Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:480/22.3BELRS
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:12/12/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
Sumário:I. Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t), do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições encontram-se regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

II. A norma vertida na alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF, segundo a qual ao juízo administrativo social compete dirimir, para além das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei, os processos relativos a litígios (i) emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação ou (ii) relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, deve ser interpretada no sentido mais restrito de atribuir competência para dirimir apenas os litígios relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social associada ao trabalho.

III – A pretensão formulada por funcionário, em juízo, relativo ao direito de informação procedimental, ainda que tenha por objecto elementos derivados do regime de mobilidade não cabe ao juízo administrativo social , cai expressamente no âmbito de conhecimento do juízo administrativo comum do mesmo tribunal, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, n.ºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro)

Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
DECISÃO


I. Relatório

O Exmo. Senhor Juiz do Juízo administrativo social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 36.º do ETAF, requerer oficiosamente, junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, a resolução do conflito negativo de competência em razão da matéria, suscitado entre si e a Exma. Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, visto que os Magistrados Judiciais dos referidos juízos atribuem-se mutuamente competência, negando a própria, para conhecer da acção de intimação para prestação de informações, consulta de processo e passagem de certidões ali proposta por S………………………… contra o H……………………., E.P.E..

Neste TCA Sul foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1 do CPC, nada tendo sido dito.

Os autos foram com vista ao Digno. Procurador-Geral Adjunto, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia no sentido de se atribuir a competência ao Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa.



I. 1. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o Juízo de administrativo social do TAC de Lisboa ou se o Juízo administrativo comum do mesmo Tribunal.

II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais (documentalmente comprovadas):

1. Em 4.03.2022, S………………………….., instaurou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa uma acção de intimação para prestação de informações e passagem de certidões contra o H……………………….., E.P.E., pedindo que se intime o Conselho de Administração da Entidade Requerida a facultar a informação por si requerida no requerimento apresentado em 14.02.2022 (cfr. Doc. n.º 1 e único. junto com o r.i. - Proc. no SITAF).

2. Por sentença datada de 8.09.2022, a Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, a quem os autos estavam atribuídos, excepcionou a incompetência em razão da matéria e determinou a remessa dos autos ao juízo administrativo social do mesmo Tribunal, por entender ser esse o Juízo competente (cfr. sentença - proc. no SITAF).

3. Nessa sequência, o Senhor Juiz do Juízo administrativo social a quem os autos foram distribuídos, em sentença datada de 7.10.2022., declarou aquele Juízo igualmente incompetente, em razão da matéria, cometendo essa competência ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal (idem).

4. Por despacho de 7.11.2022, o Senhor Juiz do juízo administrativo social requereu a este Tribunal Superior a resolução do conflito negativo de competência (cfr. - despacho - proc. no SITAF).

5. As decisões em conflito transitaram em julgado [cfr. consulta do SITAF].



II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t), do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional encontram-se regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44.º-A, aditado pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional. De acordo com o citado artigo 44.º-A do ETAF, sob a epígrafe “[c]ompetência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual, i.é, caso as matérias em dissídio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum. A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

E na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo administrativo social ao conhecimento dos litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc.11/2006.

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13.º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Feito este enquadramento inicial, vejamos o caso concreto, devidamente recortado pela factualidade que deixámos fixada.

Recorde-se que presente acção de intimação para prestação de informações e passagem de certidões o requerente, S……………………………veio pedir ao Tribunal que intime o Conselho de Administração da Entidade Requerida a facultar a informação por si requerida no requerimento apresentado em 14.02.2022., no qual solicitava que lhe fossem prestadas as seguintes informações: ” a) “Quais os motivos pelos quais não foi dada qualquer resposta ao Exponente quanto ao seu pedido de mobilidade? b) A que departamento e trabalhador competia apreciar e tomar tal decisão? c) Já houve qualquer decisão sobre tal pedido de mobilidade? d) Caso tenha havido, qual o teor, autor e data da mesma: defere ou indefere o solicitado pelo Requerente? e) Caso indefira, quais os fundamentos, de facto e de direito, para que se tenha decidido por semelhante indeferimento?”

Dito de forma diversa, na presente instância pretende-se tão-somente que o requerido – o Conselho de Administração da Entidade Requerida - preste as informações que lhe foram oportunamente solicitadas e alegadamente não fornecidas. Ou seja, no caso dos autos não se discute um litígio emergente do vínculo de trabalho em funções públicas.

O fundamento jurídico que suporta a pretensão formulada em juízo é o direito de informação procedimental, que o Requerente alega ter sido denegado. Pelo que nesta acção apenas se irá aferir se estão reunidos, ou não, os pressupostos para intimar a Entidade Requerida a satisfazer o pedido de informação formulado.

Pelo que, como aliás bem nota o Exmo. Senhor Magistrado do Ministério Público, o contrato de trabalho em funções públicas não é a razão do direito invocado pelo requerente, não é o motivo jurídico que suporta a pretensão que formula em juízo.

Dito por outras palavras, o que o requerente pretende com esta acção de intimação não impõe uma interpretação das normas respeitantes à relação do trabalho em funções públicas e/ou do estatuto de aposentação. O que é, aliás, manifesto.

E a norma vertida na alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF, segundo a qual ao juízo administrativo social compete dirimir, para além das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei, os processos relativos a litígios (i) emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação ou (ii) relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, deve ser interpretada no sentido mais restrito de atribuir competência para dirimir apenas os litígios relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social associada ao trabalho, como reiteradamente temos afirmado.

Tanto basta para se concluir que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito não cabe ao Juízo administrativo social do TAC de Lisboa, uma vez que a mesma cai expressamente no âmbito de conhecimento do Juízo administrativo comum do mesmo tribunal, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, n.ºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), e artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, conjugado com a alínea a) do artigo 1.º da Portaria nº 121/2020, de 22 de Maio.



III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Sem custas.
Notifique.

12 de Dezembro de 2022

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques