Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2647/14.9BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/07/2019
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:CASO DECIDIDO ADMINISTRATIVO
INIMPUGNABILIDADE
DEVER LEGAL DE DECIDIR
Sumário:I – Com o chamado caso decidido administrativo há, em bom rigor, uma situação jurídica consolidada pelo facto de o ato que lhe deu origem se ter tornado inimpugnável. Estamos no âmbito da inimpugnabilidade.
II - Tal pressupõe que o destinatário do ato foi notificado do mesmo.
III - O artigo 13º do CPA atual, tal como o seu antecessor artigo 9º, impõem à A.P. o dever inultrapassável de apreciar e decidir expressamente os requerimentos apresentados. E só dispensa a A.P. desse dever inultrapassável no caso de, menos de 2 anos depois, surgir um idêntico requerimento feito pelo mesmo interessado [o que, obviamente, pressupõe que o requerente conheceu a anterior decisão sobre idêntico requerimento, do mesmo requerente].
IV - No caso presente, com renovação de requerimento feito há muitos anos e com um indeferimento [assim findando tal procedimento administrativo] não notificado, das duas uma: ou a CGA, em 2013, notificaria a autora da sua decisão de 1984, esquecendo o direito objetivo atual como, entretanto, concretizado, nomeadamente nos termos do Ac. do TC nº 72/2002 e da jurisprudência desta Jurisdição; ou então, agindo legalmente, de acordo com o artigo 9º do CPA/1991, e atualizando – como agora explicitado no CPA/2015 - o seu entendimento de acordo com a jurisprudência dos cits. tribunais, emite nova decisão administrativa. Neste tipo de situação, a A.P. pode e deve (re)decidir sob a égide da legalidade administrativa atual.
V - É este segundo o caminho legalmente correto. Como aqui não se verificou “caso decidido”, ou seja, inimpugnabilidade do ato administrativo antigo, como a autora não teve conhecimento do arquivamento-indeferimento antes da vigência do cit. DL 210/90, há o dever de decidir, em 2014, o “novo” requerimento de 2014 idêntico ao requerimento de 1980 indeferido em 1984.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

M…..... interpôs no Tribunal Administrativo de Círculo ação administrativa especial contra

CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES.

A pretensão formulada perante a 1ª instância foi a seguinte:

- Condenação da Entidade Demandada à prática do ato devido, consubstanciado no deferimento do seu direito à aposentação.

Após a discussão da causa, o Tribunal Administrativo de Círculo decidiu:

- “condenar a Caixa Geral de Aposentações a proferir decisão que defira o pedido de aposentação formulado pela Autora em 29/08/1980, renovado por requerimento de 02-07-2013, atribuindo-lhe, com efeitos retroativos, a pensão a que, ao abrigo do regime especial do DL 362/78, de 28-11, tem direito.”.

*

Inconformada, a ré interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

A - Entende a Caixa Geral de Aposentações que a decisão recorrida deve ser revogada, por não ter considerado improcedente a exceção de caso decidido, suscitada pela Ré, tal como foi determinado, em caso semelhante, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13 de julho de 2011, proferido no Processo n.º 102/11, em sede de recurso de Revista, bem como em mais outros Acórdãos do STA proferidos sobre a mesma matéria, designadamente nos Processos n.os 429/11, 659/11 , 1164/11, 184/13 e 988/13.

B - Efetivamente, o pedido de pensão formulado pelo ora recorrido, em 29 de agosto de 1980, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 362/78, de 28 de novembro e legislação complementar, foi arquivado por despacho de 17 de janeiro de 1984, ato que se consolidou na ordem jurídica.

C - Assim, por a situação da Autora se encontrar consolidada face ao pedido inicial, o pedido apresentado em 2 de julho de 2013, só poderia ser entendido como novo pedido, sendo porém, manifestamente extemporâneo por ter sido formulado após a publicação do Decreto-Lei n.º 210/90, de 27 de junho, tal como é interpretado nos doutos Acórdãos que servem de fundamento às presentes conclusões.

D - Ora, para a concessão da pensão em causa não basta a prova dos requisitos de tempo de serviço e de descontos para a aposentação, é também necessário que a pensão tenha sido requerida até 1 de novembro de 1990, o que, no caso, tal não aconteceu, uma vez que o requerimento apresentado em 2 de julho de 2013 por ter sido formulado após a publicação do Decreto-Lei n.º 210/90, de 27 de junho é manifestamente extemporâneo, devendo improceder todas as conclusões constantes da decisão proferida no Tribunal “a quo”.

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FACTOS PROVADOS

O tribunal recorrido decidiu estar provada a seguinte factualidade:

A) Por requerimento apresentado em 29/08/1980, a Autora requereu a sua aposentação ao abrigo do Decreto-Lei n.º 362/78 de 28 de Novembro, fazendo acompanhar esse requerimento, designadamente, de Certidão datada de 06/08/1980, emitida na Direção-Geral das Finanças da P...., República de Cabo Verde e assinado, sobre estampilhas fiscais e carimbo a óleo em uso no referido, por L….. (com assinatura reconhecida pelo Cônsul do Consulado de Portugal no M….) da qual consta nomeadamente que:

M…….. foi abonada de remunerações, nos seguintes períodos e situações: --------COMO PROFESSORA DE POSTO ESCOLAR, CONTRATADA, de vinte e dois de Outubro de mil novecentos e sessenta e dois a dois de Outubro de mil novecentos e sessenta e oito.----------------------------------------------------------- --------COMO PROFESSORA DO ENSINO PRIMARIO, EVENTUAL: de três de Outubro de mil novecentos e setenta e oito a trinta de Junho de mil novecentos e oitenta. -------------------Mais certifico, que a Requerente apenas não sofreu o correspondente desconto para a compensação de aposentação, a partir de um de Novembro de mil novecentos e setenta e oito a trinta de Junho de mil novecentos e oitenta” (cfr. documento de fls. 4 e 11, do processo administrativo apenso aos presentes autos, que ora se dá por integralmente reproduzido);

B) Com vista à apreciação do seu pedido de aposentação, a Entidade Demandada enviou o ofício n.º … à Autora, para a morada “C.... de P...., 28… Amora”, solicitando o certificado da sua nacionalidade ou fotocópia do seu Bilhete de Identidade atualizado (cfr. doc. de fls. 3 do P.A. apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);

C) Em 16/01/1984 foi prestada Informação …..DESP/-6/1º (Proc. 4370/80) de 24/10/1985, com o seguinte teor:

“ASSUNTO: Pedido de aposentação formulado por M…….., professora do posto escolar contratada dos Serviços de Educação da ex-Província de Cabo Verde.

1-Por requerimento entrado em 29/08/1980 (fls. 6), solicitou a funcionária em epígrafe a aposentação ao abrigo do Decreto-Lei 362/78 de 28/11.

2. Analisado o processo verificou-se não estar o mesmo instruído. No entanto, a mesma não pode ser contactada, em virtude de a morada que indicou ser insuficiente (fls. 8).

3- Assim, devido às insuficiências acima indicadas afigura-se-nos arquivar o processo, dado o tempo já decorrido;

4 – No entanto, a situação poderá ser revista ser a interessada vier algum dia, a comprovar reunir os requisitos necessários para a concessão da pensão de aposentação.

(…)” (cfr. doc. de fls. 2 do P.A. apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);

D) Em 17/01/1984, foi exarado despacho de concordância sobre a Informação referida na alínea anterior, (idem);

E) Em 02/07/2013, a Autora, representada pelo seu Mandatário, dirigiu ao Presidente do Conselho de Administração da Caixa Geral de Aposentações o seguinte requerimento:

“Texto integral com imagem”

F) A Administração não deu qualquer resposta ao requerimento referido na alínea anterior (facto admitido por acordo).

G) A presente ação administrativa especial foi apresentada neste Tribunal em 05/11/2014, pelo registo do correio (cfr fls. 16 dos presentes autos – processo físico).

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II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Delimitação do objeto do recurso:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas; sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo. Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule - isto no sentido muito amplo utilizado no CPC - deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e as condições legalmente exigidos para o efeito.

Ora, tudo visto, as questões a resolver contra a decisão ora recorrida são as seguintes:

- Erro de julgamento de direito a propósito da questão da inexistência do chamado “caso decidido” e da existência do dever de decidir a cargo da CGA, no contexto específico do Decreto-Lei n.º 362/78, do Decreto-Lei n.º 363/86, do Decreto-Lei n.º 210/90 e do Ac. do TC nº 72/2002.

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Tenhamos presente tudo o que já expusemos, bem como que existe uma correta e rigorosa metodologia para resolver processos jurisdicionais [cf., sem prejuízo da lei fundamental, os essenciais artigos 8º a 11º do CC, os quais, num Estado Constitucional democrático do século XXI e no contexto da estrutural separação dos poderes estaduais, impõem a toda a interpretação-aplicação do direito objetivo a nobre tarefa de objetivar - o mais possível - o critério teleológico da interpretação jurídica, sem o sobrepor aos demais critérios impostos no artigo 9º do CC português; e Miguel Nogueira de Brito, Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., AAFDL Editora, Lisboa, 2018, capítulo I, nº 3, e capítulo III]; isso faz-se no âmbito de um Direito português positivado que, a montante da atividade do juiz e da chamada “ciência” jurídica e sua dogmática jurídica - ciência cultural ou do espírito - tem a sua origem e explicação (i) em opções político-legislativas e ou (ii) em legitimações sócio-ético-políticas, ambas sem natureza objetiva ou absoluta. O que significa - num cumprimento o mais objetivo e transparente possível dos artigos 8º a 11º do CC português no âmbito de um Estado democrático de Direito com separação de poderes e busca de segurança jurídica - que (i) a atividade soberana e independente de resolução imparcial de litígios jurídicos é distinta: (ii) da política jurídica [que compete à criação da lei e do costume], (iii) da filosofia jurídica [que compete à especulação ou razão teorética], (iii) da reconstrução sistemática do direito objetivo vigente [que compete à teoria sobre o Direito vigente], (iv) da formulação de meras opiniões jurídicas - racionalmente fundamentadas - [que compete à dogmática jurídica ou “opinio iuris”], e, ainda, (v) da sociologia e da psicologia do Direito.

Passemos, agora, à análise do recurso de apelação.

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A.

O Decreto-Lei n.º 362/78, de 28-11, veio instituir a atribuição de pensões de aposentação aos antigos funcionários e agentes da ex-administração pública ultramarina que não ingressaram no quadro geral de adidos.

Constituiu uma medida de carácter temporário e excecional, destinada a acudir a situações de carência decorrentes da descolonização.

A utilização desta medida, inicialmente fixada em seis meses, foi objeto de várias prorrogações, a última das quais, por tempo indeterminado, pelo Decreto-Lei n.º 363/86, de 30 de outubro.

B.

O Decreto-Lei n.º 210/90, de 27-6 revogou o Decreto-Lei n.º 363/86 e estabeleceu que “as pensões de aposentação previstas no Decreto-Lei n.º 362/78, de 28 de novembro, requeridas até à data da entrada em vigor do presente diploma vencem-se a partir do mês seguinte ao da receção do respetivo requerimento no serviço competente”. E que “o presente diploma entra em vigor no dia 1 de novembro de 1990.”

C.

Ora, a autora requereu a pensão de aposentação em agosto de 1980, com base no regime jurídico constante DL 362/78 cit.

O respetivo processo administrativo foi arquivado em janeiro de 1984 com base em insuficiência de instrução, ou seja, foi indeferido.

O arquivamento-indeferimento nunca pôde ser notificado à interessada (cf. o artigo 59º-1 do CPTA/2002), como diz expressamente a CGA; tal como, antes, o pedido de completamento do requerimento com documento comprovativo da nacionalidade.

Há caso decidido [ou melhor, consolidação ou inimpugnabilidade do ato administrativo anulável, decorrente de o seu destinatário, apesar de conhecer tal ato, não o ter impugnado no prazo legal] em 1984?

A figura do “caso decidido ou caso resolvido”, que é distinta do instituto do caso julgado, implica tão-só que o ato adquiriu um carácter de incontestabilidade, que se não confunde com a intangibilidade do caso julgado nem inviabiliza em termos absolutos a sua revogação: com a figura do caso resolvido o legislador visou dar estabilidade às decisões finais da Administração, com o fito de evitar a prática de atos confirmativos e de libertar os serviços da insistência importuna dos reclamantes pirrónicos, objetivos que são compatíveis com a revogabilidade dos atos administrativos, nos termos em que a lei a consente. O Tribunal Constitucional aceitou esta teoria, como se pode verificar nos acórdãos nº 786/96 e nº 32/2002.

Com o caso decidido há, em rigor, “uma situação jurídica consolidada pelo facto de o ato que lhe deu origem se ter tornado inimpugnável” – cf. Carlos Blanco de Morais, A querela da intangibilidade do caso decidido inconstitucional, in Jurisprudência Constitucional, n.º 15, julho/dezembro 2007, p. 4.

A formação de “caso decidido” encontra justificação no facto de o vício que pretensamente afetaria a validade do ato em causa ser gerador de mera anulabilidade e de ser característico desta figura a existência de um prazo para a sua impugnação, sob pena de se produzir a sanação do ato e, portanto, a eliminação da ilegalidade.

Ora, não há aqui um “caso decidido”, porque a interessada nunca foi notificada, pelo menos até este processo, do -ilegal- indeferimento de 1984, que, aliás, resultou de uma insuficiente instrução quanto a um aspeto, entretanto tornado irrelevante por doutrina jurídica obrigatória oriunda do TC [v. Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 72/2002].

Portanto, aqui não existe consolidação ou inimpugnabilidade do ato administrativo de 1984, decorrente de o seu destinatário, apesar de conhecer tal ato, não o ter impugnado no prazo legal.

D.

Em julho de 2013, a autora fez o mesmo requerimento à ré. Esta nada respondeu até hoje.

O TAC, concordando com a autora, entendeu que a CGA tem o dever de decidir.

Haverá hoje o dever legal de a Administração Pública decidir [v. hoje o artigo 13º do CPA, antes artigo 9º, bem como os artigos 52º-1 e 268º-6 da CRP] o que foi requerido de novo em 2013?

Sim, há.

Vejamos.

Já concluímos que, como a autora não foi notificada do despacho para completamento documental do requerimento de 1980, nem do arquivamento-indeferimento [cf. Ac. do Pleno do STA de 14.5.2015, proc. n.º 134/15], não existe “caso decidido ou resolvido” em sede de DL 362/78.

Note-se que não há nenhum elemento nos autos que demonstre (i) que a autora foi notificada da decisão administrativa anterior - que é o aspeto relevante, tendo presente o artigo 59º-1 do CPTA/2002 - ou sequer (ii) que conhecia integralmente por qualquer outro modo [irrelevante para a destinatária ora autora, porque diferente de notificação], antes do cit. DL de 1990, a decisão administrativa anterior.

Por outro lado, não teria sentido considerar que, como a autora eventualmente conheceu o indeferimento em julho de 2013 ou em 2014 com esta p.i., então perdeu – retroativamente - o direito que detinha e exerceu até ao DL 210/90. Ao qual se seguia e segue o dever legal de decidir. E de notificar.

Ora, o artigo 13º do CPA, tal como o seu antecessor artigo 9º, impõem à A.P. o dever inultrapassável de apreciar e decidir expressamente os requerimentos apresentados. E só dispensa a A.P. desse dever inultrapassável no caso de, menos de 2 anos depois, surgir um idêntico requerimento feito pelo mesmo interessado [o que, obviamente, pressupõe que o requerente conheceu a anterior decisão sobre idêntico requerimento - do mesmo requerente - cf. ainda Paulo Otero, D. do Procedimento Adm., I, pp. 110 ss, maxime pp. 113-118; JC Vieira de Andrade, O controle jurisdicional…, in CJA nº 1, pp. 64-65; D. Freitas do Amaral, Curso…, II, 4ª ed., p. 288]; no caso presente, passaram muito mais do que 2 anos.

Isso significa, aqui, que a ré está vinculada ao dever de apreciar o concreto requerimento feito em 2013, com referência ao requerido em 1980, mas licitamente renovado em 2013, ou melhor, com referência ao Direito vigente então; e tendo presente o correto Direito aplicável como hoje está definido – cf. assim Paulo Otero, D. do Procedimento Adm., I, pp. 116-118.

Aliás, se a ré estivesse certa do que entendeu, deveria em 2013, já conhecedora da morada da interessada, ter notificado a interessada da decisão que considera ter força de caso decidido. E não ficar inerte. E, em consequência, poderia explicitar perante a interessada o seu entendimento sobre o caso decidido e ou sobre o seu dever de indeferir o requerido, tendo ainda presente o cit. Ac. do TC de 2002.

E, na verdade, como entendem Mário Aroso/C.C., in Comentário ao CPTA, 4ª ed., p. 462, ocorreu aqui uma alteração juridicamente relevante, o cit. Ac. do TC.

Note-se que não há “caso decidido” [ou melhor, não existe consolidação na ordem jurídica do arquivamento de 1984], e nunca haveria, sobre o alegado documento em falta em 1980-1984, aliás tornado irrelevante pelo cit. Ac. do TC de 2002, momento em que a autora não conhecia o arquivamento-indeferimento; não se tratou aí de resolver qualquer questão, mas sim apenas de instruir ou não instruir bem o requerimento.

Portanto, a CGA tem, por causa das várias razões mencionadas, o dever de decidir o 2º requerimento da autora à luz do Direito e da jurisprudência aplicáveis, 2º requerimento que é “apenas” igual ao 1º [isto é, os cits. DL de 1978, 1986 e 1990; o dever de decidir previsto no CPA; o cit. Ac. do TC nº 72/2002; a cit. jurisprudência dos tribunais administrativos].

E, portanto, das duas uma:

-ou a CGA, em 2013, notificaria a autora da sua decisão de 1984, esquecendo o direito objetivo como, entretanto, concretizado, nomeadamente nos termos do cit. Ac. do TC de 2002 e dos cits. acs. desta Jurisdição administrativa;

-ou então, agindo legalmente, de acordo com o artigo 9º do CPA/1991, e atualizando o seu entendimento de acordo com a jurisprudência dos cits. tribunais, emite nova decisão administrativa como refere Paulo Otero, in D. do Procedimento Adm., I, pp. 116-118. Como diz este eminente mestre da Escola de Lisboa, neste tipo de situação a A.P. pode e deve (re)decidir sob a égide da legalidade administrativa [a lei é o pressuposto, o fundamento e o limite das atividades de administração pública].

É este segundo o caminho legalmente correto. Como não se verificou “caso decidido”, como a autora não teve conhecimento do arquivamento-indeferimento antes da vigência do cit. DL 210/90, há o dever de decidir o idêntico requerimento.

O pedido condenatório [v. artigos 66º e 67º do CPTA] tem fundamento.

Daí que o TAC tenha decidido bem.

E.

A doutrina jurídica e jurisprudencial sobre esta questão, aqui aplicável, além do citado aresto de 2002 do TC, resume-se hoje assim:

- “Com a entrada em vigor do DL nº 210/90, de 27/6, terminou o prazo para requerer a pensão de aposentação ao abrigo do regime especial, fixado no DL nº 362/78, de 28/11; não está abrangido pela disciplina do art. 2º do DL nº 210/90 um pedido de atribuição de pensão apresentado em 19.10.2010, e que já havia sido indeferido, por despacho de 21.10.88, consolidado como caso administrativo decidido” – cf. assim, i.a., o Ac. do STA de 22-05-2014, Proc. 988/13;

- “O nº 1 do art. 71º do CPTA atribui ao tribunal o poder de se pronunciar sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do ato devido, pelo que terá o tribunal que atender, na decisão a tomar, aos documentos juntos pelas partes à ação, comprovativos dos factos alegados, nos termos dos arts. 467º, n° 2 e 523º, nº 1 do CPC, aplicável por força do art. 1º do CPTA; o art. 2º do DL. nº 362/78, de 28/11, fazia depender o direito à aposentação ao abrigo do regime instituído por aquele diploma, a saber: terem os funcionários ou agentes da ex-administração pública ultramarina mais de 5 anos de serviço; terem efetuado os descontos devidos para compensação de aposentação durante esse período mínimo; a certidão apresentada em 24.04.2003, comprovativa destes requisitos necessários à obtenção da pensão não é extemporânea, por o prazo de vigência do estatuído pelo DL nº 362/78, ter terminado em 01.11.90, por força dos arts. 1º e 3º do DL. n º 210/90, de 27/6; é que o que se extinguiu foi o prazo para requerer a pensão ao abrigo dessa legislação especial e não o prazo da sua atribuição ou da instrução do processo de aposentação anteriormente instaurados, uma vez que estes dependeram de vários fatores que, neste caso, determinaram que não tivesse sido sequer proferida decisão final. no presente caso, são também devidos juros, desde 01.09.81 até efetivo pagamento de todas as pensões já vencidas, e a vencerem-se até ao pagamento da pensão correspondente ao mês posterior ao da decisão da atribuição da pensão” – cf. assim, i.a., o Ac. deste TCA Sul de 06-12-2012, Proc. 03713/08;

- “Não é exigível a posse da nacionalidade portuguesa pelos funcionários e agentes da ex-administração ultramarina para lhes ser concedida a aposentação nos termos do Dec.-Lei nº 362/78, de 28/11.” – cf. assim o Ac. do STA 19-06-1997, Proc. 041609.

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III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, os juizes do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 07-03-2019


Paulo H. Pereira Gouveia [Relator]

Catarina Jarmela

Alda Nunes






(1)Porém, não olvidemos que as “metodologias teoréticas jurídico-construtivistas” chocam frequentemente com o “princípio democrático fundamental da fidelidade à lei ou ao costume”; e o mesmo choque só não acontecerá com uma “metodologia jurídica teleológica” se - e apenas se - esta for objetiva ou objetivante. Por outro lado, o pensamento jurídico-teorético “da consideração dos interesses” e o pensamento jurisdicional “da consideração dos interesses” são diferentes do mais racional pensamento jurídico-teorético “da apresentação das razões para” e do pensamento jurisdicional “da apresentação das razões para”. Também há distinção entre “conhecer o direito objetivo com metodologia própria” e “aplicar o direito objetivo com metodologia própria” [cf., claramente quanto às interpretações em Direito, H. KELSEN, no último capítulo da sua 2ª edição da “Teoria Pura do Direito”]. É que “direito objetivo” é uma coisa e “jurisciência” é outra; como a Moral é uma coisa [conjunto de normas morais] e a Ética é outra [conhecimento dessas normas ou o saber acerca dessas normas morais]. Mas com isto não se está a negar que o direito objetivo [conjunto de normas jurídicas vigentes] ou ordenamento jurídico, de origem humana tal como os seus valores, é avaliável como justo ou injusto conforme o sistema moral que dê o critério de valoração ao avaliador; apenas se constata que a vinculatividade ou existência [vulgo, “validade”] do Direito [direito objetivo] não depende necessariamente da sua concordância com as normas morais vigentes. O “Direito da dogmática” [ou Jurisprudência romano-clássica transformada em “jurisciência” nos seculos XIX e XX, “opinio iuris”, doutrina ou dogmática jurídicas] não é “Direito judicial, ou melhor, Direito decorrente da jurisprudência dos tribunais”. Além disso, não compete à jurisprudência dos tribunais, nem à jurisciência e sua dogmática, justificar ou moralizar o Direito existente; isto cabe à Ética e à Política do Direito; a valoração ou avaliação moral do direito objetivo é uma necessidade humana, mas não compete à atividade jurídica em sentido próprio de um Estado Constitucional pluralista e de direito democrático [cf., assim, de certo modo, o artigo 8º-2 do CC português: “o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo”].
(2) Sendo que as “fontes “do direito objetivo português atual são as que decorrem dos artigos 8º e 112º da atual CRP e as leis no sentido amplo do artigo 1º-2 do CC de 1966 [todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais ou supraestaduais competentes, onde se incluem os regulamentos de administração pública]. Nem o Direito resultante das decisões dos juizes, nem o Direito exposto pela “opinio iuris” ou jurisciência, são “fontes” imediatas da ordem jurídica portuguesa atual [utiliza-se aspas para fontes, porque o sentido jurídico de fonte de Direito é o utilizado como H. KELSEN expõe em Teoria Pura do Direito, trad., 7ª ed., pp. 262-284. Lembremo-nos que a chamada “norma fundamental” é apenas o fundamento lógico último da vinculatividade ou existência ou “validade” de uma dada ordem normativa posta pela lei ou pelo costume - também aceite por Kelsen - devendo a chamada “norma fundamental” ser definida simplesmente como “uma regra pensada ou pressuposta que, não resultando de um ato de vontade seja de quem for, nos diz que se deve obedecer a certo comando emitido por uma determinada autoridade ou comunidade produtora de normas jurídicas”; a chamada “norma fundamental” é, pois, o ponto de partida - necessário e lógico-formal - do processo de criação do direito objetivo de uma dada ordem jurídica, vista sob a imagem espacial de supra-infra-ordenação das respetivas normas, mas sem negar que, (i) a montante e (ii) ao redor do direito objetivo, existem filosofias do Direito, políticas do Direito e ideias de justiça - cf. assim H. KELSEN, ob. cit., pp. 67 ss; e, em geral o jusnaturalista moderado K. ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, 11ª ed., FCG, Lisboa, 2014, p. 387]; e, por outro lado, considere-se que o chamado “pensamento jurídico” e seu alegado “método”, que surgiram apenas em sede de dogmática jurídica ou jurisciência num país sem codificação jurídica [territórios de língua alemã do século XIX] são coisas não idênticas à jurisprudência dos tribunais ou prática de concretização-realização do direito objetivo; cf. ainda os artigos 8º e 9º do nosso CC de 1966 à luz da CRP.
(3) Isto, porém, num contexto (i) de uma pluralidade não harmonizada de preceitos normativos sobre a mesma matéria, cada vez mais frequente, e (ii) de uma CRP doutrinária e politicamente desfigurada para uma constituição “light” ou flexível, em detrimento da segurança jurídica e de uma liberdade confiável. E em que a Administração Pública é, paradoxalmente, cada vez mais uma gestora de direitos e interesses diferentes, privados e ou públicos, para prosseguir o interesse coletivo.