Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:98/05.5BECTB
Secção:CA
Data do Acordão:01/30/2020
Relator:ANA CRISTINA LAMEIRA
Descritores:RUÍNA IMINENTE;
89º E 90º DO RJUE;
VISTORIA;
DEMOLIÇÃO.
Sumário:i) Em sede de instância recursiva o Tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida. Mas para isso carece da respectiva impugnação e identificação por parte do recorrente (cf. artigos 607º, nº 5, 640º e 662º do CPC).
ii) Feita a prova, em sede de audiência de discussão e julgamento, das condições de urgência (ruína iminente do edifício) e de perigo para as construções e outros edifícios adjacentes habitados, então, em conformidade com o disposto no art. 89º, nº 3 e no art. 90º, nº 7, do DL 555/99, está justificada a ordem de demolição urgente do edifício, com preterição de formalidades previstas no artigo 90º.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I. RELATÓRIO

M.........., intentou contra a Câmara Municipal da Covilhã a acção administrativa especial de impugnação de acto administrativo que ordenou a demolição do prédio de que era proprietária, descrito na petição inicial, tendo peticionado a declaração de nulidade do acto impugnado, por violação do nº 2 do art. 266º da CRP, nº 1, do art. 268º da CRP e 100º do CPA, ou ainda que assim se não entenda, que esse acto seja anulado por vício de violação de lei e vício de forma, por violação dos artigos 64º, nº 5, alínea c) e 65º da Lei nº 169/99, de 18/09 com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 5-A/2002, de 11/01; por violação dos artigos 89º, nº 2, 3 e 5 e 106º, nº 3 do DL 555/99, de 16/12 com a redacção que lhe foi dada pelo DL 177/2001, de 04/01; por violação dos artigos 3º, 66º, nº 1, alínea b), 70º, 100º e 152º, nº 1 do CPA.

E, em consequência dessa anulação, requereu a Autora/ Recorrente que a Entidade Demandada/ Recorrida fosse condenada a pagar-lhe, a título de indemnização, a quantia de €277.750,00. Assim como anulado o pagamento dos custos com a demolição no valor de €28.000,00.

Por Acórdão de 07 de Março de 2006, o TAF de Castelo Branco julgou a acção totalmente improcedente.

Deste vem interposto o presente recurso, terminando as alegações com a formulação das conclusões que, de seguida, se transcrevem:
“1 - Não resulta da prova feita em audiência de julgamento que o edifício demolido pela CM da Covilhã ameaçasse "risco iminente de desmoronamento".
2- O edifício não tinha que ser demolido, podendo ter sido recuperado com obras de conservação, tal como pretendia a Recorrente, bastando para tal que a Recorrida cumprisse a lei, mormente, as normas contidas no DL 555/99 de 16/12 com a redacção que lhe foi dada pelo DL 177/2001 de 04/01, diploma que tem aplicação no caso concreto.
3- Assim, o acto praticado pela Recorrida, enferma de vícios que geram a anulabilidade do mesmo por vício de violação de lei e vício de forma, por violação dso artigos 64° n.º 5 alínea c) e 65° da Lei 169/99 de 18/09 com a redacção que lhe foi dada pela Lei 5-A/2002 de 11/01, uma vez que o acto é da competência da Câmara Municipal, tendo sido praticado por um vereador sem que este invocasse a delegação de competências;
4- por violação dos artigos 89° n.º 2 e 3, 90° n.0 2, 3 e 5 e 106° n.º 3 do DL 555/99 de 16/12 com a redacção que lhe foi dada pelo DL 177/2001 de 04/01, dado que não foi observado o procedimento legal para a realização de obras e/ou respectiva demolição.
5- por violação dos artigos 3°, 66° n.º 1 alínea b), 70° 100° e 152° n.º 1 do CPA, por preterição da audiência de interessados, isto é preterição de uma formalidade essencial, cuja a "urgência", tal como se demonstrou supra não foi devidamente fundamentada.
6- Em última instância o acto é nulo, por violação do n.0 2 do artigo 266° e n.º 1 do artigo 268° da CRP.
7 - Assim, com a prática do acto em apreço, a Recorrida provocou prejuízos à Recorrente, que devem ser reparados”

Pede o provimento do recurso revogando-se a decisão do Tribunal "a quo'', e por via disso ser declarado nulo, ou ser anulado o acto que ordenou a demolição total do edifício propriedade da autora, condenando­se a Recorrida à indemnização peticionada, para reparação dos prejuízos que não existiriam se o acto praticado não enfermasse de ilegalidades”.

A Entidade Demandada, ora Recorrida, apresentou contra-alegações, por remissão para o Acórdão recorrido, que deve ser mantido, realçando que a Recorrente não aponta ao Acórdão recorrido a violação ou errada fundamentação da lei.


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O MP, notificado ao abrigo do disposto no artigo 146º/1 do CPTA, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Colhidos os vistos, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

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II – Fundamentação
II. 1 - De facto:

No Acórdão recorrido foi fixada a seguinte factualidade:

1º) - A autora é proprietária de prédio urbano sito na R. Montes H…… -Rua J……, nº 39, S…… M……, Covilhã;

2º) Pela Divisão de Urbanismo e Habitação da Câmara Municipal da Covilhã foi prestada informação de que "Contactado pelo Sr. Comandante F........", efectuou-se vistoria conjunta para averiguação do estado da fachada do edifício F........ propriedade da Sra D. M.........., com morada na Rua L......, 32… - 400... P...... . O edifício em causa encontra-se em ruína iminente, e é confinante com o logradouro do edifício nº 39 da Rua J......... Esta situação coloca em causa a segurança de todos os moradores confinantes com o edifício f…….., pois em caso de colapso vai projectar-se sobre os edifícios que se encontra a uma cota inferior" e propondo a "Demolição integral do edifício em causa até finais de Setembro/04, pois a situação verificada será agravada com a existência de precipitação " e "que seja notificada a Sra proprietária para a realização das obras acima indicadas no prazo de 1O dias.";

3º) Em cumprimento de despacho do Vereador J........, de 20/08/2004, aos dez dias do mês de Setembro de 2004, sendo peritos Engº. J........, Eng.A........ e Engº. P……., foi efectuada vistoria ao dito prédio, o referido prédio da autora, constatando-se que "O edifício em causa encontra-se em ruína iminente, e é confinante com o logradouro do edifício nº 39 da Rua J......... Esta situação coloca em causa a segurança de todos os moradores confinantes com o edifício F........, pois em caso de colapso vai projectar-se sobre os edifícios que se encontra a uma cota inferior “ e propondo a “demolição integral do edifício em causa até finais de Setembro/04, pois a situação verificada será agravada com a existência de precipitação” e a “Notificação do proprietário do edifício afim de realizarem os trabalhos acima referidos nos prazo de 10 dias. Estima-se para a sua realização a quantia de €5.000,00”.

4°) - Foi efectuado envio de carta registada, datada de 29/09/2004, dirigida à autora, para a R. L........, nº 32…, 400… P………, dando conta para "no prazo de 10 (dez) dias úteis, a contar da data da recepção da presente notificação, proceder aos trabalhos mencionados no auto de vistoria, do qual se anexa cópia.".
5°) - Foi feito oficio, datado de 19/10/2004, dirigido à autora, para a R. L........, nº 32…, 400… P……, para "estar presente no dia 2004110129, das 9HOOm às l2H30m, no local mencionado em epígrafe, a fim de ser verificada as condições de segurança, conservação e salubridade do edificio F......... Informo V. Exa que, nos termos do nº 3, do artigo 90º do diploma mencionado anteriormente, poderá , até À véspera da vistoria, indicar um perito para intervir na realização da vistoria eformular quesitos a que deverão responder os técnicos nomeados.".
6°) - Novo auto de vistoria ao prédio, de 29/10/2004, foi feito, para cumprimento de despacho do Director de DMOU, de 20/9/2004, figurando como peritos Engº. J........, Engº. P........, e Arqº A........ , descrevendo que "O edificio em causa encontra-se em ruína iminente, e é confinante com o logradouro dos edificios da Rua J......... Esta situação coloca em causa a segurança de todos os moradores confinantes com o edificio F........, pois em caso de colapso vai projectar-se sobre os edificios que se encontra a uma cota inferior" e propondo a "Demolição integral do edificio com transporte a vazadouro dos escombros, salvaguardando-se sempre a segurança das construções contíguas” e a “Notificação do proprietário do edifício afim de realizarem os trabalhos referidos no prazo de 10 dias. Estima-se para a sua realização a quantia de €5.000,00.
7º Tal auto de vistoria realizado em 29 de Outubro de 2004 foi assinado apenas por um dos técnicos.
8°) - Despacho do Vereador J........, datado de 29/10/2004, decidiu o seguinte : "(...) após deslocação ao local, verificada a urgência extrema de risco de ruína sobre as construções adjacentes, na ausência do Sr. Presidente da C. M , determino que se proceda de imediato à demolição da parcela do edifício que se afigure indispensável para garantir as condições de segurança".
9°) - Foi o edifício demolido.

1Oº) - Para tanto "Tendo em conta o carácter de urgência foram consultadas duas firmas para apresentar proposta." E foi adjudicado o trabalho de demolição à firma "C........", por 28.100 €, mais IVA, o que se submeteu "À consideração superior", por parte da Divisão de Urbanismo e Habitação da Câmara Municipal da Covilhã, vindo a merecer o seguinte despacho, de 05/11/2004, "Anexar aos antecedentes e verificar despacho do Sr. Vereador J........".
11º) - A Divisão de Urbanismo e Habitação da Câmara Municipal da Covilhã elaborou nova informação em que refere "Tendo em conta a situação em que se encontrava a construção em referência, e pelo facto de os Sr.s Proprietários não efectuarem as obras necessárias, foi efectuada uma intervenção com carácter de urgência, com custos directos de 20.100 €, conforme proposta em anexo. À verba acima indicada é necessário adicionar mais 3% referentes a custos processuais . Assim e salvo melhor opinião deve dar-se início à cobrança curciva. Em anexo todo o processo existente sobre este edifício. À consideração superior".
12°) - O referido edifício da autora estava em ruína, em iminente estado de desmoronamento;
13º) Podendo ruir sobre as construções e outros edifícios adjacentes;
14º) Habitados;
15º) A Autora desde Junho de 2003 que não reside na R. L........ nº 32..., 400... P.......;
16º) A autora teve conhecimento de carta enviada, em Novembro de 2003, para a R. L........, nº 32..., 400... P......., por A........., vizinho junto do prédio demolido, dando conta que o edifício se estava a desmoronar.”

No sobredito Acórdão recorrido foi ainda decidido que não ficou provado que:

1 O referido edificio da autora poderia ser restaurado, e sem risco de ruína eminente;
2 a reconstrução do edifício, no estado em que estava, acrescida de mais obras que o pusessem em estado de ser arrendado, como a autora pretendia, importa em 277.750 €.”

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II.2 De Direito

As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas conclusões de recurso, são:

- aferir do erro de julgamento da matéria de facto, por não ter sido feita prova em audiência de julgamento que o edifício demolido ameaçasse “risco iminente de desmoronamento”;

- aferir do erro decisório por a decisão recorrida ter entendido que os vícios apontados ao acto impugnado se degradariam em função do risco iminente de ruína do prédio.

a) do erro de julgamento de facto
Como a seguir se desenvolverá, o Acórdão posto em crise não enferma de qualquer vício ou erro que mereça reparo.
A Recorrente começa por imputar ao Acórdão recorrido erro de julgamento quanto à matéria de facto, já que, “Não resulta da prova feita em audiência de discussão e julgamento que o edifício demolido pela CM da Covilhã ameaçasse “risco iminente de desmoronamento” (conclusão 1ª).
Contudo ao longo das respectivas alegações a Recorrente não concretiza qual a prova testemunhal ou outro elemento de prova que afastasse o julgamento da matéria de facto.
O artigo 690ºAº do CPC (actual 640º) sob a epígrafe ‘ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto”, previa o seguinte:
1 - Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522º-C.”
Daqui decorre que, em primeiro lugar, ao impugnar a matéria de facto, em sede de recurso, recai sobre o recorrente o ónus de alegar o motivo pelo qual os meios probatórios que indica impõem decisão diversa e também por que motivo os meios probatórios tidos em conta pelo tribunal não permitem se considere provado determinado facto.
Condições do recurso que a Recorrente não cumpriu minimamente, limitando-se a aduzir que “ [s]alvo melhor opinião, da prova testemunhal não resulta com clareza que efectivamente o prédio ameaçava “risco iminente de desmoronamento”, sem qualquer sustentação.
Ora, basta confrontar a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo para se perceber que ficou provado que:

“ 12°) - O referido edificio da autora estava em ruína, em iminente estado de desmoronamento;
13º Podendo ruir sobre as construções e outros edifícios adjacentes;
14º Habitados; “

Como não se provou que:

“O referido edifício da autora poderia ser restaurado, e sem risco de ruína eminente” (1);
Desta feita, não refere a Recorrente, como lhe competia, quais os meios de prova que impunham decisão diferente da que foi tomada sobre a matéria de facto, em particular, a mencionada nos referidos pontos 12º a 14º da matéria de facto provada e ponto 1 da factualidade não provada – art.ºs 690º - A, n.º 1, al. b), e 712.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil (então em vigor, 2006).
Por outro lado, não se vislumbra qualquer hipótese, de entre as mencionadas nos n.ºs 2 a 5, do art.º 712.º, do Código de Processo Civil, que permita a este Tribunal fazer uma alteração da matéria de facto fixada pela 1ª Instância, sendo certo que, designadamente, não se constata qualquer obscuridade, deficiência ou contradição nessa matéria.
A este respeito determina o artigo 662º [actual] do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, no seu nº 1, que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa”.
Porquanto, em sede de instância recursiva o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.
Mas para isso carece da respectiva impugnação e identificação por parte do recorrente.
Pois que, o respeito pela livre apreciação da prova por parte do tribunal de primeira instância impõe um especial cuidado no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto e reservar as alterações da mesma para os casos em que ela se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que seja seguro, de acordo com as regras da lógica ou da experiência comum, que a decisão não é razoável, condicionalismo esse que ora se não verifica.
Haverá que ter também presente que, de acordo com o artigo 655º, nº 1 (actual 607.º, n.º 5), do CPC, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; e esta livre apreciação apenas não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
A convicção do tribunal a quo (como se destaca no acórdão recorrido) formou-se de um modo dialético, pois, além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas nos autos (fotografias), atendeu também à análise conjugada das declarações e depoimentos produzidos em sede de audiência de julgamento, justificando a sua convicção em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, etc., evidenciados no acórdão recorrido e que não há que afastar, como foi decidido no Acórdão do TCA Norte, de 11/11/2011, Proc. nº 3097/10.4BEPRT.
Em todo o caso, a Recorrente não impugnou concretizando que prova produzida levaria a uma convicção diferente da realizada pelo Tribunal a quo.

No sentido do entendimento deste Tribunal, vide o Acórdão do STA, datado de 17/03/2010, Proc. 367/09, segundo o qual: “A garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto (art. 712º CPC) deve harmonizar-se com o princípio da livre apreciação da prova (art. 655º/1 CPC). Assim, tendo em conta que o tribunal superior é chamado a pronunciar-se privado da oralidade e da imediação que foram determinantes da decisão em 1ª instância e que a gravação/transcrição da prova, por sua natureza, não pode transmitir todo o conjunto de factores de persuasão que foram directamente percepcionados por quem primeiro julgou, deve aquele tribunal, sob pena de aniquilar a capacidade de livre apreciação do tribunal a quo, ser particularmente cuidadoso no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto e reservar a modificação para os casos em que a mesma se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que for seguro, segundo as regras da ciência, da lógica e/ou da experiência comum que a decisão não é razoável”.

Tudo sopesado, para alterar o decidido pelo Tribunal a quo, quanto ao julgamento da matéria de facto, haveria que a ora Recorrente tivesse afastado de forma eficaz e concreta a matéria de facto relevante para a decisão recorrida.
A matéria de facto supra descrita não veio impugnada, nem diz a Recorrente quais os factos em concreto que impunham uma decisão diferente.
Em face de tudo isto, perante a prova feita pelo Tribunal a quo, a conclusão de que o prédio estava em risco iminente de ruína é inatacável.

a) do erro de julgamento de direito
Extrai-se das conclusões de recurso, que a Recorrente parte da premissa de que o edifício não tinha de ser demolido, podendo ter sido recuperado com obras de conservação, bastando, segundo refere, que a Entidade Recorrida tivesse cumprido a lei e as formalidades legais.
Apreciando,
Relativamente à questão da demolição do edifício (acto impugnado).
No caso sub iudice há que ter presente o disposto no art. 89º do Decreto-Lei nº 555/99, de 4 de Julho (diploma alterado pelo DL nº 177/2001, de 04/06), que dispunha:
“Artigo 89° Dever de conservação
1 - As edificações devem ser objecto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos.
2- Sem prejuízo do disposto no número anterior, a câmara municipal pode, a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, determinar a execução de obras de conservação necessárias à correcção de más condições de segurança ou de salubridade.
3- A câmara municipal pode, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado ordenar a demolição total ou parcial das construções que “ameacem ruína ou ofereçam perigo para a saúde pública e para a segurança das pessoas.”
4- Os actos referidos nos números anteriores são eficazes a partir da notificação ao proprietário” (d/n).
Tal competência decorrente da Lei 169/99 de 18.09, cujo artº 64º nº 5 al. c) que determinava que “compete à câmara municipal, em matéria de licenciamento e fiscalização ordenar, precedendo vistoria, a demolição total ou parcial ou a beneficiação de construções que ameacem ruína ou constituam perigo para a saúde ou segurança das pessoas”.
E perante a prova produzida, não abalada pela Recorrente, os vícios apontados quanto ao procedimento que deveria ter sido seguido, designadamente a violação dos artigos 89º, nº 2 , 3 e 5 do DL 555/99, terão de soçobrar atentos os pressupostos em que assentou o acto impugnado e que foram confirmados em sede de audiência de discussão e julgamento, como seja a ruína iminente do edifício ( pontos 12º, 13º e 14º do probatório), facto que se subsume na estatuição do citado artigo 89º, nº 3 do DL 555/99.
Em sede de alegações de recurso a Recorrente “ignora” tal factualidade (vide artigos 11º, 23º das suas Alegações) e aduz os vícios imputados ao acto impugnado como se tal realidade fosse inexistente.
Por outro lado, atenta a situação de facto apurada em sede de julgamento, de ruína iminente do edifício, há que trazer ainda à colação o disposto no artigo 90º, do DL 555/99, sob a epígrafe “vistoria prévia”, do citado diploma legal o qual dispunha:
“1 - As deliberações referidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo anterior são precedidas de vistoria a realizar por três técnicos a nomear pela câmara municipal.
2 - Do acto que determinar a realização da vistoria e respectivos fundamentos é notificado o proprietário do imóvel, mediante carta registada expedida com, pelo menos, sete dias de antecedência.
3 - Até à véspera da vistoria, o proprietário pode indicar um perito para intervir na realização da vistoria e formular quesitos a que deverão responder os técnicos nomeados.
4 - Da vistoria é imediatamente lavrado auto, do qual consta obrigatoriamente a identificação do imóvel, a descrição do estado do mesmo e as obras preconizadas e, bem assim, as respostas aos quesitos que sejam formuladas pelo proprietário.
5 - O auto referido no número anterior é assinado por todos os técnicos e pelo perito que hajam participado na vistoria e, se algum deles não quiser ou não puder assiná-lo, faz-se menção desse facto.

6 - Quando o proprietário não indique perito até à data referida no número anterior, a vistoria é realizada sem a presença deste, sem prejuízo de, em eventual impugnação administrativa ou contenciosa da deliberação em causa, o proprietário poder alegar factos não constantes do auto de vistoria, quando prove que não foi regularmente notificado nos termos do n.º 2.
7 - As formalidades previstas no presente artigo podem ser preteridas quando exista risco iminente de desmoronamento ou grave perigo para a saúde pública, nos termos previstos na lei para o estado de necessidade.” (d/n)

No caso concreto, tendo sido realizada uma vistoria prévia, ficou demonstrado “ que a Informação e a vistoria realizadas propunham a demolição integral do edifício até Setembro de 2004” (factos provados 2º e 3º).
Tendo, pois, nesta parte sido cumprido o disposto no citado art. 90º, nº 1, do DL 555/99, quanto à vistoria prévia, com a proposta de demolição integral do edifício, até Setembro de 2004.
Como foi também demonstrado que a ora Recorrente, embora não tendo sido oficialmente notificada, tinha conhecimento, desde Novembro de 2003, que o edifício se estava a desmoronar (facto provado 16º), nada tendo feito ou requerido.
Tendo sido realizada nova vistoria (em Outubro de 2004), foi confirmada a situação de perigo iminente de ruína (física), pondo em causa a segurança de todos os moradores confinantes do mesmo edifício (Facto provado 6º).
Por conseguinte, a Entidade Administrativa ao não ter “seguido” as formalidades previstas nos diversos nºs, designadamente os nºs 2, 3 e 5, do art. 90º do DL 555/99, fê-lo nos termos do disposto no citado nº 7 do art. 90º, improcedendo as respectivas conclusões de recurso (4ª e 5ª).
A propósito, em anotação ao artigo 90º, no “Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, comentado”, dizem-nos Maria José Castanheira Neves, Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes , Editora Almedina, 1ª edição, p.p. 409-410:
Se existir risco iminente de desmoronamento ou grave perigo para a saúde pública, nos termos previstos para o estado de necessidade, as formalidades previstas neste artigo sobre a existência de vistoria prévia podem ser preteridas. Esta admissibilidade genérica de actuação sem cumprimento de formalidades normalmente exigíveis nas situações que configuram estado de necessidade encontram-se prevista no nº 1 do art. 151º do CPA. De acordo com Ana Prata (Dicionário Jurídico, 3ª edição, Coimbra Almedina - “ o estado de necessidade traduz-se numa conduta lícita, funcionando como causa de justificação do acto lesivo, isto é como causa de exclusão da ilicitude deste”.
Não tendo a Recorrente afastado as condições de urgência (ruína iminente do edifício) e de perigo para as construções e outros edifícios adjacentes habitados (pontos 12º a 14º dos factos assentes), que, em conformidade com o disposto no art. 89º, nº 3 e no art. 90º, nº 7, do DL 555/99, justificam a prática do acto impugnado, soçobram os alegados erros de julgamento ao acórdão recorrido, nesta parte.
Pois que divergimos na fundamentação do Acórdão recorrido, ao reconhecer que a audiência prévia era uma formalidade a observar e que, no caso não havia ocorrido, recusou efeito invalidante por aplicação do princípio do aproveitamento do acto.
Porquanto, por força dos citados preceitos, isto é, da conjugação dos artigos 89º, nº 3, e 90º, nº 7, ambos do DL nº 555/99, de 16/12, existia uma inevitabilidade jurídica da ordem de demolição, face à realidade, ou seja por ameaça de ruína e oferecer perigo para as construções limítrofes e habitadas.
Acresce que, embora o art. 90º, nº 7 do DL 555/99, dispense formalidades quanto à realização e auto de vistoria quando exista risco iminente de desmoronamento, o certo é que foram realizadas 2 vistorias num espaço de um ano (vide pontos 2º e 6º da matéria de facto assente), que atestaram tal “urgência e necessidade de demolição”.
Por outro lado, não assiste razão à Recorrente, para justificar o procedimento normal no pressuposto de que o “edifício poderia ser restaurado” já que tal não ficou demonstrado (factos não provados).
Aponta ainda a Recorrente o erro de julgamento ao Tribunal a quo já que a Recorrida Demandada deveria ter seguido outro procedimento normal” - por violação do artigo 106° n.º 3 do DL 555/99 de 16/12 com a redacção que lhe foi dada pelo DL 177/2001 de 04/01, dado que não foi observado o procedimento legal para a realização de obras e/ou respectiva demolição.
Sucede que os alegados erros de direito imputados ao Acórdão recorrido, designadamente quanto à violação dos artigos 106º, nº 3 e 107º, nº 2 - este último preceito constante do corpo das alegações mas não vertido nas conclusões de recurso - do DL 555/99, carecem da devida correspondência legal, quer de ordem sistemática, porque os preceitos se inserem na subsecção III da Seccão V “Fiscalização”, respeitantes a medidas de tutela da legalidade urbanística (artigos 102º e segs, daquele diploma legal), como de ordem material, já que a previsão das normas se reporta a situações em que estão em causa construções/edificações sem a devida licença ou em desconformidade com o acto licenciador. O que não é o caso.
De igual modo, é totalmente insubsistente a invocação em sede de conclusão dos vícios de violação de lei como seja do “ 2 do artigo 266° e n.º 1 do artigo 268° da CRP (conclusão 6ª), que nem se encontram alicerçados nas respectivas alegações de recurso, mais não sendo do que a repetição do “pedido” em sede de acção principal, supra transcrito (parte I).
Temos, pois, que o Tribunal a quo decidiu com acerto, perante a prova realizada, que se tratava de uma situação de “ruína iminente”, nos termos e para os efeitos previstos no art. 89º, nº 3 do DL 555/99. Esta asserção não foi afectada pelas alegações e conclusões da Recorrente, na medida em que alicerçou a sua posição em pressupostos de facto que não ficaram demonstrados em sede de audiência de discussão e julgamento, tais como que o edifício “não estava em risco de desmoronamento” e que “poderia ser restaurado”.
Resultando, assim, não só, provados os pressupostos de facto quanto à demolição do edifício, como quanto à sua insusceptibilidade de recuperação, soçobrando os vícios imputados ao Acórdão recorrido (conclusões 3ª a 6ª) e ao acto impugnado.
Entende também a Recorrente que deverá ser indemnizada pelo dano relativo à reconstrução do edifício demolido.
Para tal há que atender ao regime da responsabilidade civil da responsabilidade civil extracontratual do Estado por factos ilícitos culposos, no domínio dos actos de gestão pública, enunciados no art. 2º, n. 1, do D.L. n. 48051, de 21/11/87 (em vigor à data).

Assim, essa responsabilidade assenta, primordialmente, num facto de um órgão ou agente da Administração Pública, constituído por um comportamento voluntário, seja por acção, seja por omissão; mas é ainda necessário que tal facto seja ilícito, isto é, que ofenda direitos de terceiros ou disposições legais protectoras de interesses alheios, e culposo, aferindo-se a mera culpa através de um juízo de censura dirigido ao autor do acto por não ter agido com a diligência que teria um funcionário ou agente típico; que se verifique dano de natureza patrimonial ou não patrimonial na esfera jurídica do lesado, e que a gravidade de tal dano, avaliada segundo um padrão objectivo, mereça a tutela do direito; por último, que haja nexo de causalidade entre o facto e o dano, apurada segundo a teoria da causalidade adequada.

Entende-se que basta a falta de verificação de um dos pressupostos para toda a responsabilidade ficar erodida.
Nos termos do Decreto-Lei nº 48051 para efeitos de ilicitude há que atender no prescrito no seu art. 6º, i.é, “Para os efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.

E, não tendo sido provada a ilicitude imputada ao acto administrativo, como atrás se expendeu, nem o dano, já que não ficou provado que a reconstrução do edifício, no estado em que estava, acrescida de mais obras que o pusessem em estado de ser arrendado, como a autora pretendia, importa em 277.750 € (vide ponto 2 dos factos não provados, não impugnado pela Recorrente), falecem dois dos pressupostos da atribuição de indemnização por acto jurídico ilícito, como seja a ilicitude e dano, sendo igualmente de confirmar o decidido, pelo que carece razão o alegado na conclusão 7ª.

Pelo exposto, o acórdão recorrido não merece qualquer censura, impondo-se por isso a respectiva confirmação, embora com fundamentação não totalmente coincidente.

Em conclusão, o presente recurso claudica in totum.

III. Decisão

Em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao Recurso, mantendo-se a decisão proferida em 1ª instância, embora com fundamentação distinta.

Custas pela Recorrente (cf. art.ºs. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2, do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).

Lisboa, 30 de Janeiro de 2020


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Ana Cristina Lameira

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Cristina Santos

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Sofia David