Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:716/18.5BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:08/30/2019
Relator:CRISTINA SANTOS
Descritores:PERDA DE MANDATO
DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS
CULPA GRAVE
Sumário:Relativamente ao grau de culpa indispensável para desencadear o efeito sancionatório (artº 3º) por incumprimento do prazo de apresentação das declarações (artºs. 1º, 2º) referidas na Lei 4/83, 02.04, na redacção introduzida pela Lei 25/95, 18.02, inexistindo dolo e não sendo este exigível na configuração da infracção, a perda do mandato do autarca só pode ser decretada quando o comportamento em que a mesma se fundamenta envolver culpa grave e não mera culpa ou simples negligência no cumprimento de um dever ou duma obrigação legal.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:O Ministério Público, no exercício da acção de inibição temporária para o exercício de cargos políticos e equiparados, inconformado com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de leiria dela vem recorrer, concluindo como segue:

1. . A não apresentação atempada dá declaração de património, rendimentos e cargos sociais, tem sido considerado pela jurisprudência como um comportamento qualificado gravemente culposo, e o art. 38º da Lei na 04/83, de 2/4, basta-se com a negligência, para tal violação.
2. . Os aspetos dados como provados nos pontos AA) e CG) - A Ré vivenciou um estado ... de alheamento total da realidade ...” e “... estando a mesma num estado de grande alheamento...”, e a conclusão plasmada na sentença de que a omissão em causa da demandada se ficou a dever a uma “falta de vontade/capacidade de agir conforme o direito,” demonstrada pelo “diagnóstico médico comprovado de depressão e crises de pânico”, estão em manifesta contradição com os teores dos atestados médicos que sustentaram essas asserções e não correspondem à realidade.
3. . Com efeito, o quadro de “Depressão Mayor”, sem sintomas psicóticos, não implica ausência de capacidade de avaliar a natureza e as consequências do comportamento, no momento em que este tem lugar, tendo, por isso, a pessoa com síndrome dessa doença pleno conhecimento de consciência da licitude/ilicitude dos seus comportamentos, conseguindo discernir o bem do mal e o correto do incorreto, com conhecimento das normas da sociedade e dos seus deveres, e com plena capacidade para se determinar de acordo com a sua avaliação.
4. Não estamos perante um evento que tenha impedido a demandada de atempadamente ter praticado o acto em causa, sendo que a simples dificuldade da sua realização não é causa justificativa dessa omissão, pelo que a demandada omitiu o dever pessoalíssimo, especial e político e de cuidado de cumprimento da obrigação alheando-se do seu cumprimento, mostrando-se, por isso, preenchido o pressuposto subjetivo de negligência
5. . Ademais, os diversos atestados médicos apenas atestam a impossibilidade de exercício dos deveres profissionais, sem que especifiquem o impedimento para a prática do ato omitido, nem deles resulta que a demandada estivesse ininterruptamente impossibilitada de o praticar, durante mais de 2 meses, quer por si só, quer mediante terceira pessoa, como depois o veio a fazer.
6. . Ao não decidir de tal forma, fez a sentença recorrida errada interpretação e aplicação do disposto nos art.s 607º, n°s 3, 4 e 5 do CPC e 3º/1 da Lei nº 4/83 de 2/4 devendo a mesma ser revogada e substituída por outra que dê como provado a culpa grave da aqui recorrida no incumprimento da obrigação de apresentação da declaração de rendimentos, com a consequente procedência da ação.
*
A Recorrida contra-alegou, concluindo como segue: 

1. O sentido da sentença recorrida deve ser mantido.
2. A fundamentação das alegações feitas pelo MP é deficitária, limitando-se a apresentar generalidades sem qualquer aplicação ao caso concreto.
3. A fisiopatologia catalogada de determinada doença não prevê ou impede a manifestação de sintomas específicos em cada indivíduo.
4. A Recorrida, embora o tenha feito intempestivamente, deu cumprimento à obrigação de apresentar declaração dos seus rendimentos, património e cargos sociais.
5. O quadro clínico em que se encontrava a Recorrida constitui fundamento para a intempestividade mencionada.
6. Não havendo incumprimento culposo por parte da Recorrida não se encontra preenchida a previsão do nº 1 do artº 3º da Lei 4/83 de 2 de Abril, in fine.
7. Pelo que deverá ser confirmada na íntegra a sentença do Tribunal a quo.
*
Com dispensa legal de vistos substituídos pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência.

*
Ao abrigo do regime do artº 663º nº 6 CPC ex vi artº artº 140º nº 3 CPTA, remete-se para o probatório fixado em 1ª Instância, na medida em que não vem impugnada nem há lugar a qualquer alteração da matéria de facto.



DO DIREITO


1. decisão singular de mérito do relator - reclamação para a conferência;

O regime da decisão singular de mérito apenas proferida pelo Relator foi introduzido pelo DL 329-A/95, podendo a parte afectada pela decisão reclamar desta para a conferência conforme disposições conjugadas dos artºs. 705º e 700º nº 3 CPC, hoje, artºs. 656º ex vi 652º nº 1 c) e nº 3 CPC da revisão de 2013.
Deduzida reclamação para a conferência “(..) o colectivo de juízes reaprecia as questões que foram objecto da decisão singular do Relator e, nesse sentido, caso se esteja perante a decisão sumária do recurso, reaprecia novamente o recurso, naturalmente sem qualquer vinculação ao anteriormente decidido.
No entanto, se assim é, ou seja, se normalmente a intervenção da conferência, no caso em que se reclama de uma decisão sumária, faz retroagir o conhecimento do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão, importa ter presente que, nos termos gerais, no recurso ou na reclamação, o Recorrente ou o Reclamante podem restringir o seu objecto, isto é, o requerimento para a conferência (mesmo resultante de convolação do requerimento de interposição de recurso de revista) pode restringir o objecto próprio da reclamação, concretamente identificando a parte da decisão sumária de que discorda (da qual se sente prejudicado) (..)” – doutrina constante do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23.02.2015, tirado no rec. nº RP201502231403/04.7TBAMT-H.P1.

*
No citado Acórdão da Relação do Porto é feita referência expressa aos termos gerais de direito no que respeita à possibilidade de, em sede de reclamação da decisão singular do Relator, o Recorrente restringir o abjecto do recurso, “(..) identificando os segmentos decisórios sobre os quais demonstra o seu inconformismo. Trta-se, na prática, de uma solução que se encaixa na possibilidade de desistência do recurso, nos termos que constam do artº 632º nº 5, com a especificidade de a extinção da instância ser, aqui, parcial. (..)” (1)
O que implica precisar o pressuposto legal de delimitação do âmbito da pretensão recursória e das hipóteses legais de modificação.
A delimitação objectiva do recurso é dada pelas conclusões, cfr. artºs. 635º nº 4, 637º nº 2 e 639º nºs 1 e 2 CPC, na medida em que “(..) A motivação do recurso é de geometria variável, dependendo tanto do teor da decisão recorrida como do objectivo procurado pelo recorrente, devendo este tomar em consideração a necessidade de aí sustentar os efeitos jurídicos que proclamará, de forma sintética, nas conclusões. (..)
Mas, independentemente do âmbito definido pelo recorrente no requerimento de interposição, é legítimo restringir o objecto do recurso nas alegações, ou, mais correctamente, nas respectivas conclusões, indicando qual a decisão (ou parte da decisão) visada pela impugnação. (..) A restrição pode ser tácita em resultado da falta de correspondência entre a motivação e as alegações, isto é, quando, apesar da maior amplitude decorrente do requerimento de interposição de recurso, o recorrente restrinja o seu âmbito através das questões que identifica nas conclusões. (..)”, cfr. artº 635º nº 4 CPC. (2)
No tocante à ampliação do objecto do recurso, o artº 636º nº 1 CPC permite que, embora a decisão seja favorável à parte e a parte vencida interponha recurso, caso no Tribunal a quo não tenha acolhido todos ou alguns dos fundamentos da acção (de facto ou de direito) suscitados pela parte vencedora, essas questões serão reapreciadas pelo Tribunal ad quem a requerimento do Recorrido em alegações complementares, isto é, o Tribunal de recurso reapreciará os fundamentos do segmento da sentença recorrida em que a parte vencedora tenha decaído.

*
Do complexo normativo citado se conclui que o acto processual de convocação da conferência no regime do artº 652º nº 1 c) e nº 3 ex vi 656º CPC não é configurado como meio adjectivo próprio para alterar as conclusões de recurso, ressalvada a hipótese já mencionada de limitação do objecto (artº 635º/4 CPC), nem para desistir do recurso (artº 632º º 5 CPC), posto que “(..) a desistência do recurso apenas é possível até à prolação da decisão, tornando-se agora inequívoca a solução que já anteriormente se defendia. Representa uma medida que que valoriza o papel do tribunal superior, evitando que o recorrente accione o mecanismo da desistência depois de ter sido confrontado com o resultado do recurso.
Aliás, o momento que releva para o efeito nem sequer é o da notificação da decisão, mas antes o da sua prolação (..)”,. (3)
Neste sentido, junta aos autos a decisão singular de mérito sobre o objecto do recurso proferida pelo relator (artº 652º/1 c) ex vi 656º CPC) ocorre nessa data a preclusão de exercício do direito de desistência por parte do recorrente, cfr. artº 632º nº 5 CPC.
A reclamação para a conferência constitui o meio adjectivo próprio ao dispor da parte que se sinta prejudicada pela decisão individual e sumária do relator sobre o objecto do recurso, podendo o recorrente/reclamante, nessa reclamação, restringir o objecto do recurso no uso do direito conferido pelo artº 635º nº 4 CPC, mas não pode ampliar o seu objecto, faculdade limitada ao recorrido nos termos do artº 636º nº 1 CPC, isto é, limitada à parte vencedora que tendo decaído em alguns dos fundamentos da acção, apesar disso, obteve vencimento no resultado final.
Como se diz no Acórdão da Relação do Porto acima citado, no regime do artº 652º nº 1 c) e nº 3 ex vi 656º CPC a reclamação para a conferência da decisão sumária proferida apenas pelo relator faz retroagir o conhecimento em conferência do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão sumária, conhecimento limitado às questões especificadas pelo recorrente nas conclusões de recurso, sem prejuízo de o recorrente, ora reclamante, restringir na reclamação o objecto recursório anteriormente definido nos termos do artº 635º nº 4 CPC.

*
Feito o enquadramento que compete, cumpre reapreciar as questões suscitadas nas conclusões pelo Recorrente, fazendo retroagir o conhecimento do mérito do recurso ao momento anterior à decisão singular de mérito proferida pelo Relator.


2. imputabilidade e culpa;

Atentas as conclusões sob os pontos 2 a 5 e como resulta evidenciado do corpo alegatório que lhes corresponde, cabe não confundir as noções legais de imputabilidade e de culpa.
No domínio da ciência jurídica diz-se imputável “(..) a pessoa com capacidade natural para prever os efeitos e medir o valor dos seus actos e para se determinar de harmonia com o juízo que faça acerca destes. Exige-se, assim, para que haja imputabilidade, a posse de certo discernimento, (capacidade intelectual e emocional) e de certa liberdade de determinação (capacidade volitiva). (..) O que releva, portanto, aos olhos da lei, é a existência ou falta desta dupla capacidade, no momento em que o facto é praticado (..)
(..) Mas não basta a imputabilidade do agente. Para que o facto lhe possa ser imputado, é necessário que ele tenha agido com culpa, que haja certo nexo psicológico entre o facto e a vontade do lesante. (..)”. (4)
Em sede de culpa, cabe averiguar se a conduta do agente é reprovável e em que medida, posto que na culpa “(..) pondera[-se] o lado subjectivo desse comportamento, ou seja, as circunstâncias individuais concretas que o envolveram (juízo de censura sobre o agente em concreto)(..)”. (5)
Assentando a mera culpa ou negligência na omissão de um dever de diligência, a bitola legal para aferição do grau de diligência exigível em qualquer das tipologias de responsabilidade (contratual e extracontratual) reporta à apreciação da culpa em abstracto, pela diligência de um bom pai de família, isto é, apreciada com referência à conduta de um homem médio – cfr. artº 487º nº 2 C. Civil - não cabendo, pois, trazer á colação considerações de censurabilidade no plano ético.

*
É evidente que o pressuposto da vontade releva tanto para aferir da imputabilidade como da culpa do agente.
Para efeitos de juízo de inimputabilidade a vontade do agente não é livre porque tem o discernimento diminuído - na letra da lei (artº 488º/1 CC) “incapacitado de entender ou querer” - o que necessariamente configura uma conclusão própria da ciência médica, exarada em declaração pericial expressa; e só com fundamento numa conclusão médica assente em prova pericial no sentido de que, na circunstância, o agente agiu em estado de inimputabilidade, é que o juízo jurídico do Tribunal poderá concluir no sentido da inimputabilidade.
Diferentemente, para efeitos de juízo de culpa o pressuposto da vontade do agente nada tem a ver com o discernimento diminuído, isto é, com a falta de capacidade para valorar e prever os efeitos do comportamento.
Pelo contrário, no plano da culpa o agente é pessoa imputável, não padece de nenhuma anormalidade do intelecto e por isso o juízo de que o comportamento adoptado (ou a omissão de comportamento devido) foi negligente (mera culpa) reporta a uma violação do grau de diligência que lhe era exigível, ainda que, no caso, se prove a existência de circunstâncias concretas, continuadas no tempo, com reflexos de perturbação do nexo entre o facto (comissivo ou omissivo) e a vontade de livre determinação do agente.

*
Diz-nos a experiência que, num quadro de prognose póstuma, é muito difícil aferir se a perturbação psicológica causada por eventos continuados no tempo, como é o caso, – depressão por bulling, conflitualidade, rudeza, grosseria, agressões, etc. no local de trabalho, uma escola pública em que a Recorrida é professora, vd, alíneas M) a P) do probatório – é susceptível de afectar a vontade da pessoa que devia ter adoptado um comportamento diligente e não adoptou, de molde a graduar no patamar da culpa leve ou decidir pela ausência de culpa.
Do ponto de vista da teoria jurídica é possível traçar a linha divisória, mas perante os casos concretos decorrentes do acervo de factos julgados provados, não é rigoroso traçar linhas divisórias com limites tão fluidos, por tornar insusceptível de controlo a concreta subsunção dos factos pelo julgador do caso concreto, ou seja, pelo Juiz da causa.
Não é este o caso concreto.
O Tribunal em 1º Instância foi chamado a decidir se a perturbação psicológica, alegada pela Recorrida e dada como provada, era susceptível de sustentar um juízo de reprovabilidade da conduta da Recorrida porque podia e devia ter agido de outro modo, entregando em prazo a declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional, ou se, tendo por critério de decisão jurídica a diligência de um homem médio (artº 487º/2 CC) o condicionalismo próprio do caso concreto de “(..) depressão e alheamento e inércia vivido pela Ré (..)” permitia concluir que não houve omissão do dever de diligência exigível no quadro da culpa grave relativamente ao incumprimento do prazo de entrega da declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional.

*
No caso concreto o Tribunal a quo concluiu que,
“(..) em face da factualidade provada e nos comportamentos e estado descritos pelas testemunhas sobre a Ré, é razoável e seguro concluir-se que a falta de entrega tempestiva da declaração de rendimentos deveu-se ao estado de doença de depressão e alheamento e inércia vivido pela Ré … torna plausível que a Ré tenha arrumado a carta do Tribunal Constitucional e se tenha esquecido da mesma (..).
(..) a Ré não incumpriu de forma culposa a obrigação de tempestiva entrega da declaração de rendimentos prevista no artº 2º 3º nº 1 da lei nº 4/83, devendo-se tal omissão ao seu estado de doença e perturbação da sua vida normal, com um diagnóstico médico comprovado de depressão e crises de pânico, o que demonstra a sua falta de vontade/capacidade de agir conforme ao direito, tendo claramente agido, no mínimo, com culpa diminuta (se não mesmo sem culpa), sendo certo que não se provou a sua actuação com dolo ou com negligência grosseira.
(...)
Por conseguinte, em face do exposto, não pode julgar-se verificado o requisito do incumprimento culposo exigido pela lei no seu artº 3º nº 1 da Lei nº 4/83, não tendo a Ré agido com culpa grave pelo que deverá a presente acção administrativa improceder, absolvendo-se a mesma do pedido. (..)” – págs. 26, 30/31 da sentença.

*
Ou seja, com fundamento na matéria de facto provada no tocante ao estado depressivo da Recorrida, o Tribunal a quo enquadrou juridicamente o comportamento da Recorrida no plano da mera culpa, isto é, da omissão culposa da diligência exigível, na medida em que deu como provada a quebra do nexo psicológico entre o facto omissivo e a vontade da Recorrida por via da afectação da sua vontade decorrente do estado depressivo em que se encontrava, afastando expressamente a subsunção dos factos no domínio da culpa grave, exigida na solução doutrinária adoptada quanto ao artº 3º nº 1 da Lei nº 4/83,.
Na solução jurídica do caso concreto, não sofre dúvidas que o Tribunal a quo adoptou a tese doutrinária segundo a qual “(..) A culpa exprime um juízo de reprobabilidade pessoal da conduta do agente (o lesante podia e devia ter agido de outro modo), que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade deste, e pode revestir duas formas distintas: o dolo (a que os autores e as leis dão algumas vezes o nome de má-fé) e a negligência ou mera culpa (culpa em sentido restrito) (..)” (6)
Em nenhum momento da fundamentação jurídica adoptada, o Tribunal a quo escora a absolvição da Recorrida em qualquer espécie de estado patológico da pessoa em causa que lhe tenha afectado a imputabilidade.

*
Em síntese, o que está em causa – e o Tribunal a quo não saiu deste parâmetro de análise ao longo da fundamentação de direito – é a análise do nexo entre o incumprimento do prazo e a vontade da Recorrida num juízo jurídico de culpa, não um juízo médico de existência ou inexistência de imputabilidade. (7)


3. contradição entre a sentença e os atestados médicos – erro de julgamento;

Nas conclusões de recurso sob os pontos 2 a 5 o Ministério Público ora Recorrente suscita a existência de “manifesta contradição” entre
(i) a factualidade levada ao probatório “nos pontos AA) e CC) e “a conclusão plasmada na sentença de que a omissão em causa da demandada se ficou a dever a uma “falta de vontade/capacidade de agir conforme o direito,
(ii) e “os teores dos atestados médicos que sustentaram essas asserções e não correspondem à realidade

O segmento do corpo alegatório que sustenta a questão trazida a recurso nos pontos 2 a 5 das conclusões é o seguinte:
“(..) III - Perspetiva do recorrente
Foi dado como provado, como se disse, nos pontos AA) e CG): “..A Ré vivenciou um estado de alheamento total da realidade..” e “... estando a mesma num estado de grande alheamento.
E, perante tais asserções decidiu, a Mma. Juiz na sentença recorrida, que a omissão da demandada, se ficou a dever a uma “falta de vontade/capacidade de agir conforme o direito,” demonstrada pelo “diagnóstico médico comprovado de depressão e crises de pânico. ”
Todavia, estas afirmações de alheamento da realidade e falta de vontade/capacidade de agir conforme o direito, estão em manifesta contradição com a matéria dada como provada, maxime estão em total discordância com os teores dos atestados médicos, porquanto essas situações não são consequência, nem consentâneas, com o quadro de Depressão Mayor, sem sintomas psicóticos.
"Do ponto de vista psicomotor, o humor depressivo traduz-se na inibição e afecta o comportamento (...) O rendimento cognitivo é globalmente afectado pela lentificação do raciocínio e pela menor atenção prestada ao ambiente” (in "Psiquiatria forense", 3a Ed, JC Dias Cordeiro, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2011, pp 377)
Contudo, tal síndrome na ausência de sintomas psicóticos não implica "ausência de capacidade de avaliar a natureza e as consequências do comportamento (...) no momento em que o comportamento é praticado."(in "Psiquiatria forense", 3a edição, JC Dias Cordeiro, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2011, pp. 103). - sublinhado nosso.
E, repete-se, a demandada “não apresenta sintomas psicóticos (delírios ou alucinações) que poderiam interferir na avaliação da realidade ou na determinação do comportamento da pessoa." (in "Psiquiatria forense", 3a edição, JC Dias Cordeiro, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2011, pp. 365), pelo que a pessoa com esta patologia mental tem capacidade para avaliar a realidade e é plenamente responsável pelos seus atos, porquanto a liberdade, a inteligência e a vontade — fatores da configuração da tríade na responsabilidade em matéria cível - não são completamente afetados.
Donde, na ausência de sintomas psicóticos, com interferência relevante na capacidade de avaliação e determinação da demandada, é, ela, claramente responsável pelos seus atos, dado ter pleno conhecimento e consciência da licitude e/ou ilicitude dos seus comportamentos, conseguindo discernir o bem do mal e o correto do incorreto, com conhecimento das normas da sociedade e dos seus deveres, e com plena capacidade para se determinar de acordo com a sua avaliação.
Perante o exposto, a afirmação de que a depressão major tornou a demandada "alheada da realidade" ou com “falta de vontade/cápacidade de agir conforme o direito, não corresponde à verdade.
Aliás, o transtorno depressivo mayor é a das doenças mais comuns em todo o mundo.
«Mais de 300 milhões de pessoas, ou mais de quatro por cento da população global, estavam vivendo com depressão em 2015 - um aumento de 18 por cento ao longo de um período de 10 anos (2005 a 2015).
Novos números divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que a depressão está aumentando em todo o mundo e agora já é a principal causa de incapacidade mental e física global.
Dan Chisholm, Conselheiro de Sistemas de Saúde do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS, e autor principal do relatório, observou que a depressão é uma doença que pode afetar qualquer pessoa, em algum momento de suas vidas.
“Se você olhar para a prevalência de diferentes doenças em todo o mundo e você olha para a deficiência que está associada a elas - se você combiná-las, a depressão acaba no topo da lista porque é muito comum”, disse ele» - https://emais.estadao.com.br/blogs/joel-renno/depressao-e-a-doenca-mais- incapacitante- do-mundo/
O que significa que uma tal doença jamais poderá justificar uma violação como aquela aqui em análise, sob pena, de o contrário, ou seja, qualificar-se a doença corno com os ditos sintomas descritos na sentença recorrida, poder gerar uma situação inconcebível, de alguém, com ausência da noção da realidade, exercer ou poder vir a exercer determinados cargos públicos.
Recorde-se que a demandante exerceu o cargo de vereadora até 15/X/2017 e a baixa médica teve início elo menos desde 2/2/2017 [pontos C), Y) e AA)] e segundo ela própria “os sintomas sentidos ... agudizaram-se definitiva e irreversivelmente em Novembro de 2016”. (cfr. art. 19º da contestação)
Depois, os diversos atestados médicos, apenas atestam a impossibilidade de exercício dos deveres profissionais, sem que especifiquem o impedimento para a prática do ato omitido, nem deles resulta que a demandada estivesse ininterruptamente impossibilitada de o praticar, durante mais de 2 meses, quer por si só, quer mediante; terceira pessoa, como o veio a fazer.
Fica, pois, por demonstrar se houve alteração do estado de saúde da demandada e em que medida, durante o período de tempo em que a demandada deveria ter entregue a declaração de rendimentos, 60 dias após a cessação das suas funções (15/12/2017) ou no limite até 4/4/2018 (cfr. ponto G) da matéria de facto provada) e o momento em que essa declaração foi entregue em 20/06/2018 (cfr. ponto J) da matéria de facto provada.
Temos pelo exposto, que não estamos perante um evento que tenha impedido, em absoluto, a demandada de, atempadamente, ter praticado o ato em causa, sendo que a simples dificuldade da sua realização não é causa justificativa da omissão. (..)”


***

Como já referido, o juízo jurídico fundamentador em sede de sentença contém-se nos limites da análise do nexo entre o incumprimento do prazo e a vontade da Recorrida, em sede de juízo jurídico de culpa, e não de juízo médico de existência ou inexistência de imputabilidade,
Acresce que, pelo teor da sentença ora sob recurso, em nenhum segmento da fundamentação jurídica adoptada, o Tribunal a quo escora a absolvição da Recorrida afirmando a existência de qualquer espécie de estado patológico da pessoa em causa que lhe tenha afectado a imputabilidade.
Todavia, a alegação sustentada pelo Recorrente em sede de corpo alegatório e acima transcrita, sustentando as questões trazidas a recurso nos itens 2 a 5 das conclusões extravasa o âmbito conceptual da culpa e move-se no quadro da imputabilidade,
Inclusivamente são tecidas no corpo alegatório e nos itens 2 a 5 das conclusões considerações próprias da ciência médica, nomeadamente a propósito do mencionado “quadro de Depressão Mayor” a que se refere um dos atestados médicos – vd. itens 2 e 3 das conclusões.
Sendo certo que para sustentar tais considerações, claramente de natureza valorativa, são necessários conhecimentos técnicos que o Recorrente não tem e, mesmo que os tivesse – licenciatura em medicina na especialidade de psiquiatria forense – não poderia por si próprio trazê-las ao processo porque, para o efeito, a lei determina o meio próprio – a produção de prova pericial.


4. meio de prova pericial;

Efectivamente, no procedimento da prova pericial “(..) entre a fonte da prova (pessoa ou coisa) e o juiz interpõe-se a figura do perito, intermediário necessário em virtude dos seus conhecimentos especiais que o julgador não tem, ou por os factos, respeitantes a pessoas, não deverem ser objecto de inspecção judicial (artº 388º CC) , o perito intervém no processo de manifestação da fonte de prova e traduz ao juiz o resultado da sua observação ou apreciação. (..)” (8)
Ou seja, integrando a perícia a categoria das provas pessoais, “(..) o perito traz para o processo dados normativos, ... o que quer dizer que o perito dá ao juiz critérios de valoração ou apreciação dos factos, juízos de valor derivados da sua cultura especial e da sua experiência técnica (..)a declaração do perito é consequência de actos processuais que ele realiza préviamente (..) O verdadeiro papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem. (..) há uma categoria de conhecimentos especiais que está fora do campo de prova por peritos: são os conhecimentos jurídicos (..) O juiz é técnico do direito … há-de desembrulhar-se pelos seus próprios meios (..)” (9)
De modo que , no tocante a matéria de facto relevante para o objecto da causa e cuja percepção e apreciação extravaze o campo dos conhecimentos jurídicos, a lei substantiva determina a intervenção de peritos – vd. artº 388 C. Civil – no domínio dos actos jurídicos expressos em meio probatório próprio, a perícia, regulada pela lei processual nos seus pressupostos e efeitos – vd. artºs. 467º a 486º CPC.

*
De quanto vem dito decorre a improcedência do assacado erro de julgamento por contradição entre a sentença proferida e os teores dos atestados médicos, trazido a recurso nos itens 2 a 5 das conclusões.


5. declaração fora de prazo - conduta que tornem o visado indigno do cargo - culpa grave;

Nos itens 1 e 6 das conclusões de recurso sustenta o Recorrente que “a não apresentação atempada da declaração de património, rendimentos e cargos sociais, tem sido considerado pela jurisprudência como um comportamento qualificado gravemente culposo, e o art. 38º da Lei na 04/83, de 2/4, basta-se com a negligência, para tal violação”.
Não se acompanha tal entendimento, sendo que nos integramos na corrente jurisprudencial que, relativamente ao conceito normativo de “incumprimento culposo” constante do artº 3º nº 1 Lei 4/83 entende que deve ser interpretado como configurando uma exigência legal de culpa grave e não mera culpa ou simples negligência.
Relativamente ao grau de culpa indispensável para desencadear o efeito sancionatório (artº 3º) por incumprimento do prazo de apresentação das declarações (artºs. 1º, 2º) referidas na Lei 4/83, 02.04, na redacção introduzida pela Lei 25/95, 18.02, segue-se o entendimento doutrinário sustentado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 22.08.2007 tirado no rec. nº 0690/07, que se transcreve no segmento fundamentador julgado útil ao caso concreto.
“(..) Nos termos do art.º 1 da Lei n.º 4/83, de 2/4 - na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 25/95, de 18/8 - «Os titulares de cargos políticos apresentam no Tribunal Constitucional, no prazo de 60 dias contado da data do início do exercício das respectivas funções, declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e cargos sociais», sendo certo que se tal apresentação não for feita «a entidade competente para o seu depósito notificará o titular do cargo a que se aplica a presente lei para a apresentar no prazo de 30 dias consecutivos, sob pena de, em caso de incumprimento culposo …. incorrer em declaração de perda de mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos …» (n.º 1 do art.º 3.º da mesma Lei).
O que significa que o incumprimento culposo da referida obrigação basta, por si só, para determinar a perda de mandato do titular do cargo político.
Ou seja, a aplicação desta sanção não depende do dolo do agente mas de sim de um comportamento culposo.
A lei, porém, não esclarece qual o grau de culpa indispensável para desencadear esse procedimento e, portanto, não nos diz se a mesma terá de ser grave ou se bastará a mera culpa, pelo que nos cabe identificar qual o grau de culpa necessário à prolação de decisão que determine a perda de mandato.
E nesse labor a primeira observação a fazer é a de que a perda de mandato por parte de um detentor de cargo político eleito não decorre, imediata e automaticamente, da falta de apresentação, por iniciativa própria, do mencionado documento, uma vez que mesma só pode ser declarada depois de se ter provado que o interessado ignorou a notificação que lhe foi feita nesse sentido pelo Tribunal Constitucional.
O que quer dizer que o legislador não quis que a perda de mandato pudesse decorrer apenas da omissão do dever de diligência que recaía sobre o eleito e, portanto, de mera culpa mas, ao contrário, quis que aquela perda só pudesse ser declarada quando a referida omissão significasse também o desrespeito pela notificação do Tribunal Constitucional, isto é, quando evidenciasse que a conduta do eleito envolvia culpa grave.
E isto porque ter-se-á de considerar que age com culpa grave quem, apesar de notificado expressamente pelo Tribunal Constitucional para cumprir uma determinada obrigação, ignora essa notificação e persiste num comportamento que sabe ser ilegal.
Aliás, a jurisprudência deste Tribunal - nos processos destinados a obter a perda de mandato - vem afirmando isso mesmo, isto é, que sendo inexigível o dolo na configuração da infracção, aquela perda só pode ser decretada se o fundamento legal que a justifica for imputável a título de culpa grave e não a título de negligência ou mera culpa.
Assim, e por exemplo, nos casos em que tem estado em causa a violação da norma que proíbe o autarca de intervir em procedimento, acto ou contrato onde possa obter vantagem patrimonial para si ou para terceiro, tem sido decidido que a violação desse impedimento legal só é determinante da perda do mandato quando se mostre que aquele tinha interesse directo, pessoal e relevante nessa intervenção e que esse interesse é impeditivo duma actuação rigorosa, isenta e imparcial na defesa do interesse público posto a seu cargo.
E por isso é que vem sendo afirmado que, nesta matéria, a interpretação dos textos legais não deve ser “puramente conceitualista mas ser caldeada pela relevância da lesão aos referidos princípios, sob pena de lesão dos próprios desígnios expressos na lei fundamental, no caso sobremaneira grave, considerando a curtíssima distância entre o Poder e o administrado.
Efectivamente, só um grau de culpa relativamente elevado sustentará a suspeição ou a reprovabilidade social da conduta, de tal modo que tornem o visado indigno do cargo.” (Acórdão de 9/01/2002, rec. 48.349, com sublinhado nosso.
No mesmo sentido podem ver-se, entre outros, Acórdãos de 24/04/96 (rec. 39.873), de 14/05/96 (rec. 40.138) e de 23/04/2003 (rec. 671/03)).
Do mesmo modo - num caso em que a perda do mandato resultava do incumprimento de decisão judicial - foi entendido que “pode ser decretada a perda de mandato ao abrigo do art.º 9.º A da Lei 27/76 ainda que não haja dolo do agente, mas negligência. Todavia pode aproveitar-se para adiantar o entendimento num aspecto essencial para a decisão da causa: não basta um qualquer grau de culpa é necessário que a actuação mereça um forte juízo de censura (culpa grave ou negligência grosseira).
Na verdade, atendendo: (i) à natureza sancionatória da medida da perda de mandato, (ii) à intrínseca gravidade desta medida, equivalente às penas disciplinares expulsivas, com potencialidade destrutiva de uma carreira politica, iii) a que a conduta dos titulares de cargos políticos electivos é periodicamente apreciada pelo universo dos respectivos eleitores, há que concluir que a aplicação de tal medida só se justifica a quem tendo sido eleito membro de um órgão de uma autarquia local, no exercício das respectivas funções «violou os deveres do cargo em termos tais que o seu afastamento se tornou imperioso» (cfr. Acórdão STA de 21/03/96).
Violaria o princípio da proporcionalidade das medidas sancionatórias que restrinjam direitos políticos aplicar uma tal sanção a incumprimentos veniais”.» Sublinhados nossos. - Acórdão deste Tribunal de 11/03/99 (rec. 44.576).
E, se assim é, como é, podemos concluir com a necessária segurança que, inexistindo dolo e não sendo este exigível na configuração da infracção, a perda do mandato do autarca só pode ser decretada quando o comportamento em que a mesma se fundamenta envolver culpa grave e não mera culpa ou simples negligência no cumprimento de um dever ou duma obrigação legal. (..)”


***

Feita a pertinente transcrição, entendemos que deve ser aplicada a mesma linha de entendimento jurídico dada ao segmento “incumprimento culposo” constante do artº 3º nº 1 Lei 4/83 [alterado pelo artº 1º Lei 25/95 vigente a partir de 16.11.95] para a situação que ao caso importa, a saber, no que tange à “inibição por período de um a cinco anos para o exercício de cargo que obrigue à referida declaração e que não corresponda ao exercício de funções como magistrado de carreira” por referência ao artº2º nº 1 1ª parte.
Ou seja, também no caso concreto trazido a recurso, o conceito normativo de “incumprimento culposo” constante do artº 3º nº 1 Lei 4/83 deve ser interpretado como configurando uma exigência legal de culpa grave e não mera culpa ou simples negligência.

*
Pelas razões expostas improcede a questão trazida a recurso nos itens 1 e 6 das conclusões.
*
Tudo visto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença proferida.


Lisboa, 30.AGO.2019


(Cristina dos Santos) ………………………………………

(Paulo Gouveia) ……………………………………………

(Tânia Cunha) ……………………………………………..













______________________
(1)Abrantes Geraldes, in Recursos no novo Código de Processo Civil, Almedina/2013, pág. 85.
(2)Abrantes Geraldes, in Recursos no novo Código de Processo Civil, págs. 115, 84/85.
(3)Abrantes Geraldes, Recursos do novo Código de Processo Civil, págs. 71/72.
(4)Antunes Varela, Das obrigações em geral, Almedina/1973, págs. 438, 442, 450.
(5)Mário Almeida Costa, Direito das obrigações, Coimbra Editora, 4ª ed. págs.380 e 381/382./384.
(6)Antunes Varela, Das obrigações em geral, Almedina/1973, pág. 442.
(7)Sobre esta matéria dos estados patológicos que afectam não o intelecto mas a vontade do agente vd. Ferrer Correia/Eduardo Correia, Fundamentos da interdição por demência, R.L.J. nº 86, págs. 289 e ss.
(8)Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, CPC – Anotado, 3 ed. Vol. 2º Almedina/2018, pág. 312.
(9)Alberto dos Reis, CPC – anotado, Vol. IV, Coimbra Editora/1962, págs. 169 - 171, 181.