Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11547/14
Secção:CA - 2º. JUÍZO
Data do Acordão:12/04/2014
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:LEGITIMIDADE - INTERESSE EM AGIR – ADMISSÃO DE PROPOSTA – ARTIGO 55º N.º 1, ALÍNEA A), DO CPTA – ARTIGO 112º N.º 1, DO CPTA
Sumário:I - O interessado num procedimento concursal não detém legitimidade (interesse em agir) para impugnar a decisão que admitiu a proposta de outro concorrente, já que tal impugnação não se traduz num benefício que se repercute de imediato na respectiva esfera jurídica, isto é, o mesmo não é titular de um interesse directo na impugnação desse acto conforme é requerido no art. 55º n.º 1, al. a), do CPTA.
II - Não tendo o interessado legitimidade (interesse em agir) para intentar a acção de contencioso pré-contratual de que o presente processo cautelar constitui mero preliminar, não tem legitimidade para intentar este processo cautelar – cfr. art. 112º n.º 1, do CPTA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I - RELATÓRIO
P….. – E….., SA (P…..), intentou no TAC de Lisboa processo cautelar contra o Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Emergência Médica, IP (INEM), indicando como contra-interessada S…. – S…, SA (S…..), e no qual peticionou a suspensão da eficácia da decisão de admissão das propostas para a fase de negociações proferida no âmbito do Ajuste Directo designado por 2013_UMC_VS_LOTE2_INEM e que tem por objecto a aquisição, ao abrigo do Lote 2 – prestação de serviços de vigilância e segurança humana na Região Centro -, do Acordo Quadro n.º 13, da Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública, IP.

Por decisão de 18 de Julho de 2014 do referido tribunal foi o INEM absolvido da instância, com fundamento na sua ilegitimidade passiva, e julgado improcedente o pedido de adopção da providência cautelar requerida.

Inconformada, a requerente apresentou reclamação para a conferência dessa decisão, na parte em que julgou improcedente o pedido cautelar, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:

“ (…) ”.

Em 29.7.2014 foi proferido o seguinte despacho:

A sentença de folhas 906 a 948 foi proferida no processo cautelar ao abrigo do disposto no artigo 40.º, n.º1 do ETAF, por Juiz singular.

Daquela decisão cabe pois recurso jurisdicional e não reclamação para a conferência.

Assim com fundamento na sua inadmissibilidade legal não admito a reclamação para a conferência.

Notifique.

Apenas obsta à convolação daquele requerimento de reclamação em requerimento de interposição de recurso jurisdicional a junção do comprovativo da taxa de justiça em falta.

Assim, notifique a requerente/recorrente para no prazo de 10 dias juntar comprovativo da taxa de justiça em falta para o respectivo impulso processual.”.

Por requerimento enviado pelo SITAF em 4.8.2014 a contra-interessada S… suscitou a inadmissibilidade da reclamação para a conferência apresentada pela P…., por antes caber recurso, pugnando ainda pela inadmissibilidade da convolação em recurso por se tratar de um erro grosseiro e, como tal, indesculpável.

Na sequência do despacho proferido em 29.7.2014 a requerente P…… juntou documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça.

Em 22.8.2014, e na sequência dos requerimentos da contra-interessada S…… e da requerente P…… descritos nos dois parágrafos anteriores, foi proferido o seguinte despacho:

(…)

”.

O Ministério da Saúde e a contra-interessada S……, notificados, apresentaram contra-alegações, onde pugnaram pela improcedência do recurso, tendo esta última invocado - nas conclusões I e II, da respectiva contra-alegação - que não deve ser admitida a convolação da reclamação para a conferência em recurso, por tal erro não poder ser considerado desculpável, arguindo ainda a nulidade do despacho de admissão de recurso, já que este não se pronunciou sobre tal questão suscitada no requerimento de 4.8.2014.

Em 30.9.2014 foi proferido despacho sustentando a inexistência de omissão de pronúncia quanto à matéria de facto considerada provada com relevância para a decisão da causa.

O DMMP junto deste TCA Sul emitiu parecer, no qual sustenta que o recurso não merece provimento, posicionamento esse que, objecto de contraditório, não mereceu qualquer resposta.

Por despacho de 30.10.2014 foi suscitada a questão relativa à falta de legitimidade (interesse em agir) da requerente/recorrente para intentar o presente processo cautelar, bem como determinada a notificação das partes para se pronunciarem sobre a mesma. Nesse despacho foi também ordenada a notificação da recorrente para se pronunciar sobre as questões prévias suscitadas pela recorrida S…… na sua contra-alegação (concretamente nas conclusões I e II).

Na sequência do cumprimento desse despacho, veio a recorrida S…… emitir pronúncia, concluindo no sentido da ilegitimidade da recorrente.

A recorrente também se pronunciou, pugnando pela improcedência das questões suscitadas pela recorrida S…… e por despacho de 30.10.2014, salientando que a posição sustentada nesse despacho é inconstitucional por violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva.


II - FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:
1) Em Maio de 2013 a P….. – E….. de S……, S.A. recebeu um convite para apresentar proposta no Ajuste Directo designado por 2013_UMC_VS_LOTE2_INEM que tem por objecto a aquisição, ao abrigo do Lote 2 – Prestação de serviços de vigilância e segurança humana na Região do Centro do Acordo Quadro n.º13 da ESPAP.
2) Aquele convite tinha o teor de folhas 99 a 104 que se dá por integralmente reproduzido.
3) Após terem sido apresentadas as propostas, com data de 28 de Junho de 2013 foi elaborado pelo Júri do procedimento do Relatório Preliminar o qual tinha o teor de folhas 450 a 452 do processo administrativo, que se dá por reproduzido, e no qual constavam como admitidas as propostas da S…… – S……., S.A., C…… S…… P……., S.A., C…… – P….., S.A., P……. – E….. de S….., S.A. e S….. – S….. e T…… de S……, S.A., e excluídas as propostas da P….. – C….. de S….., U…., Lda., G……– V…… e P…… E……., Lda. e D… – G…. – C…… A….. – S…… de V…… e S…..
4) Notificados os concorrentes em sede de audiência prévia a P…. pronunciou-se no sentido de a proposta da S….. dever ser excluída. Cfr. documento de folhas 146 a 163 dos autos e folhas 453 a 487 do processo administrativo.
5) Após o que o júri solicitou às concorrentes os seguintes esclarecimentos:
(…)


Cfr. acta de folhas 181 e 182 dos autos, que se dá por reproduzida.
6) Em 3 de Janeiro de 2014 foram os concorrentes admitidos ao procedimento informados de que a sessão de negociação decorreria no dia 10 de Janeiro de 2014. Cfr. documento de folhas 739 e 740 do processo administrativo e 251 e 252 dos autos.
7) Em face daquele convite a participar na sessão de negociação a P….. – E……. de S……., SA apresentou recurso hierárquico da decisão da proposta da S……. para efeitos de negociação. Cfr. documento de folhas 751 a 827 do processo administrativo e 253 a 329 dos autos.
8) Na sequência da apresentação daquele recurso hierárquico por parte da concorrente P…….., foi suspensa a sessão de negociação até à decisão do recurso. Cfr. documento de folhas 330 dos autos.
9) Na Secretaria Geral do Ministério da Saúde foi elaborado Parecer n.º32/2014 de 26 de Fevereiro de 2014 no qual se concluía o seguinte: “(…) Em conclusão:
1. Face ao exposto, deverá o júri apreciar e decidir sobre a pronúncia apresentada ao abrigo do direito de audiência prévia pela concorrente P…… – E…… de S……, S.A., e, em cumprimento do prescrito no artigo148.º do CCP, elaborar o relatório final ainda não elaborado, antes de marcar a sessão de negociação, devendo seguir-se os ulteriores termos do procedimento.
2. Assim, não tendo sido prolatado o relatório final a que se fez referência, não existe ainda acto administrativo de que se recorra hierarquicamente, pelo que o presente recurso hierárquico deve ser rejeitado, nos termos do artigo 173.º, alínea b) do CPA.
3. Os poderes para a prática do acto referido no parágrafo anterior encontram-se subdelegados na Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, ao abrigo do Despacho n.º 7516/2012, do Secretário de Estado da Saúde, de 23 de Maio de 2012, publicado no DR – 2.ª série, n.º106, de 31 de Maio de 2012.” Cfr. documento de folhas 875 a 878 do processo administrativo.
10) Foi elaborado o “Relatório Final de Selecção de Propostas/Concorrentes para a Fase de Negociação” no qual o júri deliberou “por unanimidade manter a exclusão das propostas apresentadas pelos concorrentes P……. – C…… de S……, U……., Lda., G…… – V……. e P……. E……., Lda. e D…. – G….. – C….. A….. – S…… de V…… e S……., por apresentarem preço contratual superior ao preço base e consequentemente violarem o disposto da alínea d) do n.º2 do artigo 70.º do CCP, aplicável ex vi alínea o) n.º2 do artigo 146.º do CCP, e admitir à sessão de negociação, em data a anunciar na plataforma electrónica, caso este relatório venha a ser aprovado pelo órgão competente para a decisão de contratar, os concorrentes S….. – S……, S.A., C…… S….. P…., S.A., C….. – P……. de S……. de S….. e V…….., S.A., P……. – E…… de S……, S.A. e S……. – S…….. e T……. de S………, S.A. em virtude de não resultar provado que as propostas apresentadas por estes violem a alínea m) do n.º2 do artigo 146.º ou as alíneas c), d), f) ou g) do n.º2 do artigo 70.º aplicável ex vi alínea o) do n.º2 do artigo 146.º, todos do CCP.” Cfr. documento de folhas 336 a 343 dos autos.
11) Aquele relatório foi aprovado. Cfr. documento de folhas 344 e 345 dos autos, que se dá por reproduzido.
12) Daquela decisão a P……. – E…….. de S……., S.A. interpôs recurso hierárquico. Cfr. documento de folhas 346 a 412 dos autos.
13) A P…… – E……. de S…….., SA encontra-se actualmente a prestar serviços de vigilância e segurança nas instalações para as quais se pretende adquirir os serviços objecto do ajuste directo com a referência 2013_UMC_VS_LOTE2_INEM (Serviços da Delegação Regional de Coimbra do Instituto Nacional de Emergência Médica, I.P., sitos na Estrada das Eiras – Edifício B – Side, naquela cidade). Acordo das partes.
*
Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se:

- o despacho de admissão do recurso é nulo por omissão de pronúncia;

- o presente recurso não deve ser admitido por não ser admissível a convolação da reclamação para a conferência em recurso;

- a recorrente carece de legitimidade para intentar o presente processo cautelar;

- a decisão recorrida enferma de erro na selecção da matéria de facto;

- a decisão recorrida enferma de erro ao julgar improcedente o pedido cautelar.

Passando à análise das questões relativas à alegada nulidade do despacho de admissão do recurso por omissão de pronúncia e à alegada inadmissibilidade do presente recurso

A recorrida S…… arguiu a nulidade do despacho de admissão de recurso, já que este não se pronunciou sobre a questão suscitada no requerimento de 4.8.2014 – inadmissibilidade de convolação da reclamação para a conferência em recurso, dado que a interposição da reclamação constitui um erro indesculpável -, pugnando ainda, face a tal inadmissibilidade de convolação, pela não admissão do recurso.

Decidindo.

Em 29.7.2014 foi proferido despacho que - com fundamento na sua inadmissibilidade legal - não admitiu a reclamação para a conferência apresentada pela requerente P……, ora recorrente, e no qual se salientou que tal reclamação poderia ser convolada em recurso, desde que a P…… procedesse à junção do comprovativo do pagamento da taxa de justiça em falta.

Por requerimento enviado pelo SITAF em 4.8.2014 a recorrida S…… suscitou nomeadamente a inadmissibilidade da convolação da reclamação para a conferência em recurso, na medida em que a apresentação de tal reclamação pela recorrente consubstancia-se num erro grosseiro e, como tal, indesculpável.

Em 22.8.2014, na sequência do despacho de 29.7.2014 e do pagamento pela ora recorrente da taxa de justiça, foi proferido despacho determinando a convolação da reclamação para a conferência em recurso, procedendo-se à sua admissão.

Ora, o despacho de admissão do recurso não é susceptível de impugnação – cfr. art. 641º n.º 5, do CPC de 2013 [“A decisão que admita o recurso (…) não (…) pode ser impugnada pelas partes (…)”] -, pelo que, nos termos do art. 615º n.º 4, ex vi art. 613º n.º 3, ambos desse diploma legal, caso o mesmo padeça de nulidade por omissão de pronúncia, tal nulidade só pode ser arguida perante o tribunal que o proferiu, ou seja, in casu perante o TAC de Lisboa, não podendo o presente recurso ter por fundamento essa nulidade, razão pela qual não se conhece da mesma.

Quanto à alegação da recorrida S…… [a qual é admissível, dado que, de acordo com o estatuído no art. 638º n.º 6, do CPC de 2013, “Na sua alegação o recorrido pode impugnar a admissibilidade (…) do recurso (…)”] de que não deve ser admitido o presente recurso, por ser inadmissível a convolação da reclamação para a conferência em recurso, já que a interposição da reclamação constitui um erro indesculpável, falece-lhe a razão.

Com efeito, de acordo com o disposto no art. 193º n.º 3, do CPC de 2013, tal convolação não está dependente da qualificação do erro como desculpável, nem de qualquer outro requisito, pois, de acordo com o prescrito em tal normativo legal, “O erro na qualificação do meio processual utilizado é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados” (sublinhados nossos).


Conclui-se, assim, pela improcedência desta questão prévia.

Passando à apreciação da questão respeitante à suscitada ilegitimidade da requerente/recorrente

Por despacho de 30.10.2014 foi suscitada a questão relativa à falta de legitimidade (interesse em agir) da requerente/recorrente para intentar o presente processo cautelar.

Apreciando.

A ora recorrente pretende que seja decretada a suspensão da eficácia da decisão de admissão das propostas para a fase de negociações proferida no âmbito do Ajuste Directo designado por 2013_UMC_VS_LOTE2_INEM e que tem por objecto a aquisição, ao abrigo do Lote 2 – prestação de serviços de vigilância e segurança humana na Região Centro -, do Acordo Quadro n.º 13, da Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública, IP.

Além disso, e conforme decorre do requerimento inicial, o presente processo cautelar é intentado como preliminar de acção de contencioso pré-contratual “visando a declaração de nulidade, ou, caso assim não se entenda, a anulação, da decisão de admissão da proposta da S…… para a fase de negociações proferida no âmbito do Ajuste Directo designado por 2013_UMC_VS_LOTE2_INEM e que tem por objecto a aquisição, ao abrigo do Lote 2 – Prestação de serviços de vigilância e segurança humana na Região Centro -, do Acordo Quadro n.º 13, da ESPAP” (cfr. fls. 4, dos autos), ou seja, como preliminar de acção de contencioso pré-contratual em que será impugnado o despacho proferido, em 2.5.2014, pela Secretária-Geral do Ministério da Saúde, descrito em 11), dos factos provados, no segmento em que admitiu a proposta da concorrente S…….

Do exposto decorre que nessa acção de contencioso pré-contratual estará em apreciação o acto que admitiu a proposta da concorrente S……., por se considerar que tal proposta deveria ter sido excluída pelas razões enunciados nos artigos 26º a 224º, do requerimento inicial.

Ora, a requerente, ora recorrente, não têm legitimidade – concretamente interesse em agir - para impugnar tal acto administrativo (de admissão da proposta da S…….), pelas razões que se passam a enunciar.

Segundo Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 1985, pág. 179, o interesse em agir “(…) consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”.

Na mesma linha, Miguel Teixeira de Sousa, Reflexões sobre a legitimidade das partes em processo civil, in Cadernos de Direito Privado n.º 1, Janeiro/Março de 2003, pág. 6, escreveu que “(…) o interesse (…) em agir só existe quando a parte puder retirar alguma utilidade da tutela jurisdicional requerida. (…)”, ou seja, o “(…) interesse em agir é um pressuposto processual que se destina a assegurar a utilidade da tutela jurisdicional, isto é, que visa evitar que os tribunais sejam chamados a exercer a sua função em situação nas quais não se justifica a concessão de qualquer tutela ou nas quais a eventual concessão dessa tutela não representa qualquer benefício para o seu requerente” (sombreado nosso).

O enquadramento relevante para a decisão da questão resulta, essencialmente, do art. 55º n.º 1, al. a), ex vi art. 100º n.º 1, parte final, ambos do CPTA.

Cumpre, desde logo, esclarecer que este pressuposto processual – legitimidade (interesse em agir) – é uma questão distinta da prevista no art. 51º n.º 1, do CPTA, o qual regula a questão da impugnabilidade do acto, que é um pressuposto processual relativo ao objecto do processo e não aos sujeitos.

Como explica Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2010, págs. 278 e 279:

(…) não são apenas impugnáveis os actos finais, que põem termo a procedimentos administrativos, mas também podem ser impugnados actos que não sejam o acto final do procedimento. (….)

Questão distinta, a colocar num plano de análise diverso, é naturalmente, a de saber se, em concreto, determinado acto administrativo pode ser objecto de impugnação por um determinado interessado. Tal questão encontra resposta nas regras processuais que já não dizem respeito ao acto a impugnar, em si mesmo, mas à legitimidade e ao interesse processual, de quem pretende impugnar. (…)” (sublinhados nossos).

No CPTA, com excepção do que se estabelece no art. 39º, para as acções de simples apreciação e para as acções inibitórias, o interesse em agir não logrou consagração autónoma, encontrando-se integrado na legitimidade.

Com efeito, do art. 55º n.º 1, al. a), do CPTA, resulta que têm legitimidade activa, nas acções que envolvam a apreciação da legalidade de actos administrativos, quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal lesado pelo acto impugnado.

Ora, a alegação de um interesse pessoal releva para aferir da legitimidade, enquanto que a alegação de um interesse directo releva para aferir do interesse em agir.

Com efeito, e como ensina Mário Aroso de Almeida, cit., págs. 235 a 237:

(…) A nosso ver, deve ser estabelecida uma clara distinção entre os requisitos do carácter “directo” e “pessoal”. Na verdade, só o carácter “pessoal” do interesse diz verdadeiramente respeito ao pressuposto processual da legitimidade (…)

Já o carácter directo do interesse tem que ver com a questão de saber se existe um interesse processual actual e efectivo em pedir a anulação ou a declaração de nulidade do acto que é impugnado. Admitindo que o impugnante é efectivamente o titular do interesse, trata-se de saber se o impugnante se encontra numa situação efectiva de lesão que justifique a utilização do meio impugnatório. (….) Tem, assim, legitimidade para impugnar quem «espera obter da anulação do acto impugnado um certo benefício e se encontra em condições de o poder receber», sendo o interesse directo desde que «de repercussão imediata na esfera do interessado». O interesse directo contrapõe-se, assim, a um interesse meramente longínquo, eventual ou hipotético, que não se dirija a uma utilidade que possa advir directamente da anulação do acto impugnado. O requisito do carácter “directo” do interesse (…) tem (…) que ver (…) com a questão de saber se o alegado titular do interesse (…) tem efectiva necessidade de tutela judiciária: ou seja, tem que ver com o seu interesse processual ou interesse em agir.

Tome-se, assim, o exemplo, tradicionalmente controvertido, do acto de admissão de um concorrente num concurso: é indiscutível a legitimidade dos demais concorrentes para impugnar este acto, uma vez que a utilidade que eles pretendem obter com a sua anulação ou declaração de nulidade é uma utilidade pessoal, que eles reivindicam para si próprios, uma vez que eles se apresentam como os titulares do interesse em nome do qual actuam processualmente; mas a jurisprudência maioritária entende que eles não são titulares de um interesse directo em impugnar, porque não se encontram, perante esse acto, numa situação efectiva de lesão que fundamente uma necessidade efectiva de recorrer à tutela judiciária através da utilização do meio impugnatório. Com efeito, entende-se que a mera admissão de um concorrente, que não lhe assegura qualquer posição na graduação final do concurso, não é directamente ou imediatamente lesiva dos outros concorrentes, que podem não vir a ser por ela prejudicados: por conseguinte (…) não se lhes reconhece um interesse directo, ou seja, o interesse processual ou interesse em agir.” (sublinhados e sombreados nossos).


No sentido de que, no caso do acto que admite a proposta de um concorrente, ainda que dotado de eficácia externa, falta aos demais concorrentes legitimidade para impugnar contenciosamente esse acto por não terem o interesse directo e actual na procedência da acção que é requerido pela al. a) do n.º 1 do art. 55º, do CPTA, pronunciou-se o Ac. do TCA Sul, de 5.7.2007, proc. n.º 02740/07, onde se escreveu o seguinte:

Para que alguém possa impugnar um acto, não basta que o mesmo seja impugnável, isto é, que, nos termos do nº 1 do art. 51º do CPTA, tenha eficácia externa (especialmente por o seu conteúdo ser susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos), sendo necessário que, simultaneamente, o impugnante tenha legitimidade activa, nos termos do art. 55º do mesmo diploma.

Ora, para o que, no caso “sub judice”, interessa, a Recorrente só poderia impugnar a deliberação do júri do concurso que admitiu a proposta do B…., se, em conformidade com a al. a) do nº 1 do citado art. 55º, fosse “titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesada pelo acto nos seus direitos e interesses legalmente protegidos”.

Portanto, ainda que entendêssemos aquela deliberação como um acto com eficácia externa (já que esta característica não se confunde com a característica da lesividade, apesar de, em regra, o acto com eficácia externa coincidir com um acto lesivo), o certo é que a Recorrente não tem legitimidade para a impugnar, por não ter um qualquer interesse directo na procedência da acção, uma vez que daí não lhe advém nenhum benefício imediato e actual.

Neste sentido, escrevem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, art. 51º, nota 2, a final 2ª edição revista – 2007, pág. 311., que “A nosso ver, o art. 55º, nº 1, alínea a), também afasta, entretanto, por inexistência de interesse directo, a possibilidade da impugnação dos actos de admissão de candidatos em concurso por parte dos demais candidatos admitidos”.

Na verdade, como é dito na contestação da RAM, «...na situação em apreço (...),o interesse da A. seria meramente eventual ou hipotético, na medida em que a admissão da proposta do contra-interessado não confere qualquer grau de definitividade ou vinculação na escolha do adjudicatário, sendo certo até que tudo continuou em aberto, nada impedindo que a A. possa mesmo vir a ganhar o concurso”.

Aliás, sobre a questão em análise (e sem preocupação de tomarmos posição sobre se respeita ao interesse em agir ou à legitimidade activa), mantém actualidade a jurisprudência anterior à entrada em vigor do novo contencioso administrativo, conforme se pode constatar nos arrestos do STA identificados na contestação da RAM: de 8-05-1990, proc. nº 16830, de 27-11-1996, de 30-04-1997, proc. nº 30263 e de 13-01-2004, proc. nº 1761/02.

Portanto, aqui chegados, é tempo de concluir que, mesmo a aceitar que a deliberação do júri que admitiu a proposta do “B…..” constitui um acto com eficácia externa, a Autora, ora Recorrente, não dispunha de legitimidade para a respectiva acção impugnatória.” – também neste sentido, Ac. do TCA Sul de 8.11.2007, proc. n.º 03087/07 (“IV- O interessado num concurso público não detém legitimidade activa para impugnar a deliberação do Júri que admitiu propostas de outros concorrentes, podendo, tão somente, recorrer da sua exclusão, por motivos de ordem formal.”).

Aplicando o entendimento exposto ao caso dos presentes autos, conclui-se que o acto de admissão da proposta da S…. não se projecta directa e imediatamente na esfera jurídica da requerente, ora recorrente, já que tal admissão não assegura à S….. qualquer posição na graduação final do concurso, ou seja, de que a prestação de serviços será adjudicada à mesma, pelo que a requerente pode não vir a ser prejudicada por tal acto de admissão.

Efectivamente, tendo a ora recorrente passado à fase de negociação, a sua esfera jurídica só será directamente lesada com o acto de adjudicação e na hipótese deste não ser praticado a favor da mesma, sendo certo que só com este acto, e para a hipótese de o mesmo ser praticado a favor da S……, é que a admissão da proposta da S….. terá efeitos directa e imediatamente lesivos na respectiva esfera jurídica.

Antes desse momento a pronúncia judicial sobre a admissão da proposta da S…… não representa um benefício que se repercuta de modo directo e imediato na esfera jurídica da ora recorrente, tendo esta apenas um interesse meramente eventual ou hipotético - ou seja, para a hipótese de não lhe ser adjudicada a prestação de serviços, mas antes à S…… – nessa pronúncia.

Conclui-se, assim, que a ora requerente não têm legitimidade (interesse em agir) para impugnar o acto de admissão da proposta da S……., já que a declaração de nulidade/anulação do mesmo não se traduz num benefício que se repercute de imediato na respectiva esfera jurídica, isto é, a ora recorrente não é titular de um interesse directo na declaração de nulidade/anulação desse acto (art. 55º n.º 1, al. a), do CPTA), só tendo legitimidade (interesse em agir) para impugnar o acto de adjudicação, ou seja, não tem necessidade, neste momento, de tutela judiciária [razão pela qual a decisão recorrida, apesar de não ter conhecido desta excepção, considerou, a propósito do requisito previsto na 2ª parte do n.º 6 do art. 132º, do CPTA, que “Nada garante que tendo lugar a negociação a adjudicatária não venha a ser a própria requerente, mesmo tendo a proposta da S…… admitida./Pelo que não se vê qual o interesse atendível a considerar que justifique a paralisação do procedimento concursal”].

Não tendo a ora recorrente legitimidade (interesse em agir) para intentar a acção de contencioso pré-contratual de que o presente processo cautelar constitui mero preliminar (na qual pretende impugnar o acto de admissão da proposta da S…..), não tem legitimidade para intentar este processo cautelar – cfr. art. 112º n.º 1, do CPTA.

Acresce que improcede a alegação da recorrente no sentido de que este entendimento é inconstitucional por violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, pelas razões a seguir indicadas.

O art. 268º n.º 4, da CRP, dispõe que “É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, (...) a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem (...)” e, como concretização dessa exigência, o art. 7º, do CPTA, consagra o princípio do favor do processo ou pro actione (impondo ao juiz que na interpretação das normas processuais adopte aquela que dê prevalência ao conhecimento do mérito).

O princípio da tutela jurisdicional efectiva impõe, assim, que, para cada pretensão digna de tutela – sendo certo que, in casu, se verifica que a recorrente não é titular de qualquer interesse digno de tutela -, exista um meio processual adequado a protegê-la em juízo, mas não impõe que todas as pretensões (independentemente da sua utilidade) sejam objecto de tutela judicial.

Cabe à lei processual definir os meios processuais adequados e os pressupostos que devem estar reunidos para o interessado aceder a juízo.

Entre estes pressupostos conta-se o interesse em agir que, como supra demonstrado, a recorrente não logra preencher.

Acresce que a norma do art. 7º, do CPTA, não pode ser lida como impondo ao juiz o dever de decidir de mérito quando não estão reunidos os pressupostos processuais legalmente consagrados.

Assim sendo, e nos termos dos arts. 278º n.º 1, al. d), 576º n.ºs 1 e 2 e 577º, al. e), todos do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA, cumpre julgar verificada ex officio a excepção de ilegitimidade activa e, em consequência, revogar a decisão recorrida, absolvendo a entidade recorrida (Ministério da Saúde) da instância cautelar, assim ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões que foram suscitadas.


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Uma vez que a recorrente ficou vencida em ambas as instâncias, deverá suportar as custas (arts. 527º n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA).

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, as Juízas Desembargadoras da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:

I – Julgar verificada ex officio a excepção de ilegitimidade activa e, em consequência, revogar a decisão recorrida, absolvendo a entidade recorrida – Ministério da Saúde - da instância cautelar.

II – Condenar a recorrente nas custas em ambas as instâncias.

III – Registe e notifique.

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Lisboa, 4 de Dezembro de 2014


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(Catarina Jarmela)

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(Conceição Silvestre)

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(Cristina dos Santos)