OBJECTO DO RECURSO

Atentas as conclusões das alegações do recurso, que delimitam o seu objecto, nos termos dos arts 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2 do CPC, ex vi art 140º, nº 3 do CPTA, dado inexistir questão de apreciação oficiosa, a questão decidenda consiste em saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento, por violação dos artigos 2.º, 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 19.º n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e dos artigos 152.º nº 1 alínea a) e 153.º n.º 1 e 2 do Código de Procedimento Administrativo
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III – FUNDAMENTAÇÃO
De Facto
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos, que não vêm impugnados, pelo que se mantêm:
A) O Requerente é nacional de Basse, Gâmbia, onde nasceu em 07/09/1998 (cfr. PA apenso a fls. 1 que ora se da por integralmente reproduzido);
B) Em 15/12/2020, o Requerente apresentou um pedido de protecção internacional, junto do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (cfr. PA apenso a fls. 13 que ora se da por integralmente reproduzido);
C) Por consulta na base de dados do Eurodac, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras verificou a existência de um pedido de protecção internacional, formulado pelo Requerente em Bologna, Itália em 14/07/2016 e em Nuernberg, Alemanha em 10/02/2019 (cfr. PA apenso, a fls. 17, que ora se da por integralmente reproduzido);
D) Em 05/01/2021, o Requerente prestou declarações perante o SEF, quanto aos fundamentos do seu pedido de asilo, do qual se extrai, nomeadamente, o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
(cfr. PA apenso a fls. 18 a 28, que ora se da por integralmente reproduzido);
E) Em 12/01/2021 o Requerente exerceu o seu direito de audiência prévia quanto ao sentido provável de decisão, nos seguintes termos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
(cfr. PA apenso a fls. 32 e 33, que ora se da por integralmente reproduzido);
F) Em 13/01/2021, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras efectuou um pedido de retoma a cargo do requerente às autoridades italianas (cfr. processo administrativo, apenso aos autos a fls. 39, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
G) As autoridades italianas nada disseram (cfr. processo administrativo apenso aos autos, a fls. 44, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
H) Em 05/02/2021 o Director Nacional Adjunto do SEF, proferiu decisão com o seguinte teor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
(cfr. processo administrativo apenso aos autos, a fls. 59, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
I) Na informação 215/GAR/2021 referida na alínea anterior, consta nomeadamente, o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
(cfr. processo administrativo apenso aos autos, a fls. 47 A 56 cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
J) Sobre a Informação referida na alínea anterior recaiu Proposta datada de 02/02/2021 com o seguinte teor:
“PROPOSTA
Com base na presente informação, submete-se-se à consideração superior que, de acordo com o disposto na alínea a) do n.s 1, do artigo 199-A, da Lei n.9 27/08, de 30 de junho, alterada pela Lei n9 26/2014 de 05 de maio, o pedido de proteção seja considerado inadmissível e se proceda à transferência para a ITÁLIA do (a) cidadão (ã) acima identificado (a), nos termos do artigo 25 n9 2 do Regulamento (CE) N.9 604/2013 do Conselho, de 26 de Junho”.
(cfr. idem);
K) Em 16/02/2021, o Gabinete de Asilo e Refugiados - SEF notificou o Requerente da decisão que determinou que a Itália é o Estado responsável pela sua tomada a cargo nos seguintes termos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
(cfr. fls.. 61 do processo administrativo apenso aos autos cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
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De Direito
Começaremos por sublinhar que, não obstante o Recorrente se tenha limitado a reafirmar os vícios imputados à decisão do director do Serviço de Estrangeiros e Fronteira, de 06/02/2020, que determinou a sua transferência para Itália, é possível deduzir quais as normas jurídicas que considera terem sido violadas pelo tribunal recorrido.
Assim, o Recorrente vem pôr em crise a sentença recorrida, invocando a violação dos artigos 152.º nº 1 alínea a) e 153.º n.º 1 e 2 do Código de Procedimento Administrativo, por, ao contrário daquele que foi o entendimento do Tribunal a quo, o acto impugnado padecer de falta de fundamentação.
Afirma o Recorrente que a falta de fundamentação do acto impugnado se manifesta nos seguintes termos:
- decisão imperceptível e incognoscível por parte de Recorrente, que desconhece a língua portuguesa e a linguagem de jargão utilizada pelo SEF;
- a circunstância de não estar redigido em língua que o Recorrente consiga compreender e apenas ter sido lida ao Recorrente o conteúdo da decisão e não as demais informações, onde constam os elementos essenciais que realmente fundamentam a decisão e que lhe permitiriam compreender o conteúdo da mesma;
- a circunstância de não verificar todas as condições pessoais do refugiado, nomeadamente o facto de o regresso ao país de origem poder originar tratamento desumano para o refugiado; situação esta que o coloca em risco de expulsão e de incumprimento real dos mais elementares Direitos Humanos do refugiado, nomeadamente de acesso à saúde e ao bem estar, nomeadamente os previstos no artigo artigos 2.º, 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 19.º n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
No tocante ao primeiro aspecto enunciado, considera o Recorrente que a decisão de transferência descreve sucintamente e de forma muito pouco clara as razões de facto e de direito, sendo que utiliza termos em código, jargão do SEF imperceptível pelo Recorrente, que o impossibilitaram de conhecer o iter cognoscitivo da entidade administrativa decisora quando sustenta que a pretensão do Recorrente deve ser indeferida.
A sentença recorrida julgou improcedente o invocado vício com a seguinte argumentação:
“A fundamentação da decisão do diretor nacional adjunto constante da al. H) do probatório é feita por remissão expressa para a informação …/GAR/2021, referida na al. I) da factualidade assente, o que é admissível de acordo com o artigo 153.º, n.º 1, do CPA2015.
Na referida informação o SEF indica as normas que considera aplicáveis, os factos que considerou relevantes para a decisão e exteriorizou com suficiência e clareza os motivos pelos quais considera a Itália como o Estado responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional.
Pelo que se mostra devidamente fundamentada, de facto e de direito.
E a prova de que o Requerente bem apreendeu tal fundamentação está patente no modo como impugnou o acto sub judice.”
O assim decidido não merece censura, devendo manter-se.
Com efeito, a decisão de não admissibilidade do pedido de protecção internacional formulado pelo Recorrente em Portugal e da sua transferência para Itália - assente na informação n.º …/GAR/2021, que constitui sua parte integrante, nos termos do artigo 153º, nº 1 do CPA -, mostra-se clara, coerente e suficiente, permitindo, a um destinatário médio, compreender os motivos de facto e de direito pelos quais a Administração decidiu no sentido em que o fez. E isto tendo presente que o destinatário da decisão é estrangeiro (todos os requerentes de protecção internacional o são perante o Estado Português), e é expectável que tenha dificuldades de comunicação (daí beneficiar do apoio de intérprete) e não conheça o ordenamento jurídico português (daí ser-lhe concedido apoio jurídico).
Resulta da leitura conjugada da decisão impugnada e da informação n.º 215/GAR/2021, o sentido da decisão – o pedido de protecção internacional apresentado pelo Requerente foi considerado inadmissível e, em consequência, é determinada a sua transferência para a Itália, por ser o Estado-Membro responsável pela análise desse pedido. A razão pela qual é decidida a transferência para Itália, decorre da circunstância de, após pesquisa na base de dados Eurodac, se ter detectado que o Requerente aí apresentou, em 2016, um pedido de protecção internacional. Aliás, o próprio Requerente o confirma, aquando da tomada de declarações.
A decisão está, pois, fundamentada. Coisa distinta é que o Recorrente discorde da mesma, considerando-a desacertada.
De resto, não resulta dos autos que o Requerente não tivesse logrado obter um conhecimento cabal da decisão impugnada, do seu sentido e implicações e das razões de facto e de direito que a suportavam, bem como do conhecimento imprescindível para a ponderação sobre a respectiva impugnação jurisdicional.
Note-se ainda que o Recorrente afirma, nas alegações de recurso – o que não fez na petição inicial -, que o acto impugnado “utiliza termos em código, jargão do SEF imperceptível pelo Recorrente”, sem dar um único exemplo.
Termos em que improcede o presente fundamento de recurso.
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Noutra vertente da alegada falta de fundamentação, invoca o Recorrente o uso de língua que não compreende.
No caso, a notificação da decisão foi lida ao Autor em língua fula. O que este contesta é que esteja redigida em português, língua que não consegue compreender, e ainda que apenas lhe foi lido o conteúdo da decisão e não as demais informações.
Neste tocante, decidiu assim a sentença recorrida:
“O artigo 26.º, n.º 3, do Regulamento (UE) 604/2013, determina que: «Se a pessoa em causa não for assistida ou representada por advogado ou outro conselheiro jurídico, os Estados-Membros informam-na dos principais elementos da decisão, que deve sempre incluir informações sobre as vias de recurso disponíveis e os prazos aplicáveis para as utilizar, numa língua que compreenda ou que possa razoavelmente presumir-se que compreenda.».
O Requerente tem, assim, direito de conhecer numa língua que compreenda o sentido da decisão, quem a adotou, quando, com que fundamentos (de facto e de direito), qual a forma de a impugnar e dentro de que prazo.
Da notificação descrita na al. K) da matéria de facto decorre que a mesma foi comunicada ao Requerente na língua fula. Da visada notificação constam todos os elementos que deveriam ser comunicados ao Requerente, com exceção da comunicação dos fundamentos de facto e de direito em que se estribou a decisão de o transferir para Itália.
Com efeito, deveria o requerente ter sido informado na língua fula do descrito nas als. H), I) e J) do probatório.
Verifica-se, assim, uma deficiência na notificação do ato, a qual, contudo, e ao contrário do que defende o Requerente, não se propaga ao ato, isto é, não o invalida. Perante tal deficiência poderia o requerente ter lançado mão do artigo 60.º, n.ºs 2 e 3, do CPTA, para lograr suspender o prazo previsto no artigo 37.º, n.º 4, do da Lei 27/2008 na actual redacção.”
Vejamos.
Uma coisa é a língua na qual é redigida a decisão final e as informações que a integram e outra é a língua em que a decisão final é transmitida.
A língua do procedimento é a língua portuguesa (cfr. art. 54º do CPC).
O artigo 37.º, n.º 2 da Lei n.º 27/2008, de 30/06, na redacção dada pela Lei n.º 26/2014, de 05/05, prevê que a decisão do director nacional do SEF seja notificada ao requerente, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda.
Como decidiu já este TCA Sul, em situação muito similar à ora em apreço, a “circunstância de a decisão final não ser tomada na língua escolhida pelo requerente não só não viola qualquer regra jurídica, por a mesma não se encontrar prevista, sendo a língua do procedimento administrativo o português, enquanto língua oficial portuguesa, como não derroga os direitos de pronúncia ou de participação do requerente, visto que o procedimento administrativo é contraditório e participado, mediante a intervenção direta do interessado e a apresentação do seu relato factual.” – cfr. Ac. de 07.01.2021 (proc. nº 1398/20), publicado em dgsi.pt.
Mostra-se apurado que o Autor prestou declarações no SEF, em língua fula, por si escolhida, na presença de intérprete, tendo apresentado o seu relato dos acontecimentos.
Na sequência dessa entrevista, foi elaborado o respectivo relatório e foram lidas as declarações e relatório em língua fula.
Ainda, foi o Autor, ora Recorrente, notificado do sentido provável da proposta de decisão a ser proferida, de inadmissibilidade do pedido de proteção internacional e a consequente transferência para Itália, com base no artigo 19.º-A, n.º 1, a) da Lei n.º 27/2008, de 30/06, e para, querendo, se pronunciar por escrito.
O Autor pronunciou-se.
Tomada a decisão, ao Autor foi lida a notificação da mesma, em língua fula, e foi-lhe entregue cópia da decisão e da informação nº …/GAR/2021.
As formalidades seguidas são aptas a garantir a possibilidade de exteriorização das razões que motivam o pedido de protecção internacional, na língua escolhida pelo requerente, e bem assim a assegurar que o requerente apreende o sentido provável da decisão a ser tomada e a própria decisão.
Acresce que o ora Recorrente não invoca que a leitura efectuada não tenha sido suficientemente esclarecedora, limitando a sua capacidade de entendimento e reacção.
De assinalar ainda que o ora Recorrente beneficiou de assistência jurídica, do Conselho Português para os Refugiados. Desde logo, foi este Conselho que, em reduzido prazo (3 dias), elaborou o pedido de apoio judiciário com vista à apresentação da presente acção; e, concedido este, o ora Recorrente passou a ser assistido por advogado.
Não resulta, pois, que o Requerente não tivesse logrado obter um conhecimento perfeito e completo da decisão impugnada, do seu sentido e implicações e das razões de facto e de direito que a suportavam, bem como do conhecimento imprescindível para a ponderação sobre a respectiva impugnação jurisdicional.
Termos em que improcede o presente fundamento de recurso.
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Afirma o Recorrente que ocorre ainda um terceiro vício de forma “por não verificar todas as condições pessoais do refugiado, nomeadamente o facto de o regresso ao país de origem poder originar tratamento desumano para o refugiado”, o que o coloca em risco de expulsão e de incumprimento real dos mais elementares direitos humanos do refugiado, nomeadamente de acesso à saúde e ao bem estar, nomeadamente os previstos no artigo artigos 2.º, 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 19.º n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Vejamos.
Estabelece o n.° 1 do art. 3.° do Regulamento (UE) n° 604/2013 (Regulamento de Dublin III) que “(...) O pedido de asilo é analisado por um único Estado-membro (…)”.
Prevê o art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento que o Estado-Membro responsável por força do presente regulamento é obrigado a retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.°, 24.°, 25.° e 29.°, o nacional de um país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro.
No caso em apreço, o Recorrente, nacional da Gâmbia, requereu protecção internacional, em 15.12.2020, o que já tinha feito antes – em Itália, a 14.07.2016, e, posteriormente, a 10.02.2019, na Alemanha, tendo sido aquele objecto de rejeição.
Nesta conjuntura, a Entidade Demandada, ora Recorrida, deu início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia a Itália (cfr. art. 18.°, n.° 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III e art. 37.° n° 1 da Lei do Asilo), e, perante a circunstância de um pedido anterior já ter sido decidido pela autoridades italianas, foi proferida decisão de inadmissibilidade de apreciação do pedido de protecção formulado e determinada a transferência do Recorrente para Itália.
Com a primeira decisão do pedido de asilo esgota-se a aplicação do Regulamento de Dublin III porquanto este visa primacialmente estabelecer «os critérios e mecanismos para a determinação do Estado-Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida.» (art. 1.º). E isto porque uma das regras basilares do Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), na parte que se prende com a regulamentação da determinação do Estado Responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional, é a de que seja apenas um Estado Membro a decidir – cfr. art. 3.º, n.º 1, e art. 18.º, do Regulamento de Dublin III.
Donde, neste enquadramento, não há que invocar a cláusula de salvaguarda prevista no art.º 3.º, do Regulamento (UE) n.º 604/2013, de 26/06/2013, pois já não está aqui em causa a determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional. Na verdade, na situação em análise, cumpre apenas proceder-se à transferência do Recorrente para o país que já decidiu sobre o seu pedido de protecção e o indeferiu, para que essa decisão seja executada, nos termos do art.º 18.º, n.º 1, al. d), do Regulamento de Dublin – neste sentido, entre outros, os Acórdãos deste TCAS, datados de 14/05/2020 (proc. nº 1889/19); 28/05/2020 (proc. n.º 2276/19); 02.07.2020 (proc. nº 61/20); 24.09.2020 (proc. nº 65/20); 01.10.2020 (procs. nºs 2436/19; 988/20 e 714/20).
Não obstante a não aplicação da cláusula de salvaguarda prevista no art. 3.º do Regulamento citado (Regulamento de Dublin), defendem os arestos supra referidos que a obrigação do SEF apurar as condições de acolhimento e do procedimento de asilo em país relativamente ao qual sejam fundadamente invocadas falhas sistémicas terá cobertura ao abrigo do princípio do non-refoulement, do artº 33.º, n.º 1 e 2, da Convenção de Genebra (1951) e do art. 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) bem como da jurisprudência do TEDH neles citada.
Assim, se, no caso concreto, se verificar a possibilidade da ocorrência de uma situação de tratos desumanos e degradantes com a transferência do requerente de protecção para o país que decidiu sobre o pedido de protecção – para, a partir daí, regressar ao seu país de origem/residência – cumpre ao Estado Português obstar a essa transferência, podendo, nestas circunstâncias, executar directamente aquela ordem de regresso.
O Recorrente, a fim de obstar à sua transferência para a Itália, invoca que padece de doença e que a Entidade Demandada não atendeu à mesma aquando da decisão da sua transferência para Itália, apesar de descrita em sede de entrevista.
Resulta da factualidade apurada que, no âmbito da entrevista para ser ouvido quanto aos fundamentos do pedido de protecção internacional, o Recorrente afirmou que saiu da Gâmbia em 2014; chegou a Itália em Julho de 2016, onde esteve 3 anos; depois foi para a Alemanha, onde esteve 1 ano e 5 meses; voltou a Itália em Setembro de 2020 “por ter sido devolvido da Alemanha”; depois de Itália, foi para França, Espanha e Portugal, onde chegou a 15 de Dezembro de 2020. Mais afirmou que, durante a instrução do pedido de protecção internacional formulado em Itália, beneficiou de alimentação e alojamento; e que decidiu sair de Itália (e ir para a Alemanha) por ser obrigado a sair do campo de refugiados onde estava e ter começado a viver na rua.
Sobre o item vulnerabilidade, declarou não estar de boa saúde e ter problemas de saúde, concretamente “dores nas costas que passam para a cabeça.” Mais declarou não estar a ter acompanhamento médico e não estar a ser medicado.
Notificado do sentido provável da decisão de inadmissibilidade do pedido de protecção internacional e transferência para a Itália, o ora Recorrente apresentou alegações escritas, onde acrescentou que, enquanto esteve no campo de refugiados não teve qualquer apoio na saúde. Mais refere que “não pode voltar a Itália porque o seu processo terminou”; que “não tem problemas em Itália e que tentou o seu melhor para lá ficar, mas disseram-lhe que não tinha qualquer hipótese de ficar em Itália. Por isso decidiu vir para Portugal”; que “tem problemas de saúde, nomeadamente problemas nas costas e que, se voltasse para Itália, não tendo asilo, iria acabar por dormir na rua, sem papéis, sem residência, sem nada; e ainda que “todos os advogados em Itália” lhe disseram que tinha de voltar para a Gâmbia.
Em sede de decisão, a Administração, no que tange aos problemas de saúde invocados, concluiu, entre o mais, que, em Itália, “os requerentes de asilo e os beneficiários de proteção internacional gozam de igualdade de tratamento e de plena igualdade de direitos e obrigações relativamente aos cidadãos italianos no que se refere à assistência prestada pelo Serviço Nacional de Saude”; que “Itália garante a proteção de pessoas vulneráveis, de acordo com a Diretiva 2013/33/EU do PE e do Conselho de 26 de junho de 2013, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional nos seus artigos 17º, nº 2 e 21º e ss., encontrando-se devidamente transporta para a ordem interna, pelo que o apoio médico necessário se encontra garantido naquele país”;
Tanto basta para refutar a alegação do Recorrente de que a Entidade Demandada não atendeu à sua situação pessoal aquando da decisão da sua transferência para Itália.
Os Estados Membros poderão aceitar a competência pelo pedido de protecção internacional, em derrogação do regime geral, quando existam situações excepcionais que o imponham, designadamente quando estejam em causa situações de força maior do foro clínico e por imperativo de não sujeitar o requerente da protecção internacional a tratamento cruel, desumano ou degradante num Estado-membro.
Todavia, atendendo ao caso em apreço, não podemos afirmar que se encontre minimamente demonstrada a ocorrência de qualquer situação excepcional.
Como se afirma na sentença recorrida, “quanto ao alegado estado de saúde, não se afigura que o mesmo constitua um óbice à decisão sindicada, na medida em que o Requerente nada expendeu acerca da impossibilidade de regressar a Itália devido aos seus problemas de saúde, onde permaneceu cerca de três anos, nem das diligências que encetou para tratar dos mesmos na Alemanha - onde viveu cerca de um ano e cinco meses-, em França e em Espanha, por onde passou até chegar a Portugal”.
Não se pode, pois, concluir pela necessidade de acautelar questões de saúde ponderosas ou graves, não vindo evidenciado um estado de vulnerabilidade do requerente de protecção internacional. Bem como não se pode concluir que, em caso de transferência para a Itália, o Recorrente se veja privado de cuidados médicos de que tenha beneficiado em território nacional.
Como recorda a sentença recorrida, “no âmbito do Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, o intercâmbio dos dados pessoais dos requerentes, efetuado antes da sua transferência, incluindo os dados sensíveis em matéria de saúde, garantirá que as autoridades competentes estão em condições de prestar aos requerentes a assistência adequada e de assegurar a continuidade da proteção e dos direitos que lhes foram conferidos.”
Com efeito, estabelece o artigo 31º, sob a epígrafe “Intercâmbio de informações relevantes antes da realização das transferências” que:
1- O Estado-Membro que procede à transferência de um requerente ou de outra pessoa a que se refere o artigo 18º, nº 1, alíneas c) ou d), comunica ao Estado-Membro responsável os dados pessoais relativos à pessoa a transferir que sejam adequados, pertinentes e não excessivos, unicamente para efeitos de assegurar que as autoridades competentes de acordo com a legislação nacional do Estado-Membro responsável podem proporcionar à pessoa em causa a assistência adequada, nomeadamente a prestação dos cuidados de saúde imediatos necessários para proteger o interesse vital da pessoa em causa, e garantir a continuidade da proteção e dos direitos previstos no presente regulamento e noutros instrumentos jurídicos relevantes em matéria de asilo. Essas informações são comunicadas ao Estado-Membro responsável num prazo razoável antes da realização da transferência, a fim de assegurar que as autoridades competentes de acordo com a legislação nacional do Estado-Membro responsável disponham de tempo suficiente para tomar as medidas necessárias.
2- O Estado-Membro responsável todas as informações essenciais, na medida em que a autoridade competente de acordo com a legislação nacional delas disponha, para salvaguardar os direitos e as necessidades especiais imediatas da pessoa em causa, nomeadamente: a) As medidas imediatas que o Estado-Membro responsável tenha de tomar para assegurar que as necessidades especiais da pessoa a transferir sejam adequadamente consideradas, incluindo os cuidados de saúde imediatos eventualmente necessários.
(…)”.
Acrescenta o art. 32º, sob a epígrafe “Intercâmbio de dados de saúde antes de a transferência ser efetuada”, que:
“1- Exclusivamente para efeitos de prestação de cuidados médicos ou de tratamento médico, (…) o Estado-Membro que procede à transferência transmite ao Estado-Membro responsável (…) informações sobre eventuais necessidades especiais da pessoa a transferir que, em casos específicos, podem incluir informações acerca do seu estado de saúde físico e mental. (…). O Estado-Membro responsável certifica-se de que é dada resposta adequada a tais necessidades especiais, incluindo, em especial, cuidados médicos eventualmente necessários.
(…)”
O Recorrente invoca ainda que, no seio da sua família, existe uma situação de tensão, em virtude de diferenças de religião, que não foi considerada pela Entidade Demandada.
Ora, este foi o motivo apresentado pelo ora Recorrente para sustentar o pedido de protecção internacional.
De acordo com o disposto no artigo 19.º-A, n.º1, alínea a), e n.º 2, da Lei do Asilo, quando o pedido é considerado inadmissível – no caso, por se verificar que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional- , prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto da protecção internacional.
Quer isto dizer que não cabe ao Estado português apreciar e decidir o pedido de protecção internacional se outro país é o responsável pela retoma a cargo.
Aqui chegados, é forçoso concluir que o Recorrente não dá conta de que, em Itália, existam falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento por este Estado e que impliquem o risco de tratamento desumano e degradante e/ou que será colocado numa situação intolerável quanto ao seu tratamento na acepção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Pelo que, não assiste razão ao Recorrente quanto aos fundamentos do recurso em análise, sendo de manter a sentença recorrida.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
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Sem custas (cfr art 84º da Lei do Asilo).
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Registe e notifique.
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Lisboa, 09 de Setembro de 2021

(Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13.03, a Relatora consigna e atesta que o presente acórdão tem voto de vencido do Excelentíssimo Senhor Desembargador Carlos Araújo, que se junta, e voto de conformidade do Excelentíssimo Senhor Desembargador Pedro Marchão Marques)


Ana Paula Martins

Vencido por considerar que o SEF não pode desconhecer a situação italiana e deveria ter apurado junto das suas congéneres italianas as concretas condições de acolhimento que irão ser oferecidas ao recorrente, aquando do seu retorno a Itália, não podendo alhear-se da sua sorte.

Carlos Araújo