Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:706/22.3BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:05/04/2023
Relator:ANA CRISTINA DE CARVALHO
Descritores:DISPENSA DA GARANTIA
INSUFICIÊNCIA OU INEXISTÊNCIA DE BENS
FORTES INDÍCIOS
ACTUAÇÃO DOLOSA DO RECORRENTE
SALVAGUARDA DE BENS"
Sumário:A ausência de fortes indícios de que a insuficiência de bens se deveu a actuação dolosa do requerente, como pressuposto negativo da dispensa da prestação de garantia com vista à suspensão da execução, deve apura-se de acordo com as circunstâncias concretas do caso
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, as Juízas que compõem a 1.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul


I – RELATÓRIO


S. M., inconformado com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que julgou improcedente a reclamação de actos do órgão de execução fiscal deduzida contra o despacho de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia, proferido pela Directora de Finanças de Setúbal, no âmbito do Processo de Execução Fiscal (PEF) n.º …671 e apensos, relativo a liquidação adicional de IVA e de IRS de 2017 e 2018, dela veio interpor o presente recurso formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:

« A) O presente recurso tem por objeto a Sentença proferida pelo TAF de Almada, que julgou improcedente a reclamação do despacho de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia, proferido pela Diretora de Finanças de Setúbal, em 20.05.2022, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ….671 e Apensos, instaurado na sequência da falta de pagamento do imposto resultante das liquidações adicionais de IVA referentes aos anos de 2017 e 2018 e da liquidação adicional de IRS referente ao ano de 2017;

B) O que está em causa nos presentes autos é apurar se a AT recolheu indícios sérios e fundados de que a inexistência de bens para pagamento da dívida exigida no âmbito do processo de execução fiscal n.º …671 e Apensos, relativo a dívidas de IVA de 2017 e 2018 e IRS de 2018, se deveu à atuação dolosa do ora Recorrente e, assim se legitima a decisão tomada pela AT, de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia;

C) O TAF de Almada entendeu que sim; que a AT teria logrado, quanto às dívidas referentes aos anos de 2017 e 2018, recolher indícios fortes de que a situação de inexistência de bens seria resultado de atuação dolosa do Recorrente, porque:

1) o Recorrente foi notificado do projeto de correções relativamente ao ano de 2016, em 04.12.2020, e neste momento terá ficado a conhecer o avultado valor das correções que a AT preparava para fixar relativamente a este ano;

2) com elevado grau de probabilidade, o Recorrente, de maneira a continuar com o veículo automóvel (que era o seu bem penhorável de menor valor) na sua disponibilidade, para frustrar os créditos tributários referentes aos anos de 2017 e 2018, alienou-o à empresa dos seus pais, em 30.12.2020;

D) Mas é o mesmo Tribunal que também confirma que “(…) a transferência do veículo em questão teve lugar antes das notificações dos relatórios proferidos nas ações inspetivas quanto aos anos de 2017 e 2018”;

E) O Recorrente considera que o Tribunal a quo andou mal ter entendido que não se verificava o vício de violação de lei, por erro na aplicação do artigo 52.º n.º 4 da LGT, porquanto não logrou a AT recolher indícios sérios de que a situação de inexistência de bens do Recorrente foi resultado de atos conducentes à impossibilidade da cobrança da dívida referente aos anos de 2017 e 2018;

F) A Sentença recorrida padece de nulidade, nos termos e para os efeitos do artigo 125.º, n.º 1 do CPPT, que deve ser declarada, por encerrar uma contradição entre os seus fundamentos de facto e a decisão;

G) Fixou factos relacionados com a ação inspetiva de 2016 para decidir sobre a legalidade do indeferimento de um pedido de dispensa de prestação de garantia relativo a uma dívida referente a liquidações adicionais emitidas relativamente aos anos de 2017 e 2018, na sequência de inspeções tributárias realizadas quanto a estes períodos;

H) A relação que o Tribunal estabeleceu entre a venda do veículo automóvel e a notificação do projeto de relatório relativo ao ano de 2016 não pode ser estabelecida, por impossibilidade objetiva, relativamente às dívidas exigidas relativamente aos períodos de 2017 e 2018;

I) porque conforme admite o próprio Tribunal a quo, os relatórios de inspeção tributária referentes aos anos de 2017 e 2018 e os próprios projetos só foram notificados ao Recorrente 9 meses depois da alienação do veículo automóvel, pelo que a conclusão a que o Tribunal a quo chegou é objetivamente impossível;

J) Atentos os factos dados como provados na Sentença, esta conclusão só seria admissível, ainda que apenas em teoria, se estivesse em causa neste processo de execução fiscal o pagamento de dívidas resultantes de correções efetuadas ao período de 2016, o que não sucede;

K) Caso assim não se entenda – o que se admite apenas por cautela de patrocínio – sempre se dirá que se verifica um erro de julgamento na aplicação do direito aos factos;

L) A AT sustenta a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia no processo de execução fiscal em que se exige imposto relativamente aos anos de 2017 e 2018, com base na circunstância de o Recorrente ter vendido o seu bem penhorável de menor valor após o conhecimento do projeto de correções efetuadas em inspeção tributária relativa ao período de 2016;

M) Não é possível estabelecer qualquer nexo de causalidade entre o conhecimento do projeto de relatório de inspeção tributária relativo ao período de 2016 e a venda do veículo automóvel dias depois, e a dívida que veio a ser exigida relativamente aos anos de 2017 e 2018, da qual o Recorrente apenas teve conhecimento 10 meses depois;

N) Não foram demonstrados, pela AT, os indícios fortes de que o Recorrente com aquele ato anterior, se quis furtar ao pagamento do imposto que veio a ser exigido relativamente aos anos de 2017 e 2018, requisito exigido pelo disposto no n.º 4 do artigo 52.º da LGT para que a AT possa legitimamente indeferir o pedido de dispensa de garantia;

O) Aos autos foi junta pelo Recorrente a decisão proferida também por este TAF de Almada, mas na reclamação judicial n.º 696/22.2BEALM, na qual se entendeu que tendo o veículo automóvel sido alienado meses antes de ser notificado do projeto de relatório de inspeção das dívidas em questão, a AT não logrou provar, como lhe competia, a verificação de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação do Recorrente, tendo julgado a reclamação procedente;

P) Esta é também a única conclusão suscetível de alcançar-se nos presentes autos;

Q) De resto, cabe salientar que o Recorrente é proprietário de um imóvel – que manteve (o que demonstra que não visou a dissipação do seu património) e que se encontra penhorado à ordem do processo executivo relativo a 2016.

R) Assim não tendo entendido o Tribunal a quo, andou mal ao decidir pela legalidade da decisão de indeferimento do pedido de dispensa de garantia, motivo pelo qual a Sentença recorrida, que padece de erro de julgamento, por errada subsunção do direito aos factos, deve ser revogada e substituída por Acórdão que anule a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de garantia, com todas as consequências legais.


Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, por provado, devendo a Sentença recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que anule a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia formulado no âmbito do processo de execução fiscal acima mais bem identificado, com as demais consequências legais.»


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A Recorrida Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

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A Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.


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Com dispensa dos vistos legais, vem o processo submetido à conferência para apreciação e decisão.

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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Atento o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente no âmbito das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Importa assim, decidir se a sentença recorrida é nula por contradição entre os seus termos de facto e de direito e se incorreu em errado julgamento ao confirmar a legalidade da decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia e julgar não verificado o vício de violação do disposto no artigo 52.º, n.º 4 da LGT quanto à questão da existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do recorrente.

III - FUNDAMENTAÇÃO

III – 1. De facto


É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida:

«A. Em 21.10.2020, teve início ação inspetiva à atividade comercial do Reclamante, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI202000345, de âmbito geral quanto ao ano de 2017, tendo em relatório sido propostas correções de IVA no montante de 447.273,02 Euros, e correções em IRS que alterou o apuramento do Rendimento Coletável em categoria B para 1.945.900,88 Euros [cf. fls. 207-257 dos autos];
B. Em 21.10.2020, teve início ação inspetiva à atividade comercial do Reclamante, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI202000346, de âmbito geral quanto ao ano de 2018, tendo em relatório sido propostas correções de IVA no montante de 389.076,48 Euros, e correções em IRS que alterou o apuramento do Rendimento Coletável em categoria B para 3.473.46,39 Euros [cf. fls. 258-308 dos autos];
C. Em 17.11.2020, teve início ação inspetiva à atividade comercial do Reclamante, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI202001138, de âmbito geral quanto ao ano de 2016, tendo terminando a ação inspetiva a 22.12.2020, e sido, em sede de relatório, propostas correções em IVA no montante de 344.662,53 Euros, e correções em IRS que alterou o apuramento do Rendimento Coletável em categoria B para 224.823,33 Euros [cf. fls. 323-339 dos autos];
D. Em 04.12.2020, foi entregue em mão ao Reclamante o projeto de relatório de inspeção emitido no âmbito da ação inspetiva referida no ponto antecedente [cf. fls. 323-339 (página 25 e 26) dos autos];
E. O Reclamante requereu prorrogação do prazo para exercer o direito de audição por escrito quanto ao projeto de relatório referido no ponto antecedente, tendo a Divisão de Inspeção Tributária III, Direção de Setúbal, concedido prorrogação de 15 dias para o efeito, não tendo o Reclamante apresentado direito de audição por escrito posteriormente e no prazo concedido [cf. fls. 323-339 (página 25 e 26) dos autos];
F. Em 07.09.2018, o Reclamante adquiriu um veículo automóvel de passageiros da marca J., com a matrícula 1..-..-2.. [cf. fls. 340-342 (página 4) dos autos];
G. Em 30.12.2020, o Reclamante declarou vender a M. M. E., Lda, com o NIF ..458, o veículo automóvel da marca J., modelo F-P., com a matrícula 1.. …-2.. pelo preço de 35.000 Euros [cf. fls. 1-46 (página 36) dos autos];
H. M. M. E., Lda emitiu e assinou cheque bancário n.º …894, sacado sobre o B. S., no valor de 35.000,00 Euros, datado de 30.12.2020, e sem preenchimento do beneficiário do cheque [cf. fls. 1-46 (página 37) dos autos];
I. Em 31.12.2020, o veículo automóvel referido no ponto antecedente encontrava-se registado em nome da sociedade referida no ponto F supra [cf. fls. 340-342 (página 3) dos autos];
J. O pai do Reclamante é sócio da sociedade M. M., E., Lda com o NIPC … 458 [cf. fls. 323-339 (página 17) dos autos e por acordo conforme artigo 61.º da petição inicial e 39.º da contestação];
K. O Reclamante é trabalhador da sociedade referida no ponto F na categoria de caixeiro, auferindo em 29.01.2021, o montante de 687,25 Euros como salário mensal [cf. fls. 1-46 (página 35) dos autos];
L. Os Serviços de Inspeção Tributária, Direção de Finanças de Setúbal, remeteram para os mandatários do Reclamante, ofício datado de 08.09.2021 referente à inspeção tributária identificada no ponto A supra, comunicando o projeto do relatório de inspeção tributária proferido [cf. fls. 1-46 (página 38) dos autos];
M. Os Serviços de Inspeção Tributária, Direção de Finanças de Setúbal remeteram para os mandatários do Reclamante, ofício datado de 22.09.2021 referente à inspeção tributária identificada no ponto B supra, comunicando o projeto do relatório de inspeção tributária proferido [cf. fls. 1-46 (página 39) dos autos];
N. Os Serviços de Inspeção Tributária, Direção de Finanças de Setúbal remeteram para os mandatários do Reclamante, ofício datado de 12.10.2021 referente à inspeção tributária identificado em A, comunicando o relatório de inspeção tributária [cf. fls. 1-46 (página 40) dos autos];
O. Os Serviços de Inspeção Tributária, Direção de Finanças de Setúbal remeteram para os mandatários do Reclamante, ofício datado de 19.10.2021 referente à inspeção tributária identificado em B, comunicando o relatório de inspeção tributária [cf. fls. 1-46 (página 41) dos autos];
P. A Direção de Finanças de Setúbal instaurou contra o Reclamante, os seguintes processos de execução fiscal nas seguintes datas e tendo em vista a cobrança coerciva dos valores infra indicados [cf. fls. 82-95 (página 8) dos autos]:
Imagens: Originais nos autos


Q. A Administração Tributária remeteu para o Reclamante ofício datado de 28.12.2021, designado “citação pessoal”, no âmbito do processo de execução fiscal n.º …671 e apensos listados no ponto antecedente [cf. fls. 98-136 (página 8) dos autos];
R. Em 22.02.2022, a Diretora de Finanças de Setúbal proferiu despacho no âmbito do processo de execução fiscal referido no ponto P supra, e do qual consta o seguinte teor [cf. fls. 82-95 (página 7) dos autos]:
“Despacho:
Nos termos do art.º 272.º do CPPT, declara-se em falhas a dívida exequenda e acrescido referentes aos processos de execução abaixo identificados, uma vez que em face do auto de diligências infra, não constam bens penhoráveis em nome do executado, seus sucessores e responsáveis solidários ou subsidiários.
Em conformidade com o disposto no art.º 274 do mesmo diploma (CPPT), a execução por dívida declarada em falhas prosseguirá, sem necessidade de nova citação e a todo o tempo, salvo prescrição, logo que haja conhecimento de que o executado, seus sucessores ou outros responsáveis possuem bens penhoráveis ou, no caso previsto na alínea b) do art.º 272.º, logo que se identifique o executado ou o prédio.”
S. Em 11.04.2022, a Impugnante deu entrada de requerimento dirigido ao Diretor de Finanças de Setúbal, no âmbito dos processos de execução e apensos identificados no ponto P supra, no qual requereu prestação de garantia parcial e dispensa da prestação de garantia quanto ao remanescente [cf. fls. 98-136 (página 23) dos autos];
T. Em 02.05.2022, o Reclamante remeteu requerimento para o Serviço de Finanças de Palmela, por carta registada com a referência alfanumérica RH…818PT, esclarecendo que, no requerimento apresentado e identificado no ponto antecedente, a pretensão era de dispensa de prestação de garantia [cf. fls. 98-136 (página 24 a 39) e 137-169 (páginas 1 a 3) dos autos];
U. Em 19.05.2022, a Divisão de Justiça Tributária, Equipa de Acompanhamento de Devedores Estratégicos, Direção de Finanças de Setúbal, proferiu informação quanto ao requerimento apresentado pelo Reclamante e identificado no ponto S supra, sendo que consta o seguinte teor [cf. fls. 137-169 (página 6 a 16) dos autos]:
“(…)
III- DA ANÁLISE
A) FACTOS:
Ø S. M., nif …573 reiniciou a atividade em 27-02-2015, com o CAE 47910 “Comércio a retalho por correspondência ou via internet”, cessada em 30-06-2020.
(…)
Ø Face à constatação de divergências entre o volume de negócios declarado e o valor das aquisições realizadas no mercado interno, em 17/11/2020 deu-se início a uma ação inspetiva relativa ao ano de 2016 (OI202001138 – notificação da ordem de serviço em 17/11/2020).
Ø O projeto de relatório foi notificado ao sujeito passivo através do ofício n.º 14169, de 04/12/2020 (e entregue em mão no mesmo dia).
Ø Em 23/12/2020 foi notificado do relatório de inspeção.
Ø Em 30/12/2020 S. M. era proprietário de um veículo automóvel de luxo – marca J., matrícula 1.-..-2.., veículo esse que, a partir de 31/12/2020 aparece averbado como propriedade da empresa de seus pais – empresa M M. E., Lda NIF …458.
Ø Por despacho de 29.01.202, proferido pela Exma. Diretora de Finanças de Setúbal, exarado na Informação n.º 33/2021EADE foi requerida a instauração de providência cautelar de arresto.
(…)
Ø Na sequência das correções apuradas no âmbito das ações inspetivas foram emitidas as respetivas liquidações, as quais, não tendo sido pagas deram origem aos processos executivos supra identificados.
Ø Em nome de S. M. nif …573 não se verifica a existência de qualquer imóvel ou móvel sujeito a registo em seu nome (além do imóvel já arrestado).
Ø Em 2021 auferiu a título de categoria A o montante total de € 9.489,00 pagos pela sociedade – M M. E. LDA nif …458, pertencente a seus pais.
Ø Em 2022, tem auferido um vencimento mensal de cerca de €705,00 – valor do salário mínimo.
Ø Consultadas as aplicações informáticas ao dispor da AT, não se verificou a existência de qualquer outro bem imóvel, ou móvel sujeito a registo, crédito ou rendimento.
(…)
B) ENQUADRAMENTO JURIDICO
PEDIDO DE DISPENSA DE PRESTAÇAO DE GARANTIA COM VISTA À SUSPENSÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL
(…)
Debruçando-nos sobre o caso dos autos – S. M. nif …573 – considerando que reúne os pressupostos legais, vem requerer a dispensa de prestação de garantia, associada a contencioso administrativo (reclamação graciosa), com vista à suspensão do processo de execução fiscal …671 e aps.
Ora, o valor da garantia a apresentar cifra-se em €3.318.686,86 (valor constante da citação recebida em janeiro de 2022).
Em seu nome não encontrámos o averbamento de qualquer imóvel ou móvel sujeito a registo, além do imóvel já arrestado.
Com a apresentação do requerimento juntou:
- Fatura do abastecimento de água referente ao mês de março de 2021 – valor €31,82;
- Fatura do abastecimento de eletricidade referente ao mês de janeiro de 2021 – valor de €31,82;
- Pagamento de despesas com a creche da filha no valor anula de €3.390,00 (ano letivo 2020/2021).
No entanto, cumpre aqui salientar que:
O ora requerente era proprietário de um veículo automóvel de luxo – marca J., matrícula 1..-..-2.., veículo esse que, a partir de 31/12/2020 aparece averbado como propriedade da empresa de seus pais – empresa M M. E., Lda NIF ….458.
Ora, à data da transmissão do bem do seu património pessoal para o património da sociedade dos seus pais (31/12/2020), o ora reclamante já tinha conhecimento das correções resultantes da ação de inspeção que tinha sido alvo (notificação do projeto de relatório em 04/12/2020 e notificação do relatório de inspeção de 23/12/2020).
Ou seja, a operação de transferência ocorreu, quando o ora requerente já estava totalmente ciente do valor que lhe viria a ser exigido pela AT.
Relevante é também o facto de a transferência do bem ter ocorrido para a sociedade cujos sócios são os seus pais – a proximidade familiar subjacente aponta para um eventual controlo do bem alienado.
A pertinência de tal facto foi evidência na sentença proferida no âmbito do procedimento cautelar de arresto (Processo 89/21.9BEALM – processos cautelares, sentença proferida em 17/02/2021 a fls. 12).
(…)
Ora, de toda a factualidade apresentada poderemos concluir que existem indícios sérios e fundados de que a insuficiência de bens se deveu a atuação dolosa do ora requerente, colocando-se deliberada e conscientemente numa situação de insuficiência patrimonial.
IV- CONCLUSÃO
Face ao exposto, analisados os factos, subsumidos os mesmos às disposições leais enunciadas, e no seguimento da jurisprudência elencada, afigura-se-nos que:
v Deve ser indeferido o pedido de dispensa de prestação de garantia, com vista à suspensão do processo executivo ….671 e aps por se verificar a existência de indícios sérios e fundados de que a insuficiência de bens se deve a atuação dolosa do executado ora requerente, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 52.º da LGT.
(…)”
V. Em 20.05.2022, a Diretora de Finanças de Setúbal proferiu despacho de concordância quanto à informação referida no ponto antecedente, indeferindo o requerimento apresentado pelo Reclamante identificado no ponto S supra [cf. fls. 137-169 (páginas 5) dos autos];
W. Foi remetido pelo Serviço de Finanças de Palmela para a Mandatária do ora Reclamante, através de carta registrada com a referência alfanumérica RH…226PT, ofício datado de 06.06.2022 comunicando o despacho de indeferimento mencionado no ponto antecedente, o qual foi recebido a 09.06.2022 [cf. fls. 137-169 (página 18 e 33) dos autos].»

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Consta ainda da mesma sentença que «Não se provou o pagamento do preço de venda do veículo da marca J., com a matrícula 1..-…-2...
Motivação da decisão de facto

A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto assentou no teor das informações e dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados, conforme referido a propósito de cada ponto do probatório.
Quanto ao facto dado como não provado, verifica-se dos documentos juntos para prova do pagamento do preço acordado pela venda do veículo, que foi junta declaração de venda do Reclamante à sociedade M. M. E., Lda, referente ao veículo da marca J., matrícula 1..-..-2.., e cheque bancário emitido pela referida sociedade datado de 30.12.2020, no valor de 35.000 Euros, e sem indicação de beneficiário.
Assim, não se encontrando o referido cheque bancário preenchido quanto ao beneficiário, não tendo sido demonstrado nos autos que o mesmo foi apresentado a desconto, ou mesmo endossado a terceiro, não tem a virtualidade de provar o efetivo pagamento do preço acordado. Destarte, a mera apresentação de cheque bancário, não devidamente preenchido quanto ao beneficiário, nem demonstrado o seu desconto, apenas pode constituir uma promessa de pagamento e não o pagamento efetivo do preço acordado, razão pela qual se fixou como facto não provado.»

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III – 2. Da apreciação do recurso

Por se considerar relevante na apreciação do recurso e por resultar documentalmente provado nos autos, acorda-se em corrigir o ponto E e proceder ao aditamento à matéria de facto, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do disposto no artigo 2.º, alínea e) do CPPT nos seguintes termos:

E. O Reclamante requereu a prorrogação do prazo por 15 dias, para exercer o direito de audição por escrito quanto ao projeto de relatório referido no ponto antecedente (2016), tendo a Divisão de Inspeção Tributária III, da Direção de Setúbal indeferido tal concedido – cf. documento referência n.º 004773569, a fls. 323-339 do sitaf, página 17 do relatório de inspecção;

Y. A decisão de indeferimento a que se refere o ponto E foi remetida ao Reclamante através do ofício n.º 14724 de 21/12/2020 – cf. documento referência n.º 004773569, a fls. 323-339 do sitaf, página 17 do relatório de inspecção;

X. O Reclamante não se pronunciou no âmbito do direito de audição no prazo concedido nem posteriormente – cf. documento referência n.º 004773569, a fls. 323-339 do sitaf, página 17 do relatório de inspecção;

Z) o relatório de inspecção relativo à acção de inspecção ao ano de 2016 identificada no ponto C foi remetido ao recorrente em 23/12/2020 – cf. documento referência n.º 004773537, a fls. 61 do sitaf junto com a pi;


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A sentença recorrida, julgou improcedente a reclamação deduzida pelo recorrente mantendo a decisão proferida pelo órgão da execução fiscal que indeferiu o pedido de dispensa da prestação de garantia associada à apresentação de reclamação graciosa contra as liquidações que resultaram de acção inspectiva que teve por objecto IVA de 2017 e de 2018 bem como de IRS de 2017.

A decisão reclamada indeferiu o referido pedido por falta de verificação do requisito da inexistência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens que sustentaram o pedido de dispensa da garantia se deveu a actuação dolosa do interessado, decisão que foi mantida na sentença recorrida.

Inconformado o Reclamante, vem recorrer para este Tribunal.

Alega que a sentença recorrida é nula por contradição entre os seus termos de facto e o direito, por fixar factos relacionados com a acção inspectiva de 2016 para decidir sobre a legalidade do indeferimento de um pedido de dispensa de prestação de garantia relativo a uma dívida respeitante a liquidações adicionais dos anos de 2017 e 2018, na sequência de inspeções tributárias realizadas quanto a estes períodos. Sustenta para o efeito que tais factos poderiam apenas permitir inferir a conclusão alcançada pelo Tribunal a quo quanto às dívidas de 2016 e não quanto às dívidas em causa.

A nulidade por contradição entre os fundamentos e decisão verifica-se sempre que, considerada a decisão final como o desenlace de um raciocínio, se regista, a final, uma contradição – uma contradição lógica – entre os pressupostos e a conclusão (todos os argumentos apontavam para certa decisão e, sem que nada o fizesse esperar, a decisão final foi a oposta ou diferente da que se anunciava).

Vejamos, então.

Nos autos estão em confronto duas teses ou perspectivas de apreciação da questão central que se coloca nos autos e que é a de saber que critérios devem ser utilizados na integração do conceito de «fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado», previsto na parte final do n.º 4 do artigo 52.º da LGT, enquanto facto impeditivo da dispensa da prestação de garantia com vista à obtenção do efeito suspensivo do processo de execução fiscal.

Para a AT e para o Tribunal a quo, tal conceito deve ser integrado pela análise do comportamento do interessado, independentemente da conexão imediata com o procedimento subjacente ao pedido de dispensa da prestação de garantia.

Para o Recorrente, tal conceito apenas pode ser integrado por factos estritamente conexos com os tributos em causa no procedimento de dispensa.

A sentença recorrida acolheu a tese perfilhada no acto reclamado.

Do que se deixou dito concluímos que não há qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão. Trata-se de uma interpretação da norma igualmente defensável que não encerra qualquer contradição.

A decisão pode estar errada por interpretação errada da norma aplicável, da qual pode decorrer uma errada subsunção dos factos ao direito. Contudo, tal não integra a nulidade prevista no n.º 1 do artigo 125.º do CPPT, podendo, a verificar-se, constituir erro de julgamento que será apreciado em sede própria.

Assim se conclui pela improcedência das conclusões apreciadas.


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Nas conclusões K) e seguintes, o recorrente imputa à sentença recorrida a verificação de erro de julgamento na aplicação do direito aos factos, ao julgar a reclamação improcedente mantendo o acto reclamado, no que se refere ao fundamento relativo à circunstância de o Reclamante, ora recorrente «ter vendido o seu bem penhorável de menor valor após conhecimento do projecto de correcções efectuadas em inspecção tributária relativa ao período de 2016.»

A norma que está em causa é o último segmento do n.º 4 do artigo 52.º da LGT, na redação da lei n.º 42/2016, de 28/12, que estabelece que «[a] administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado

Para o recorrente, o que está em causa nos autos é apurar se a AT recolheu indícios sérios e fundados de que a inexistência de bens para pagamento da dívida exigida no âmbito do processo de execução fiscal n.º ….671 e apensos, relativo a dívidas de IVA de 2017 e 2018 e IRS de 2017, se deveu à actuação dolosa do ora Recorrente.

Contudo, a questão que deve ser colocada, atenta a redacção da norma é a de saber se a AT recolheu fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens para prestar a garantia se deveu a actuação dolosa do interessado.

Importa assim, apurar se foram recolhidos fortes indícios de que o interessado se colocou na situação de insuficiência ou inexistência de bens, dissipando os seus bens, para evitar que a cobrança coerciva da dívida pudesse ter lugar.

Os indícios deverão ser retirados do conjunto dos factos recolhidos.

No caso, resulta da matéria de facto que à data da transmissão do veículo, ocorreram os seguintes factos que eram do conhecimento do recorrente:

i) Em 21/10/2020, tiveram início duas acções inspetivas à atividade comercial do Recorrente, ao abrigo das ordens de serviço n.º OI202000345 e OI202000346, ambas de âmbito geral, tendo a primeira por objecto o ano de 2017 e a segunda o ano de 2018;

ii) Em 17/11/2020, teve início outra acção inspectiva à sua atividade comercial ao abrigo da ordem de serviço n.º OI202001138, também de âmbito geral referente ao ano de 2016, tendo terminando a acção inspetiva a 22/12/2020;

iii) Em 04/12/2020, foi entregue em mão ao Recorrente o projecto de relatório de inspecção relativo à acção inspectiva referida no ponto anterior;

iv) Requereu a prorrogação do prazo para exercer o direito de audição por escrito, por 15 dias, pedido que foi indeferido, não tendo exercido o aludido direito no prazo nem posteriormente;

v) o relatório manteve as correcções propostas tendo sido remetido o relatório de inspecção relativo ao ano de 2016 em 23/12/2020;

vi) Em 30/12/2020, declarou vender a M. M. E., Lda, um veículo automóvel da marca J., modelo F-P., com a matrícula 1…..2.. pelo preço de € 35.000;

Em momento posterior à referida venda decorreram os seguintes factos:

vii) Os projectos de relatório referentes às acções de inspecção referidas em i) (2017 e 2018) foram remetidos ao recorrente a 08/09/2021 e a 22/09/2021;

viii) os relatórios finais relativos às referidas acções de inspecção foram enviados em Outubro de 2021.

Dir-se-á que no momento da transmissão do veículo em causa, o recorrente tinha conhecimento de que haviam sido iniciadas três acções inspectivas, uma das quais já concluídas, com apuramento de correções em sede de IVA no montante de € 344.662,53 e em sede de IRS que determinaram a alteração ao apuramento do rendimento tributável relativa à categoria B para € 224.823,33, estando em curso as restantes duas acções inspectivas. Também não restam dúvidas de que após ter tido conhecimento do início dos procedimentos inspectivos referentes aos anos de 2017 e 2018, procedeu à transferência do veículo para a esfera jurídica de sociedade relacionada (cujo capital é detido pelos pais do recorrente), e sem que tenha comprovado a materialização da contraprestação, ou seja, do efectivo recebimento do preço.

Para apurar se existiam fortes indícios de que a insuficiência de bens se deveu a actuação dolosa do requerente, o acto reclamado teve em consideração que o recorrente era proprietário de um veículo, o qual foi transmitido quando já tinha conhecimento da existência das correcções relativos à acção de inspecção referente ao ano de 2016. Quando já estava ciente do valor que lhe viria a ser exigido, tomando ainda em consideração que o bem foi transferido «para a sociedade cujos sócios são seus pais» mais se referindo que «a proximidade familiar subjacente aponta – para um eventual controlo do bem alienado».

Com tal fundamentação concluiu a AT que o recorrente se colocou deliberadamente e conscientemente numa situação de insuficiência patrimonial.

A sentença recorrida, após citar jurisprudência pertinente, manteve o acto reclamado no entendimento de que «[a] relação entre a notificação do relatório proferido no âmbito da ação inspetiva do exercício de 2016, e a transferência do veículo realizada sequencialmente no tempo, é possível de ser construída à luz das regras de experiência comum, pois, com a notificação do projeto de relatório, ficou o Reclamante conhecedor do apuramento de valores avultados como resultado da ação inspetiva, sendo altamente provável que este, preferindo salvaguardar o veículo que tinha adquirido havia apenas 2 anos antes (factos F), o transmitisse para terceiro, mantendo no entanto controle sobre o veículo face ao facto de a sociedade ser pertença dos seus pais (factos provados I e J).

A transferência de propriedade do veículo, realizada para uma sociedade dos pais do Reclamante, sem prova do pagamento efetivo do preço, traduz uma probabilidade elevada, mais uma vez à luz das regras de experiência comum, que o Reclamante ao transmitir o veículo teve em vista colocar-se numa situação de insuficiência ou inexistência patrimonial, frustrando desta forma as expetativas do credor tributário. Tal silogismo, constitui efetivamente, fortes indícios de atuação dolosa por parte do Reclamante, conforme previsto no artigo 52.º, n.º 4 da LGT.

E não colhe o argumento que o valor do veículo constitua um valor ínfimo, face ao valor da dívida exequenda nos processos executivos nos presentes autos, senão vejamos.

O artigo 52.º, n.º 4 da LGT não determina qualquer operação quantitativa quanto ao património do executado para a determinação da dispensa de prestação de garantia. Ainda que o bem alienado seja insuficiente para garantir a dívida exequenda, o que sucede no caso dos presentes autos, a sua transmissão agravou a insuficiência patrimonial, que é tão só a previsão da norma.

Isto porque, a referida norma, como requisito subjetivo, apela à insuficiência ou inexistência de bens, como resultado da atuação dolosa do executado. A norma visa, na realidade, desincentivar a substração de bens à penhora, e ainda, não premiar com o benefício de isenção, e consequente suspensão de execução fiscal, o devedor que se desfez do seu património de forma dolosa (neste sentido vide acima citado Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido no processo n.º 00268/18.6BEAVR).

Assim sendo, uma vez que os requisitos para a dispensa de prestação de garantia cumulativos, não se encontrando reunido o requisito previsto no artigo 52.º, n.º 4 da LGT, porquanto foi obtida prova indiciária da atuação dolosa por parte do Reclamante, não se constata a invocada ilegalidade na decisão proferida pelo órgão de execução fiscal, ora reclamada, improcedendo o vício avançado pelo Reclamante.»

Vejamos, então.

A questão que se coloca é a de saber se a sentença recorrida efetuou errado julgamento da causa ao julgar que a fundamentação do acto reclamado é suficiente para sustentar a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do recorrente.

Como se deixou dito supra, a actuação do recorrente deve ser vista numa perspectiva global e não apenas na sua relação com os tributos exequendos.

Não restam dúvidas de que a transmissão do veículo teve lugar quando já tinha conhecimento dos montantes que foram objecto de correcção no âmbito da acção inspectiva que teve lugar relativamente ao ano de 2016 indiciando a transmissão operada a tentativa de salvaguardar o bem em causa, num circunstancialismo em que lhe é possível manter o domínio sobre o veículo, obstando a que o mesmo viesse a ser penhorado para satisfação, ainda que parcial, de dívidas tributárias, fossem elas de 2016, fossem de 2017 ou 2018.

Embora a transmissão do veículo tivesse tido lugar antes do recorrente ter conhecimento das correcções em concreto, decorrentes das acções de inspecção referentes a 2017 e 2018, era já do conhecimento do recorrente que as referidas acções se tinham iniciado e estavam em curso, sabendo das correcções já concretizadas referentes a 2016. Assim, a referida transmissão não pode deixar de constituir um indício de que o recorrente se colocou em situação de insuficiência patrimonial, para evitar o pagamento, ainda que parcial, dos tributos que viessem a ser liquidados.

O argumento de que o recorrente detém um bem imóvel em nada infirma essa conclusão, na medida em que a transmissão de um imóvel não é o mesmo que transmitir um veículo, envolvendo em regra operações mais complexas e morosas.

Com efeito, acompanhando o Acórdão proferido pelo TCAN no processo n.º 00580/20.4BEBRG, datado de 24/09/2020 citado na sentença recorrida e que aqui acolhemos: «(…) mesmo que os bens alienados fossem insuficientes para garantir a dívida exequenda, a sua alienação (indiciariamente) dolosa agravou a insuficiência, podendo ter passado de mera insuficiência para uma quase inexistência de bens. O texto da lei alude à insuficiência ou inexistência de bens (e não apenas aos seus valores) como resultado de uma actuação dolosa do interessado, pretendendo com isso desincentivar não só a subtracção de bens à penhora [o património do devedor constitui a garantia geral dos créditos tributários (artigo 50.º/1 LGT)], como também não premiar com o benefício da isenção de prestação de garantia – e consequente suspensão da execução fiscal – o devedor que dolosamente se desfaz do seu património.

Se tal conduta fosse tolerada, um contribuinte cujo património fosse insuficiente para garantir a dívida exequenda e acrescido veria penhorados os bens que compõem esse património e prosseguida a execução (cfr. artigo 169.º/6 CPTT), ao passo que o contribuinte mais “ágil”, que dolosamente aliena o seu património, seria beneficiado com a isenção de prestação de garantia e premiado com a suspensão da execução.

No fundo, seria tutelar uma fraude à lei contemporizando com uma situação fáctica (indiciariamente) criada pelo próprio para dela retirar benefícios com prejuízo do credor tributário.

Não é isso que resulta da lei, nem dos princípios gerais de direito (cfr. artigo 11.º/1 LGT) – cfr., neste mesmo sentido, o Acórdão do TCAN, de 03/08/2018, proferido no âmbito do processo n.º 00268/18.6BEAVR. (…) a recolha dos fortes indícios não é equivalente à prova da existência dos factos indiciados, pelo que andou bem a AT ao indeferir a pretensão da Recorrente com base na parte final do n.º 4 do artigo 52.º da LGT (…), considerando os momentos temporais em que foram efectuadas as operações de venda de património (coevos com a inspecção tributária – cfr. ponto 7 da decisão da matéria de facto: 2018) e o modo como foram executadas, conclui-se, tal como a AT invocou e provou, que existem indícios fortes, sérios, consistentes e fundados de que a insuficiência de bens se deveu a actuação dolosa da Recorrente, colocando-se deliberada e conscientemente numa situação de insuficiência patrimonial

Por fim importa referir que a tese do recorrente, a vingar, num caso como o presente, em que a dívida exequenda resulta de liquidações decorrentes de acções inspectivas, conduziria a uma interpretação restritiva que, de todo, não nos parece ter sido a pretendida pelo legislador.

Senão vejamos.

A vingar a interpretação preconizada pelo recorrente, só valeria como dissipação dolosa aquela venda que ocorresse entre a notificação do relatório final e a emissão das liquidações adicionais, período que é em regra muito curto.

Ora, o património, enquanto garantia das dívidas aos credores deve ser visto como um todo, devendo a actuação do devedor ser avaliada, como já referimos, nas circunstâncias concretas do caso, em que nada indicia que a venda pudesse estar planeada há muito, por exemplo por negociações entre as partes, pela existência de um contrato promessa anterior etc.

No caso, porém, as circunstâncias apontam em sentido diferente. Sendo de relevar o facto de não haver prova do pagamento e o veículo ter sido transmitido para uma sociedade cujo capital é detido pelo pai, onde o recorrente trabalha, que constituem factos que mostram uma vertente intencional mais clara no que se refere à dissipação dolosa.

Tal como no Acórdão citado, concluímos que a sentença recorrida não padece dos erros de julgamento que lhe vêm imputados, impondo-se concluir pela improcedência do recurso, confirmando a sentença recorrida que manteve a decisão de indeferimento reclamada.


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No que se refere às custas, o artigo 527.º do CPC consagra o princípio da causalidade, de acordo com o qual custas são pagas pela parte que lhes deu causa.

Atendendo à improcedência do recurso, considera-se que foi o recorrente que deu causa às custas do presente processo (cf. n.º 2), e, portanto, deve ser condenado nas custas (cf. n.º 1, 1.ª parte).


IV – DECISÃO


Termos em que, acordam as juízas da 1ª Subsecção do Contencioso Tributário do TCA Sul em negar provimento ao recurso jurisdicional, mantendo a sentença recorrida com diferente fundamentação.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 4 de Maio de 2023.



Ana Cristina Carvalho - Relatora

Hélia Gameiro – 1ª Adjunta

Catarina Almeida e Sousa – 2ª Adjunta