Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:05687/12
Secção:CT
Data do Acordão:11/24/2016
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:ISD/ DOAÇÃO/ ÓNUS DA PROVA
Sumário:I - Salvo casos excepcionais de presunções legais ou de inversão de ónus da prova, no que toca ao procedimento de liquidação dos tributos, é à Administração que cabe demonstrar os pressupostos de facto da sua actuação, designadamente a existência dos factos tributários em que assenta a liquidação do tributo, que não tenham sido declarados pelo contribuinte.
II - Quem alega no procedimento deve provar os factos por si alegados, sem prejuízo do princípio do inquisitório e da descoberta da verdade material.
III - No caso concreto, a AT identifica a ora Recorrida como donatária de um bem móvel, sendo doador J…. Porém, vista a prova recolhida pela AT, conclui-se que a Administração não prova os pressupostos de facto em que fez assentar a liquidação sindicada, designadamente não demonstra que J… tenha doado, tenha transmitido a título gratuito, o bem móvel em causa à ora Recorrida.
IV - Efectivamente, apesar de vir demonstrado que J… suportou o pagamento do IVA relativo à aquisição da embarcação, que acompanhou a Recorrida no processo de compra da embarcação e até que foram emitidas em seu nome facturas relativas à reparação e manutenção da embarcação de recreio em causa, isso não faz dele doador da embarcação.
V - Por conseguinte, perante a falta de prova dos pressupostos de facto da liquidação emitida, a conclusão surge-nos imediata, no sentido da ilegalidade do acto tributário sindicado.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

A Fazenda Pública, inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por R..., contra o acto de liquidação de Imposto sobre as Sucessões e Doações, no montante de 10.375.788$00 (a que acrescem 5.013.495$00 de juros compensatórios), dela veio recorrer para este TCA Sul.

A alegação de recurso termina com as seguintes conclusões:

1. Visa o presente recurso reagir contra a decisão proferida pelo Tribunal "a quo", julgando procedente a impugnação deduzida, proceder a anulação do acto de liquidação do imposto sobre as Sucessões e Doações e consequente restituição à impugnante da quantia indevidamente paga, reconhecendo-se ainda o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

2. Assim, importa concluir que a impugnante, ora recorrida, foi beneficiária da dita quantia "X" que, pelo sobredito modo, foi para ela transmitida a título gratuito - caindo, portanto, no âmbito de sujeição de incidência prevista nas disposições combinadas dos art. 1° e 3° do CIMSSD, nos termos das quais estão sujeitas a imposto sobre sucessões e doações as transmissões de bens móveis ou imóveis, a título gratuito, qualquer que seja o modo por que operem.

3. O acto de liquidação do imposto foi demonstrado e calculado com base em elementos probatórios apresentados pela AF.

4. Conforme verificamos tanto pelo Douto parecer do Ministério público como pela jurisprudência e doutrina citada, cabe ao contribuinte apresentar prova bastante passível de colocar em questão os elementos apresentados pela AF.

5. Pelo que no presente caso a sentença recorrida padece de errada fundamentação, e, enferma ainda de errada apreciação sobre as regras de repartição do ónus da prova, salvo melhor entendimento.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação totalmente improcedente, ordenação a manutenção da liquidação do imposto.

Porém, V. Exas. decidindo, farão a costumada JUSTIÇA.

*

Não foram apresentadas contra-alegações.

*

A Exma. Magistrada do Ministério Público (EMMP) junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

*

Colhidos os vistos, vem o processo submetido à Secção de Contencioso Tributário para julgamento do recurso.

*

2 - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. De facto

É a seguinte a matéria de facto fixada na sentença recorrida:

A - Em cumprimento do despacho de 8 de Novembro de 1994, referente à Ordem de Serviço n° …, de 20 de Maio de 1993, foi realizado exame das declarações de rendimento de IRS - Modelo 1, dos anos de 1992 e 1993 da ora impugnante, e realizada a análise da compra de uma embarcação de recreio no ano de 1993, enquadrando o seu valor de aquisição com o rendimento declarado pelo sujeito passivo para efeitos de tributação em IRS (cfr. documento a fls. 43 a 46 dos autos);

B - No âmbito do mencionado exame, em 26 de Outubro de 1994, a ora impugnante prestou declarações perante o perito de fiscalização tributária, tendo sido inquirida sobre a origem dos seus rendimentos nos anos de 1992 e 1993 e sobre o facto de ser proprietária de uma embarcação de recreio (cfr. documento a fls. 48 dos autos);

C - Relativamente ao facto de ser proprietária de uma embarcação de recreio, a ora impugnante declarou que a mesma lhe tinha sido oferecida, em 1993, por P..., residente na Suíça, tendo a oferta origem na divisão de bens motivada pela sua separação (cfr. documento a fls. 48 e 49 dos autos);

D - Na sequência do exame e análise referidos em A) que antecede foi elaborado, em 29 de Maio de 1995, relatório em que se concluiu o seguinte: "Tendo em consideração o valor dos rendimentos declarados pelo Sujeito Passivo para efeitos de tributação em IRS nos anos de 1992 e 1993, o valor envolvido na transacção da embarcação (27 500 000$00 + 3 613 300$00 = 31 113 300$00) e o facto da Sr.ª D. R... ter declarado que o barco lhe foi doado, julgo que se está perante uma infracção ao estipulado no Artigo 60° do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, na medida em que a donatária não participou à Repartição competente (... Bairro Fiscal de Lisboa) a doação da embarcação" (cfr. documento a fls. 43 a 46 dos autos);

E - Em 30 de Maio de 1995, foi levantado Auto de Notícia por infracção ao disposto no artigo 60º do Código da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações, em virtude de a ora impugnante ter declarado que o barco, cuja propriedade foi registada na Capitania do Porto de Lisboa, lhe tinha sido doado, sem que tenha participado a doação em questão, no valor de 31.113.300$00, à Repartição de Finanças competente (cfr. documento a fls. 38 a 41 dos autos);

F - Pelo ofício n° 1097, de 5 de Março de 1996, a impugnante foi notificada, na qualidade de donatária por doação de J..., para fazer a participação da referida doação na Repartição de Finanças do ... Bairro Fiscal de Lisboa, e proceder à entrega da respectiva relação de bens (cfr. documento a fls. 75 e 76 dos autos);

G - Na sequência da notificação referida na alínea antecedente, a ora impugnante apresentou, em 19 de Março de 1996, requerimento junto da Repartição de Finanças do … Bairro Fiscal de Lisboa em que se pode ler, designadamente, o seguinte: "1º No dia 26 de Outubro de 1994 fui ouvida em termo de declarações onde afirmei que me tinha sido doada uma importância em dinheiro, por P..., residente em Appenzel na Suíça e de nacionalidade alemã, com a qual comprei uma embarcação de recreio; 2º A referida embarcação foi adquirida em Inglaterra tendo em seguida sido trazida para Portugal onde tratei de a registar e legalizar. 3° Uma das operações do registo consistia no pagamento do IVA. Facto que aconteceu tendo na altura pago 4.400 contos de IVA. Em face do que ficou escrito, e como a doação foi uma importância em dinheiro (...) não entendo por que motivo tenho que declarar uma doação visto que o bem (dinheiro) me foi doado por um doador cujo domicílio se situa fora do território português" (cfr. documento a fls. 77 dos autos);

H - Em 22 de Março de 1996, foi efectuada a liquidação de Imposto sobre Sucessões e Doações, no montante de 15.389.283$00, relativa à doação de uma embarcação realizada por J... a R..., ora impugnante (cfr. documento a fls. 78 a 81 dos autos);

I - Pelo ofício n° 1557, de 2 de Abril de 1996, a impugnante foi notificada da liquidação efectuada no processo de Imposto Sucessório nº …, instaurado por doação de J..., sendo o imposto a pagar no valor de 10.375.788$00, acrescido de juros compensatórios no valor de 5.013.495$00, perfazendo o montante total de 15.389.283$00 (cfr. documento a fls. 82 dos autos);

J - Em 16 de Abril de 1996, a impugnante declarou preferir que o imposto devido nos termos da alínea antecedente fosse pago de pronto, com direito ao desconto legal (cfr. documento a fls. 84 dos autos);

K - Em 31de Maio de 1996, a impugnante procedeu ao pagamento da liquidação de imposto e juros compensatórios referida em I) que antecede, no montante de 13.080.891$00, por ter beneficiado do desconto legal, no valor de 2.308.392$00 (cfr. documento a fls. 35 dos autos);

L - Em 22 de Junho de 1993, a impugnante registou na Capitania do Porto de Lisboa uma embarcação de recreio com a denominação "P..." (cfr. documento a fls. 47 dos autos);

M - Em 14 de Abril de 1993, a "S..." facturou a "N..." a venda da embarcação referida na alínea antecedente, no valor de 103.052.26 libras (cfr. documento a fls. 54 e 55 dos autos);

N - Em 16 de Abril de 1993, a "S..." emitiu uma nota de crédito no valor de 103.052.26 libras à "N..." (cfr. documento a fls. 56 dos autos);

O - O pagamento da embarcação foi efectuado dírectamente à "S..." através de transferência bancária realizada pelo Banco "P..." para o "M..." (cfr. documento a fls. 57 dos autos);

P - O Banco "P..." não procedeu à identificação do seu cliente que ordenou a realização da transferência bancária referida na alínea antecedente (cfr. documento a fls. 58 dos autos);

Q - A "N..." emitiu a factura nº 222, de 4-6-1993, e o recibo relativos à aquisição da embarcação identificada em L) que antecede em nome da impugnante (cfr. documentos a fls. 13 e 14 dos autos);

R - A "N..." liquidou à impugnante o valor de 4,400.000$00 a título de IVA devido pela aquisição da embarcação referida em L que antecede (cfr. documento a fls. 50 dos autos);

S - O pagamento do IVA referido na alínea antecedente foi efectuado por J..., através de cheque (cfr. documentos a fls. 59 a 61 dos autos);

T - A impugnante e J... encetaram, em conjunto, as diligências conducentes à aquisição da embarcação referida em L) que antecede, para o que se deslocaram a Inglaterra (os elementos constantes dos autos não nos permitem concluir que o processo de aquisição da embarcação tenha sido liderado por J...; no entanto, a impugnante reconhece a participação daquele, que, por sua vez, reconheceu esse facto no depoimento prestado na qualidade de testemunha, cfr. acta, a fls. 126v e 127 dos autos);

U - A "N..." emitiu as seguintes facturas relativas à aquisição de peças, pintura e parqueamento da embarcação referida em L) que antecede em nome de J...: Factura n° 446, no valor de 172.608$00; Factura n° 780, no valor de 22.180$00; Factura nº 1336, no valor de 88.914$00; Factura n° 1298, no valor de 6.821$00; Factura nº 1263, no valor de 69.600$00; Factura nº 1204, no valor de 29.232$00; Factura n° 1112, no valor de 29.232$0; Factura nº 1093, no valor de 29.232$00 (cfr. documentos a fls. 63, 66, 67, 69 a 72 e 74 dos autos);

V - A impugnante viveu maritalmente com P... (cfr. depoimento das testemunhas C... e J... sobre este facto de forma que nos permite concluir pela sua ocorrência);

W - A impugnante viveu maritalmente com J... entre 1990 e 1999 (cfr. depoimento das testemunhas C... e o próprio J...).


Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa nada mais se provou, designadamente:

a) Que P... doou à impugnante a quantia de 200.000 francos suíços (o depoimento da testemunha C... não se mostrou credível quanto ao facto de a impugnante ter chegado a Portugal transportando consigo "cerca de 20 mil contos". De facto, resulta das regras de experiência comum que as pessoas não transportam consigo quantias tão elevadas em dinheiro, especialmente em viagens de avião. Acresce que a testemunha não soube precisar a quantia que a impugnante traria consigo quando a foi buscar ao aeroporto, o que nos permite concluir que terá sido aquela a transmitir-lhe o valor. Por outro lado, a proveniência do referido dinheiro terá sido igualmente transmitida pela impugnante à testemunha, não tendo esta assistido a qualquer entrega daquele pelo referido P...).

b) Que a Impugnante adquiriu a embarcação de recreio denominada "P...", registada na Capitania do Porto de Lisboa, com a quantia referida em a) que antecede (o depoimento das testemunhas quanto a este facto não permitiu concluir pela sua ocorrência, uma vez que tanto a testemunha C... como a testemunha J... declararam ter conhecimento da origem do dinheiro utilizado para o pagamento da embarcação através do que lhes foi dito pela impugnante, não constando dos autos qualquer documento, designadamente extracto bancário, que demonstre que o valor utilizado pela impugnante teve origem em depósito bancário em numerário. De facto, resulta das regras de experiência comum que as quantias elevadas em dinheiro são depositadas em bancos, não sendo credível que, a ter ocorrido a doação em dinheiro alegada pela impugnante, esta não tenha procedido ao seu depósito. Acresce que o Banco "P...", recusou-se a identificar o seu cliente (cfr. alínea P) do probatório), sendo certo que, a ter sido a impugnante a proceder ao pagamento da embarcação, poderia ter demonstrado, através de documento, que a transferência bancária efectuada teve origem em conta bancária de que era titular).


Motivação

A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame das informações oficiais e dos documentos constantes dos autos, bem como do depoimento das testemunhas inquiridas, tudo conforme referido a propósito de cada alínea do probatório.


*

2.2. De direito

Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Ora, lidas as conclusões das alegações de recurso, resulta claro que está em causa saber se o Tribunal a quo errou na aplicação que fez da lei aos factos e, em especial, se errou na aplicação das regras de repartição do ónus da prova.

Com efeito, para a Fazenda Pública há que concluir que a Recorrente foi efectivamente “beneficiária da dita quantia “X””, que “foi para ela transmitida a título gratuito”.

Vejamos, então, deixando claro que na impugnação judicial relativamente à qual foi proferida a sentença em apreciação estava em causa a liquidação de Imposto sobre as Sucessões e Doações, no valor de 10.375.788$00 (e juros compensatórios de 5.013.495$00), apurada no processo de Imposto Sucessório nº …, instaurado por doação de uma embarcação de recreio à ora impugnante por J....

Alegava a impugnante que adquiriu a embarcação de recreio denominada "P...", registada na Capitania do Porto de Lisboa, com a quantia que lhe foi doada pelo seu ex-companheiro P..., residente na Suíça, aquando da sua separação, e que J..., seu companheiro desde 1990, desempenhou apenas as funções referentes à negociação e escolha da embarcação.

Como sintetizou a Mma. Juíza, a impugnante colocou “em causa a existência do facto tributário que esteve na origem da liquidação impugnada nos presentes autos, ou seja, que tenha ocorrido a transmissão, a título gratuito, de um bem móvel, por parte de J... a seu favor” e, nessa medida, decisivo era apreciar e decidir “se existiu o facto tributário subjacente ao acto de liquidação impugnado, ou seja, a realização da doação de uma embarcação de recreio a favor da impugnante, sendo doador o referido J...”.

A sentença recorrida veio a considerar que a razão estava do lado da impugnante, pois que a “Administração não logrou fazer a prova da existência do facto tributário, permanecendo fundadas dúvidas sobre a sua existência”.

Para assim concluir, a Mma. Juíza alinhou o seguinte discurso argumentativo que, em parte, recuperamos. Com efeito, lê-se na sentença:

“(…)

Nos termos do artigo 74°, nº 1 da Lei Geral Tributária (LGT), "o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque", norma que embora inserida no capítulo da referida lei relativo ao procedimento é de aplicar ao processo judicial que se lhe seguir, pelo que importa ter presente o que nela se dispõe sobre o ónus da prova para a decisão da presente Impugnação.

Por sua vez, o artigo 100°, n° 1 do CPPT, estabelece que "sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado", regra que consubstancia "uma aplicação no processo de impugnação judicial da regra geral sobre o ónus da prova no procedimento tributário enunciada no art. 74°, nº 1 da LGT" (vd. Jorge Lopes de Sousa, in "Código de Procedimento e de Processo Tributário - Anotado e Comentado", volume I, 5ª edição, p. 719).

Assim, tendo presente o disposto no referido artigo 74º da LGT, importa verificar se a Administração Fiscal cumpriu a obrigação que sobre ela impendia de provar o facto constitutivo do seu direito a liquidar.

Nos termos do artigo 1° do CIMSISD, "são sujeitas a sisa e a imposto sobre as sucessões e doações, nos termos dos artigos seguintes, as transmissões perpétuas ou temporárias dos bens, qualquer que seja o título por que se operem", estabelecendo o artigo 3º do mesmo Código que "o imposto sobre as sucessões e doações incide sobre as transmissões a título gratuito de bens mobiliários e imobiliários".

Tendo presente o que se dispõe no citado artigo, conclui-se que impendia sobre a Administração Fiscal o ónus de provar que se verificou uma transmissão a título gratuito de um bem mobiliário - a embarcação de recreio denominada "P...'', registada na Capitania do Porto de Lisboa - a favor da impugnante.

Com efeito, no Imposto sobre Sucessões e Doações o facto tributário é a transmissão a título gratuito de um bem móvel ou imóvel, sendo esta transmissão, enquanto deslocação patrimonial de um sujeito para outro que determina um acréscimo no património do destinatário da transmissão sem qualquer contrapartida, que funda o direito de tributar.

Assim, estando a Administração Fiscal sujeita à lei - princípio da legalidade - só quando se verifiquem os pressupostos legais de que depende o seu direito a tributar é que poderá legitimamente fazê-lo, pelo que tem o ónus de provar que aqueles pressupostos se verificavam relativamente a um acto de liquidação concreto.

(…)

Considerando que numa situação como a dos autos apenas está em causa o direito de a Administração Fiscal tributar, cabe a esta a prova da existência do facto tributário, pelo que, não logrando fazer essa prova impõe-se proceder à anulação do acto de liquidação por aplicação do disposto no artigo 100° do CPPT.

Com efeito, a interpretação do disposto no artigo 100° do CPPT deve ser efectuada tendo igualmente presente o disposto no artigo 74º da LGT sobre o ónus da prova, sendo certo que a exigência de que a dúvida geradora da anulação do acto de liquidação seja fundada tem como pressuposto que a dúvida relevante para este efeito não pode resultar da inércia probatória das partes.

(…)

Ora, recorrendo à terminologia utilizada no Acórdão citado, não resultou provado nos presentes autos qualquer facto que seja susceptível de integrar a previsão abstracta da norma de incidência tributária que serviu de fundamento jurídico ao acto de liquidação, ou seja, como supra se enunciou, não resultou provado que tenha ocorrido a transmissão de um bem móvel a favor da aqui impugnante nos termos que a Administração considerou existir para proceder à liquidação impugnada.

Com efeito, apenas resultou provado que J..., o pretenso doador, realizou diligências conducentes à aquisição da embarcação pela ora impugnante (cfr. alínea T) do probatório), que procedeu ao pagamento do IVA (cfr. alínea S) do probatório) e que foram emitidas facturas em seu nome relativamente à reparação ou manutenção daquela (cfr. alínea U) do probatório)

De facto, não consta dos autos qualquer elemento de prova que nos permita concluir que houve uma transferência patrimonial entre o pretenso doador e a impugnante, seja a transmissão da embarcação, seja a transmissão de valores pecuniários destinados à aquisição daquela.

Acresce que, quando a impugnante prestou declarações sobre o facto de ser proprietária de uma embarcação declarou que a mesma lhe foi oferecida por P... (cfr. alínea C) do probatório), pelo que a conclusão a que chegou a Administração Fiscal quanto à identidade do doador não se encontra sustentada em elementos de prova suficientes para podermos concluir no mesmo sentido.

Pelo exposto, concluímos que a Administração não logrou fazer a prova da existência do facto tributário, permanecendo fundadas dúvidas sobre a sua existência, pelo que se impõe proceder à anulação do acto de liquidação, nos termos do artigo 100° do CPPT”.

Vejamos, então, desde já se adiantando que a análise efectuada pelo Tribunal a quo não nos merece censura, assentando num entendimento que este Tribunal de recurso sufraga inteiramente.

A Administração Tributária emitiu a liquidação de ISD em causa, considerando, para tanto, que, em 1993, J..., doou a R... um bem móvel –embarcação de recreio – no valor de 31.113.300$00. Como tal doação não foi declarada, nem pago o imposto correspondente, foi emitida a liquidação adicional de ISD correspondente.

Tenhamos presente que nos termos do artigo 1º do (já revogado) Código do Imposto Municipal de Sisa e Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISD), são sujeitas a imposto sobre as sucessões e doações as transmissões perpétuas ou temporárias de bens, qualquer que seja o título por que se operem.

Por seu turno, dispunha o artigo 3º daquele código que o imposto sobre as sucessões e doações incide sobre as transmissões a título gratuito de bens mobiliários ou imobiliários.

Ora, salvo casos excepcionais de presunções legais ou de inversão de ónus da prova, no que toca ao procedimento de liquidação dos tributos, é à Administração que “cabe demonstrar os pressupostos de facto da sua actuação, designadamente a existência dos factos tributários em que assenta a liquidação do tributo, que não tenham sido declarados pelo contribuinte”vide, A. Lima Guerreiro, LGT anotada, Rei dos Livros, pág. 329.

Como também refere o citado autor (na mesma obra e página), a propósito do artigo 74º da LGT, a regra aí contida no nº1 mais não traduz que o princípio de que é àquele que cabe um direito que cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado e que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito alegado compete aquele contra quem essa invocação é feita.

Trata-se, de resto, do que já resultava da aplicação das regras constantes do artigo 342º do Código Civil e, também, do disposto nos artigos 87º e 88º do CPA (na versão em vigor à data dos factos).

Neste sentido também, Elisabete Louro Martins, in “O ónus da prova no direito fiscal”, Coimbra Editora, pág. 74, a qual refere que “…esta dimensão do princípio da legalidade determina que a Administração Fiscal só pode praticar o acto tributário quando a lei o permitir, cabendo-lhe nomeadamente o ónus de demonstrar os pressupostos da sua actuação enquanto factos constitutivos do direito de tributar, por aplicação nomeadamente dos artigos 74º, nº1, da Lei Geral Tributária, bem como do artigo 342º, nº1, do Código Civil, sob pena de ilegalidade do acto”.

Como se afirma no acórdão do STA, de 26/10/00, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 493, pág. 230, “Incumbe à administração invocar e demonstrar a base legal (pressupostos vinculativos) da sua actuação, embora não no sentido da legalidade substantiva dos actos concretamente praticados, mas sim do fundamento legal em que radica a titularidade das atribuições e competência para a prática do acto”.

Portanto, quem alega no procedimento deve provar os factos por si alegados, sem prejuízo do princípio do inquisitório e da descoberta da verdade material.

Ora, no caso concreto, a AT identifica a ora Recorrida como donatária de um bem móvel, sendo doador J....

Ora, vista a prova recolhida pela AT, não é difícil concluir que a Administração não prova os pressupostos de facto em que fez assentar a liquidação sindicada, designadamente não demonstra que J... tenha doado, tenha transmitido a título gratuito, o bem móvel em causa à ora Recorrida, contrariamente ao que pretende a Fazenda Pública que aqui se reconheça.

Efectivamente, apesar de vir demonstrado que J... suportou o pagamento do IVA relativo à aquisição da embarcação, que acompanhou a Recorrida no processo de compra da embarcação e até que foram emitidas em seu nome facturas relativas à reparação e manutenção da embarcação de recreio em causa, isso, salvo o devido respeito, não faz dele doador da embarcação, como pretende a Fazenda Pública.

De resto, qualquer das apontadas diligências é absolutamente compatível com a circunstância de o referido J... ser, à data dos factos, a pessoa com quem a Recorrida vivia maritalmente.

Por conseguinte, perante a falta de prova dos pressupostos de facto da liquidação emitida, a conclusão surge-nos imediata, no sentido da ilegalidade do acto tributário sindicado.

Deve dizer-se, aliás, que se estranha a circunstância – porque não explicada – de a Administração Fiscal não ter dado a menor sequência às declarações da contribuinte, proferidas em momento anterior à liquidação de ISD, no sentido de que havia recebido uma determinada quantia em dinheiro, de P..., com a qual havia comprado a embarcação de recreio.

Por conseguinte, conclui-se, com a sentença recorrida, que a AT não deu cumprimento ao ónus que sobre si impendia de demonstrar os factos constitutivos do direito a tributar a alegada doação.

Tanto bastaria para anular a liquidação impugnada.

De todo o modo, deve chamar-se à colação, também, o disposto no artigo 100º, nº1 do CPPT (a que correspondia com igual redacção o anterior 121º do CPT) – “Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser impugnado”– o qual encerra a aplicação ao processo de impugnação judicial da regra geral do ónus da prova no procedimento tributário, a que já deixámos diversas referências.

A este propósito, com pertinência para o caso, tenha-se em consideração o que afirma J. Lopes de Sousa, in CPPT, anotado e comentado, Áreas Editora, 6ª edição, 2011, págs. 131 e 132. Aí se escreveu que:

“(…)

Na verdade, a ponderação de interesses, baseada em regras da normalidade, que justifica a repartição do ónus da prova no procedimento tributário, é a mesma que se deve fazer no processo judicial, pelo que o critério de repartição deverá ser o mesmo, como impõe a coerência valorativa e axiológica imposta pelo princípio da unidade do sistema jurídico, que é o elemento primordial da interpretação jurídica (…). Com efeito, não se compreenderia que, com base num determinado critério sobre o ónus da prova, se levasse a administração tributária a praticar um acto de liquidação valorando contra o contribuinte uma situação de dúvida sobre factos sobre ele invocados (o que à face do critério do art. 74º, nº1 da LGT seria legal), para, depois, no processo judicial em que é impugnado esse acto se inverter o ónus da prova sobre os mesmos factos, levando o tribunal a decretar a anulação desse acto, por ilegalidade consubstanciada em erro sobre os pressupostos de facto, sem que sobreviesse qualquer alteração da matéria de facto.

Assim, pelo facto de o impugnante no processo de impugnação judicial surgir processualmente numa posição em que vem invocar vícios de um acto tributário, não se lhe deve imputar o ónus de prova de factos que não tinha que provar no procedimento tributário, designadamente o de provar que não se verificam os factos constitutivos dos direitos da administração tributária, factos estes cuja verificação competia provar a esta no procedimento tributário.”

Por conseguinte, e sem necessidade de maiores considerações, somos levados a concluir pela improcedência das conclusões da alegação de recurso e, nessa medida, pela manutenção da sentença recorrida na parte em que decidiu pela ilegalidade e anulação do acto tributário impugnado.


*

A decisão recorrida apreciou, ainda, o reconhecimento do direito da impugnante a juros indemnizatórios, tendo concluído que os mesmos eram devidos “sobre a quantia de 13.080.891$00, calculados desde a data do pagamento do imposto e dos juros - 31-5-1996 (cfr. alínea K) do probatório) - até à emissão da nota de crédito, às taxas legais sucessivamente vigentes”.

Nas conclusões da alegação de recurso a Recorrente não põe em causa, explicitamente, este segmento da decisão recorrida.

Contudo, é possível retirar, no confronto, com o teor das alegações de recurso, que a Fazenda Pública discorda do assim decidido porquanto “o facto tributário existiu efectivamente, e a Administração Fiscal com base nos elementos de prova reunidos demonstrou a razão de ser do acto de liquidação do imposto”, “pelo que, (…), não são devidos juros indemnizatórios”.

Vejamos.

Para decidir pelo direito a juros indemnizatórios, a Mma. Juíza argumentou, em síntese, que:

“Ora, considerando que o facto gerador da responsabilidade é o acto de liquidação inquinado de erro, concluímos que tendo o acto de liquidação impugnado sido praticado em 22 de Março de 1996 (cfr. alínea H) do probatório), é aqui aplicável o disposto no artigo 24°do CPT.

Nos termos do artigo 24º do CPT, "1 Haverá direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, se determine que houve erro imputável aos serviços. (...) 3. O montante dos juros referidos no número anterior será calculado para cada imposto, nos termos dos juros compensatórios devidos a favor do Estado, de acordo com as leis tributárias. (...) 6. Os juros serão contados desde a data do pagamento do imposto indevido até à data de emissão da respectiva nota de crédito".

Tendo concluído pela ilegalidade do acto de liquidação do imposto e dos juros compensatórios, em virtude de não se ter provado a existência do facto tributário, impõe-se concluir que a Administração Fiscal incorreu em erro sobre os pressupostos de facto, o que constitui erro imputável aos serviços para efeitos da norma legal citada, assistindo, nessa medida, à impugnante o direito a juros indemnizatórios sobre a quantia indevidamente paga, devidos desde a data do pagamento até à emissão da nota de crédito (artigo 24°, nº 6 do CPT).

Refira-se que a circunstância de a quantia referida não corresponder ao montante total da liquidação impugnada não releva em sede de apreciação do direito ao pagamento de juros indemnizatórios, uma vez que apenas são devidos juros sobre a quantia efectivamente paga.

Quanto à taxa de juro, até à entrada em vigor da LGT (ocorrida em 1 de Janeiro de 1999, nos termos do artigo ... do Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro), são aplicáveis as taxas constantes dos avisos do Banco de Portugal de fixação da taxa básica de desconto, acrescida de 5%, atento o disposto no artigo 83°, nº 4 do CPT, aplicável aos juros indemnizatórios por efeito da remissão constante do artigo 24°, nº 3 do mesmo Código.

Com a entrada em vigor da LGT, a taxa de juros indemnizatórios passou a ser igual à taxa de juros compensatórios (artigo 43º, nº 4 da LGT), que, por sua vez, é equivalente à taxa de juros legais fixados nos termos do nº 1 do artigo 559º do Código Civil (artigo 35°, n° 10 da LGT), o que se traduz numa taxa de juro de 10%, de 1-1-1999 até 16-4-1999 (Portaria n° 1171/95, de 25 de Setembro), de 7% de 16-4-1999 até 30-4- 2003 (Portaria nº 263/99, de 12 de Abril) e de 4% a partir de 1-5-2003 (Portaria nº 291/2003, de 8 de Abril)”.

Ora, como se vê da parca alegação avançada em sede de recurso, conclui-se que a discordância da Recorrente quanto ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios assenta unicamente no entendimento de que a liquidação não é ilegal, pois a Administração demonstrou o que lhe competia, no que aos pressupostos da liquidação respeita. Nada mais foi posto em causa, designadamente o efectivo pagamento do imposto, a lei aplicável ao caso ou o período e taxas relevantes para o apuramento do imposto.

Por conseguinte, concluindo-se, como se concluiu já, que a liquidação impugnada é efectivamente ilegal, por a Administração não ter demonstrado os pressupostos em que a mesma assentou, nada mais cabe a este Tribunal apreciar e decidir.

Pelo que, deve manter-se inalterado este segmento da decisão recorrida que, nos termos já referidos, reconheceu à Impugnante o direito a juros indemnizatórios pelo pagamento (indevido) do imposto anulado.


*

3 - DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCA Sul em negar provimento ao presente recurso jurisdicional.

Sem custas, por delas estar isenta a Fazenda Pública (processo anterior a 2004).

Lisboa, 24/11/16


__________________________

(Catarina Almeida e Sousa)

_________________________

(Bárbara Tavares Teles)

_________________________

(Pereira Gameiro)