Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:176/16.5BEFUN
Secção:CA
Data do Acordão:06/06/2019
Relator:ANTÓNIO VASCONCELOS
Descritores:INTEMPESTIVIDADE DA PRÁTICA DO ACTO PROCESSUAL. EXCEPÇÃO DILATÓRIA.
ABUSO DE DIREITO E MÁ FÉ.
NULIDADE DO CADERNO DE ENCARGOS – ARTIGO 43.º Nº 5 AL. B) E N.º 8 AL. C) DO CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS.
Sumário:I – Como resulta expressamente do disposto no artigo 89.º, n.º 4, al. k) do CPTA, a intempestividade da prática do ato processual é uma excepção dilatória.

II - As questões prévias referidas na al. a) do n.º 1 do artigo 88.º do CPTA – excepções dilatórias e nulidades processuais – que não tenham sido apreciadas no saneador não podem ser suscitadas nem decididas em momento posterior do processo – cfr. n.º 2, primeira parte do citado artigo 88.º

III - A apresentação de um técnico, em face da determinação do Caderno de Encargos, implica, necessariamente, reconhecimento pela Recorrida da necessidade da realização de estudos geológicos e geotécnicos no caso sub judice. A questão da responsabilidade de apresentação desses estudos é outra questão que, por estar expressamente prevista na lei, não está na disponibilidade das partes aceitar ou não o que a lei determina.
É inteiramente legítimo que na fase judicial sejam invocadas questões de direito não suscitadas na fase administrativa.

IV - Decorre dos termos do n.º 5 do artigo 43.º do Código dos Contratos Públicos em vigor à data do concurso, que os estudos geológicos e geotécnicos integram o projecto de execução, pelo que são da responsabilidade da parte a quem incumbe elaborar esse projecto, ou seja à entidade adjudicante. Assim, ao atribuir tal tarefa ao empreiteiro e ao apresentar projecto de execução sem juntar os referidos estudos, o Caderno de Encargos sofre de nulidade.

V - A nulidade do Caderno de Encargos decorrente do disposto na al. c) do n.º 8 do artigo 43.º do Código dos Contratos Públicos, implica a nulidade do procedimento da formação do contrato e bem assim do contrato que eventualmente tenha sido celebrado, de que é parte integrante.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO


Acordam em Conferência , na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

S......, Lda., com sinais nos autos, inconformada com a sentença do TAF do Funchal, de 23 de Dezembro de 2016, que julgou procedente a acção de contencioso pré-contratual intentada por A......, S.A., no âmbito do concurso público para celebração do contrato de empreitada de obras públicas de “Infra-estruturas de Protecção da Floresta – Rede Natura 2000” , e consequentemente declarou a nulidade do caderno de encargos e anulou o acto de adjudicação, veio interpor para este TCAS o presente recurso jurisdicional e, em sede de alegações, formulou as seguintes conclusões (sintetizadas):

(I) Questões Prévias

1 – Na pronúncia da A. (Vide doc. 5 junto com a P.I.), em sede de audiência prévia sobre o relatório preliminar, a mesma pugna pela exclusão das propostas de todos os demais concorrentes, por ser a única, em face do ponto II da Parte II do CE (aferição e confirmação dos pressupostos geitécnicos, em sede de execução do contrato), a indicar um técnico da área de geotécnica, demonstrando aceitar expressamente o projeto de execução, assumindo, com a interposição desta ação, uma conduta ilícita, desleal e envolta em abuso de direito e má-fé, na medida em que numa primeira fase a ausência dos estudos geoti,écnico e geológico serviu para fundamentar a exclusão de todos os demais concorrentes com exceção da A. e posteriormente serve para fundamentar a invalidade do procedimento. Então como é que ficamos?

2 – Ao não julgar deste modo, a sentença recorrida viola o art. 10.º do CPA; bem como o art. 334.º do CC, que consagra o instituto do abuso de direito, enquanto princípio estruturante de todo o nosso ordenamento jurídico, incluindo o Direito Contratual Público.

(II) Caducidade da Ação

3– Verifica-se a caducidade da ação, por não ter sido interposta na pendencia do procedimento (até à adjudicação , cuja notificação ocorreu a 09.05.2016), conforme determina o n.º 3 do art. 103.º do CPTA, com a redação dada pela Lei n.º 214-G, com início de vigência a 01 de Dezembro de 2015.

4- A lei é clara ao impor que a impugnação da peças conformadoras do procedimento, atualmente, deve ser efetuada na sua pendência e não no prazo de um mês, como sucedia anteriormente.

5- Esta solução é que mais salvaguarda e protege o interesse público das artimanhas dos concorrentes mal-intencionados que se colocam à espreita do resultado do procedimento para reagir e, desse modo, prejudicar a celeridade e a satisfação das necessidades de interesse público, em regra, subjacentes à contratação pública.

6- No contencioso administrativo, as exceções perentórias são de conhecimento oficioso quando a lei não faz depender a sua invocação da vontade do interessado.

7- O contencioso pré-contratual possui natureza urgente, visto estar em causa interesses e razões superiores de interesse público, em regra, indisponíveis para as entidades públicas.

8- No Contencioso administrativo, a revelia não tem cominações condenatórias, devendo o Tribunal decidir a causa com base em todos os elementos disponíveis e conhecer, nestes casos, de todas as exceções, dilatórias ou perentórias que se verifiquem nos respetivos processos.

9- Por estas razões consideramos que, ocorrendo a caducidade da ação de impugnação, está em causa, do ponto de vista das entidades administrativas contratantes, uma situação de indisponibilidade, devendo o Tribunal oficiosamente conhecer da exceção perentória agora invocada.

10- Por conseguinte, a douta sentença recorrida viola, o disposto no n.º 3 do art. 103.º e n.º 3 do art. 89.º ambos do CPTA.

(III) Concretos pontos de facto incorretamente julgados

11- O facto 3 do Capítulo III (Fundamentação) da douta sentença foi incorretamente julgado e foi julgado de forma muito vaga e imprecisa no que respeita à natureza, espécie, quantidades, especificidades, complexidade ou simplicidade dos trabalhos.

12- A prova testemunhal oferecida pela entidade requerida e pela ora contra interessada, as testemunhas L.....– depoimento gravado através do SIGD, como início às 16:07:54,846 (01:10:44,639) e termo às 16:48:17,768 (01:48:30,085); N..... – depoimento gravado através do SIGD, com início às 16:49:34,672 (01:48:34,883) e termo às 17:37:48,946 (02:36:49,162); e J.....- depoimento gravado através do SIGD, como início às 17:39:55,371 (02:36:53,491) e termo às 18:22:23,925 (03:19:22,078), postulam uma alteração e concretização deste facto.

13 – Vejamos o que declararam as referidas testemunhas:
a)Testemunha L....., Técnico Superior de Contratação Pública, trabalhador do Município e responsável pela aprovação das peças do procedimento:
-“[01:28:17] É uma obra consolidada ao longo dos tempos, com mais de 50 anos, uma estrada com mais de 50 anos. Está perfeitamente compactada.
-[01:33:13] É uma obra existente. Estamos a falar de uma beneficiação e não de uma construção de raiz.
-[01:34:50] Mas os muros de que se está a falar, esses taludes, vão ser construídos [01:34:52] vão ser beneficiados. Muitos deles, é a parte de cima, caiu um bocadinho, não é, o automóvel pode deslizar, nós temos que ir lá repor, não é? O muro já lá existe, Dr. O muro já lá existe.
-[01:35:48] E alguns deles até nem têm, os taludes nem são feitos em betão, a própria máquina vai lá, rampa, e nem sequer tem intervenção. Quer dizer…
-[01:35:59] Numa obra desta, com esta extensão se houver lá um muro que realmente tenha que nascer de cá de baixo, ele até está lá, a fundação do muro até está lá, mas é para fazer lá o que já lá existe, dr. Isto é uma beneficiação de um caminho existente, não é nada de novo.

b) Testemunha N....., Engenheiro Civil, Coordenador do Projeto de Execução:
-“[01:53:03] Naquela empreitada não houve, aquilo é uma estrada que existe, é uma estrada que existe, as formações estão todas à vista. Ou seja, é uma estrada que já existe há muitos anos, o terreno está perfeitamente consolidado, os taludes, existem alguns dos quais em que os taludes deslizam, pronto, mas está perfeitamente visível e o estudo geotécnico não vai, à partida, na minha opinião, não acrescenta grande valor ao acto de projectar as infraestruturas que são projectadas.
-[01:53:35] São estruturas correntes [01:53:36] quer os muros, quer as cortinas corta-água, quer os aquedutos, são todos estruturas correntes.
-[01:53:42] E são estruturas, que fazer aquele reconhecimento geológico e geotécnico não vai acrescentar grandes valores. É possível projectar naquelas condições que a obra está, sem recorrer ao estudo.
-[01:54:50] A primeira parte do trabalho é partir para o campo e fazer visitas e começar visualmente a identificar toda a estrada por lá fora, ver acidentes que possam existir nos taludes, deformações, falar com a população, fazer uma série de visitas e falar com pessoas da zona que têm terrenos acolá, e falar com as pessoas e tentar arranjar uma história ali à volta, uma história, ou seja, um registo histórico daquela estrada que existe.
-[01:55:23] E depois, a partir daí, com o que se vê, começa-se a fazer o levantamento topográfico, a identificar cotas, desníveis, passagens de água, possivelmente características [01:55:38] que a bibliografia permite por observação in situ [01:55:42] existe, de [01:55:44] características de tensão admissível, por exemplo, dos solos, para depois lançar as infraestruturas que estão projectadas.
-[01:56:09] A bibliografia tem diversos estudos ao longo da nossa história de Engenharia, por exemplo, em Portugal, e quer pelo mundo todo, existem diversos estudos com variáveis devidamente estudadas e identificadas de determinados tipos de solos. A Geotecnia, tal como vários ramos da Engenharia, vive muito da estatística e probabilidade.
-[01:56:33] Sim, existem determinadas formações rochosas tabladas. Por exemplo, terrenos de uso [01:56:41], pronto. E existem já tabelas já devidamente estudadas, que estimam que a densidade de volume do solo anda entre estes valores; a coesão daquele tipo de solo anda dentro daqueles valores.
-[01:56:53] E com isso, tendo em conta as estruturas correntes, é possível de projectar de forma conscienciosa aquela obra.
-[01:57:29] Naquele caso, a estrada é existente, as formações estão lá à vista.
-[01:57:33] Na generalidade da empreitada estão lá.
Mandatária [01:58:48] Pronto. Esse vão ser só reabilitados, é?
N..... [01:58:50] Sim, alguns são reabilitados, exacto.
-[01:59:06] Coloca-se, mas mais uma vez, o talude está lá à vista.
-[01:59:22]Mas qualquer um dos dois é perfeitamente visível as formações que lá existem. As formações geológicas e rochosas que existem estão lá. Estão lá, e estão à vista, porque a estrada existe. A estrada corta aquele terreno e está lá.
-[02:00:05] Sim. Leva um muro neste lado, mas este talude…mas +e o que eu estava a dizer, o talude está lá visível, não necessita de andarmos lá a fazer sondagens a ver que tipo de formação é que está ali, é que está em causa.
-[02:05:22] Sim, nos taludes, repor os taludes. Porque existem taludes que … existem, vou dar um exemplo grosseiro, que têm esta inclinação neste momento e, se calhar, para poupar alguma coisa, não vamos fazer muros, mas vamos-lhe dar uma inclinação ligeiramente diferente, para evitar que haja tantos deslizamentos de terra para a estrada.

c) Testemunha J…., Engenheiro Civil, Colaborou na elaboração da proposta da ora recorrente, declarou o seguinte:
-[02:40:34] Há uma estrada já há algumas décadas.
[02:41:07] É uma beneficiação do pavimento, praticamente, a maior parte dos trabalhos é na beneficiação do pavimento.
[02:42:15] O solo que está à vista claro que sim, agora, aquilo é uma zona que está consolidada há alguns anos, um solo que está perfeitamente consolidado, penso eu. Na minha opinião, estará consolidado.
[02:46:28] Não oferece um grau de dificuldade … não tem grau de dificuldade.
[02:47:44] Está compactado, ou seja, pela sua acção … a própria gravidade do solo, ele encontra-se compactado já há muitos anos. É diferente de um terreno em que … de um aterro que nós criamos, não é? Esse aterro é consolidado mecanicamente e não tem a consolidação feita ao longo do tempo, ou seja, houve aquela acção de perder água e ganhar água, as partículas reajustam-se e ficam completamente sólidas.
[02:58:01] Posso? Uma coisa é nós termos um terreno que está há 50 anos e que, praticamente, ou mesmo que passe muito pouco veiculo, ele está lá, recebeu carga, já tem a acção do tempo, há ali muita coisa, muito factor a dar capacidade de resistência ao terreno.
[03:13:31] Sim, sim. Haverá zonas que a grossura será uma guia, se calhar, ou um bocadinho mais …
Mandatária [03:13:35] Uma guia? Mas então o que é isso?
[03:13:36] É uma zona, uma secção mais pequena, com 50 centímetros, se calhar, ou 40.
Mandatária [03:13:40] Pronto. Então, na situação em que o pavimento é …[03:13:45] quatro e meio, uma extensão tem terreno para o lado de lá, quando se for lá alargar o terreno, acha que esse terreno que antigamente não tinha o pavimento em tout venant e para passar a ter, era necessário fazer um estudo geológic desse terreno?
[03:13:55] Eu acho que não.

14- Dos 192 muros apenas 10 têm altura superior a 5 m, sendo que destes, 5 não ultrapassam os 5.5 m, 4 não ultrapassam os 6.5 m e apenas uma, atinge 8.4 me, sendo um muro de reposição de um muro existente (vide perfil n.ºs 37, 128, 140, 110, 190, 112, 16, 15 e 16, integrados no projeto de execução).

15- Por conseguinte, o facto 3 dos factos assentes deve ser modificado no seguinte sentido:
- “ A realização da empreitada de “Infra-estrutura da floresta – Rede Natura 2000”, prevê a execução de trabalhos de paredes de contenção (192), na maior beneficiação e reparação de muros existentes. Os muros, na maioria (1829 possuem uma altura inferior a 5 m, sendo certo que a maior parte correspondem a guias de deparação com 50 e 40 cm. Dos restantes 10 muros, 5 não ultrapassam os 5.5 m, 4 não ultrapassam os 6.5 m e apenas um atinge 8.4 m, sendo este um muro de reposição de um muro existente.
- Os trabalhos referentes à execução das paredes de contenção, implantação de elementos de fundação e de elementos estruturais, escavações, incluindo desmontes a fogo, construção de aterros sobre revestimento de taludes, em virtude de estar em causa a recuperação e revestimento de taludes, em virtude de estar em causa a recuperação de um caminho florestal já existente, serão executados em solo consolidado há mais de 50 anos, com formação e composição visível e previamente observada e classificada em função da Bibliografia (estudos realizados ao longo da historia sobre a identificação de determinados tipos de solos) da arte de efetuar a realizar projetos de execução no que respeita à ciência da Engenharia e cujos parâmetros foram devidamente considerados nas soluções técnicas apresentada pelo projeto de execução”.

(IV) Factos que deveriam ser considerados provados

16- Devem, ainda, ser considerados provados os seguintes factos relevantes:
a) A empreitada corresponde a uma obra de recuperação de um caminho florestal, com várias décadas de existência (pelo menos 50 anos), como solo consolidado, cuja composição e características está à vista e é visível, por força dos taludes existentes em ambos os lados. – Este facto decorre do próprio projeto de execução, das peças escritas e desenhadas, memória descritiva e justificativa, mapa de quantidades, estimativa orçamental, especificações técnicas, bem como dos doc. 2 e 3 juntos com a contestação e ainda da prova testemunhal já supra transcrita e assinalada a negrito (testemunha L.....: 01:28:17 - 01:33:13 - 01:34:50 - 01:35:48 - 01:35:59; testemunha N..... 01:53:03 - 01:54:50 - 01:55:23 - 01:56:53 - 01:57:29 - 01:58:45 - 01:58:50 - 01:58:59 - 01:59:22 - 02:00:05; testemunha J….: 02:40:34 -02:41:07 -02:42:15 - 02:47:44 - 02:58:01 - 03:13:31 a 03:13:36 - 03:13:40 a 03:13:55).
b) Os concorrentes não solicitaram, na pendencia do procedimento, quaisquer esclarecimentos sobre a ausência e/ou necessidade de realização dos estudos geológicos e geotécnicos – Facto que deve ser considerado provado pelas declarações da testemunha L.....– 01:28:34, já supra transcritas, bem como no procedimento junto aos autos pela entidade requerida.
c) Os correntes não efetuaram, em sede de listas de erros e omissões, qualquer referencia à ausência de estudos geológicos e geotécnicos – Este facto decorre do procedimento junto e dos doc. 4 e 5, juntos com a contestação.
d) O projeto de execução foi objeto de análise pela Direção Geral de Estradas e não foi suscitada qualquer sobre a ausência de estudos geológicos e geotécnicos (Declarações da testemunha L.....– 01:29:18);
e) O projeto de execução patenteado no concurso público, foi revisto por uma entidade independente do projetista, a qual não suscitou quaisquer questões relacionadas com a necessidade de o projeto de execução ser acompanhado de estudos geológicos e geotécnicos ( Declarações da testemunha - L.....– 01:29:49 a 01:30:42 e da testemunha N..... – 02:08:10 a 02:08:17).
f) A empreitada foi submetida a uma candidatura a PRODERAM 20-20, tendo o projeto de execução sido analisado, em conformidade com as respetivas normas e instruções, sem que tivesse sido efetuada qualquer reparação à ausência de estudos geológicos e geotécnicos ( Declarações da testemunha L….– 01:25:48 a 01:20:24).
g) O procedimento de concurso público em apreço foi visado pelo Tribunal de Contas, em sede de fiscalização prévia, tendo o projeto de execução sido submetido ao respetivo corpo técnico, sem que tivesse merecido qualquer advertência e recomendação sobre a falta dos estudos geológicos e geotécnicos (Ver procedimento junto e declarações da testemunha L…. - 01:29:03 a 01:29:15).

(V) Apreciação critica da motivação de facto

17- A sentença recorrida é vaga e abstrata, não faz qualquer menção a dados objetivos e concretos do projecto de execução ( a elementos técnicos da memória descritiva, das peças escritas e desenhadas, a nenhum perfil, a alturas, a larguras, a metros, a profundidades de funções, de cargas e pressões …) no que respeita às paredes de contenção, elementos de fundação e estruturais, escavações, aterros e regularização e revestimento de taludes, com o objetivo de analisar se a sua natureza e especificidades implicam uma tal complexidade de execução ao ponto de ser exigível os estudos geológicos e geotécnicos.

18- No que à prova testemunhal diz respeita a motivação de facto, vertida na sentença recorrida, padece de um colossal equívoco ao mencionar que todas as testemunhas foram unanimes sobre necessidade de o projeto de execução ser acompanhado dos estudos geológicos e geotécnicos, visto que a posição das testemunhas da R. é contrária à posição das testemunhas da entidade requerida e da aqui contra interessada.

19- Não pode passar sem reparo, uma análise ao grau de conhecimento dos factos das testemunhas do R. e da aqui recorrente, por comparação com o grau de conhecimento das testemunhas da A.

20- A testemunha Dr. L…., Técnico Superior de Contratação Público, responsável pela instrução, acompanhamento e aprovação das peças do procedimento, revelou conhecer direta e pessoalmente o projeto de execução, as características e especificidades da empreitada e dos trabalhos a executar, bem como o local da respetiva execução.

A testemunha Eng. N…, Engenheiro Civil, foi o coordenador do projeto de execução, revelou conhecer com rigor o local e o solo, a respetiva composição e formação e demais características (visitou e fotografou o local e inspecionou o solo; efetuou um levantamento fotográfico do local, enfim demonstrou ter-se inteirado do local e da necessidade ou não dos estudos geólogos e geotécnico em função das características e parâmetros do solo), bem como o projeto de execução e as especificidades da empreitada, tendo emitido parecer de que não eram necessários os estudos e que os mesmos em nada contribuiriam para os pressupostos e parâmetros do projeto de execução.

22- Por parte da contra alegante, prestou depoimento o Eng J…., Engenheiro Civil, o qual declarou ter participado na elaboração da proposta da ora contra interessada (declarações gravadas de 02:38:16 a 02:38:19 e 02:39:49), bem como ter-se deslocado ao local e analisado o solo e o seu estado, tendo emitido um parecer técnico no sentido de não ser necessário realizar os estudos geólogos e geotécnicos, em função das características especificas da obra.

23- Ao invés, a testemunha da A., Eng. L….., declarou não ter trabalhado na proposta, nem no procedimento (declarações 00:01:45 a 00:01:50), razão pela prestou declarações em termos teóricos e abstratos, sem concretizar em função do projeto de execução ( designadamente cargas, pressões dos muros de contenção, profundidade das fundações, altura dos muros …) e do local e solo onde vão ser executados os trabalhos da empreitada, quaisquer elementos objetivos e concretos ( características especificas da obra) que abonassem a favor da exigência dos estudos geólogos e geotécnicos.
24- O seu depoimento chega a ser tão teórico e parcial na defesa dos interesses da A., enquanto sua entidade empregadora, que deixa a ideia que até um pequeno muro de 0,5 m de altura e 1 m de cumprimento exige um estudo geólogos e geotécnico ?!

25- A outra testemunha da A. Eng. L…., declarou não ter participado na elaboração da proposta e ter efetuado apenas uma análise posterior para vir falar a Tribunal (declarações de 00:043:02 a 00:43:07) e persistiu nos exageros assentes em considerações teóricas, sem conexão com as características específicas da obra em causa, revelando ter prestado um depoimento parcial, à medida dos interesses da sua entidade empregadora.

26- Existindo no traçado taludes sobranceiros e de suporte (como decorre de toda a prova e sem qualquer contestação), os quais expõem a composição e características do solo, mais uma forte razão existe para não onerar o erário público com estudos inúteis para a obra em causa.

- Fundamentação de direito

27- É perspícuo que se está perante uma obra que deve ser inserida em “Estradas e Arruamentos”, mais especificamente “caminhos municipais, vicinais e estradas florestais”, prevista no titulo IV, do Anexo II da citada Portaria 701-H/2008, a qual se encontra classificada na categoria II.

28- No n.º 3 do art. 11.º da referida Portaria, esclarece-se que as obras da categoria II são obras de características correntes, com predominância da simplicidade: “Conceção simples, baseada em programas de funcionais com exigências correntes; Instalações e equipamentos correspondentes a soluções sem complexidades especificas; Pequeno grau de repetição das diferentes partes componentes da obra; Soluções da conceção e construção sem condicionamentos especiais de custos.”

29- Características que estão espelhadas na ora em apreço.

30- Na declaração remetida para o Tribunal de Contas, a que se refere a I. c) do n.º 2 do art. 17.º das Instruções sobre a organização dos processos de fiscalização prévia, junto ao processo administrativo, é mencionado que está em causa uma obra de pavimentação e eventuais obras de arte correntes e acessórias, a beneficiação do traçado actual, razão pela qual não, também, considerado necessário realizar estudos ambientais, nem de impacte social, económico e cultural.

31- Neste segmento a douta sentença recorrida viola os n.ºs 1 e 3 do art. 11 da Portaria 701-H/2008, de 29 de Julho, com remissão para o Anexo II da referida Portaria.

32- O preço base do concurso não corresponde à categoria 6 de alvará mas 5., tal como decorre da conjugação do n.º 1 da Portaria n.º 119/2012, de 30 de Abril com o estipulado no Decreto Legislativo Regional n.º 21/85/M, de 19 de Outubro, o qual determina que na Região Autónoma da Madeira os valores das classes de alvará consideram-se superiores em 40% dos valores fixados, sendo o valor da classe 5 de alvará até 3.929,000,00 €.

33- A douta sentença, quanto a este especto, viola o n.º 1 da portaria 119/2012 e o Decreto Legislativo Regional n.º 21/85/M.

34- Acresce salientar que a classificação da obra é irrelevante para a questão essencial a apreciar, ou seja, a exigência ou não dos estudos geólogos e geotécnicos.

35- O n.º 5 do art. 43.º do CCP não estabelece nenhuma conexão/ relação entre a classificação da obra e a exigência dos estudos geólogos e geotécnicos ( o art. 43.º do CCP, aliás, apenas se refere à classificação das obras para efeitos de prévia revisão do projeto de execução por entidade distinta do seu autor).

36- O que significa que a douta sentença neste segmento, viola, também, o n.º 5 do art. 43.º do CCP.

37- A questão essencial a apreciar resume-se à exigência ou não dos estudos geólogos e geotécnicos acompanharem o projeto de execução da obra sub judice, atendendo às suas características especificas.

38- A douta sentença revela-se paupérrima, insuficiente , deficitária e incorreta na ponderação das características especificas da obra, reduzindo-as às expressões genéricas e vagas de “execução de paredes de contenção, de implantação de elementos de fundação, de implantação de elementos estruturais, de escavações, de construção de aterros sobre terreno natural ou terraplanagem, de regularização de taludes, concluiu que os estudos geólogos e geotécnicos devem integrar o projeto de execução.

39- Imponha-se que a A. (sobre quem recai ónus da prova) e que a sentença recorrida concretizassem, com dados concretos e objetivos, as características especificas dos trabalhos da empreitada, designadamente no que respeita à altura dos muros, se os muros são de betão escorados, ancorados ou contrafortes (muros de execução mais complexa, o que não sucede no caso e pode ser confirmado através do projeto de execução, o qual prevê muros que funcionam por gravidade, ou seja, cuja resistência depende de forma muito intima do seu peso próprio e dos impulsos colocados pelo terreno e que são compatíveis com as alturas previstas no projeto), qual a profundidade das fundações (já vimos que são correntes e de simples execução), qual a dimensão e peso das escavações, dos aterros ( já vimos que são meras regularizações e recuperações) e qual as características da regularização dos taludes, se são complexas ou de está em causa, rampar, ajeitar, dar mais ou menos inclinação , efetuar meras correcções (como é o caso da obra em discussão).

40- Imponha-se, ainda, que se colocasse em crise a ponderação sobre os pressupostos geotécnicos, sobre as características e composição e estado do solo, efetuada pela entidade adjudicante, o que não sucede, nem se verifica na sentença recorrida.

41- Por arrastamento perecem, igualmente, os argumentos de que ao não ter realizado os estudos geológicos e geotécnicos, a R. relegou para a fase da execução aspetos de natureza técnica, susceptíveis de criar um fator de imprevisibilidade.

42- Na ausência de dados concretos e objectivos, o que deve prevalecer é a ponderação da entidade adjudicante, por ter sido quem elaborou o projeto de execução e analisou todas as características especificas da obra e fundamentou a sua decisão, dentro dos seus poderes discricionários que lhe são legalmente conferidos.

43- A exigência dos referidos estudos pressupõe uma análise prévia da sua necessidade em função das características específicas da obra, a efetuar pela entidade adjudicante, o que foi, efetivamente, efetuado.

44- O preço, como é compreensível à luz da ciência e da boa arte e técnico de executar projetos e obras, não tem qualquer relação com a exigência dos estudos geólogos e geotécnicos.

45- A alegação da A. de que a Portaria 701-H/2008, representa uma total e absoluta auto-vinculação e limitação da discricionariedade não merece qualquer acolhimento à luz da boa hermenêutica.

46- O elemento literal – (redação do n.º 5 do art. 43.º do CCP), é claro quanto à ponderação das características especificas da obra, para concluir pela necessidade de realização de estudos geológicos e geotécnicos.

47- O elemento histórico reforça aquela conclusão, na verdade com a alteração levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 149/2012, de 12 de Julho, o legislador apenas quis conferir mais objetividade à ponderação a realizar pela entidade adjudicante, no sentido se mandar atender às características especificas (nomeadamente elementos técnicos), em vez de manter a anterior redação de o “sempre que tal se releve necessário”, que era mais genérica ( e não necessariamente mais permissiva ou discricionária).

48- O elemento sistemático reforça este entendimento na medida em que para cada tipo de obra deve ser efetuada uma ponderação das respectivas características especificas, no que respeita à sua execução, é o que resulta da conjugação do n.º 5 do art. 43.º do CCP com o conteúdo da Portaria 701-H/2008 e com as regras estabelecidas no nosso ordenamento jurídico sobre a hierarquia das fontes de direito.

49- Com efeito, a não ser assim, o n.º 5 do art. 43.º do CCP, tornar-se-ia inócuo, inútil e sem qualquer aplicação prática.

50- Finalmente, o elemento teleológico, estanho em causa a gestão da res publica, o erário e interesse público, impõe que aquela ponderação seja efetuada sob pena de se praticar atos e despesas inúteis, com o consequente, agravamento do erário público, sendo certo que não foi intenção do legislador reduzir e retirar efeitos úteis à previsão do n.º 5 do art. 43.º do CCP.

51- A hierarquia das fontes, constitucionalmente consagrada no 112.º da CRP, rejeita a tese da A. e acolhida pelo Tribunal a quo.

52- Uma portaria não pode revogar e sobrepor-se a um Decreto-Lei, que, inquestionavelmente, é uma lei de valor hierárquico muito superior.

53- É a Portaria N.º 701-H/2008 que deve ser interpretada e aplicada em função do previsto no n.º 5 do art. 43.º do CCP e não o contrário, sob pena de se cometer uma aberração jurídica, no que respeita à boa aplicação do Direito.

54- A jurisprudência invocada pela A. na sua douta P.I, é efetuada em termos teóricos e académicos, sem referência aos dados concretos das obras em apreço, sendo manifesto que uma leitura integral do Ac. do tribunal de Contas N.º 5 de 25/02/2010, Recurso Ordinário N.º 20/2009 (Processo N.º 38/2009), sustenta uma posição que lhe é desfavorável.

55- Neste aresto, ainda que com base na anterior redação do n.º 5 do art. 43.º do CCP, mas que se mantém válido por a alteração levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 149/2012, como já mencionamos atrás, não pretender modificar a ratio legis, mas apenas conferir mais objetividade e rigor a decisão discricionária das entidades adjudicantes, fixou-se o seguinte:
“4. A lei dá uma margem de apreciação ao aplicador administrativo da lei para que possa decidir, perante o caso concreto, se é ou não necessário, proceder-se à realização de estudos geológicos e geotécnicos e impor a sua junção ao projecto de execução.
5. Contudo, um poder discricionário não é um poder arbitrário: a margem de apreciação e decisão da Administração está balizada por critérios de competência e outros fixados na lei para o exercício dos poderes discricionários, pelo respeito pelas finalidades da norma e pelos princípios gerais a que se subordina a atividade administrativa, designadamente a dimensão vinculada no exercício daqueles poderes. E o seu exercício está igualmente, nessa sua dimensão vinculada, também, sujeito controlo jurisdicional.
7. No que respeita aos estudos geológico e geotécnicos que devem acompanhar os projetos de execução de obras públicas, a Administração desenvolveu critérios de vinculação que submete os seus órgãos e serviços no exercício daquele poder discricionário. Através da Portaria n.º 701-H/2008, de 20 de julho, a Administração auto-vinculou-se: estreitou, em certos casos, a dimensão discricionária da decisão, e noutros alargou-a.
8. No caso de obras em edifícios, a exigência de realização de estudos geológicos e geotécnicos depende da concreta obra a realizar, devendo a decisão que os dispense, no exercício de um poder discricionário consagrado na lei, ser fundamentada, respeitar as finalidades da norma e os demais princípios gerais a que se subordina a actividade administrativa.”

56- Mais uma vez se demonstra que a sentença recorrida viola, fatalmente, o disposto no n.º 5 do art. 43.º do CCP, a Portaria N.º 701-H/2008, bem como o disposto no art. 112.º da CRP.

57- Extrair a conclusão de que a obrigação de aferir e confirmar os pressupostos geotécnicos, através da realização dos estudos geológicos e geotécnicos em sede de execução do contrato de empreitada ao adjudicatário, mesmo quando dentro dos seus poderes discricionários a entidade adjudicante os considerou dispensáveis na fase da elaboração do projeto de execução, implica uma transferência do ónus de os realizar pela entidade adjudicante para o adjudicatário, é um erro e não faz qualquer sentido.

58- Na verdade, pedir a aferição e confirmação dos pressupostos geotécnicos revela que a entidade adjudica os analisou e ponderou no projeto de execução, sendo certo que não está em causa um atributo, elemento ou documento da proposta e que nada na lei impede que o dono da obra o exija em sede de execução do contrato, apesar de ter considerado desnecessário efetuar tos estudos geológicos e geotécnicos na fase de elaboração do projeto de execução.

59- Se repararmos o CE prevê igual obrigação no que respeita à topografia, e nada foi apontado; a logica é a mesma.

(VI) Normas Jurídicas violadas:

- N.º 3 do art. 103.º e art. 89.º do CPTA;
- N.ºs 1 e 3 do art. 11.º da Portaria 701-H/2008, de 29 de Julho, com remissão para o Anexo II da referida Portaria;
- N.º 1 da Portaria N.º 11/2012, de 30 de Abril, conjugada com o Decreto Legislativo Regional N.º 21/85, de 19 de Outubro);
- O N.º 3 e o n.º 5 do art. 43.º do CCP;
- Art. 112.º da CRP;
- Art. 10.º do CPA;
- Art. 334.º do CC.”

A ora Recorrida A…., S.A., contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido.

A Exma. Magistrada do Ministério Público junto deste TCAS emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional e confirmada a sentença recorrida.

Sem vistos, vem o processo submetido à conferência para julgamento.

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II – DA FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Com relevância para a decisão da causa consideraram-se provados os seguintes factos:

1.Em 05/02/2016 foi publicado em Diário da República, II Série, n.º 25, o anúncio de procedimento n.º 664/2016 relativo ao concurso público para a celebração do contrato de empreitada de obras públicas para a realização de “ Infra-estrutura de protecção da floresta – Rede Natura 2000.”

2. Do caderno de encargos referente ao procedimento de concurso público referido em 1. supra que aqui se dá por integralmente reproduzido, consta, entre o mais, que:
“Parte II – Condições Técnicas
II. Geotecnia
Para aferição dos pressupostos de projecto, deverá o adjudicatário realizar estudos geológicos e geotécnico, para confirmar, verificar e determinar as características dos parâmetros geotécnicos que serviram de base ao projecto.
Serão estes parâmetros que permitirão ao adjudicatário aferir e confirmar o dimensionamento das obras de arte correntes e acessórias previstas de acordo com os equipamentos previstos para a sua execução.”

3. A realização da empreitada “ Infra-estrutura de protecção da floresta – Rede Natura 2000” prevê a realização de trabalhos de execução de paredes de contenção, de implantação de elementos de fundação de implantação de elementos estruturais, de escavações incluindo desmontes a fogo, construção de aterros sobre terreno natural ou terraplanagem já existente e regularização e revestimento de taludes.

4. O preço base do procedimento referido em 1. supra é de € 3.499.948,71.

5. Em 18/12/2015 o Presidente da Câmara Municipal da Calheta emitiu uma declaração no âmbito das instruções sobre a organização dos processos de fiscalização prévia a remeter ao Tribunal de Contas, que aqui se dá por integralmente reproduzida, e da qual consta, entre o mais, que:
“b) A natureza predominante dos trabalhos, cuja pretensa intervenção consiste na pavimentação e eventuais obras de arte correntes e acessórias, e ainda o facto de a empreitada se desenrolar numa plataforma já consolidada pela existência do actual caminho pavimentado, anteriormente executado, não se considerou relevante a realização de estudos geológicos e geotécnicos; “

6. Em 18/12/2015, o Presidente da Câmara Municipal da Calheta emitiu a proposta de abertura do concurso público para execução da empreitada de Infra-estrutura de protecção da floresta – Rede Natura 2000, que aqui se dá por integralmente reproduzida, e da qual consta, entre o mais, que:
“ 8. Elementos da solução da obra
Os elementos da solução da obra que acompanham o projecto de execução nos termos do artigo 43.º do Código dos Contratos Públicos a definem e enquadram nos termos previstos na citada disposição legal.
Atenta a natureza da obra, recuperação de um caminho florestal com várias décadas de existência, não se justifica que o projecto de execução integre os elementos a que se refere o n.º 5 do art. 43.º do CCP, com excepção do Plano de Prevenção e Gestão de Resíduos”.

*

III – DA FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Veio o presente recurso jurisdicional interposto da sentença do TAF do Funchal, que julgou procedente a acção de contencioso pré-contratual intentada por A......, S.A., no âmbito do concurso público para celebração do contrato de empreitada de obras públicas de “Infra-estruturas de Protecção da Floresta – Rede Natura 2000”.

Entendeu o Tribunal a quo que, ao remeter para o empreiteiro a realização de estudos geológicos e geotécnicos, quando a responsabilidade do projecto é do dono da obra, o Caderno de Encargos relegou “ para a fase de execução da obra, aspectos, nomeadamente de natureza técnica, que podem e devem ficar préviamente definidos no procedimento pré-contratual, criando assim um factor de imprevisibilidade no procedimento de concurso público. Basta pensar que as soluções técnicas a adoptar na execução do contrato e respectivo custo, podem ser naturalmente diferentes em função do resultado dos referidos estudos, dando origem a trabalhos a mais ou trabalhos de suprimento de erros e omissões da responsabilidade do dono da obra.
Ora, esta prática para além de ser ilegal por violação do disposto no artigo 43.º do Código dos Contratos Públicos, viola ainda os princípios que presidem à contratação pública, designadamente o princípio da transparência, da igualdade da concorrência, por permitirem em abstracto uma manipulação dos custos a suportar pela Entidade Adjudicante em beneficio da adjudicatária. O que leva a concluir pela verificação do vício de violação de lei imputado pela Autora ao Caderno de Encargos, e, por esta via, ao acto de adjudicação.
Nos termos conjugados do disposto no artigo 43.º, n.º 8, al. c) e n.º 5, al. b) [ do CCP ] o Caderno de Encargos é nulo quando o projecto de execução nele integrado não esteja acompanhado dos estudos geológicos e geotécnicos.
A invalidade do documento conformador do procedimento – Caderno de Encargos – repercute os seus efeitos no acto final do procedimento adjudicatório, o acto de adjudicação, que consequentemente é também inválido.”

Discorda deste entendimento a ora Recorrente ao invocar, a título de questões prévias, a caducidade do direito de acção e má fé, falta de colaboração, deslealdade e conduta abusiva da Autora na pendência do procedimento.
Quanto ao mérito sustenta que existem pontos de facto incorrectamente julgados e outros que deveriam ser considerados provados, pecando a sentença pela apreciação crítica que faz da matéria de facto. Mais alega que há errada classificação da obra pelo Tribunal a quo sobre a exigência ou não dos estudos geológicos e geotécnicos acompanharem o projecto de execução da obra sub judice, atendendo às suas características específicas. E finalmente alega que há errada interpretação do disposto no n.º 3 e n.º 5 do artigo 43.º do CCP e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 11.º da Portaria n.º 701-H/2008, de 29 de Julho, com remissão para o Anexo II da referida Portaria.

*

Analisemos então de per si os vícios apontados à sentença recorrida, sendo que as conclusões das alegações definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontram nos autos os elementos necessários à sua consideração – cfr. artigos 635º nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, ex vi artigo 140º do CPTA.

1 – QUESTÕES PRÉVIAS

1.1.Caducidade do direito de acção

Nas conclusões 3.ª a 10.ª (sintetizadas) da sua alegação a Recorrente veio suscitar só nesta fase alegatória, a título de excepção peremptória, a caducidade da presente acção.
Sucede contudo que a excepção invocada não é peremptória como sustenta a Recorrente, mas antes dilatória, como resulta expressamente do disposto no artigo 89.º, n.º 4, al. k) do CPTA:“ Intempestividade da prática do ato processual”. Para maiores desenvolvimentos cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO CADILHA in COMENTÁRIO AO CPTA, 2017, pag. 711 e seg. nota 4.
Decorre do n.º 2 do artigo 89.º do CPTA que as excepções dilatórias são de conhecimento oficioso e obstam a que o Tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância.
As questões prévias referidas na al. a) do n.º 1 do artigo 88.º do CPTA – excepções dilatórias e nulidades processuais – que não tenham sido apreciadas no saneador não podem ser suscitadas nem decididas em momento posterior do processo – cfr. n.º 2, primeira parte do citado artigo 88.º. “ O n.º 2 [do artigo 88.º] pretende concentrar na fase do despacho saneador a apreciação de quaisquer questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo. E nesse sentido (…) proíbe que sejam suscitadas e decididas em momento posterior do processo quaisquer outras questões ou excepções dilatórias que não tenham sido apreciadas no despacho saneador (…). Com efeito, o n.º 2 do presente artigo configura uma situação de caso julgado tácito que deriva de as partes não terem suscitado nos articulados a excepção dilatória que poderia pôr termo ao processo e de o juiz não ter apreciado oficiosamente essa excepção dilatória, como lhe competia, na fase do saneador”. – cfr. ob. Cit. Pag. 702 e seg. (negrito nosso)
Nesta conformidade, em obediência ao n.º 2 do artigo 88.º do CPTA, não se conhece nesta fase recursória da excepção dilatória da caducidade do direito de acção, pelo que improcedem necessariamente as conclusões 3ª a 10ª da alegação da Recorrente (por falta de conhecimento do seu objecto).

1.2.Do alegado abuso de direito e má fé

Nas conclusões 1.ª e 2.ª (sintetizadas) da sua alegação, a Recorrente alega que a ora Recorrida reclamou administrativamente do acto de adjudicação por a empresa seleccionada não ter apresentado estudos geológicos e geotécnicos, ao contrário do que havia sucedido consigo. Em seu entender, tal reclamação implicaria uma conformação com a não existência dos referidos estudos, pelo que não pode agora vir pô-la em causa com fundamento em que teria que ser a entidade adjudicante a apresentar esses estudos, sob pena de agir de má fé ou abusar de um direito de impugnação .
Vejamos.
Quanto a nós, a apresentação de um técnico, em face da determinação do Caderno de Encargos, implica, necessariamente, reconhecimento pela Recorrida da necessidade desse estudo no caso sub judice. A questão da responsabilidade de apresentação desse estudo é outra questão que, por estar expressamente prevista na lei, não está na disponibilidade das partes aceitar ou não o que a lei determina.
Por conseguinte, afigura-se-nos inteiramente legítimo que na fase judicial sejam invocadas questões de direito não suscitadas na fase administrativa.
De resto, o que sempre esteve em causa, em ambas as fases, foi a impugnação da adjudicação à ora Recorrente sobre a qual a Recorrida mantém a sua posição, pese embora tenha alterado ou limitado os respectivos fundamentos.
Termos em que, de acordo com os fundamentos expostos, improcede tal questão prévia atinente ao alegado abuso de direito e má fé e as conclusões a ela atinentes.

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2 – DO ALEGADO ERRO DE JULGAMENTO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

Nas conclusões 11.ª a 26.ª (sintetizadas) da sua alegação, a Recorrente alega essencialmente que existem pontos de facto incorrectamente julgados e outros que deviam ser considerados provados, adiantando ainda que a sentença peca pela apreciação crítica que faz da matéria de facto.
Tal impugnação pretende demonstrar que a obra em apreço se insere na Categoria II, designada por “Estradas e Arruamentos- Caminhos municipais, vicinais e estradas florestais” prevista no Título IV, do Anexo II da Portaria n.º 701-H/2008, de 29 de Julho, e a que alude o n.º 3 do seu artigo 11.º, como obra de características correntes, de recuperação de caminho florestal com décadas de existência, cuja plataforma está considerada pela existência do actual caminho pavimentado, não se considerando por isso relevante a realização de estudos geológicos e geotécnicos.
Em bom rigor, se bem depreendemos da sua alegação, a Recorrente considera que a classificação da obra é irrelevante para a apreciação da questão essencial a dilucidar, ou seja, a existência ou não de estudos geológicos e geotécnicos.
E aqui falece toda a argumentação da Recorrente.
Desde logo porque a realização de tais estudos foi expressamente reconhecida com acuidade no próprio Caderno de Encargos, em obediência ao disposto no artigo 43.º, n.º 2 do CCP, mas a cargo do adjudicatário (cfr. infra a propósito do alegado erro de julgamento quanto à matéria de direito).
Em segundo lugar, importa atender à classificação da obra, às suas características sobejamente evidenciadas nos autos e que foi dada na sentença recorrida, ou seja, “Classificação III” de acordo com o Título IV, do Anexo II da Portaria n.º 701-H/2008, de 29 de Julho e com a al. d) do n.º 4 do seu artigo 11.º por se integrar, no mínimo, na categoria de “estrada municipal com faixa de rodagem simples”, mas sobretudo por “se integrar num contexto natural ora construído que determina exigências relevantes correspondentes a, designadamente, aspectos relacionados com contextos ambientais ou visuais de excepção, históricos” (como se refere na sentença).
Em terceiro lugar, resulta do ponto 3 da factualidade assente na sentença que “A realização da empreitada “ Infra-estrutura de protecção da floresta – Rede Natura 2000” prevê a realização de trabalhos de execução de paredes de contenção, de implantação de elementos de fundação de implantação de elementos estruturais, de escavações incluindo desmontes a fogo, construção de aterros sobre terreno natural ou terraplanagem já existente e regularização e revestimento de taludes”.
Segundo a sentença, as testemunhas depuseram sobre a pertinência de estudos geológicos e geotécnicos face aos trabalhos de execução previstos.
E não restam dúvidas de que, implicando as obras movimentação dos solos, como aterros e terraplanagens e implantação de estruturas e fundações, os aludidos estudos afiguram-se imprescindíveis face às características das obras descritas.
Acresce, como bem se refere na sentença, “ … a obra está integrada num contexto natural que determina exigências relevantes face ao contexto natural em que se insere. A obra encontra-se inserida na Rede Natura 2000, a qual constitui uma rede ecológica para o espaço comunitário da União Europeia, cfr. Directiva 2009/147 /CE, de 30 de Novembro, e Directiva 92/43/CEE. Constitui o principal instrumento para a conservação da natureza na União Europeia”. Ainda de acordo com a sentença “as características especificas da obra, nomeadamente quanto à execução de paredes de contenção, de implantação de elementos de fundação, de implantação de elementos estruturais, de escavações, de construções de aterros sobre terreno natural ou terraplanagem, de regularização de taludes, enquadram-se na ratio dos mencionados estudos”.
Concluindo: Destinando-se os estudos em causa, nomeadamente, a aferir das condições de estabilidade dos taludes naturais, escavação e de aterro, a apurar as condições de escavabilidades dos terrenos, a analisar o risco geológico e geotécnico e a avaliar, a prevenir e mitigar fenómenos nocivos, é óbvio que face ao tipo de execução prevista para a obra a empreender, os mesmos encontram plena justificação.
Mas ainda que as características da obra não fossem suficientes para justificar a necessidade da adjudicante juntar estudos geológicos e geotécnicos, o próprio preço base da obra no montante de €3.499.948,71, determinaria tal obrigatoriedade pois tal preço base é enquadrável na classe do Alvará 4, ou seja, manifestamente superior à classe 3 (cfr. artigo 1.º da Portaria n.º 119/2012, de 30 de Abril, conjugado com Decreto Legislativo Regional n.º 21/85/M , de 19 de Outubro, o qual determina que na Região Autónoma da Madeira os valores das classes de alvará consideram-se superiores em 40% dos valores fixados).
Por todo o exposto, improcedem as conclusões da alegação da Recorrente atinentes ao alegado erro de julgamento quanto à matéria de facto.

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3 – DO ALEGADO ERRO DE JULGAMENTO QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO

O Caderno de Encargos, reconhecendo a necessidade expressa da realização de estudos geológicos e geotécnicos, afirma na Parte II relativa às condições técnicas o seguinte:
“II. Geotecnia
Para aferição dos pressupostos de projecto, deverá o adjudicatário realizar estudos geológicos e geotécnico, para confirmar, verificar e determinar as características dos parâmetros geotécnicos que serviram de base ao projecto.
Serão estes parâmetros que permitirão ao adjudicatário aferir e confirmar o dimensionamento das obras de arte correntes e acessórias previstas de acordo com os equipamentos previstos para a sua execução.”
Do enunciado facilmente se conclui que a entidade adjudicatária reconheceu a necessidade de realização de tais estudos, mas considerou que os mesmos seriam da responsabilidade do empreiteiro.
Estipulava o artigo 43.º do CCP em vigor à data do concurso o seguinte:
“1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo anterior, o caderno de encargos do procedimento de formação de contratos de empreitada de obras públicas deve incluir um projecto de execução.
2 - Quando a obra seja classificada, nos termos da portaria prevista no n.º 7, na categoria III ou superior, bem como naqueles casos em que o preço base, fixado no caderno de encargos, seja enquadrável na classe 3 de alvará ou em classe superior, o projeto de execução referido no número anterior deve ser objeto de prévia revisão por entidade devidamente qualificada para a sua elaboração, distinta do autor do mesmo.
3 – (…)

4 – (…)
5 - Em qualquer dos casos previstos nos n.os 1 a 3, o projeto de execução deve ser acompanhado, para além dos demais elementos legalmente exigíveis, dos que, em função das características específicas da obra, se justifiquem, nomeadamente:
a) (…)

b) Dos estudos geológicos e geotécnicos;
(…)

8- O caderno de encargos é nulo quando:
a) (…)

b) (…)
c) O projeto de execução nele integrado não esteja acompanhado dos elementos previstos no n.º 5”
Decorre linearmente dos termos do n.º 5 do citado artigo 43.º, que os estudos geológicos e geotécnicos integram o projecto de execução, pelo que são da responsabilidade da parte a quem incumbe elaborar esse projecto, ou seja, à entidade adjudicante. Assim, ao atribuir tal tarefa ao empreiteiro e ao apresentar projecto de execução sem juntar os referidos estudos, o caderno de Encargos sofre de nulidade.
A nulidade do Caderno de Encargos decorrente do disposto no n.º 8 deste preceito, implica a nulidade do procedimento da formação do contrato e bem assim do contrato que eventualmente tenha sido celebrado, de que é parte integrante” – cfr. JORGE ANDRADE DA SILVA, in CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS, Anotado, 2008, pag. 178.
Neste sentido pode ver-se o Acórdão do STA de 26/9/2002 in Acórdãos Doutrinais, 492, pag. 1585, ainda no âmbito do Decreto-Lei n.º 405/93, de 10 de Dezembro:
“ II- (…) Não existindo estudo geológico nem geotécnico do terreno em que deveria ser levada a cabo execução da obra, a definição das características geológicas do terreno previstas para efeitos de concurso são obrigatoriamente definidas pelo dono da obra (artigo 60.º, n.º 3 e 4 do Dec.-Lei n.º 405/93).
III – Em face da imperatividade deste regime, é nula a imposição ao empreiteiro, feita no programa do concurso, da obrigação de apresentar prospecção geotécnica do local da obra, se interpretada com o alcance de dispensar o Réu daquela obrigação legal, e consubstanciando-se a nulidade na infracção de uma norma destinada a proteger o empreiteiro relativamente aos riscos de acréscimo de despesas de execução da obra, derivadas da não correspondência entre a realidade do terreno e o considerado na sua proposta, a nulidade parcial teria como consequência a manutenção do contrato sem o acordado em infracção da lei.”
Ainda como esclarece JORGE ANDRADE DA SILVA, in CCP ANOTADO, Almedina, 2013, no que se refere à responsabilidade estabelecida pelo artigo 378.º do CCP, por erros e omissões identificados na fase de execução dos trabalhos “os erros ou omissões verificados em elementos elaborados ou disponibilizados pelo dono da obra são da responsabilidade do dono da obra( nº 1 deste artigo)”.
Também o Acórdão do Tribunal de Contas (Ac. 27/2000) in Revista do Tribunal de Contas, n.º 34, pag. 183, considera inquestionável a obrigação do dono da obra de “fornecer, sem reservas, todos os elementos que permitem um conhecimento exaustivo da situação e características do terreno”, em defesa, necessariamente, do interesse público, do controle da despesa e de uma correcta execução financeira dos contratos, considerando o Tribunal de Contas nula a obrigação imposta ao empreiteiro de fazer “prospecção geotécnica do local da obra”, se interpretada com “o alcance de dispensar o dono da obra daquela obrigação”, como é exactamente o que sucede no caso em apreço.
Existindo empreitada com projecto do dono da obra, como é a situação sub judice, face ao disposto no artigo 61.º, n.º 1, al. c) e 63.º , n.º 2 do CCP então em vigor pode exigir-se aos concorrentes que inspeccionem ou visitem os locais onde a obra vai ser realizada, o que é algo diferente de realizar neles sondagens e ensaios para determinar as características geológicas e geotécnicas dos terrenos, como se requer no Capítulo sobre Geotécnica do Caderno de Encargos.
Em conclusão: Se o procedimento concursal não possui o estudo geológico e geotécnico a consequência é a sua nulidade, apesar de o considerar necessário no capítulo de geologia do Caderno de Encargos.
No demais aderimos à argumentação expendida na sentença recorrida quando refere “ (…) esta prática [não apresentação dos estudos] para além de ser ilegal por violação do disposto no artigo 43.º do Código dos Contratos Públicos, viola ainda os princípios que presidem à contratação pública, designadamente o princípio da transparência, da igualdade da concorrência, por permitirem em abstracto uma manipulação dos custos a suportar pela Entidade Adjudicante em beneficio da adjudicatária”.
Em conformidade com o exposto, improcedem as conclusões 27.ª a 59.ª (sintetizadas) da alegação da Recorrente atinentes ao alegado erro de julgamento quanto à matéria de direito.

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Improcedendo, destarte, todas as conclusões da alegação da Recorrente é de negar provimento ao recurso jurisdicional e confirmar a sentença recorrida.

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IV – DECISÃO

Acordam, pois, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS em negar provimento ao recurso jurisdicional e confirmar a sentença recorrida.

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Custas pela Recorrente.

Lisboa, 6 de Junho de 2019



Relator:
António Vasconcelos

Catarina Jarmela

Paula Loureiro