Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12995/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:03/10/2016
Relator:CRISTINA DOS SANTOS
Descritores:POOC DE VILAMOURA/VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO – ÚNICA RESIDÊNCIA - ÓNUS DE PROVA - FUMUS NON MALUS IURIS EM MATÉRIA ADMINISTRATIVA
Sumário:1. Mostra-se totalmente impossibilitado o pedido de legalização do edificado a demolir que o interessado venha a requerer junto do Município competente, porque a tal obsta o zonamento funcional definido em termos de “espaços edificados a renaturalizar” assinalado na planta de síntese do Regulamento do POOC de Vilamoura/Vila Real de Santo António para a parcela de terreno em que se encontra implantado o edificado em causa, sob cominação de nulidade do acto administrativo de controlo prévio urbanístico que eventualmente fosse emitido – cfr. artºs 103º RJIGT e 68º a) RJUE.

2. Compete ao requerente cautelar o ónus de prova no que respeita à demonstração, em termos de juízo de verosimilhança, do facto alegado que constitui pressuposto legal para assegurar o realojamento, de o edificado a demolir constituir a “sua única residência”, competindo à parte contrária “opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos” como preceituado no artº 346º C. Civil.

3. Na tutela cautelar administrativa a apreciação do fumus boni iuris requer não apenas a emissão de um juízo sobre a aparência da existência de um direito ou interesse do particular a merecer tutela, como também da probabilidade da ilegalidade da actuação administrativa lesiva do mesmo, incluso na formulação dada ao fumus non malus iuris pelo artº 120º nº 1 b) CPTA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Sociedade P............... Ria Formosa – Sociedade para a Requalificação e Valorização da Ria Formosa SA, com os sinais nos autos, inconformada com a sentença cautelar proferida pelo Mm. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé dela vem recorrer, concluindo como segue:


A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de 02/12/2015, a fls ..., que decidiu julgar totalmente procedente o pedido e deferir a presente provi­dência cautelar, com custas a cargo da ora Recorrente.
B. Salvo o devido respeito, a sentença recorrida sofre de erro de julgamento, uma vez que, no processo principal, é evidente a existência de uma cumulação ilegal de pedidos, por violação das regras da competência em razão da matéria, nos ter­mos do artigos 5°, n° 2 e 89°, n° l, al.a g) do CPTA - o que só por si o que obsta ao conhecimento do mérito - art. 120°, n°l, al.a b), parte final, do CPTA.
C. Com efeito, os Requerentes identificaram, inequivocamente e a título princi­pal, o objecto imediato da causa principal, que consiste no "reconhecimento do seu direito de propriedade" (art. 150° do R.I.), como também se pode ver no pedido formulado na acção principal (proc. n° 701/15.9BELLE), e como re­conhece a própria sentença recorrida (al.a J) do probatório); pelo que, sendo in­controversa a natureza civil dessa acção principal, deverá forçosamente ser o tribunal civil o competente para a apreciação do pedido formulado na causa principal, nos termos dos artigos 212°, n.° 3, da Constituição, artigo 1°, n°l, e 4°, n°l, al.a a) do ETAF e o artigo 144° da LOSJ (Lei n° 62/2013, de 26 de agosto), art. 15°, n°l da Lei n° 54/2005, de 15/11 (na redação dada pela Lei n.° 34/2014 de 19/06) e artigo 10°, n°s 3, "a contrario ", do DL n°353/2007.
D. Ao contrário da sentença recorrida, não é verdade que a questão da aquisição do direito de propriedade, por usucapião, surge apenas de forma indirecta, co-mo mera "questão prejudicial", no contexto da análise da validade dos actos.
E. Tendo sido peticionada a título principal, e objecto imediato da causa princi­pal, a questão da propriedade não pode ser considerada como um incidente desta acção, nem tão pouco existe uma relação de prejudicialidade, antes exis­tindo uma cumulação ilegal de pedidos, nos termos supra referidos, o que de­termina pura e simplesmente a absolvição da instância - art. 5°, n°2 do CPTA.
F. A formulação de um pedido principal, aspirando à condenação de alguém (neste caso à condenação da R) e, por isso mesmo, à obtenção de um caso jul­gado material, exclui a recondução à facti species do artigo 15°, n°l do CPTA
G. A cumulação ilegal de pedidos, por ofensa às regras da competência em razão da matéria, é uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito, de ordem pública e que precede todas as outras, determinante da absolvição da instância, nos termos do artigos 5°, n°2 e 89°, n° l, al.a g) do CPTA - sem a possibilidade de sanação ou de extensão da competência nos termos do artigo 15°, n° l do CPTA, pelo que a sentença recorrida opera uma errada aplicação da lei.
H. Por outro lado, nos arts. 31° a 43° da Oposição a Recorrente invocou expressa­mente a questão prévia da ilegitimidade passiva ou preterição de litisconsórcio necessário passivo, porque tal como foi configurada a lide, a presente providên­cia teria de ser proposta contra o Estado, e não (só) contra a Requerida.
I. Com efeito, a acção judicial para dirimir a alegada questão da propriedade ou posse teria de ser proposta contra o Estado, e não (só) contra a Requerida, na medida em que a questão central em causa é a discussão acerca do peticionado "reconhecimento do direito de propriedade", por via da usucapião, sobre aque­las construções e parcelas de terreno pertencentes ao domínio público, nos termos dos artigos 12°, n°l, al.a a), parte final e 15° da Lei n° 54/2005, de 15/11, a única entidade com legitimidade passiva nessa acção será a pessoa co­lectiva pública de base territorial a quem pertencer a respectiva titularidade controvertida, ou seja, o Estado Português, nos termos dos artigos 3° e 4° da mesma Lei, alterada pela Lei n°34/2014, de 19/06.
J. Verifíca-se, pois, a preterição de litisconsórcio necessário passivo com o Estado, que possui um legítimo e directo interesse na demanda, nos termos previstos no artigo 10°, n° l e 57° do CPTA, conjugados com o artigo 33°, n°l do C.P.C.
K. In casu, a preterição de litisconsórcio necessário é uma excepção insanável, dada a necessidade de assegurar a identidade subjectiva das partes titulares da relação material controvertida, no procedimento cautelar e na acção principal, sendo inconcebível o decretamento de uma providência cautelar, sem ter sido chamada a defender-se a verdadeira parte titular daquela relação - o Estado.
L. É pacífico na jurisprudência que deve verificar-se uma identidade subjectiva entre as partes do procedimento cautelar e as da acção principal, sendo que o Estado Português também não é Réu na acção principal (n° 701/15.9BELLE), onde igualmente deverá proceder a mesma excepção dilatória, como diz a sentença.
M. A preterição de litisconsórcio necessário passivo do Estado é uma excepção di­latória que obsta ao conhecimento do mérito, determinante da absolvição do pedido, pelo que a sentença violou o art. 120°, n°l, al.a b), parte final do CPTA.
N. Salvo o devido respeito, a Recorrente considera incorrectamente seleccionada e julgada a matéria de facto, por omissão de selecção e decisão sobre os factos ale­gados nos artigos 101° a 105°, 111° a 124°, 151°, 154°, 157° a 159°, 298°, 299°, 305° a 309°, 312° a 329° da Oposição, completados com os factos instrumentais resultantes da instrução, manifestamente relevantes para a boa decisão da causa, que devem ser dados como (indiciariamente) provados.
O. Do mesmo modo, a Recorrente considera incorrectamente julgada a resposta "não provado" (a p. 6 da sentença) dada ao facto «b) Os solos de tais terrenos são are­ais formados no leito por deposição aluvial» (arts. 119° e 120° da Oposição), o que está em manifesta contradição com o facto notório declarado pela sentença (a p. 23, último parágrafo) «sabe-se, por ser do conhecimento geral, sem carecer de alegação ou prova, que a Ilha da Culatra é uma ilha-barreira arenosa, integrada no sistema lagunar da Ria Formosa, em zona sujeita às marés, que se modifica constantemeníe nos seus extremos em virtude da dinâmica dos areais, por acçãodas águas (ondas e correntes de maré)» (i.e., por efeito da deriva litoral - deposi­ção aluvial) - cuja resposta deverá ser alterada para "provado".
P. Além disso, deve ser dada resposta "não provado" aos arts 11°, 12° e 32° do RI.
Q. Os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida são:
a. Quanto aos arts. 101° a 105° - por acordo, uma vez que estes factos, que interes­sam à decisão da causa, constam da fundamentação dos actos suspendendos noti­ficados aos Requerentes, sem que estes os tenham posto em causa nestes autos, cf. does. n°sl a 5 do RJ. e no processo instrutor a fls. 581-902 do Sitaf.
b. Quanto aos arts. 111° a 124°-cf. fls. 214 a 283 e 284 esse 926-987 do Sitaf.
c. Quanto aos arts. 151° e 154° (contraprova dos arts. 11°, 12° e 32° do R.I) - cf. fls. ali concretamente identificadas do processo instrutor a fls. 581-902 do Sitaf.
d. Quanto aos arts. 157° a 159°-cf. requerimento inicial e fls. 581-902 do Sitaf.
e. Quanto aos arts. 298° e 299°, 317° e 319° - cf. DL 92/2008, fls. 320-458 e fls. 576 e ss do Sitaf.
f. Quanto aos arts. 305° a 309°, 312° a 316° - fls. 460-483, e 567 e ss. do Sitaf.
g. Quanto aos arts. 318° a 323° - cf. fls. 320-459, 484-526, 567 ss. e 988 do Sitaf.
h. Quanto aos arts. 324° a 329° - cf. fls. 214-283, 284 e ss., 298 e ss, 320-459, 527, 567 e ss. do Sitaf.
R. A Agência Portuguesa do Ambiente, I.P. é a entidade pública competente para o cadastro e registo dos bens do domínio público hídrico, nos termos dos arts 9°, n°3 e 20° da Lei n° 54/2005, na redacção dada pela Lei n.° 34/2014, de 19 de ju­nho, do artigo 3°, n°3 do DL n.° 56/2012, de 12/03, e do DL n° 130/2012, de 22/06, que alterou os artigos 7°, n°l e 8° da Lei n° 58/2005, de 29 de Dezembro (Lei da Água)-tendo o doe. a fls.214-283 do Sitaf o valor de documento autênti­co, porque exarado pela autoridade pública competente (art. 363°, n°2, C. Civil).
S. Os terrenos da ilha-barreira da denominada ilha da Culatra, aqui em apreço, são efectivamente leitos das águas do mar, na acepção do artigo 10°, n° l, parte final, da Lei n° 54/2005, de 15/11, por as características do solo terem a natureza de are­ais formados por deposição aluvial, pertencendo ao domínio público marítimo do Estado, nos termos dos artigos l °, n° l, 3°, ala c), e 4°, da mesma Lei.
T. Acresce que, especificamente sobre o núcleo da Culatra (sito na parte interior da mesma ilha-barreira, como evidencia a planta de síntese a fls. 295) identificado como UOPG 4, prescreve o art. 84.°, n°2, al.a a) do POOC Vilamoura - Vila Real de Santo António, como objectivo: "Manutenção do carácter de dominialidade do domínio hídrico", pelo que, se dúvidas houvesse, o próprio POOC também atesta, como força legal, a dominialidade desta ilha-barreira com o mesmo nome.
U. Com a devida vénia, o princípio da liberdade de julgamento não significa que o juiz é livre para escolher os factos e valorar a prova de forma subjectiva ou arbi-traria, pois que o mesmo está vinculado ao indicado critério de selecção dos fac­tos, bem como à força probatória fixada na lei, designadamente nos artigos 376°, n°l e 358°, n°s l e 2 do C.C., sendo que a livre apreciação das provas não abrange os factos que estejam plenamente provados por documentos ou acordo - artigo 607°, n°5, parte final do CPC.
V. No caso vertente, todos os factos acima indicados estão plenamente provados, por documentos ou acordo - artigo 376°, n°l e 358°, n°s l e 2 do Código Civil.
W. Do processo constam todos os meios de prova, pelo que o Tribunal "ad quem" poderá ampliar e alterar a decisão da matéria de facto - art. 662°, n°s l e 2, al.a c) do C.P.C.
X. Sem prescindir, a sentença recorrida violou o ónus de alegação e prova da matéria de facto integradora dos requisitos legais de que depende a concessão da provi­dência requerida, que recai sobre o requerente da suspensão de eficácia, nos ter­mos dos artigos 8°, n° l e 342.° do Código Civil, 114.°, n.° 3, ai. g), 1 1 8.° e 120.° do CPTA, 5°, n°l e 365.°, n.° l do CPC, ónus este que os Requerentes não lograram minimamente cumprir.
Y. Desde logo, o grave erro de julgamento da sentença recorrida resulta da matéria de facto dada por indiciariamente provada (factos A) a J) do probatório), manifestamente insuficiente para sustentar as suas conclusões, e dar como preenchidos os requisitos normativos do "fiimus boni iuris" e do "periculum in mora".
Z. Da simples leitura do RJ. e patente que toda a factualidade alegada, é manifesta­mente genérica, vaga, e insuficiente para demonstração dos factos integradores dos pressupostos da providência requerida (cf. Ac. do TCA Norte de 8.2.2013, proc. n.° 2104/11.5 BEBRG), de acordo com os princípios do dispositivo e da substanciação, frontalmente violados pela sentença recorrida.
AA. O evidente défice de alegação determina a manifesta falta de condição de proce­dência da pretensão deduzida em juízo (art. 120°, n°l, al.a a) a contrario, CPTA).
BB. Sofre de grave erro de julgamento a sentença recorrida, por julgar preenchido o requisito do "fumus boni iuris", a que se refere a al.a b), do n°l, do artigo 120° do CPTA, apenas com fundamento em carecer de mais "cuidada indagação e análise" no processo principal, acerca do invocado direito de propriedade.
CC. Tendo sido julgado ''não provado" o facto essencial de que depende a alegação e pretensão dos Requerentes, isto é, não se provou que «a) Os terrenos nos quais es­tão implantadas as edificações em causa situam-se fora da faixa de terreno de 50 metros contígua ou sobranceira à linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais», pelo que, nenhuma dificuldade se coloca, por simples aplicação das regras do ónus da prova, em consubstanciar directamente a existência de um ma­nifesto "fumus malus iuris" - art. 120°, n°l, al.a a) a contrario, CPTA.
DD. A sentença recorrida incorreu em manifesta violação das regras sobre a repartição do ónus da prova, em violação dos artigos 8°, n°l e 342° do Cód. Civil - cf. citado acórdão da Relação de Lisboa, de 05/12/2011, proc. n° 184/08.0TCLRS.Ll-2
EE. É sobre o requerente da suspensão da eficácia que recais o ónus de alegação e prova, por isso, tendo sido "não provado" o domínio privado, como julgou a sen­tença, a providência requerida teria de ser julgada improcedente, e não o contrário.
FF. A sentença recorrida sofre de erro de julgamento, por violação da presunção legal de dominialidade estabelecida nos artigos 12°, n°l, alínea a), parte final, e 15° da Lei n°54/2005, de 15/11, alterada pela Lei n°34/2014, de 19/06, e por violação do do artigo 350°, n°l do Código Civil.
GG. Estando em causa uma presunção legal, o facto presumido tem-se como verifi­cado porque a lei o determina, e não porque o julgador assim o considerou.
HH. Se quisessem alegar direitos de propriedade privada, impunha-se aos Requerentes, em face do regime prescrito no art. 12°, n°l, al.a a), parte final e do art. 15.° da Lei n° 54/2005, de 15/11 (alterada pela Lei n.° 34/2014) e caso pretendessem que lhes fosse reconhecido o direito de propriedade sobre a parcela do leito em causa, que, através da competente acção cível e dos específicos meios de prova, elidisse a pre­sunção de dominialidade que sobre ela incide, o que todavia não fizeram.
II. Andou mal, pois, a sentença recorrida, porque os Requerentes bem sabem, ou pelo menos não podiam ignorar, a manifesta falta de fundamento da sua pretensão, pos­to que o domínio público não é susceptível de aquisição por usucapião (art. 202°, n° 2 do Código Civil e arts. 18°, 19° e 20° do DL n° 280/2007).
JJ. Salvo o devido respeito sofre de erro de julgamento a decisão da sentença re-corrida, que julgou verificado o requisito do fumus boni iuris nos termos da alínea b), do n°l, do art° 120° do CPTA.
KK. Como referido no douto acórdão do TCAS de 01/10/2015, proc. n°12373/15, em caso idêntico envolvendo a ora Recorrente, basta a circunstância de se tratar de terrenos pertencentes ao DPM, ou de "espaço edificado a renaturalizar" nos ter­mos no artigo 37° do POOC «(...) - sendo que uma soja era bastante - de locali­zação territorial do edificado da ora Recorrida para se concluir em desfavor da decretada providência, precisamente pela ausência de fundamento jurídico no to­cante ao pressuposto cautelar da probabilidade do bom direito que a ora Recorrida se arroga, ou, utilizando a expressão latina em uso, do fumus boni iuris ain­da que na dimensão do art° 120° n° l b) CPTA do fumus non malus iuris.».
LL. A sentença recorrida sofre de erro de julgamento, sob todos os pontos de vista, porque a nossa legislação proíbe absolutamente a manutenção de construções ilegais, neste espaço classificado (al.a B) do probatório), insusceptíveis de re­gularização, quando é certo que o artigo 37° do POOC, a Lei da Água e o DL n°226-A/2007 não prevêem, nem permitem, qualquer ocupação do domínio público hídrico afecto a fins habitacionais, nem mesmo a título precário.
MM. Basta atentar no crime de Violação de regras urbanísticas, previsto no artigo 278°-A, n°l do Código Penal, aditado pela Lei n° 32/2010, de 02/09, para imedia­tamente e sem mais indagações ressaltar o fumus malus iuris, porque a pretensão dos Requerentes ofende o próprio bem jurídico objecto da tutela penal.
NN. Os POOC's (planos de ordenamento da orla costeira), são planos especiais de or­denamento do território, como tal, dotados de eficácia pluri-subjectiva o que signi­fica que produzem efeitos jurídicos directos e imediatos e vinculam directa e ime­diatamente os particulares, cfr. art°s. l n° 2 e 8° d) Lei 49/98, 11.08 (LBPOTU) e 3° n° 2, 42° n°s. l e 2 e 44° DL 380/99, 22.0 (RJ1GT).
OO. Nos termos do disposto no art.° 37° do POOC Vilamoura - VRSA, as construções terão que ser demolidas, e ao contrário do invocado, o critério da primeira ou se­gunda habitação é apenas relevante em matéria de calendarização da demolição e de necessidade de indicação ou não de alternativa de edificação, bem como de cri­ação de incentivos ao realojamento nos núcleos a reestruturar na mesma ilha.
PP. A própria sentença reconhece (a p. 25) que os Requerentes não pretendem, ou pe­lo menos não alegam pretender, o direito ao realojamento, tendo ela própria con­cluído que a invocada residência não é motivo de anulação dos actos em causa.
QQ. Avulta, neste caso, o facto de que os Requerentes não invocaram insuficiência económica, nem sequer requereram ou peticionaram o realojamento, pelo que não é constitucionalmente exigível - nas circunstâncias dos autos -, que a realização do direito à habitação esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcio­nadas de outros direitos constitucionalmente consagrados, como o ambiente, o or­denamento do território e o urbanismo.
RR. Como é evidente, as Câmaras Municipais não são competentes para licenciar obras na área do domínio público marítimo, mas somente as entidades públicas, marítimas ou portuárias com jurisdição na área.
SS. Não sendo os Requerentes proprietários das construções em apreço, e não sendo titulares de qualquer licença, não há que proceder a qualquer expropriação: este instituto só é aplicado quando é necessário que um determinado bem privado pas­se para a esfera pública, o que manifestamente não sucede nos autos.
TT. Também não se vislumbra qualquer violação do princípio da igualdade, sendo que as medidas de planeamento foram fixadas e decididas pelo legislador do POOC, que não cabe nesta sede sindicar, e as quais à Recorrente cabe apenas executar.
UU. O direito de decidir e administrar o território é uma prerrogativa do Estado, o qual, na busca da solução a dar a cada caso, cumpriu as regras que presidem à elabora­ção do POOC Vilamoura - Vila Real de Santo António, sem que lhe possa ser im­posta uma determinada solução (discricionariedade de planeamento).
VV. Tal como alegado nos arts. 70° a 82° da Oposição, não tendo os Requerentes apre­sentado qualquer requerimento de licenciamento de operações urbanísticas, e/ou de delimitação, perante as entidade competentes, é flagrante que não se verifica o preenchimento do pressuposto processual do interesse em agir, quanto a estes pe­didos formulados na acção principal, mais uma evidência dofumus malus iuris.
WW. A sentença recorrida também sofre de erro de julgamento por ter julgado veri­ficado o requisito do periculum in mora, previsto na alínea b), do n° l, do artigo 120°, do CPTA, desde logo porque não se confirmou que as construções na ilha barreira são a primeira e única habitação dos Requerentes, antes pelo contrário.
XX. Nos processos administrativos (fls. 581-902 do Sitaf) consta a referência, relati­vamente a cada um dos recorridos, a uma morada distinta da morada relativa às construções ora em causa, a qual resulta nomeadamente de prova documental.
YY. Não foi seleccionado, nem julgado, qualquer facto constitutivo do requisito ati­nente ao periculum in mora, como seria mister, em face do ónus geral de alegação e prova, em clara violação dos artigos 342.° do Código Civil, 114.°, n.° 3, ai. g), 118.° e 120.° do CPTA, 5°, n°l e 365.°, n.° l do C.P.C.
ZZ. Em particular, nada se provou acerca do (eventual) prejuízo qualificado derivado da execução do acto suspendendo, que não é automático como decorrência imedi­ata da demolição, ao contrário do que sugere a sentença recorrida, mas carece de alegação e prova, ainda que indiciaria, como requisito da providência cautelar.
AAA. É ao Requerente da providência que compete demonstrar - ónus de alegação e de prova que lhe está cometido de acordo com as regras gerais do ónus da prova -, o (eventual) prejuízo qualificado derivado da execução do acto suspendendo - acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 28/04/2015, proc. n° 12110/15.
BBB. O que ficou provado, isto sim, é que as construções foram edificadas, sem qual­quer licença, em local classificado pelo artigo 37° do POOC como "espaços edifi­cados a renaturalizar", sendo que as construções ilegalmente edificadas, a desco­berto de uso privativo, não têm qualquer valor comercial (art. 202°, n°2, C.C).
CCC. Tão-pouco se pode considerar atendível um fundado receio nestas circunstâncias, onde o prejuízo invocado é apenas indemnizatório; e não existe qualquer legítimo direito privado a tutelar, mas antes o bem público protegido e até mesmo criminalmente relevante, nos termos da Lei n° 32/2010, de 02/09, que aditou o crime de Violação de regras urbanísticas, no artigo 278°-A, n°l do Código Penal.
DDD. Sem conceder, a douta sentença recorrida também operou uma errada ponderação dos interesses em presença, tendo violado o requisito previsto no artigo 120°, n°2 do CPTA, já que os danos que resultam para o interesse público da concessão se mostram desproporcionais e muito superiores àqueles que poderiam resultar para os Requerentes da sua recusa (conforme pareceres do M.P. juntos aos autos a fls. 528-566 e, em caso idêntico, os doutos acórdãos do TCAS, de 17/09/2015, proc. n°12386/15; de 29/10/2015, proc. 12392/15; de 29/10/2015, proc. 12515/15; de 29/10/2015, proc. 12566/15, e de 16/12/2015, proc. n°12660/15).
EEE. Sendo ilegítimas quaisquer expectativas que os Requerentes tivessem face às construções, bem sabendo que não tinham qualquer autorização ou título para tal.
FFF. Deve ser revogada a decisão quanto a custas, e as mesmas ficarem a cargo dos re­corridos, por se considerar que às mesmas deram causa, nos termos e para os efei­tos do disposto nos artigos 527.° e 539.° do Código de Processo Civil.
GGG. Ao não ter julgado de acordo com as antecedentes conclusões, a douta sentença recorrida violou as sobrecitadas disposições legais.
NESTES TERMOS, e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser con­cedido provimento a esta apelação e, consequentemente, revogada a douta deci­são recorrida e substituída por outra decisão que indefira a providência cautelar, por não provada, absolvendo-se a Recorrente do pedido, como é de JUSTIÇA.

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Os Recorridos contra-alegaram, concluindo como segue:

1. A douta sentença recorrida não enferma dos erros de julgamento que lhe são imputados pela Recorrente;
2. Todas as conclusões da Recorrente em matéria de erro de julgamento assentam no pressuposto de que a qualificação que ela própria recorrente atribui à ilha da Culatra como leito do mar, não pode ser sindicada judicialmente por tal ter sido "certificado" pela Agência Portuguesa do Ambiente, IP.
3. A dita "certidão" da Agência Portuguesa do Ambiente constitui porém .mero artifício processual uma vez que a mesma não é subsumível à previsão do n,° 3 art.° 9.° da Lei n.° 54/2005, de 15 de Novembro, na sua actual redacção, nem podia sê-lo, porque ainda não foi publicada a Portaria que irá definir a forma e os critérios técnicos a observar na identificação das faixas de território que correspondem aos leitos ou margens das águas do mar, ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis que integrem a jurisdição da APA,
4. Razão pela qual uma "certidão" com a declaração subscrita por um órgão da APA de que a Ilha da Culatra é considerada leito do mar, não possui a força probatória de um documento autêntico, contrariamente àquilo que a Recorrente sustenta, pois na verdade estamos perante urna questão de interpretação e integração de conceitos legais que incidem sobre matéria controvertida, a qual é indiscutivelmente da esfera de competência judicial, constituindo por isso a posição sustentada pela Recorrente uma flagrante violação do princípio da separação de poderes.
5. Em suma, a douta sentença recorrida faz correcta selecção e apreciação dos factos e igualmente correcta interpretação e aplicação da lei, maxime do art.°120.° do CPTA, não merecendo por isso qualquer reparo.

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Com substituição legal de vistos pela entrega das competentes cópias entregues aos Exmos. Dsembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência.

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Pelo Senhor Juiz foi julgada provada a seguinte factualidade:

A Os requerentes detêm edificações sitas no núcleo dos Hangares, na Ilha da Culatra, identificadas pelos n.°s 88, l, 30, 74 e 78 (if. documentos n.º's 1 a 5 juntos com o requerimento cautelar),
B As referidas edificações estão implantadas em solo classificado pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira Vilamoura - Vila Real de Santo António como «espaços edificados a renaturalizar»;
C No local, não foi requerida, nem efectuada a delimitação administrativa do domínio público hídrico;
D Entre os anos de 2008 e 2009, no âmbito das acções de intervenção e requalificação da Ria Formosa, foi elaborado um levantamento das construções existentes nos «espaços edificados a renaturalizar» assinalados na planta de síntese do Plano de Ordenamento da Orla Costeira Vilamoura — Vila Real de Santo António;
E Em 31 de Dezembro de 2014, o Conselho de Administração da entidade requerida deliberou, em relação a cada uma das referidas edificações, que, “(..) para efeitos do disposto no artigo 37° do Regulamento do POOC Vilamoura - Vila Real de Santo António, aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros n.° 103/2005, de 5 de Junho de 2005, a edificação não é de considerar primeira habitação (..)” - (cf. f/s. 34 a 37, 17 a 20, 20 a 23, 1) a 16 e 41 a 45 dos respectivos processos administrativos),
F Nos dias 8 e 19 de Maio de 2015, o Conselho de Administração da entidade requerida deliberou, em relação a cada uma das edificações:
i. Determinar a demolição da construção e a intimação dos interessados para procederem à sua desocupação;
ii. Determinar que, atendendo à «sensibilidade ambiental do local», a demolição fosse executada pela própria P............... Ria Formosa, S.A., sem quaisquer encargos para o interessado, «a menos que, uma vez decorrido o prazo fixado, não seja voluntariamente acatada a decisão, caso em que os custos correrão por conta do interessado, sem prejuízo da aplicação das penas que no caso couberem e da responsabilidade civil pelos danos causados, nos Lermos do artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 226-A-/2007, de 31 de Maio»;
iii. Determinar, para efeitos da dita demolição, a tomada de posse administrativa de cada uma das edificações em apreço, designando data para o efeito e indicando que a «posse se manterá pelo período necessário à execução da demolição, a concluir até ao final do mês de Dezembro de 2015» (cf. documentos nºs.1 a 5 do requerimento inicial e respectivos processos administrativos);
G O «Plano Estratégico de Intervenção de Requalificação e Valorização da Ria Formosa», no qual estão definidos os principais projectos a desenvolver no âmbito do «P............... Ria Formosa — Operação Integrada de Requalificação e Valorização da Ria Formosa», prevê, para a intervenção (projecto/acção) designada «Medidas correctivas de erosão e defesa costeira — renaturalizaçào, alimentação artificial de praias, transposição de barras, recuperação dunar e lagunar», no vector 2.1, tendo por objecto a «renaturalização» dos espaços (que inclui a demolição das edificações presentes em domínio público hídrico, realojamento de residentes de primeira habitação em que fique provado que é a única residência e a recuperação e renaturalização de áreas degradadas e/ou desocupadas), um investimento previsional de € 23 781 824 (cf. documento nº '9 junto com a oposição, concretamente Tabela 10)',
H Em 11 de Março de 2013, foi celebrado entre o Programa Operacional Temático Valorização do Território e a P............... — Ria Formosa, S. A. um contrato de comparticipação financeira do Fundo de Coesão destinada a financiar a intervenção designada «Medidas Correctivas de Erosão e Defesa Costeira na Ria Formosa», prevista no Plano Estratégico de Intervenção de Requalificação e Valorização da Ria Formosa, que prevê, depois da alteração introduzida em 12 de Fevereiro de 2015, uma comparticipação das despesas elegíveis à taxa de 76% (cf. documentos nºs.11, 12 e 13 juntos com a oposição);
I Em 13 de Março de 2015, foi celebrado entre a P............... - Ria Formosa, S.A., como dona da obra, e a SOFAREIA - Sociedade Farense de Areias, S.A., como empreiteira, um contrato de empreitada, tendo por objecto a execução das obras de intervenção de requalificação da Ilha da Culatra - Núcleo dos Hangares, no âmbito da intervenção P............... Ria Formosa, pelo preço de € 734 297,81 e pelo prazo de l 80 dias (cfr. documento nº 10 junto com a oposição)',
J Em 9 de Setembro de 2015, os requerentes apresentaram em juízo a petição da acção principal de que este processo cautelar depende, que corre termos sob o n.° 701/15.9BELLE, formulando nela os seguintes pedidos:
(i) a declaração da nulidade ou a anulação das deliberações que ordenaram a demolição das edificações em causa;
(ii) a condenação da entidade requerida a reconhecer o direito de propriedade de cada um dos autores sobre as suas casas e sobre os terrenos em que estas estão implantadas, incluindo os respectivos logradouros e a «legalidade urbanística» das respectivas construções.

Julgou-se não provada a seguinte factualidade:
A Os terrenos nos quais estão implantadas as edificações em causa situam-se fora da faixa de terreno com a largura de 50 metros contígua ou sobranceira à linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais definida em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar;
B Os solos desses mesmos terrenos são areais formados no leito por deposição aluvial.



DO DIREITO

1. nulidades de sentença; selecção do probatório;

No tocante ao assacado erro de selecção da matéria de facto e consequente insuficiência do probatório levado à sentença, cabe dizer que a necessidade de composição provisória da situação que se pretende acautelar através do decretamento da providência concretamente requerida ou da regulação provisória ou antecipada da tutela pedida segue, por disposição de lei expressa, o regime da summario cognicio, tanto em sede cível como administrativa – cfr. artºs 303º nº 1 g) CPTA e 365º nº 1 CPC (ex 384º nº 1).
Regime que necessáriamente se reflecte no “(..) grau de prova que é suficiente para a demonstração da situação jurídica que se pretende acautelar ou tutelar provisoriamente. Uma prova stricto sensu (ou seja, a convicção do tribunal sobre a realidade dessa situação) não seria compatível com a celeridade própria das providências cautelares e, além disso, repetiria a actividade e a apreciação que, por melhor se coadunarem com a composição definitiva da acção principal, devem ser reservadas para esta última. É por isso que as providências cautelares exigem apenas a prova sumária do direito ameaçado, ou seja, a demonstração da probabilidade séria da existência do direito alegado (..) bem como do receio da lesão (..). As providências só requerem, quanto ao grau de prova, uma mera justificação, embora a repartição do ónus de prova entre o requerido e o requerente observe as regras gerais. (..)” (1)
Exactamente pelas razões de direito referidas supra, a impugnação da matéria de facto levada ao probatório no tocante à pretendida adição e diversa conformação de matéria de facto mencionada nas alíneas N a Q e V a CC das conclusões constitui um mecanismo impugnatório que não tem cabimento em sede cautelar na medida em que a matéria de facto alegada pela Recorrida no domínio do “aprovação do projecto de intervenção e requalificação para as áreas a renaturalizar no âmbito do P............... Ria Formosa” tem a sede própria de conhecimento e decisão na causa principal, de que esta providência é meramente instrumental e acessória, e não, repete-se, no processo cautelar.
Pelo exposto, improcede a questão suscitada de erro de selecção e conformação da matéria de facto, trazida a recurso nas alíneas N a Q e V a CC das conclusões.

2. summario cognicio; fumus boni iuris em matéria administrativa;

Pela circunstância de as providências cautelares se limitarem a fornecer uma composição provisória que se destina a ser substituída por aquela que resultar da acção principal, relativamente à qual são dependentes em termos de acessoriedade visando garantir a sua utilidade prática, tal implica, primeiro, a distinção de objectos entre o meio cautelar e a acção principal que lhe corresponda, posto que não há identidade de pedidos nem de causas de pedir, na medida em que “(..) a dependência das providências cautelares do meio principal, pela própria natureza e relativa autonomia das primeiras, não pode equivaler a uma coincidência do direito que se pretende tutelar nem à alegação do mesmo circunstancialismo fáctico integrador da causa de pedir de ambos os meios. Mas implica, pelo menos, que o facto que serve de fundamento ao requerimento da adopção de uma providência cautelar, integra a causa de pedir da acção principal (..)”.(2)
É em razão da provisoriedade e instrumentalidade da tutela cautelar que no domínio deste meio adjectivo a lei se limita a exigir a prova sumária da situação de facto (summario cognicio) e a suficiência da mera justificação do direito alegado (fumus boni iuris), circunstâncias que têm por consequência a insusceptibilidade de a decisão proferida em processo cautelar produzir qualquer efeito de caso julgado na acção principal, ou seja, não tem efeitos de caso julgado material erga omnes - cfr. artº 364º nº 4 CPC (ex 383º nº 4). (3)
*
A acessoriedade para além da limitação de eficácia temporal da sentença cautelar subordinada à prolação da sentença no processo principal, tem um segundo vector consequencial que é a sumariedade de cognição efectuada em sede de apreciação dos requisitos de concessão da providência.
O tribunal limita-se a exercer o que se designa por summario cognitio, no sentido de que a apreciação da factualidade carreada para os autos e para efeitos decisórios sobre os requisitos da aparência da existência de um direito e provável ilegalidade da actuação administrativa (fumus boni iuris) faz-se por recurso a um juízo de verosimilhança ou mera previsibilidade e razoabilidade dos indícios.
Sendo que a apreciação dos perigos de retardamento ou infrutuosidade (periculum in mora) se faz em moldes mais exigentes de “fundado receio” diz a lei, isto é, de probabilidade mais forte e convincente da gravidade ou difícil reparabilidade dos danos, salvo se já se tiverem verificado na prática e se pretenda sustar a continuidade de superveniência de novos dados, tal como no tocante à ponderação de interesses contrapostos em presença.
Em sede cautelar administrativa “(..) a apreciação do fumus boni iuris requer não apenas a emissão de um juízo sobre a aparência da existência de um direito ou interesse do particular a merecer tutela, como também da probabilidade da ilegalidade da actuação lesiva do mesmo (..)”(4)
O que significa que a apreciação do fumus boni iuris se estende à aparência de ilegalidade da actuação administrativa alegada pela parte interessada no decretamento da providência como lesiva de um direito que lhe assiste.

3. fumus non malus iuris – zonamento funcional – insusceptibilidade de legalização – fumus malus;

A providência requerida tem natureza conservatória o que significa, de acordo com o disposto no artº 120º nº 1 b) CPTA, que o critério de apreciação da necessidade da tutela cautelar há-de assentar num juízo sumário de procedibilidade da pretensão, isto porque “(..) a par da urgência no decretamento da providência, justificada pelo periculum in mora, … há que aferir: - estando em causa a paralisação dos efeitos de uma actuação administrativa, o fumus non malus iuris da pretensão do requerente, ou seja, a não manifesta falta de fundamento desta; (..)” (5)
Como é sabido, nos termos do artº 120º nº 1 b) CPTA para dar como verosímil a formulação negativa da aparência do bom direito, ou fumus non malus iuris, basta que não seja evidente a improcedência da pretensão de fundo formulada no processo principal. (6)

*
No caso trazido a recurso e relativamente à Requerente cautelar ora Recorrida, decorre claramente do probatório a ausência de sustentação jurídica precisamente no tocante ao requisito cautelar do fumus non malus iuris, artº 120º nº 1 b) CPTA, pois que, em vez da falta de fundamento normativo da decisão administrativa configurada pelas deliberações de 8 e 19 de Maio de 2015, do Conselho de Administração da P............... - Ria Formosa, SA, ora Recorrente - vd. alínea F do probatório – do ponto de vista jurídico resulta exactamente o contrário pelo que não se acompanha o entendimento sustentado em sede de sentença e, consequentemente, do sentido jurídico da decisão cautelar.
Dito de outro modo, não se verifica o pressuposto da aparência de ilegalidade da actuação administrativa quanto ao requisito do fumus boni iuris na formulação dada pelo artº 120º nº 1 b) CPTA.
Desde logo, das alíneas A e B do probatório resulta que:
a. as edificações a que se reportam os ora Recorridos, designadas pelos números 88, l, 30, 74 e 78, situam-se na Ilha da Culatra, no núcleo dos Hangares;
b. e em solo classificado pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira Vilamoura - Vila Real de Santo António como “espaços edificados a renaturalizar” assinalado na planta de síntese do Regulamento do citado POOC, artºs. 3º nº 1 e 37º nº l;
c. os ora Recorridos não dispõem de título urbanístico – licenciamento, comunicação prévia ou outro - que permita a utilização do solo na Ilha da Culatra, no núcleo dos Hangares com as referidas edificações nele implantadas;
O que significa que atenta a definição atribuída de “espaços edificados a renaturalizar” em termos de zonamento funcional - núcleo fundamental da decisão discricionária de planeamentopelo plano especial de ordenamento do território que rege na matéria, mostra-se totalmente impossibilitado qualquer pedido de legalização do edificado que os ora Recorridos viessem a requerer junto do Município competente.
Isto porque a tal legalização obsta a eficácia pluri-subjectiva do POOC de Vilamoura/Vila Real de Santo António, sob cominação de nulidade do acto administrativo de controlo prévio urbanístico que eventualmente fosse emitido no sentido da pretensão edificativa, nos termos dos artºs 103º RJIGT e 68º a) RJUE.
A esta situação de insusceptibilidade de legalização à luz do regime do RJUE acrescerá, se for esse o resultado da prova produzida em sede de acção principal no domínio do juízo de certeza e não da summario cognicio cautelar, uso edificatório não licenciado em terreno situado em domínio público hídrico, também este sem a mínima hipótese de outorga de licença, na exacta medida em que os imóveis pertencentes ao domínio público marítimo se incluem na titularidade do Estado e estão fora do comércio jurídico, cfr. artsº. 202º nº 2 C. Civil e artºs. 18º a 20º DL 280/2007, 07.08, sendo que o uso e ocupação não titulados de qualquer parcela do domínio público hídrico implica que “a autoridade competente intimará o infractor a desocupá-la ou a demolir as obras feitas, fixando para o efeito um prazo.” – cfr. artº 2º nº 1 DL226-A/2007, 31.05.
*
Basta esta circunstâncias de localização territorial dos edificados dos ora Recorridos em zonamento funcional atribuído a “espaços edificados a renaturalizar” pelo POOC de Vilamoura/Vila Real de Santo António, para se concluir em desfavor da decretada providência, precisamente pela ausência de fundamento jurídico para o pressuposto cautelar da probabilidade do bom direito que os ora Recorridos se arrogam, ou, utilizando a expressão latina em uso, do fumus boni iuris ainda que na dimensão do artº 120º nº 1 b) CPTA do fumus non malus iuris.
*
Efectivamente, os POOC’s (planos de ordenamento da orla costeira), são PEOT’s, isto é, planos especiais de ordenamento do território, como tal, dotados de eficácia pluri-subjectiva o que significa que produzem efeitos jurídicos directos e imediatos e vinculam directa e imediatamente os particulares, cfr. artºs. 1º nº 2 e 8º d) Lei 49/98, 11.08 (LBPOTU) e 3º nº 2, 42º nºs. 1 e 2 e 44º DL 380/99, 22.0 (RJIGT).
De modo que no caso concreto do POOC de Vilamoura/Vila Real de Santo António, trata-se de um tipo de plano elaborado pela administração central que define do ponto de vista normativo o regime de gestão do espaço compatível na dimensão ocupacional do solo, estabelecendo os parâmetros constitutivos dos “regimes de salvaguarda de recursos e valores naturais e o regime de gestão compatível com a utilização sustentável do território”, conforme definido nos artºs. 42º a 50º do RJIGT. (7)
O que significa que embora a tarefa da classificação e qualificação dos solos seja própria dos PMOT’s (planos municipais) a verdade é que a determinação dos regimes de salvaguarda no domínio dos PEOT’s (planos especiais) traduz-se na “(..) indicação das actividades permitidas, condicionadas e proibidas com vista a salvaguardar os recursos e os valores naturais das áreas sobre as quais incidem: os usos nele regulados são apenas aqueles que se consideram compatíveis com a utilização sustentável do território.
É este o sentido da alteração que o DL 316/2007 veio a introduzir ao artº 44º do RJIGT, dele retirando a expressão “usos”, de modo a clarificar a “distribuição” dos poderes de planeamento entre estes dois tipos de instrumentos de gestão territorial: aos planos especiais, compete a identificação dos usos compatíveis com vista àquela salvaguarda; aos municipais, a delimitação dos perímetros urbanos (classificação dos solos) e a identificação das categorias em função do uso dominante que neles pode ser estabelecido (qualificação dos mesmo), em respeito pelos regimes de salvaguarda instituídos pelos planos especiais.(..)”, conforme artºs. 50º RJIGT (DL 380/99) e 8º d) LBPOTU (Lei 49/98). (8)

*
Aplicando a doutrina exposta ao caso concreto, temos que a apreciação do fumus boni iuris alegado pelos Requerentes cautelares ora Recorridos, incluso na vertente que ora importa da formulação negativa da aparência do bom direito conforme artº 120º nº 1 b) CPTA, exige não apenas a emissão de um juízo sobre a aparência da existência de um direito ou interesse do particular a merecer tutela, como também ajuizar sobre a probabilidade de existência de ilegalidade de actuação administrativa lesiva do mesmo.
Todavia, no caso presente e nos termos expostos, não resulta evidenciada qualquer ilegalidade relativamente à deliberações de 8 e 19 de Maio de 2015 do Conselho de Administração da Sociedade P............... - Ria Formosa, SA, ora Recorrente, levadas ao probatório na alínea F, no sentido de determinar
(i) Determinar a demolição da construção e a intimação dos interessados para procederem à sua desocupação;
(ii) Determinar que, atendendo à «sensibilidade ambiental do local», a demolição fosse executada pela própria P............... Ria Formosa, S.A., sem quaisquer encargos para o interessado, «a menos que, uma vez decorrido o prazo fixado, não seja voluntariamente acatada a decisão, caso em que os custos correrão por conta do interessado, sem prejuízo da aplicação das penas que no caso couberem e da responsabilidade civil pelos danos causados, nos Lermos do artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 226-A-/2007, de 31 de Maio;
(iii) Determinar, para efeitos da dita demolição, a tomada de posse administrativa de cada uma das edificações em apreço, designando data para o efeito e indicando que a «posse se manterá pelo período necessário à execução da demolição, a concluir até ao final do mês de Dezembro de 2015;
deliberações que configuram o agir administrativo e cuja suspensão de eficácia é decretada pela sentença sob recurso.
No caso concreto resulta evidente a improcedência da pretensão de fundo formulada no processo principal (fumus malus) exactamente pela implantação das edificações a que se reportam os ora Recorridos, designadas pelos números 88, l, 30, 74 e 78, situadas na Ilha da Culatra, no núcleo dos Hangares, em solo classificado pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira Vilamoura - Vila Real de Santo António como “espaços edificados a renaturalizar” e, por isso, insusceptíveis de legalização à luz do regime do RJUE na exacta medida em que o acto administrativo de controlo prévio urbanístico que eventualmente fosse emitido no sentido da pretensão edificativa, seria nulo à luz do regime dos artºs 103º RJIGT e 68º a) RJUE.
Termos em que procedem as questões trazidas a recurso nos itens KK a OO das conclusões

4. periculum in mora - ónus de prova e contraprova – artº 346º C. Civil;

Não estando em causa a validade da deliberação que ordena a demolição do edificado com fundamento na ilegalidade de implantação – como é o caso dos edificado dos ora Recorridos –, importa aferir do vector respeitante ao realojamento dos residentes em primeira habitação e sua única residência, alternativa de realojamento que apenas existe na esfera jurídica dos interessados no caso de se tratar, repete-se, “da sua única residência”, vd. artº 37º nº 2 b) citado POOC.
No caso presente, do Relatório levado ao probatório na alínea E consta que - “Em 31 de Dezembro de 2014, o Conselho de Administração da entidade requerida deliberou, em relação a cada uma das referidas edificações, que, “(..) para efeitos do disposto no artigo 37° do Regulamento do POOC Vilamoura - Vila Real de Santo António, aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros n.° 103/2005, de 5 de Junho de 2005, a edificação não é de considerar primeira habitação (..)”.
Situação que não é infirmada por qualquer factualidade levada ao probatório que, nesta matéria do tipo de uso dado aos edificados é totalmente omisso.
Importa ter presente que compete aos Requerentes cautelares e ora Recorridos o ónus de prova sobre os factos alegados que a título principal substanciam o direito que se arrogam de suspensão de eficácia das demolições ordenadas, competindo à parte contrária, ora Recorrente, “opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos” como preceituado no artº 346º C. Civil.
Nesta matéria da contraprova, diz-nos a doutrina que “À parte não onerada com a prova do facto cabe apenas um ónus de contraprova … [que] visa, assim, neutralizar a prova (prova principal), repondo o juiz no estado de dúvida ou incerteza inicial, não necessitando de ir ao ponto de persuadir o juiz de que o facto em causa não é verdadeiro (convicção positiva). Enquanto o ónus de prova só se cumpre quando atingido aquele grau de probabilidade forte da realidade do facto, o ónus de contraprova mais não exige que a parte dele incumbido restabeleça o juiz no “estado de dúvida inicial” (..)” (9)

*
Aplicando a doutrina citada em matéria de ónus de prova/contraprova não se acompanha o entendimento sufragado em sede de sentença no tocante ao pressuposto do periculum in mora, desde logo porque os Recorridos não têm a seu favor o requisito da aparência do bom direito alegado na formulação negativa do fumus non malus iuris, porque o que se prova é precisamente o contrário, o fumus malus, com base no zonamento funcional do solo em que estão implantadas as edificações, atribuído a “espaços edificados a renaturalizar” pelo POOC de Vilamoura/Vila Real de Santo António.
E não se acompanha porque os Requerentes cautelares, ora Recorridos, não preencheram o ónus de prova principal no que respeita à demonstração em termos de juízo de verosimilhança do facto alegado que constitui pressuposto legal para assegurar o realojamento, que é, precisamente, de os edificados a demolir constituírem as “suas únicas residências”.
O que significa que no domínio do caso concreto compete proceder a um exame e apreciação exaustivos e completos da questão de fundo, no âmbito da prolação de juízos de certeza, próprios dos meios de acção principal e não dos meios cautelares, bem como nela decidir sobre a pretensão dos ora Recorridos, concretamente no tocante à natureza dos edificados a demolir, se eventualmente configuram as suas primeiras e únicas habitações para efeitos do disposto no artº 37º nº 2 alínea a) i) e alínea b) do POOC de Vilamoura/Vila Real de Santo António, nos termos já expostos supra.
Pelo exposto, sobre o invocado erro de julgamento em sede de ónus de prova e fumus non malus iuris, procedem as questões trazidas a recurso nos itens EE, PP, QQ e WW a CCC das conclusões.

*
Tudo visto, na medida em que o decretamento da providência depende da verificação cumulativa dos três requisitos legais enunciados no artº 120º CPTA, o decaimento em sede de formulação negativa da aparência do bom direito alegado (fumus non malus iuris) e do periculum in mora importa a improcedência da acção cautelar e envolve a prejudicialidade de conhecimento do requisito da ponderação de interesses, bem como das demais questões trazidas a recurso em sede de conclusões.


***


Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em,

A. julgar procedente o recurso e revogar a sentença proferida,
B. em substituição, julgar improcedente a providência requerida, mantendo-se válidas e eficazes as deliberações de 8 e 19.05.2015 do Conselho de Administração da Sociedade P............... Ria Formosa – Sociedade para a Requalificação e Valorização da Ria Formosa, SA

Custas a cargo dos Recorridos.
Lisboa, 10.MAR.2016


(Cristina dos Santos) .............................................................................................

(Paulo Gouveia ....................................................................................................

(Nuno Coutinho)...................................................................................................

(1)Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, LEX/1997, págs. 233/234.
(2)Ana Gouveia Martins, A tutela cautelar no contencioso administrativo, Almedina/2005, págs. 47/48
(3)Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, LEX/1997, págs. 250 e 569.
(4) Ana Gouveia Martins, A tutela cautelar no contencioso administrativo, Almedina/2005, pág. 43 nota 40
(5) Carla Amado Gomes, O regresso de Ulisses: um olhar sobre a reforma da justiça cautelar administrativa, CJA/39, pág. 9.
(6)Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao CPTA, Almedina/2005, pág. 609.
(7) Alves Correia, Manual de direito do urbanismo, Vol.1º,4ªed. Almedina/2008, págs. 367, 387/388, 684/686.
(8) Fernanda Paula Oliveira, A discricionariedade de planeamento urbanístico municipal na dogmática geral da discricionariedade administrativa, Almedina/2011, pág. 20; Planos especiais do ordenamento do território, RevCEDOUA nº 17, págs. 76-77; O regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial – as alterações do DL 316/2007, de 19 de Setembro, Almedina/2008, págs. 54 e ss.
(9)Anselmo de Castro, Direito processual civil declaratório, Vol. III, Almedina/1982, págs.346-347.