Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:09966/16
Secção:CT
Data do Acordão:01/12/2017
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO.
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA.
ERRO DE JULGAMENTO DE FACTO.
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE 1ª. INSTÂNCIA RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO. ÓNUS DO RECORRENTE.
ACTO TRIBUTÁRIO E FACTO TRIBUTÁRIO. NOÇÃO.
CONCEITO DE RENDIMENTO TRIBUTÁRIO EM SEDE DE C.I.R.S. (CONCEPÇÃO DE RENDIMENTO-ACRÉSCIMO).
INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA.
ARTº.2, DO C.I.R.S.
RENDIMENTOS DA CATEGORIA A.
REGIME JURÍDICO DOS INTERNATOS MÉDICOS.
DEC.LEI 203/2004, DE 18/08.
DEC.LEI 45/2009, DE 13/02. “VAGAS PREFERENCIAIS”.
EXERCÍCIO DE FUNÇÕES AO ABRIGO DO REGIME DE VAGA PREFERENCIAL.
BOLSA DE FORMAÇÃO. NÃO SUJEIÇÃO A TRIBUTAÇÃO EM SEDE DE I.R.S.
Sumário:1. Relativamente à matéria de facto, o juiz não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor (cfr.artºs.596, nº.1 e 607, nºs.2 a 4, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6) e consignar se a considera provada ou não provada (cfr.artº.123, nº.2, do C.P.P.Tributário).
2. Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr. artº.607, nº.5, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g.força probatória plena dos documentos autênticos - cfr.artº.371, do C.Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
3. O erro de julgamento de facto ocorre quando o juiz decide mal ou contra os factos apurados. Por outras palavras, tal erro é aquele que respeita a qualquer elemento ou característica da situação “sub judice” que não revista natureza jurídica. O erro de julgamento, de direito ou de facto, somente pode ser banido pela via do recurso e, verificando-se, tem por consequência a revogação da decisão recorrida.
4. No que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. Instância relativa à matéria de facto a lei processual civil impõe ao recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida (cfr.artº.685-B, nº.1, do C.P.Civil, “ex vi” do artº.281, do C.P.P.Tributário). Tal ónus rigoroso ainda se pode considerar mais vincado no actual artº.640, nº.1, do C.P.Civil, na redacção resultante da Lei 41/2013, de 26/6.
5. O acto tributário tem sempre na sua base uma situação de facto concreta, a qual se encontra prevista abstracta e tipicamente na lei fiscal como geradora do direito ao imposto. Essa situação factual e concreta define-se como facto tributário, o qual só existe desde que se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos para tal. As normas tributárias que contemplam o facto tributário são as relativas à incidência real, as quais definem os seus elementos objectivos. Só com a prática do facto tributário nasce a obrigação de imposto. A existência do facto tributário constitui, pois, uma condição “sine qua non” da fixação da matéria tributável e da liquidação efectuada.
6. Na construção do conceito de rendimento tributário o C.I.R.S. adopta a concepção de rendimento-acréscimo, segundo a qual a base de incidência deste tributo abrange todo o aumento do poder aquisitivo do contribuinte, incluindo nela, de um modo geral, as receitas irregulares e ganhos fortuitos, os quais também devem ser considerados manifestações de capacidade contributiva.
7. As normas de incidência dos tributos bem como as que concedem isenções ou exclusões de tributação, devem ser interpretadas nos seus exactos termos, sem o recurso à analogia, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação.
8. É no artº.2, do C.I.R.S., que se englobam todos os rendimentos da categoria A - rendimentos do trabalho dependente - sujeitos ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, para o efeito se exigindo o carácter remuneratório dos mesmos, ou seja, que se trate de rendimentos obtidos como retribuição de trabalho prestado por conta de outrem. À primeira vista, a norma, cuja origem é o antigo Imposto Profissional, serve para confirmar o princípio de que todas as chamadas "van­tagens acessórias" são tributáveis em I.R.S.
9. O Regime Jurídico dos Internatos Médicos está regulado pelo dec.lei 203/2004, de 18/08, diploma que procurou redefinir o regime jurídico da formação após a licenciatura em Medicina, articulando-o melhor com os processos de formação pré-graduada e de formação contínua, perspectivando assim o processo de educação médica na sua globalidade. Nesta linha, é criado um único internato médico conforme consta do preâmbulo do diploma. Resulta do seu artº.1, que o objecto deste regime legal é o regime jurídico da formação médica, após a licenciatura em Medicina, com vista à especialização, e estabelece os princípios gerais a que deve obedecer o respectivo processo.
10. O dec.lei 45/2009, de 13/02, aditou o artº.12-A, ao inicial dec.lei 203/2004, de 18/08, referente a “Vagas preferenciais”.
11. A impugnante exerceu funções ao abrigo do regime de vaga preferencial, visando obter o grau de especialista em Medicina Geral e Familiar, sendo que, nos termos do citado Regime Jurídico dos Internatos Médicos, tal corresponde a um processo de formação médica especializada, teórica e prática, tendo como objectivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado numa especialidade médica (cfr.artº.2, nº.2, da portaria 251/2011, de 24/6).
12. Nos vários diplomas citados, o legislador faz referência à formação/bolsa de formação, mais estando os médicos internos sujeitos a avaliação final e resultando, inclusive, do preâmbulo do dec.lei 45/2009, de 13/02, que o contrato vigora pelo período de duração estabelecido para o respectivo programa de formação médica especializada, pelo que, se deve concluir que o valor mensal de € 750,00, da bolsa de formação, é recebido no âmbito da acção de formação do médico interno, não estando sujeito a tributação em sede de I.R.S., por constituir uma prestação paga em virtude da formação profissional dos médicos internos, tudo nos termos do artº.2, nº.8, al.c), do C.I.R.S., supra identificado, na redacção em vigor em 2011 (norma entretanto revogada pela Lei 82-E/2014, de 31/12 - Lei da Reforma do I.R.S.).
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO
X
RELATÓRIO
X
O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pela Mmª. Juíza do T.A.F. de Loulé, exarada a fls.102 a 105 do presente processo que julgou procedente a impugnação intentada pelo recorrido, S..., tendo por objecto liquidação de I.R.S. e respectivos juros compensatórios, relativas ao ano de 2011 e no montante total de € 3.626,75.
X
O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.121 a 123 dos autos) formulando as seguintes Conclusões:
1-A Mmª Juiz do Tribunal a quo julgou procedente a impugnação pois, concluiu que o impugnante recebeu o valor de € 9.000,00, no âmbito da ação de formação como médico interno, não estando assim tal quantia sujeita a tributação, por constituir uma bolsa de formação, excecionada pelo art. 2º nº 8 al. d) do CIRS (segmento decisório da sentença);
2-Ora, decorre dos autos que a impugnante exerce funções como médica interna, desde 01/01/2011, em vaga preferencial, no Centro de Saúde de ..., na Unidade de Saúde Familiar .... Pelo que, deveria este facto ter sido levado ao probatório na sentença recorrida, pois é por força da ocupação da vaga preferencial que auferiu a dita bolsa de formação, cuja tributação a AT reclama;
3-O DL nº 203/2004, de 18 de Agosto, com as alterações que lhe sucederam, veio definir o regime jurídico da formação médica, após a licenciatura em medicina, com vista à especialização;
4-Os candidatos ao internato médico têm que se sujeitar a uma prova de seriação, de âmbito nacional, sendo o mapa de vagas fixado por despacho conjunto dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças, da Administração Pública e da Saúde, nos termos do artigo 12º daquele diploma legal;
5-Foi posteriormente aditado o artigo 12º-A, segundo qual “podem ser identificadas vagas preferenciais, destinadas a suprir necessidades de médicos de determinadas especialidades, as quais não podem exceder 30% do total de vagas estabelecidas anualmente”;
6-Sendo que, o seu nº 4 determina que “os médicos internos colocados em vagas preferenciais assumem, no respectivo contrato a obrigação de, após o internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições.”;
7-Para a seleção dos candidatos à vaga preferencial são considerados e ponderados o resultado da prova de avaliação do internato médico e a classificação obtida em entrevista de seleção a realizar para o efeito (nº 5 do artº 12-A);
8-O preenchimento de uma vaga preferencial confere, por si só, e independentemente de qualquer formação, o direito a uma designada bolsa de formação, que acresce à remuneração do interno (artº 12º-A, nº 8);
9-Ao contrário do que ditou a douta sentença, tal bolsa depende da prestação de trabalho médico em vaga preferencial, pelo que configura rendimento de trabalho dependente, ainda que acessória da remuneração base, nos termos conjugados do artigo 2º, nº 1, alínea c) e nº 2, e o nº 3, alínea b), todos do Código do IRS, em conjugação com o artigo 12º-A, nº 8 do DL nº 203/2004, de 18 de Agosto, com as alterações que lhe sobrevieram;
10-Deveria a Mmª Juíza a quo ter dado como facto provado que a impugnante, desde 01/01/2011, exerceu funções como médica interna, em vaga preferencial, no Centro de Saúde de ..., Na Unidade de Saúde Familiar ... e, por força disso, recebeu durante aquele ano a quantia de € 9.000,00, a título de bolsa de formação;
11-Não o fez e, apesar de tais factos constarem da fundamentação de julgamento, a verdade é que fez a Mmª Juíza uma distorção da realidade factual, ao considerar que a denominada bolsa de formação foi auferida no âmbito de ação de formação do médico interno e, por essa via, incorreu em erro de direito ao julgar que tal importância pecuniária não está sujeita a tributação, por força da excepção consagrada no artigo 2º, nº 8, alínea d) do CIRS, na redação ao tempo em vigor;
12-Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, requer-se sejam dados como provados os factos descritos no nº.10 das conclusões formuladas e revogada a decisão recorrida, substituindo-a por acórdão que declare a impugnação judicial improcedente.
X
Em sede de contra-alegações a recorrida pugna pela manutenção da sentença do Tribunal "a quo" (cfr.fls.143 a 154 dos autos), terminando com a estruturação das consequentes Conclusões:
1-As bolsas de formação recebidas pela recorrida durante o ano de 2011, e liquidadas pela Administração Regional de Saúde do Algarve, IP não se reconduzem a rendimentos de trabalho dependente, sujeitos a IRS nos termos do artigo 2° CIRS;
2-As bolsas de formação não constituem remuneração pela prestação de trabalho, nem tão pouco constituem remuneração acessória daquela, nos termos do artigo 2° nº 3 al. b) do CIRS;
3-Não sendo subsumíveis à previsão do artigo 2° CIRS nem se alegando qualquer outra norma que preveja a sua sujeição a imposto, as bolsas de formação não devem ser sujeitas a IRS, pelo que a sua consideração para apuramento da matéria colectável em sede de IRS é ilegal;
4-As bolsas de formação encontram-se previstas no artigo 12ºA do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto (Define o regime jurídico da formação médica, após a licenciatura em Medicina, com vista à especialização, e estabelece os princípios gerais a que deve obedecer o respectivo processo), aditado pelo Decreto-Lei nº 45/2009;
5-Neste diploma prevê-se a atribuição de uma bolsa de formação aos médicos internos que preencham uma vaga preferencial, bem como a obrigatoriedade daqueles, após o internato, ficarem a realizar trabalho para o estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período não inferior ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições. Em caso de incumprimento desta obrigação, o interno terá de devolver a totalidade ou parte do montante da bolsa recebida;
6-De acordo com o regime estabelecido no referido artigo 12º A, as vagas preferenciais são destinadas a suprir as necessidades de serviços e estabelecimentos de saúde carenciados de médicos em determinadas especialidades;
7-O médico interno tanto poderá receber formação no serviço ou estabelecimento de saúde onde será colocado em vaga preferencial como em outro serviço ou estabelecimento de saúde, que tenha capacidade formativa;
8-Nesta última situação, a mais comum, o médico interno recebe formação e presta trabalho num determinado serviço ou estabelecimento de saúde com capacidade formativa. Este serviço ou estabelecimento de saúde suporta a remuneração devida pelo trabalho prestado;
9-Após a conclusão com sucesso do internato, o médico será colocado no serviço ou estabelecimento com vaga preferencial, onde passará a prestar trabalho durante um período equivalente ao internato;
10-Durante o período de formação, mas não após a conclusão do internato, o serviço ou estabelecimento de saúde com a vaga preferencial suportará o pagamento da bolsa de formação;
11-Assim, na economia do artigo 12ºA, a bolsa de formação pode caracterizar-se do seguinte modo:
i. Corresponde a um incentivo (como o apelida o diploma) para que os médicos internos concorram a vagas em estabelecimentos ou serviços carenciados de determinadas especialidades;
ii. Tal incentivo tem como contraprestação a obrigação de permanência acima referida, e a pressuposta conclusão do internato;
iii. O sinalagma estabelece-se entre a prestação pecuniária (a bolsa de formação) e a permanência num determinado estabelecimento ou serviço de saúde por um certo período de tempo;
iv. A bolsa de formação, como o seu nome indica, é percebida durante o período de formação profissional obrigatória, a que corresponde o internato médico;
v. A bolsa de formação não tem correlação com a prestação de trabalho;
vi. O pagamento da bolsa de formação durante o internato e não após a conclusão deste, compreende-se na lógica de incentivo, motivando e vinculando os médicos internos a um benefício presente, sem que se instale a dúvida sobre a manutenção desse mesmo incentivo no futuro;
12-Deve assim ser prevenida qualquer confusão entre a prestação de trabalho e a bolsa de formação;
13-O interno, ao prestar trabalho, é remunerado pela entidade ou entidades para a qual presta trabalho e nos termos do contrato que tenha para o efeito celebrado;
14-Já a bolsa de formação é paga, durante o internato, pela entidade onde o interno irá ocupar a vaga preferencial após a conclusão com aproveitamento do internato;
15-É entendimento da recorrida que a bolsa de formação não é sujeita a imposto, atenta a sua natureza compensatória pela obrigação de permanência, não tendo natureza remuneratória;
16-Esta dicotomia tem extrema importância em sede de IRS, porquanto o IRS incide sobre a retribuição do trabalho e não sobre quantias que se destinem a compensar o trabalhador por encargos ou sacríficos específicos, independentes da prestação do trabalho;
17-Na verdade, a possibilidade de ter de ser devolvida posteriormente interrompe a relação sinalagmática entre a prestação do trabalho e a prestação pecuniária, afastando a bolsa de formação de um puro conceito de remuneração;
18-Trata-se pois de uma compensação da restrição do exercício da liberdade de trabalho;
19-Este traço particular do regime desta prestação pecuniária destaca-a e separa-a do conceito de remuneração, o qual, atento o disposto no artigo 11º da Lei Geral Tributária, se deve reconduzir ao sentido de contraprestação pela prestação de trabalho;
20-Não deve ser pois sujeito a imposto a bolsa de formação, nem, em consequência, ser retida qualquer quantia aquando do seu pagamento;
21-Pelo que a liquidação efectuada pela AT é ilegal, nos termos do artigo 99.º alínea c) CPPT;
22-A recorrente desconsidera por completo a especificidade do regime da bolsa de formação, considerando-a, numa interpretação que não corresponde sequer à letra e espirito do artigo 2° CIRS, uma remuneração acessória;
23-A remuneração dita principal e a ora qualificada remuneração acessória são muitas vezes processadas por entidades diversas;
24-Verifica-se assim uma total e inequívoca autonomia;
25-Na verdade, tal bolsa de formação será sempre devida mesmo que o médico interno não prestasse trabalho, já que a mesma se destina a compensar a obrigatoriedade de permanência em vaga preferencial após a conclusão do internato;
26-Também não autoriza a conclusão vazada pela recorrente nas suas alegações de recurso uma correcta interpretação do artigo 2° nº 2 e nº 3 al. b) do CIRS;
27-O artigo 2° do CIRS deve ser interpretado à luz do artigo 11º LGT e dos demais princípios estruturantes do direito fiscal, sendo permitido tributar apenas o que couber numa interpretação condizente com tais regras;
28-Desde logo importa descartar os nº1 e 2 do artigo 2°, porquanto tais nºs pressupõem uma remuneração auferida pela prestação de trabalho, o que, conforme alegado supra, não sucede com a bolsa de formação, a qual é liquidada sem que tenha como contrapartida a prestação de trabalho;
29-Tal resulta claro das alíneas do nº 1, sendo o nº 2 complementar do nº 1, esclarecendo que a tributação opera independentemente da forma e natureza do pagamento. Apenas é essencial o sinalagma que se estabelece entre a remuneração e a prestação de trabalho, o que permite distinguir este rendimento das restantes categorias constantes do CIRS;
30-No nº 3, o CIRS procede a um alargamento do conceito de remuneração de trabalho dependente constante do nº 1, o que desde logo impede a sua invocação conjunta, como resulta da sentença recorrida;
31-Prevê a alínea b) do nº 3 que se consideram rendimentos de trabalho dependente “As remunerações acessórias, nelas se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídos na remuneração principal que sejam auferidos devido à prestação de trabalho ou em conexão com esta e constituam para o respectivo beneficiário uma vantagem económica”, elencando de seguida um rol não taxativo de situações;
32-Surgem desta norma dois requisitos distintos: 1) relação ou conexão com a remuneração principal e 2) natureza de vantagem económica;
33-Analisando o primeiro requisito e conforme supra expendido, a bolsa de formação não é auferida devido à prestação trabalho, nem tem conexão com esta;
34-Confrontando os factos constantes dos autos com o disposto na alínea b) do nº 3 e com o disposto no artigo 12° A do Decreto-Lei nº 203/2004, logo se conclui que a bolsa de formação é auferida com total autonomia da remuneração devida pela prestação do trabalho e não pressupõe sequer a existência de qualquer prestação principal;
35-Tanto é assim que a remuneração principal e a bolsa de formação são na maioria dos casos devidas e liquidadas por entidades diversas e sem que a entidade que processa a bolsa de formação exija ou pressuponha a existência de uma remuneração principal;
36-Nesta sede, o que se encontra disposto no nº 8 do artigo 12-A é irrelevante, já que se limita a afirmar a autonomia entre a bolsa de formação e a remuneração auferida pelo médico interno pela prestação de trabalho;
37-Desde que cumpra as obrigações consignadas no nº 10 do mesmo artigo, o médico interno tem direito a auferir a bolsa de formação, sem qualquer dependência da prestação de trabalho;
38-Assim, não se pode considerar preenchido o primeiro requisito da alínea b) do nº 3 do artigo 2º CIRS;
39-Não obstante tal apuramento ser desnecessário, em face do não preenchimento do primeiro requisito, também o segundo requisito não se encontra preenchido;
40-Conforme analisado supra, a bolsa de formação não se destina a conferir ao médico interno uma vantagem económica, que acresça à sua remuneração, mas sim uma compensação pela obrigação de permanência, o que constitui uma limitação à liberdade de trabalho do médico interno;
41-Nessa perceptiva, a bolsas de formação não se distinguem de outras compensações não sujeitas a imposto, pelo que a liquidação impugnada é ilegal;
42-Pelo exposto, não deverá ser dado provimento ao recurso apresentado pela Fazenda Pública. Assim se fará a costumada Justiça.
X
O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido do não provimento do presente recurso (cfr.fls.167 e 168 dos autos).
X
Com dispensa de vistos legais, atenta a simplicidade das questões a dirimir, vêm os autos à conferência para deliberação.
X
FUNDAMENTAÇÃO
X
DE FACTO
X
A decisão recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.102 e 103 dos autos - numeração nossa):
1-Desde 01/01/2011 que a impugnante, S... , com o n.i.f. …, exerce funções no Centro de Saúde de ..., na Unidade de Saúde Familiar ..., mediante “contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto”, como interna do Internato Médico na Especialidade de Medicina Geral e Familiar (cfr.documento junto a fls.20 a 26 dos presentes autos);
2-Em 13/01/2012 foi emitida “nota de rendimentos devidos e de imposto retido” pela Administração Regional de Saúde do Algarve, I.P., relativa ao ano de 2011 e à pessoa da impugnante, onde consta como “rendimentos sujeitos a retenção: € 24.810,98” e “total do imposto retido: € 4.090,00” (cfr.documento junto a fls.32 dos presentes autos);
3-A impugnante apresentou, em 16/04/2012, declaração Mod. 3 referente a IRS do exercício de 2011 (cfr.documento junto a fls.28 a 31 dos presentes autos);
4-Entre Janeiro e Dezembro de 2011, a Administração Regional de Saúde do Algarve, I.P emitiu recibos de vencimento à impugnante, onde, além do mais, consta uma parcela: “bolsa de formação: € 750” (cfr.documentos juntos a fls.33 a 44 dos presentes autos);
5-Em 21/02/2013 a Direção de Finanças de ... enviou à impugnante o ofício nº 3239, a solicitar “a entrega de uma declaração de substituição de IRS”, tudo em virtude dos montante auferidos enquanto de "bolsa de formação" deverem ser tributados enquanto remunerações acessórias em sede de IRS (cfr.documento junto a fls.45 dos presentes autos, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido);
6-Em 10/03/2013, a impugnante dirigiu requerimento ao Chefe do Serviço de Finanças de ... em resposta ao ofício referido no nº.5 (cfr.documento junto a fls.46 e 47 dos presentes autos);
7-Em Março de 2013 a impugnante recebeu a demonstração de liquidação de IRS de 2011 com referência à liquidação nº ..., demonstração de liquidação de juros 2013 e demonstração de liquidação de juros e de Acerto de Contas, dos quais resulta o montante a pagar de € 3.626,75 (cfr.documentos juntos a fls.52 a 54 dos presentes autos);
8-A impugnante efetuou, em 22/04/2013, o pagamento do valor de € 3.626,75 (cfr. documento junto a fls.13 do processo administrativo apenso);
9-Em 16/04/2013, a impugnante apresentou reclamação graciosa da liquidação de juros compensatórios, que veio a ser indeferida por decisão proferida pelo Chefe do Serviço de Finanças de ..., em 21/06/2013 (cfr.documentos juntos a fls.2, 3 e 29 do processo de reclamação graciosa apenso).
X
A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: “…Não ficou provado que a Administração Regional de Saúde do Algarve, I.P tenha feito retenção de IRS ao montante pago à impugnante a título de bolsa de formação, durante o ano de 2011, no valor de € 9.000,00.
Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afetar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados…”.
X
Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “...Quanto aos factos provados a convicção do Tribunal fundou-se na documentação junta com os articulados e na concordância, nos articulados apresentados, relativamente aos factos descritos pelas partes, no p.a. e processo de reclamação graciosa cuja genuinidade não foi posta em causa.
Quanto aos factos não provados, tal resultou da análise do documento junto a fls.32 dos autos…”.
X
Levando em consideração que a decisão da matéria de facto em 1ª. Instância se baseou em prova documental constante dos presentes autos e apensos, este Tribunal julga provada a seguinte factualidade que se reputa igualmente relevante para a decisão do recurso e aditando-se, por isso, ao probatório nos termos do artº.662, nº.1, do C.P.Civil (“ex vi” do artº.281, do C.P.P.Tributário):
10-A impugnante, desde 01/01/2011, exerceu funções como médica interna, em vaga preferencial, no Centro de Saúde de ..., na Unidade de Saúde Familiar ..., mais tendo recebido durante o ano de 2011 a quantia de € 9.000,00, a título de bolsa de formação, sendo o montante mensal auferido de € 750,00 (cfr.documento junto a fls.20 a 26 dos presentes autos; documentos juntos a fls.33 a 44 dos presentes autos; factualidade admitida pela impugnante no artº.2 do articulado inicial).
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a sentença recorrida julgou procedente a impugnação intentada pela recorrida, em consequência do que anulou as liquidações objecto do presente processo (cfr.nº.7 do probatório), mais ordenando à Fazenda Pública a restituição das quantias pagas pela impugnante/recorrida.
X
Desde logo, se dirá que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr. artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6; artº.282, do C.P.P.Tributário).
Aduz o apelante, em primeiro lugar e em síntese, que decorre dos autos que a impugnante/recorrida exerce funções como médica interna, desde 01/01/2011, em vaga preferencial, no Centro de Saúde de ..., na Unidade de Saúde Familiar .... Pelo que, deveria este facto ter sido levado ao probatório, visto ser por força da ocupação da vaga preferencial que auferiu a dita bolsa de formação, cuja tributação a A. Fiscal reclama (cfr.conclusões 2 e 10 do recurso). Com base em tal argumentação pretendendo consubstanciar, supomos, um erro de julgamento de facto da sentença recorrida.
Dissequemos se a decisão do Tribunal "a quo" padece de tal vício.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas. Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g.força probatória plena dos documentos autênticos - cfr.artº.371, do C.Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação (cfr.artº.607, nº.5, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6; Prof. Alberto dos Reis, C.P.Civil anotado, IV, Coimbra Editora, 1987, pág.566 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.660 e seg.).
Relativamente à matéria de facto, o juiz não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor (cfr.artºs.596, nº.1 e 607, nºs.2 a 4, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6) e consignar se a considera provada ou não provada (cfr.artº.123, nº.2, do C.P.P.Tributário).
O erro de julgamento de facto ocorre quando o juiz decide mal ou contra os factos apurados. Por outras palavras, tal erro é aquele que respeita a qualquer elemento ou característica da situação “sub judice” que não revista natureza jurídica. O erro de julgamento, de direito ou de facto, somente pode ser banido pela via do recurso e, verificando-se, tem por consequência a revogação da decisão recorrida. A decisão é errada ou por padecer de “error in procedendo”, quando se infringe qualquer norma processual disciplinadora dos diversos actos processuais que integram o procedimento aplicável, ou de “error in iudicando”, quando se viola uma norma de direito substantivo ou um critério de julgamento, nomeadamente quando se escolhe indevidamente a norma aplicável ou se procede à interpretação e aplicação incorrectas da norma reguladora do caso ajuizado. A decisão é injusta quando resulta de uma inapropriada valoração das provas, da fixação imprecisa dos factos relevantes, da referência inexacta dos factos ao direito e sempre que o julgador, no âmbito do mérito do julgamento, utiliza abusivamente os poderes discricionários, mais ou menos amplos, que lhe são confiados (cfr. ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 11/6/2013, proc.5618/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 10/4/2014, proc.7396/14; Prof. Alberto dos Reis, C.P.Civil anotado, V, Coimbra Editora, 1984, pág.130; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 9ª. edição, 2009, pág.72).
Ainda no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. Instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida (cfr.artº.685-B, nº.1, do C.P.Civil, “ex vi” do artº.281, do C.P.P.Tributário; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 20/12/2012, proc.4855/11; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 2/7/2013, proc.6505/13).
Tal ónus rigoroso deve considerar-se mais vincado no actual artº.640, nº.1, do C.P.Civil, na redacção resultante da Lei 41/2013, de 26/6 (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 31/10/2013, proc.6531/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 14/11/2013, proc.5555/12; ac.T.C.A. Sul-2ª.Secção, 27/02/2014, proc.7205/13).
No caso concreto, não pode deixar de estar votado ao insucesso o fundamento do recurso em análise devido a falta de cumprimento do ónus mencionado supra, desde logo, quanto aos meios probatórios constantes do processo e que impunham a mesma decisão.
Arrematando, este Tribunal não tem obrigação de conhecer do presente esteio do recurso.
Apesar disso, remete-se o recorrente para o número 10 aditado oficiosamente ao probatório por este Tribunal.
O recorrente dissente do julgado alegando, igualmente e em sinopse, que o preenchimento de uma vaga preferencial confere, por si só, e independentemente de qualquer formação, o direito a uma designada bolsa de formação, que acresce à remuneração do médico interno. Que ao contrário do que ditou a sentença recorrida, tal bolsa depende da prestação de trabalho médico em vaga preferencial, pelo que configura rendimento de trabalho dependente, ainda que acessória da remuneração base, nos termos conjugados do artº.2, nºs.1, al.c), 2, e 3, al.b), todos do C.I.R.S., em conjugação com o artº.12-A, nº.8, do dec.lei 203/2004, de 18/8 (cfr.conclusões 3 a 9 e 11 do recurso). Com base em tal argumentação pretendendo consubstanciar, se bem percebemos, um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Vejamos se a decisão objecto do presente recurso padece de tal vício.
O acto tributário tem sempre na sua base uma situação de facto concreta, a qual se encontra prevista abstracta e tipicamente na lei fiscal como geradora do direito ao imposto. Essa situação factual e concreta define-se como facto tributário, o qual só existe desde que se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos para tal. As normas tributárias que contemplam o facto tributário são as relativas à incidência real, as quais definem os seus elementos objectivos (cfr.Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, pág.324; Nuno de Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, II, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1996, pág.57; A. José de Sousa e J. da Silva Paixão, Código de Processo Tributário anotado e comentado, 3ª. edição, 1997, pág.269). Só com a prática do facto tributário nasce a obrigação de imposto. A existência do facto tributário constitui, pois, uma condição “sine qua non” da fixação da matéria tributável e da liquidação efectuada.
Na construção do conceito de rendimento tributário o C.I.R.S. adopta a concepção de rendimento-acréscimo, segundo a qual a base de incidência deste tributo abrange todo o aumento do poder aquisitivo do contribuinte, incluindo nela, de um modo geral, as receitas irregulares e ganhos fortuitos, os quais também devem ser considerados manifestações de capacidade contributiva (cfr.nº.5 do preâmbulo do C.I.R.S.; Paulo de Pitta e Cunha, A Fiscalidade dos Anos 90, O Novo Sistema de Tributação do Rendimento, Almedina, 1996, pág.20; José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág.379).
Revertendo ao caso dos autos, da matéria de facto retira-se que a A. Fiscal estruturou liquidação de I.R.S. relativa ao ano de 2011, incidente sobre os montantes auferidos pela impugnante/recorrida enquanto bolsa de formação, que acresce à remuneração do médico interno. Que tal bolsa depende da prestação de trabalho médico em vaga preferencial, pelo que configura rendimento de trabalho dependente, ainda que acessório da remuneração base, nos termos conjugados do artº.2, nºs.1, al.c), 2, e 3, al.b), todos do C.I.R.S., em conjugação com o artº.12-A, nº.8, do dec.lei 203/2004, de 18/8.
Pelo contrário, o Tribunal "a quo" entendeu que não, que o valor de € 9.000,00 foi recebido no âmbito de acção de formação do médico interno, não estando sujeito a tributação, por constituir uma bolsa de formação, excepcionada pelo artº.2, nº.8, al.c), do C.I.R.S., na redação aplicável em 2011.
Vejamos quem tem razão.
Releve-se que as normas de incidência dos tributos bem como as que concedem isenções ou exclusões de tributação, devem ser interpretadas nos seus exactos termos, sem o recurso à analogia, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 2/10/2012,proc.5320/12;ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 12/12/2013, proc.7073/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 27/3/2014, proc.7384/14).
É no artº.2, do C.I.R.S., que se englobam todos os rendimentos da categoria A - rendimentos do trabalho dependente - sujeitos ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, para o efeito se exigindo o carácter remuneratório dos mesmos, ou seja, que se trate de rendimentos obtidos como retribuição de trabalho prestado por conta de outrem. À primeira vista, a norma, cuja origem é o antigo Imposto Profissional, serve para confirmar o princípio de que todas as chamadas "van­tagens acessórias" são tributáveis em I.R.S. (cfr.Nuno de Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, I, Editora Rei dos Livros, 1996, pág.188; José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág.55 e seg.).
No citado artº.2, do C.I.R.S., o legislador teve a intenção de tipificar de forma muito ampla ou esgotante, a incidência do imposto, nela se incluindo todos os rendimentos de alguma forma advindos do trabalho dependente. Há que salientar, desde logo, que este conceito de remuneração é mais lato que o acolhido pelo direito laboral, tal como o que é relevante para efeitos de incidência das contribuições para a segurança social. É rendimento da categoria A tudo aquilo que o trabalhador receba em razão do seu trabalho, em dinheiro, em espécie ou sob a forma de quaisquer outras vantagens, salvo o expressamente exceptuado pela lei. Tais remunerações, qualquer que seja a forma ou denominação sob que se apresentem (cfr.artº.2, nº.2, do C.I.R.S.), poderão resultar, quer do cumprimento de obrigações contratuais da entidade patronal, quer de decisões a que esta não se encontra legalmente obrigada (v.g.concessão de prémios). Poderão resultar, ainda, de presta­ções feitas por terceiros, mesmo que espontaneamente. Por sua vez, o nº.3, do artº.2, do C.I.R.S., pode entender-se como uma norma clarificadora, que mais não faz do que exemplificar ou concretizar o que resulta dos números anteriores do preceito (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 28/5/2013, proc.6450/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 29/5/2014, proc.7524/14; Rui Duarte Morais, Sobre o I.R.S., 2ª. edição, Almedina, 2010, pág.52).
"In casu", deverá, antes de mais, chamar-se à colação os diplomas que consagram o regime jurídico dos internatos médicos.
O Regime Jurídico dos Internatos Médicos está regulado pelo dec.lei 203/2004, de 18/08, diploma que procurou redefinir o regime jurídico da formação após a licenciatura em Medicina, articulando-o melhor com os processos de formação pré-graduada e de formação contínua, perspectivando assim o processo de educação médica na sua globalidade. Nesta linha, é criado um único internato médico conforme consta do preâmbulo do diploma.
Resulta do seu artº.1, que o objecto deste regime legal é o regime jurídico da formação médica, após a licenciatura em Medicina, com vista à especialização, e estabelece os princípios gerais a que deve obedecer o respectivo processo.
O dec.lei 45/2009, de 13/02, veio introduzir alterações ao citado dec.lei 203/2004, de 18/08, e no seu preâmbulo (elemento lógico de interpretação) o legislador expendeu o seguinte:
"As alterações ocorridas no regime legal da função pública, por força das Leis nºs. 12 -A/2008, de 27 de Fevereiro, e 59/2008, de 11 de Setembro, vieram excluir do ordenamento jurídico o contrato administrativo de provimento, pelo qual se assegurava o exercício de funções próprias do serviço público que não revestissem carácter de permanência. A impossibilidade de celebrar novos contratos administrativos de provimento impõe a definição de uma nova forma de vinculação daqueles internos, que iniciarão o 1.º ano do internato médico a 1 de Janeiro de cada ano civil. Assim, o presente diploma prevê a celebração de um contrato de trabalho em funções públicas com a administração regional de saúde ou com as Regiões Autónomas, na modalidade de contrato a termo resolutivo incerto ou, no caso de o interno ser titular de uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado constituída previamente, mediante comissão de serviço. O contrato vigora pelo período de duração estabelecido para o respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições e interrupções.
(…)
Nestes termos, prevê-se a atribuição de uma bolsa de formação aos médicos internos que preencham uma vaga preferencial, bem como a obrigatoriedade daqueles, após o internato, ficarem a realizar trabalho para o estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período não inferior ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições. Em caso de incumprimento desta obrigação, o interno terá de devolver a totalidade ou parte do montante da bolsa recebida.
(...)”.
O citado dec.lei 45/2009, de 13/02, aditou o artº.12-A, ao inicial dec.lei 203/2004, de 18/08, referente às “Vagas preferenciais”.
Este normativo, para o que ora importa, tem a seguinte epígrafe e conteúdo:
Artº.12-A
(Vagas preferenciais)
“(…)
3 - As vagas preferenciais são fixadas independentemente da existência de capacidade formativa no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que a elas deu lugar, podendo a formação decorrer em estabelecimento ou serviço diferente daquele, no caso de não existir idoneidade ou capacidade formativa.
4 - Os médicos internos colocados em vagas preferenciais assumem, no respectivo contrato, a obrigação de, após o internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições.
5 - O exercício de funções nos termos do número anterior efectiva-se mediante celebração do contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, o qual é precedido de um processo de recrutamento em que são considerados e ponderados o resultado da prova de avaliação final do internato médico e a classificação obtida em entrevista de selecção a realizar para o efeito.
6 - Até à celebração do contrato previsto no número anterior, mantém-se em vigor o contrato celebrado a termo resolutivo incerto para efeitos de internato médico.
(…)
8 - O preenchimento de uma vaga preferencial confere direito a uma bolsa de formação, que acresce à remuneração do interno, de valor e condições a fixar por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da saúde, sem prejuízo do recurso a outros regimes de incentivos legalmente previstos.
9 - O pagamento da bolsa referida no número anterior é assegurado pela ARS ou Região Autónoma de vinculação, havendo, nos casos previstos na parte final do n.º 7, compensação a esta por parte da ARS, do serviço ou estabelecimento onde se verifica o cumprimento da obrigação.
10 - O incumprimento da obrigação de permanência prevista no n.º 4, bem como a não conclusão do respectivo internato médico por motivo imputável ao médico interno, salvo não aproveitamento em avaliação final de internato, implica a devolução do montante percebido, a título de bolsa de formação, sendo descontados, proporcionalmente, os montantes correspondentes ao tempo prestado no estabelecimento ou serviço de saúde onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, a contar da data de conclusão do respectivo internato médico.
(…)”
Já a portaria 251/2011, de 24/6, veio regulamentar o regime de internato médico acima definido.
O seu artº.2, com a epígrafe "Noção e finalidade" estabelece:
1 - A formação no internato médico constitui uma função inerente às instituições, unidades e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde.
2 - O internato médico realiza-se após a licenciatura em Medicina ou após o equivalente mestrado integrado em medicina e corresponde a um processo de formação médica especializada, teórica e prática, tendo como objectivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado numa especialidade médica.
(…)
Por sua vez, o artº.49, da mesma portaria 251/2011, de 24/6, dispõe que:
1 - Os internos do internato médico são colocados nos locais de formação, mediante a celebração de contrato de trabalho em funções públicas na modalidade de contrato a termo resolutivo incerto ou em regime de comissão de serviço caso o médico interno seja titular de uma relação jurídica de emprego público por termo indeterminado constituída previamente.
(...)
Finalmente, o artº.2, nº.8, do C.I.R.S., na redacção em vigor em 2011, dispunha o seguinte, no que ao caso interessa:
(...)
8- Não constituem rendimento tributável:
a) As prestações efectuadas pelas entidades patronais para regimes obrigatórios de segurança social, ainda que de natureza privada, que visem assegurar exclusivamente benefícios em caso de reforma, invalidez ou sobrevivência;
b) Os benefícios imputáveis à utilização e fruição de realizações de utilidade social e de lazer mantidas pela entidade patronal ou previstos no Decreto-Lei n.º 26/99, de 28 de Janeiro, desde que observados os critérios estabelecidos no artigo 40º do Código do IRC.
c) As prestações relacionadas exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores, quer estas sejam ministradas pela entidade patronal, quer por organismos de direito público ou entidade reconhecida como tendo competência nos domínios da formação e reabilitação profissionais pelos ministérios competentes.
(...)

A referida bolsa de formação, a abonar em 12 mensalidades anuais, foi fixada no valor mensal de € 750,00, pela portaria 54/2010, de 21/1.
Compulsados os autos verifica-se que a impugnante/recorrida, durante o ano de 2011, exerceu funções, como médica interna na Especialidade de Medicina Geral e Familiar, em vaga preferencial, no Centro de Saúde de ..., na Unidade de Saúde Familiar ... e recebeu, mensalmente, durante aquele ano, o valor de € 750,00 euros, sem qualquer incidência de imposto sobre o rendimento pela entidade processadora do vencimento (cfr.nºs.1, 2, 4 e 10 do probatório; matéria de facto não provada).
Atento o referido, durante o ano de 2011, a impugnante/recorrida exerceu funções ao abrigo do regime de vaga preferencial, visando obter o grau de especialista em Medicina Geral e Familiar, sendo que, nos termos do citado Regime Jurídico do Internato Médico, tal corresponde a um processo de formação médica especializada, teórica e prática, tendo como objectivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado numa especialidade médica (cfr.artº.2, nº.2, da portaria 251/2011, de 24/6).
Nos vários diplomas citados, o legislador faz referência à formação/bolsa de formação, mais estando os médicos internos sujeitos a avaliação final e resultando, inclusive, do preâmbulo do dec.lei 45/2009, de 13/02, que o contrato vigora pelo período de duração estabelecido para o respectivo programa de formação médica especializada, pelo que, se deve concluir que o valor mensal de € 750,00, da bolsa de formação, é recebido no âmbito da acção de formação do médico interno, não estando sujeito a tributação em sede de I.R.S., por constituir uma prestação paga em virtude da formação profissional dos médicos internos, tudo nos termos do artº.2, nº.8, al.c), do C.I.R.S., supra identificado, na redacção em vigor em 2011 (norma entretanto revogada pela Lei 82-E/2014, de 31/12 - Lei da Reforma do I.R.S.).
Em conclusão, a bolsa de formação em causa não constitui uma remuneração acessória derivada de uma prestação de trabalho dependente, mas antes, um incentivo pecuniário atribuído, a título compensatório, no âmbito de um processo de formação profissional, ao médico interno que ocupe uma vaga preferencial, em contrapartida da obrigação por ele assumida de, findo o internato, permanecer ao serviço do estabelecimento onde se verificou a necessidade que deu lugar àquela vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada.
Arrematando, sem necessidade de mais amplas ponderações, deve julgar-se improcedente o presente recurso e, em consequência, confirmar-se a sentença recorrida, ao que se procederá na parte dispositiva deste acórdão.
X
DISPOSITIVO
X
Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA que, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
X
Condena-se o recorrente em custas.
X
Registe.
Notifique.
X
Lisboa, 12 de Janeiro de 2017



(Joaquim Condesso - Relator)


(Catarina Almeida e Sousa - 1º. Adjunto)



(Cremilde Miranda - 2º. Adjunto)