Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:180/08.7 BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:11/11/2021
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:AUDIÇÃO PRÉVIA
CONEXÃO ENTRE O RITO PROCEDIMENTAL E A LIQUIDAÇÃO
REEMBOLSO DE IVA
Sumário:I-Da conjugação dos normativos 60.º da LGT e 60.º do RCPIT, resulta a imposição do direito de audição antes da liquidação, do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições, da decisão de aplicação de métodos indiretos, e da conclusão do relatório da inspeção tributária, só sendo dispensada tal formalidade quando o sujeito passivo já teve oportunidade de o fazer na fase do procedimento de inspeção, que culminou nos atos de liquidação, quando a liquidação se efetue com base na declaração do contribuinte ou quando a decisão lhe seja favorável.

II-Se do teor do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária não se aquiesce, de todo, nem tão-pouco, mediante inferências indiretas que o mesmo tenha qualquer conexão com as liquidações em contenda, não resultando que no âmbito do procedimento de inspeção tenham sido promovidas quaisquer correções que tenham alterado a situação tributária do Recorrido, nada se inferindo no sentido de falta de liquidação de imposto ou dedução indevida de IVA, e bem assim qualquer materialização indevida de crédito de imposto que careça da competente regularização, com posterior legitimação de atos de liquidação adicionais ou corretivos, não pode, nessa medida, entender-se por cumprida a formalidade contemplada no artigo 60.º, da LGT, mormente a elencada no nº1, alínea a).

III-A inexistência de elementos que permitam percecionar a conexão entre o rito procedimental e a consequente emissão de liquidação adicional, e tendo essa perceção de resultar, naturalmente, de forma clara e inequívoca da fundamentação contemplada no aludido projeto, sob pena desvirtuar o próprio direito de audição, a sua ratio e função, acarreta a verificação de vício formal e consequente anulabilidade dos atos tributários.

Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I-RELATÓRIO


O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP), veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por P. M. R. B., contra o despacho de indeferimento expresso da reclamação graciosa referente aos atos de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), no valor global de €7.112,82.

A Recorrente, veio apresentar as suas alegações, formulando as conclusões que infra se reproduzem:

“A. Salvo o devido respeito, por opinião diversa, entende a Fazenda Pública que a sentença recorrida padece de erro de julgamento, dado que da prova produzida não se podem extrair as conclusões em que se alicerça a decisão proferida.

B. Considerou o douto Tribunal, que no caso em apreço, ocorreu a preterição do direito de audição prévia e que as liquidações ora em discussão, padecem de ausência de fundamentação.

C. Não pode a Fazenda Pública concordar com a decisão do douto Tribunal, pois o contribuinte foi notificado para exercer o direito de audição prévia, sobre o projeto do relatório de inspeção tributária, nos termos do artigo 60.º da LGT, não o tendo exercido.

D. E isto porque, resultam dos factos dados como provados, que foram enviadas cartas registadas para a morada do contribuinte, em 07.12.2005 e 12.01.2006, tendo as mesmas sido devolvidas, com a indicação de “não atendeu”.

E. De acordo com o artigo 43.º n.º 1 do RCPITA, presumem-se notificados os sujeitos passivos e demais obrigados tributários contactados por carta registada e em que tenha havido devolução de carta remetida para o seu domicílio fiscal com indicação de não ter sido levantada, de ter sido recusada ou de que o destinatário está ausente em parte incerta.

F. Face ao normativo legal e factos provados, há que considerar, assim, errado o julgamento da sentença recorrida, na parte em que o douto Tribunal considera que o contribuinte não foi validamente notificado para exercer o seu direito de audição.

G. Quanto ao demais, considerou o Tribunal a quo que as liquidações em discussão nos presentes autos, padecem de falta de fundamentação, no entanto, salvo a devida vénia, não pode a Fazenda Pública concordar com tal entendimento.

H. A consagração da possibilidade de fundamentação dos atos administrativos, por remissão para o teor de outro documento, tem por referencial a norma do artigo 268º da CRP, que se concretiza, no plano ordinário, no artigo 77º da LGT e artigo 125º do CPA.

I. A fundamentação por referência consiste na remissão para os termos de uma informação, parecer ou proposta que contenha, ela mesma, a motivação do ato, de tal modo que essa remissão deve ser entendida no sentido de que o ato administrativo absorveu e se apropriou da respetiva motivação ou fundamentação, que, assim, dele ficará a fazer parte integrante.

J. Da compulsa aos termos do relatório de inspeção tributária consta a fundamentação das correções ali sumariadas. O relatório de inspeção tributária deu a conhecer ao sujeito passivo, o itinerário cognoscitivo e valorativo que levou a Autoridade Tributária e Aduaneira a efetuar as correções, observando, desse modo, as exigências imanentes ao dever de fundamentação constantes do artigo 125º do CPA e na parte final do nº 1 do artigo 77º da LGT.

K. Prova de que o Impugnante, ora recorrido, apreendeu com suficiente clareza o cerne das razões, de facto e de direito, que determinaram a prática das liquidações impugnadas, é a petição inicial, na qual identifica corretamente a factualidade legitimadora das correções efetuadas pelos serviços de inspeção de tributária.

L. Assim, ao anular as liquidações impugnadas com fundamento em vício — falta absoluta de fundamentação das liquidações impugnadas — que se entende por não verificado, incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento em matéria de direito, razão pela qual a douta sentença recorrida não se deverá manter na ordem jurídica.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue a impugnação judicial totalmente improcedente.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA!”


***


A Recorrida, devidamente notificada, optou por não contra-alegar.

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A Digna Magistrada do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II -FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto

“Para efeitos de análise da caducidade do direito de ação:

1) O ora Impugnante em 12.01.2005 apresentou um requerimento aos Serviços do IVA solicitando a devolução do crédito de imposto que tinha à data do encerramento da atividade - cfr. doc. de fls.73 da reclamação graciosa ínsita no processo administrativo (PA) apenso aos autos;

2) Os Serviços do IVA instauraram um processo de reembolso oficioso de IVA, tendo o ora Impugnante sido notificado em 13.10.2005, através do ofício n.º65516 para a apresentação dos elementos referidos no Despacho Normativo 342/93 de 30/10 no prazo de 15 dias - cfr. doc. de fls.91do PA apenso aos autos;

3) A notificação referida em 2) foi devolvida com a indicação de “Fui informada na morada que a pessoa em questão se mudou” - cfr. doc. de fls.92 do PA apenso aos autos;

4) A notificação referida em 2) foi enviada para a morada constante do cadastro do Impugnante - cfr. docs. de fls. 90 a 93 e 108 do PA apenso aos autos;

5) Pelo que foi iniciada a ação inspetiva ao exercício de 2003, em 28.11.2005, através da OI200508234/5 - cfr. docs. de fls. 81, 96 e 107 do PA apenso aos autos;

6) Não tendo sido apresentados os elementos solicitados foi efetuado o relatório de conclusões com projeto de indeferimento ao pedido de reembolso e não consideração do imposto dedutível - cfr. doc. de fls.100 do PA apenso aos autos;

7) Foi enviado ao ora Impugnante em 07.12.2005, o ofício n.º082262, para querendo, exercer o seu direito de audição sobre o Projecto de Correcções do Relatório de Inspecção, tendo o mesmo sido devolvido com a indicação “não atendeu” - cfr. docs. de fls. 83 a 86 e 109 do PA apenso aos autos;

Imagens: Originais nos autos


8) Os serviços da administração fiscal enviaram ao ora Impugnante o ofício n.º003224 de 12.01.2006, com vista à Notificação de Correcções Resultantes de Análise Interna - cfr. doc. de fls.94 a 95 do PA apenso aos autos;

Imagens : Originais nos autos



9) O mesmo foi devolvido com a indicação “Não reside nesta morada”, - cfr. doc. de fls.100 do PA apenso aos autos;

10) Foi efetuada nova tentativa de notificação em 17.01.2008, a qual veio devolvida - cfr. docs. de fls.56 a 59 e 101 do PA apenso aos autos;

11) Foram enviadas as notificações referentes às liquidações adicionais de IVA n.º06028781 e n.º06028779, nos montantes de €1.760,45 e €5.406,37 respetivamente;

12) As mesmas foram devolvidas - cfr. docs. de fls.22 a 23 do PA apenso aos autos;

13) O ora Impugnante apresentou reclamação graciosa no dia 07.02.2007 no serviço de finanças de Odivelas - cfr. doc. de fls. 2 do processo de reclamação graciosa ínsito no processo administrativo (PA) apenso aos autos;

14) A reclamação graciosa n.º4227200704000609 teve despacho de indeferimento de 20.12.2007 com fundamento em intempestividade, em virtude de a liquidação ter como data limite de pagamento a data de 30.04.2006 - cfr. docs. de fls.109 a 111 do processo de reclamação graciosa ínsito no processo administrativo (PA) apenso aos autos;

15) O ora Impugnante foi notificado da decisão de indeferimento em 04.01.2008 - cfr. doc. de fls.111 verso, do processo de reclamação graciosa ínsito no PA apenso aos autos;

16) Na sequência do que o Impugnante apresentou em 15 de Janeiro de 2008 a presente impugnação judicial - cfr. carimbo aposto a fls.2 dos autos.

Mais considerou provada a seguinte factualidade:

Compulsados os autos e analisada a prova documental junta aos mesmos, dão-se como provados, e com interesse para a decisão, os factos infra indicados:

1)O ora Impugnante deu reinício à atividade em 12.01.2000, com o CAE 045211 - Construção de Edifícios, encontrando-se enquadrado para efeitos de IVA, no regime normal de tributação trimestral desde 15.02.2002, tendo cessado a atividade em 27.11.2003 - cfr. doc. de fls.112 do PA apenso aos autos.

2) O Impugnante entregou nos Serviços de Administração do IVA em 12.01.2005, um pedido de reembolso da quantia de €7.987,09, relativo ao valor constante na sua conta corrente como excesso a reportar (ER), uma vez, que, tinha cessado a atividade - cfr. doc. de fls.73 do PA apenso aos autos.

3) De acordo com os n.ºs 6 e 7 do artigo 22.º do Despacho Normativo n.º342/93, foi emitida uma ordem de serviço para apurar o pedido de reembolso do Impugnante, dando origem ao Procedimento de Inspeção Tributária, cujo Relatório da Inspecção Tributária consta a fls.102 a 106 do PA apenso aos autos.”


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Mais consignou enquanto factualidade não provada o seguinte:

“Não se provaram outros factos que em face das possíveis soluções de direito importe registar como não provados.”


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A motivação da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte:

“A convicção do tribunal, no que respeita aos factos provados, assentou na prova documental junta aos autos, nomeadamente no processo administrativo e no processo de reclamação graciosa, conforme indicado em cada um desses factos.”


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Atento o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, acorda-se em alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II), em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração.(1)

Nesse seguimento, procede-se à alteração da redação dos factos que infra se identificam, por referência à sua enumeração por letras efetuada em 1.ª instância:

6) Na sequência da ação inspetiva referida em 5), foi prolatado a 05 de dezembro de 2005, Projeto de Relatório de Conclusões do qual resulta o seguinte teor:

Imagens: Originais nos autos

(cfr. doc. de fls. 53 do PA apenso);

7) O Projeto de Relatório de Conclusões, referido no número antecedente, foi expedido por carta registada, endereçada para o Recorrido, a 7 de dezembro de 2005, mediante o ofício n.º 082262, tendo o mesmo sido devolvido com a indicação “não atendeu” (cfr. docs. de fls. 50 a 52 do PA apenso aos autos);

8) A 04 de janeiro de 2006, foi elaborado Relatório Definitivo de Inspeção, objeto de notificação mediante ofício n.º 003224 de 12.01.2006, com o teor infra se descreve:



(cfr. doc. de fls.100 do PA apenso aos autos);


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Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada adita-se ao probatório, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º, nº 1, do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT, a seguinte factualidade, passando a mesma a assumir a numeração 20), atenta a renumeração do ponto 1), 2) e 3) da fundamentação supra expendida, por forma a adotar-se uma numeração lógica e sequencial:

20) Os atos de liquidação evidenciados em 11), apresentavam, designadamente, o seguinte teor:

Imagens: Originais nos autos


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


In casu, a Recorrente, DRFP, não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra os atos de liquidação de IVA, referentes ao ano de 2003, insurgindo-se a mesma com a procedência decretada pelo Tribunal a quo quanto ao vício de preterição de audição prévia e bem assim de falta de fundamentação das liquidações, logo as questões atinentes à tempestividade da reclamação graciosa e bem assim à caducidade do direito de ação, encontram-se firmadas na ordem jurídica.


Mais importa relevar, ainda em termos de delimitação da lide, que não tendo a Recorrida apresentado contra-alegações, encontra-se consolidada a questão julgada improcedente referente à caducidade do direito à liquidação.


Assim, tendo presente que em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a sentença padece de erro de julgamento por errónea apreciação dos pressupostos de facto e de direito, cumprindo aferir se:

-Se foi preterido o direito de audição prévia, conforme ajuizou o Tribunal a quo;
-Se as liquidações em contenda padecem da sentenciada falta de fundamentação.

Assim, feito este introito e a competente delimitação objetiva do recurso, vejamos, então, se a decisão recorrida padece do arguido erro de julgamento.

Apreciando.

A Recorrente começa por evidenciar que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de facto porquanto da prova produzida não se podem extrair as conclusões em que se alicerça a decisão proferida.

Sustenta, no atinente à concreta violação do direito de audição prévia que, contrariamente ao ajuizado na decisão recorrida, não ocorreu a preterição do direito de audição prévia porquanto o Recorrido foi notificado para exercer o direito de audição prévia, sobre o projeto do Relatório de Inspeção Tributária, nos termos do artigo 60.º da LGT, não o tendo exercido.

Densifica tal ausência de preterição de formalidade essencial, no recorte fático dos autos do qual resulta que foram enviadas, a 07.12.2005 e 12.01.2006, cartas registadas para a morada do Recorrido, as quais foram devolvidas, com a indicação de “não atendeu”, donde, em ordem ao consignado no artigo 43.º n.º 1 do RCPITA, presumem-se notificados os sujeitos passivos e demais obrigados tributários contactados por carta registada e em que tenha havido devolução de carta remetida para o seu domicílio fiscal com indicação de não ter sido levantada, de ter sido recusada ou de que o destinatário está ausente em parte incerta.

Mais aduz que, incorreu, novamente, em erro de julgamento no atinente ao juízo de valoração atinente à falta de fundamentação das liquidações adicionais, e isto porque do Relatório de Inspeção Tributária consta a fundamentação das correções ali sumariadas, ou seja, o mesmo deu a conhecer ao sujeito passivo, o itinerário cognoscitivo e valorativo que levou a AT a efetuar as correções, observando, desse modo, as exigências imanentes ao dever de fundamentação constantes do artigo 125.º do CPA e na parte final do nº 1 do artigo 77.º da LGT.

O Tribunal a quo, esteou a procedência dos vícios supra expendidos evidenciando, no que para os autos releva, designadamente, o seguinte:

“[O] projeto de conclusões do relatório de inspeção tributária enviado ao Impugnante, na sequência do pedido de reembolso pelo mesmo efetuado, não contêm qualquer menção a correções concretas de que tenham resultado as liquidações impugnadas.

Assim, relativamente a tais correções não se afigura ter sido cumprido o dever de audição prévia do contribuinte.

Como decorre de todo o processo, dúvidas não há de que o tributo aqui em discussão foi liquidado com base nos dados de que dispunha a administração fiscal sem que tivesse sido concedido ao contribuinte o direito de audição.

Para além disso, impõe o artigo 60.º da LGT o direito de audição dos contribuintes antes da liquidação, salvo quando a lei estabelecer em sentido diverso, o que nesta situação não acontece, de resto como concretização do princípio do contraditório plasmado no artigo 5.º do CPPT.

Esta formalidade foi frontalmente preterida.”

Conclui, assim, pela verificação da aludida preterição de formalidade essencial, com a consequente anulabilidade, atenta a insusceptibilidade de aproveitamento do ato.

Apreciando.

Ab initio, importa relevar que a Recorrente não impugna a matéria de facto não requerendo qualquer aditamento por complementação, ou por substituição, apenas convoca erro de julgamento por errónea apreciação da factualidade contemplada no probatório.

Assim, uma vez que a matéria de facto em contenda se encontra estabilizada, e que o Tribunal ad quem, no âmbito dos seus poderes de cognição, já realizou as alterações e aditamentos que reputou pertinentes para a presente lide, atentemos, então, no quadro normativo que releva para a apreciação da questão.

O princípio da audiência prescrito nos artigos 100.º e seguintes do CPA assume-se como uma dimensão qualificada do princípio da participação consagrado no artigo 8.º do mesmo Código, surgindo na sequência e em cumprimento do comando constitucional contemplado no artigo 267.º da CRP, obrigando o órgão administrativo competente a, de alguma forma, associar o administrador à preparação da decisão final, transformando tal princípio em direito constitucional concretizado.

Tal princípio veio, igualmente, a ser acolhido no âmbito do procedimento tributário no artigo 60.º da LGT, sob a forma de “direito de audição do contribuinte”, e no artigo 45.º do CPPT.

De harmonia com o disposto no artigo 60.º da LGT, sob a epígrafe de direito de participação, com a redação, à data, aplicável dispunha-se que:

“1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;

d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspeção;

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspeção tributária.

2 - É dispensada a audição no caso de a liquidação se efetuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe for favorável.

3 - Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais se não tenha pronunciado.

4 - O direito de audição deve ser exercido no prazo a fixar pela administração tributária em carta registada a enviar para esse efeito para o domicílio fiscal do contribuinte.

5 - Em qualquer das circunstâncias referidas no n.º 1, para efeitos do exercício do direito de audição, deve a administração tributária comunicar ao sujeito passivo o projeto da decisão e sua fundamentação.

6 - O prazo do exercício oralmente ou por escrito do direito de audição, não pode ser inferior a 8 nem superior a 15 dias.

7 - Os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão.”

Importa, outrossim, ter presente o consignado no artigo 60.º do RCPIT, que sob a epígrafe de “conclusão do procedimento de inspeção tributária” dispõe que:

“1 - Concluída a prática de atos de inspeção e caso os mesmos possam originar atos tributários ou em matéria tributária desfavoráveis à entidade inspecionada, esta deve ser notificada no prazo de 10 dias do projeto de conclusões do relatório, com a identificação desses atos e a sua fundamentação.

2 - A notificação deve fixar um prazo entre 10 e 15 dias para a entidade inspecionada se pronunciar sobre o referido projeto de conclusões.

3 - A entidade inspecionada pode pronunciar-se por escrito ou oralmente, sendo neste caso as suas declarações reduzidas a termo.

4 - No prazo de 10 dias após a prestação das declarações referidas no número anterior será elaborado o relatório definitivo.”

Resulta, assim, do regime jurídico traçado anteriormente e na parte que para os autos releva que é imposto o direito de audição antes da liquidação, antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições, antes da decisão de aplicação de métodos indiretos, e antes da conclusão do relatório da inspeção tributária, só sendo dispensada tal formalidade quando o sujeito passivo já teve oportunidade de o fazer na fase do procedimento de inspeção, que culminou nos atos de liquidação, quando a liquidação se efetue com base na declaração do contribuinte ou quando a decisão lhe seja favorável.

Com efeito, o direito de audiência prévia de que goza o administrado incide sobre o objeto do procedimento, tal como ele surge após a instrução e antes da decisão.

Daí que, estando em preparação uma decisão, a comunicação feita ao interessado para o exercício do direito de audiência deve dar-lhe conhecimento do projeto da mesma, a sua fundamentação, com todos os elementos que nortearam o apuramento adicional de imposto, o prazo em que o mesmo pode ser exercido e a informação relativa à possibilidade de exercício do citado direito por forma oral ou escrita.(2)

Razão pela qual, a falta de audição prévia do contribuinte, nos casos em que é obrigatória, constitui um vício de forma do procedimento tributário suscetível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada, (3)podendo, todavia, degradar-se em formalidade não essencial ou em mera irregularidade, se independentemente do exercício de tal direito, aquele ato sempre tivesse de ser da mesma natureza e medida.

Feitos os considerandos de direito que relevam para a presente lide, atentemos, então, se assiste razão à Recorrente.

De relevar, desde já, que não se afigura que o Tribunal a quo tenha incorrido no arguido erro de julgamento, porquanto do acervo fático dos autos, e no sentido expendido na decisão recorrida o direito de audição evidenciado em 6) do probatório em nada permite inferir uma conexão com os atos de liquidação impugnados, donde a materialização, no caso vertente, da formalidade essencial da audição prévia.

Mas, vejamos, então, com o pormenor que se impõe e convocando, necessariamente, o acervo probatório dos autos.

Do recorte fático dos autos resulta que, a 12 de janeiro de 2005, o Recorrente apresentou um requerimento junto dos Serviços do IVA solicitando a devolução do crédito de imposto que tinha à data do encerramento da atividade, no montante de €7.987,09, o qual motivou a instauração do correspondente processo de reembolso oficioso de IVA, e subsequentes pedidos de elementos, cujas notificações foram goradas, atenta a devolução com as menções evidenciadas em 3) e 4).

Nessa sequência, a 28 de novembro de 2005, mediante OI200508234/5 foi dado início a ação inspetiva ao exercício de 2003, com a consequente elaboração de projeto de indeferimento ao pedido de reembolso com o teor evidenciado em 6), cuja notificação do correspondente ofício foi concretizada mediante expedição de carta registada a qual foi devolvida ao remetente com a menção “não atendeu”.

Tendo ulteriormente, sido emitido o correspondente Relatório Inspetivo o qual foi objeto de notificação mediante expedição de carta registada com aviso de receção, cujo ofício foi devolvido ao Remetente com a menção ”Não reside nesta morada”, e lograda repetição a 17 de janeiro de 2008, obtendo-se igual devolução.

Mais dimanando provado que, a 28 de fevereiro de 2006, foram emitidos os atos de liquidação adicional nº 06028781 e 06028779, nos valores, respetivamente, de €1.760,45 e €5.406,37.

Ora, tendo presente o supra expendido ter-se-á de validar o juízo de entendimento do Tribunal a quo, no sentido da verificação do vício de audição prévia, porquanto compulsado o teor do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária não se aquiesce, de todo, nem tão-pouco, mediante inferências indiretas que o mesmo tenha qualquer conexão com as liquidações em contenda, não podendo, nessa medida, entender-se por cumprida a formalidade contemplada no artigo 60.º, da LGT, mormente a elencada no nº1, alínea a).

Com efeito, cotejando o aludido projeto de correções o mesmo apenas permite inferir que o pedido de reembolso realizado pelo Recorrido foi objeto de indeferimento, daí não resultando qualquer asserção de correções aritméticas e subsequentes emissão de atos de liquidação adicionais de IVA.

Aduza-se, em abono da verdade, que o evidenciado projeto de relatório identifica, desde logo, como âmbito objetivo o pedido de reembolso, com concreta alusão ao período (03.12T) e ao valor de €7.987,09.

Enumerando, depois, o que se extrata infra:

“1) Em cumprimento da ordem de serviço em epígrafe, e com a finalidade de proceder à verificação do reembolso oficioso de IVA, do período acima identificado, efectivou-se a competente notificação de pedido de elementos exigidos nos n.º (s) 2 a 4 do Despacho Normativo n °342/93 de 30/10, que se mostravam subtraídos à Administração Fiscal, através do ofício n.º 65516 de 2005-10-13.
Até à presente data, não foi obtida qualquer resposta ao referido ofício, nem foram enviados a esta unidade orgânica, os elementos considerados em falta, no cumprimento exacto do citado DN 342/93.
Não obstante, ter cessado a actividade em 2003-11-27, não foi solicitado, pelo sujeito passivo o reembolso de IVA em apreciação.
2) Em consequência, a conduta prosseguida pelo sujeito passivo, com infracção ao Art.° 59.° da LGT, impossibilitou o controlo por parte da Administração Fiscal - Serviços de Inspecção Tributária, derivando que não assiste legitimidade da situação de crédito versus reembolso.
A referida infracção é punível pelo Art.º 117.° do RGIT.
3) Na actualidade, o sistema informático IVA, disponibiliza que o reembolso se encontra pendente, na situação de “apreciação”, motivando o indeferimento do pedido de reembolso, conforme previsão/estatuição do n.° 11 do art° 22.° do CIVA, conjugado com a doutrina emanada do oficio circulado n.º 30050 da DSRIVA de 2002/05/29.”

Ora, como é bom de ver, a fundamentação supra expendida em nada permite alicerçar um projeto de conclusões atinente aos atos de liquidação supra evidenciados, -os quais, de resto, nem tão-pouco, se aquilata a sua natureza, desconhecendo-se, nessa medida, se os mesmos são adicionais, corretivos ou oficiosos- mas, tão-só, do indeferimento do pedido de reembolso de IVA requerido pela parte.

No âmbito do aludido procedimento de inspeção, não resulta que tenham sido promovidas quaisquer correções que tenham alterado a situação tributária do Recorrido, nada se inferindo no sentido de falta de liquidação de imposto ou dedução indevida de IVA, nem, tão-pouco, qualquer materialização indevida de crédito de imposto que careça da competente regularização, com posterior legitimação de atos de liquidação adicionais ou corretivos.

É certo que na sequência de um pedido de reembolso de IVA, pode ser espoletada uma ação inspetiva e dela dimanarem ilegalidades que redundem em alterações à matéria coletável com ulterior emissão dos atos de liquidação que as reflitam, mas a verdade é que atentando no teor da fundamentação constante no aludido projeto nada se retira que o caso vertente se circunscreva nessa realidade fática e mais ainda que as liquidações em contenda tenham origem nesse mesmo procedimento inspetivo.

Note-se, inclusive neste particular, que não se aquilata, tão-pouco, qualquer convergência de quantum, porquanto o pedido de indeferimento de reembolso de IVA ascendeu a €7.987,09, e os atos de liquidação adicional perfizeram o valor global de €7.166,82, inexistindo, assim, quaisquer elementos que nos permitem percecionar a conexão entre o rito procedimental e a consequente emissão de liquidação adicional, sendo certo que, tal perceção tem de resultar de forma clara e inequívoca da fundamentação contemplada no aludido projeto, sob pena desvirtuar o próprio direito de audição, a sua ratio e função.

Assim, face ao exposto e não obstante resultar dos autos a expedição do registo postal datado de 07 de janeiro de 2005, tendente à notificação do projeto de conclusões, a verdade é que o mesmo se reporta a uma realidade fática que em nada se pode considerar concatenada com os atos impugnados, logo não preenche a formalidade consignada no citado artigo 60.º, da LGT.

E por assim ser, carece de qualquer relevância o aludido pela Recorrente quanto às expedições de 07 de janeiro de 2005, e 12 de janeiro de 2006-sendo certo que esta, nem tão-pouco, se reporta à audição prévia-e as inerentes cominações dimanantes da sua devolução, por a questão, como visto, fundar-se a montante.

Conclui-se, assim, na esteira do decidido pelo Tribunal a quo, que nos encontramos perante a preterição do direito de audição prévia o qual consubstancia uma formalidade essencial cominando, nessa medida, os atos impugnados de anulabilidade. Quanto à aplicabilidade do princípio do aproveitamento do ato administrativo nada há a discernir e apreciar, porquanto o Tribunal a quo afastou, expressamente, tal possibilidade e a Recorrente, nesse e para esse efeito, nada contestou e sindicou, estando, por isso, firmada a questão.

De relevar, in fine, que não obstante a questão atinente à falta de fundamentação das liquidações se mostrar prejudicada, sempre se dirá que face a todo o expendido anteriormente, transponível, com as devidas adaptações, e tendo presente o teor do Relatório Inspetivo referido em 20), se teria de validar, outrossim, o juízo de procedência concernente à falta de fundamentação das liquidações.

Assim, face a todo o exposto, e sem necessidade de mais considerandos, improcede, na íntegra, o recurso da Recorrente, mantendo-se, por isso, a decisão recorrida na ordem jurídica.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
Registe. Notifique.

Lisboa, 11 de novembro de 2021

(Patrícia Manuel Pires)

(Cristina Flora)

(Luísa Soares)










1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.
2)Cfr.Ac. STA, proferidos nos processos nº.21244; rec.684/03, datados de 25.1.00 e 2.7.03; Ac TCAS, processo nº 1510/06, de 17.09.2013 Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, Encontro da Escrita Editora, 4ª. Edição, 2012, pág.502 e seg.
3) cfr.artº.135, do CPA, então em vigor; Ac.TCAS processo nº 9810/16 e 5428/12, de 27.10.2016 e 9.03.2017.; Diogo Leite de Campos e Outros, ob.cit., pág.515; Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.437