Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1001/20.8BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:02/04/2021
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:ASILO;
RETOMA A CARGO;
FACTOS RELEVANTES.
Sumário:I. O Despacho n.º 3963-B/2020, de 27 de março de 2020, proferido no âmbito da declaração do Estado de Emergência Nacional, visou acautelar todas as eventuais dificuldades acrescidas para os requerentes de proteção internacional, assegurando a regularidade de permanência em território nacional, mas não pretendeu pôr em causa o prosseguimento dos procedimentos administrativos, nem tão pouco as decisões administrativas que neles venham a ser tomadas.

II. Consequentemente, tal Despacho não afeta a validade ou sequer a eficácia das decisões administrativas tomadas no âmbito desses procedimentos.

III. Não cabe a responsabilidade ao Estado português pela apreciação e decisão do pedido de proteção internacional, se outro país é o responsável pela retoma a cargo.

IV. As autoridades nacionais portuguesas não se encontram obrigadas a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento quando, no caso concreto, não existam indícios de que o requerente tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente, com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artigo 3.º n.º 2 do Regulamento Dublin III.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO


A.........., nacional da Gâmbia, melhor identificado nos autos, de ação administrativa urgente instaurada contra o Ministério da Administração Interna, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida em 25/09/2020, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que julgou a ação improcedente, absolvendo a Entidade Demandada do pedido de impugnação da decisão do Diretor Nacional Adjunto do SEF, de 24/04/2020, que considerou o pedido de proteção internacional infundado, sendo outro o Estado responsável pelo pedido, e que a ação seja julgada procedente, sendo a decisão impugnada substituída por outra que permita a análise do pedido de proteção internacional que formulou pelo Estado Português, por o mesmo ser responsável.


*

Formula o Recorrente, nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

a) O Recorrente peticiona a revogação da Sentença que deu provimento à decisão proferida em 24/04/2020 pelo SEF que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional e determinou a sua transferência para a Itália e a sua substituição por outra decisão que reconheça o Estado Português como o Estado responsável pela análise do referido pedido.

b) Subsidiariamente, o Recorrente peticiona a revogação da Sentença que deu provimento à decisão do SEF e que seja determinada a anulação da decisão impugnada e a condenação do SEF a proceder a nova instrução do procedimento com informação fidedigna, actualizada e detalhada sobre o procedimento de asilo italiano e as condições actuais do Requerente com respeito e observação dos princípios violados e das formalidades preteridas.

c) Subsidiariamente, o Recorrente conclui ainda que o Estado Português é o Estado competente para analisar o pedido com base no n.º 1 do Artigo 19.º do Regulamento de Dublin III e no Despacho n.º 3863-B/2020 de 27/3/2020 e que a Sentença recorrida deve reconhecê-lo.

d) Subsidiariamente, o Recorrente acusou a violação do princípio da imparcialidade na apreciação do seu pedido.

e) Acusou ainda a falta de elaboração do Relatório que implicou a violação do direito de informação, participação, audição prévia e defesa do Recorrente consagrados nos Artigo 82.º, Artigos 12.º e 121.º e seguintes, todos do CPA, o N.º 1 e N.º 5 do Artigo 267.º da CPR e o N.º 1 e N.º 2 do Artigo 17.º da Lei do Asilo.

f) A Sentença recorrida padece de erro na fixação, apreciação e valoração da prova e na apreciação da matéria de facto e, por sua vez, o erro quanto à matéria de facto levou ao erro no julgamento de direito e levou o Tribunal a quo a aplicar normas jurídicas que não são subsumíveis ao caso dos autos.

g) Da Sentença resulta evidenciado que o Tribunal a quo não ponderou, analisou ou considerou os factos descritos na Petição Inicial, em concreto, no ponto «II. Da omissão da adequada ponderação da situação no país de origem, das condições de acolhimento de Itália no momento em que o Autor ingressou naquele País e das condições actuais de acolhimento de Itália», Artigos 46.º a 104.º da Petição Inicial, provados através da prova documental junta aos autos, e ali identificada.

h) Os factos descritos nos Artigos 46.º a 104.º da Petição Inicial estão provados através das páginas 3 a 8 do Documento 2, dos Documentos 13 e 14, dos links indicados nas notas de rodapé 1 e 2, do Documento 16, 17, 18 e 19 e dos links indicados nas notas de rodapé 6 e 10.

i) Os factos provados através dos Documentos 13 e 14 e notas de rodapé 1 e 2, Documento 19 e notas de rodapé 6 e 10, acima indicados, tratam-se de factos que não carecem de alegação ou de prova por tratarem-se de factos notórios.

j) Ao não atender à prova documental junta e aos factos notórios alegados a Sentença recorrida violou o disposto no Artigo 413.º do CPC conjugado com o Artigo 1.º do CPTA e Artigo 362.º do Código Civil e o disposto no Artigo 412.º do CPC ex vi Artigo 1.º do CPTA.

k) Com relevo para a decisão, o Tribunal a quo deveria ter considerado como provados os factos seguintes:

a. «A realidade vivida na Gâmbia tem sido noticiada e tem sido alvo de crítica internacional.»;

b. «A República da Gâmbia é um País com uma profunda instabilidade social e política, sendo palco de vários conflitos militares.»;

c. O Recorrente fugiu da Gâmbia porque «não confiava no sistema de justiça do seu país: «Saí do meu país porque tive problemas com a justiça na Gâmbia. Eu tinha uma namorada com 15 anos de idade, que perdeu a virgindade comigo. Quando a mãe dela soube foi fazer queixa à polícia e eu fui preso por ter tido relações com uma menor de idade. Após 2 meses fui liberto e fugi do meu país.»;

d. «O A. tem medo de regressar ao seu País de origem pois sente-se impossibilitado de o fazer atendendo à sistemática violação de direitos humanos que ali existe e que é do conhecimento público, bem como por saber que corre o risco sério de sofrer ofensas graves caso regresse.»;

e. «Em 10/12/2019, o Estado Italiano expulsou o Autor de Itália, tendo-o abandonado à sua sorte (…), o que inculcou no Autor o receio de ser forçado a regressar ao seu País de origem e motivou a vinda do Autor para Portugal para encontrar a protecção internacional que lhe foi recusada por Itália (…)»;

f. «a situação calamitosa que se viveu nos anos mais recentes, e continua a viver, em Itália é conhecida de todos.»;

g. «em consequência da afluência de elevado número de migrantes e requerentes de asilo, as capacidades de acolhimento dos mesmos por parte da Itália tem-se degradado nos últimos tempos, apresentando falhas sistémicas nesse mesmo acolhimento, em especial para requerentes vulneráveis.»;

h. O Estado Italiano «tem vindo a adotar uma política cada vez mais restritiva no que concerne ao acolhimento de migrantes»;

i. «o Governo italiano recusou, em Agosto de 2019, a atracagem de um navio contendo 134 migrantes resgatados do Mar Mediterrâneo por organizações não governamentais» e

j. «a entidade administrativa não promoveu quaisquer diligências instrutórias que lhe permitissem averiguar com mais detalhe a situação pessoal do Autor, nem promoveu quaisquer diligências instrutórias que lhe permitissem averiguar a situação de acolhimento de cidadãos refugiados em Itália a fim de certificar-se se o Estado Italiano tem capacidade para assegurar ao Autor o cumprimento e respeito de todas as regras nacionais, comunitárias e internacionais à luz do direito interno italiano (Costituzione della Repubblica Italiana), da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU) e outros instrumentos jurídicos de relevo em matéria de direitos humanos, asilo e protecção internacional.».

l) Os factos que antecedem (a. a j.) têm que constar do elenco dos factos provados e indicados na parte “III. Fundamentação de Facto:” da Sentença e, nessa medida, tidos e ponderados na fundamentação de facto e de direito.

m) O Estado Português é o Estado Responsável pela apreciação do pedido de protecção internacional do Recorrente à luz do n.º 3 do Artigo 19.º do Regulamento de Dublin III e do n.º 1 do Artigo 33.º da Convenção de Genebra de 1951.

n) O Tribunal a quo deveria ter considerado como responsável pela apreciação do pedido do Recorrente o Estado Português e não o Estado Italiano, aplicando e respeitando as normas constantes do n.º 3 do Artigo 19.º do Regulamento de Dublin III e do n.º 1 do Artigo 33.º da Convenção de Genebra de 1951, ao não fazê-lo violou-as.

o) Através do Despacho n.º 3863-B/2020, de 27 de Março foi concedida autorização de permanência em território nacional ao Recorrente com efeitos em tudo iguais aos efeitos da tradicional autorização de residência em território português.

p) A alegada responsabilidade do Estado Italiano pela análise do pedido do Recorrente sempre cessaria em virtude do acto emanado por via do Despacho n.º 3863-B/2020, de 27 de Março ao abrigo do n.º 1 do Artigo 19.º do Regulamento de Dublin III, pelo que ao não atender a essa hipótese a douta Sentença violou o disposto no n.º 1 do Artigo 19.º do referido Regulamento, aplicável ao caso concreto.

q) Relativamente ao deficit instrutório apontado ao procedimento administrativo, conclui-se que se tivesse sido levada a efeito a inclusão na matéria dada como provada dos factos atrás enunciados a propósito da fixação dos factos provados, o sentido da Sentença recorrida teria que ser diferente.

r) A situação calamitosa que se viveu nos anos mais recentes, e continua a viver, em Itália está provada nos autos através dos documentos e notícias juntos com a Petição Inicial.

s) A existência de falhas sistémicas e a situação degradante que se viveu e vive em Itália em matéria de asilo e protecção internacional constitui um facto público e notório, como tal, não carece de concretização ou prova, bastando a sua alegação, o que foi feito pelo Recorrente na PI.

t) Não é necessário que o Recorrente prove que foi ou poderá vir a ser alvo de tratamentos inumanos e degradantes bastando que existam indícios.

u) O SEF não promoveu quaisquer diligências instrutórias que lhe permitissem averiguar com mais detalhe a situação pessoal do Recorrente, nem promoveu quaisquer diligências instrutórias que lhe permitissem averiguar a situação de acolhimento de cidadãos refugiados em Itália a fim de certificar-se se o Estado Italiano tem capacidade para assegurar ao Recorrente o cumprimento e respeito de todas as regras nacionais, comunitárias e internacionais à luz do direito interno italiano (Costituzione della Repubblica Italiana), da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU) e outros instrumentos jurídicos de relevo em matéria de direitos humanos, asilo e protecção internacional.

v) A letra da lei, que não exige que o Requerente alegue ou prove os factos concretos que demonstrem as falhas sistémicas e riscos de vir a sofrer tratamento humano e degradante, foi ignorada pelo Tribunal a quo na Sentença recorrida.

w) Para fazer valer a cláusula de protecção concedida no n.º 2 do Artigo 3.º do Regulamento de Dublin III basta a existência de indícios.

x) Da conjugação dos factos alegados na Petição Inicial, acima indicados, com o n.º 2 do Artigo 3.º do Regulamento (UE) N.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, conclui-se que incumbia ao SEF, previamente à decisão ora impugnada, instruir o procedimento com informação fidedigna actualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano/concessão de protecção internacional e as condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, recorrendo a bases de dados nacionais e internacionais, a troca de informações entre organismos governamentais europeus, bem como buscando informação noutras fontes de informação credíveis e consolidadas de molde a averiguar se, no caso concreto do Recorrente, se verificam ou não os motivos determinantes da impossibilidade da transferência, referidos no segundo parágrafo do N.º 2 do Artigo 3.º do Regulamento (UE) N.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho.

y) Impõe-se ao Estado Português, em cumprimento do princípio do inquisitório previsto no Artigo 58.º do CPA, diligenciar pela obtenção de informação actualizada acerca da existência de risco de Recorrente ser sujeito a esse tipo de tratamentos, o que não sucedeu no caso concreto.

z) Tratando-se o Estado Italiano de um Estado-Membro em relação ao qual são do domínio público as circunstâncias e ocorrências que justificam a ponderação prevista no 2.º parágrafo do n.º 2 do Artigo 3.º do Regulamento de Dublin III, à luz de tudo quanto antecede, verifica-se que o douto Tribunal a quo deveria ter revogado a decisão de indeferimento proferida pelo SEF e ordenar que o mesmo procedesse a todas as diligências destinadas averiguar acerca do procedimento de asilo e das condições de acolhimento em Itália, no momento presente, designadamente aferindo sobre eventuais falhas sistémicas deste País, o que não sucedeu, violando o Artigo 58.º do CPA e no 2.º parágrafo do n.º 2 do Artigo 3.º do Regulamento de Dublin III, aplicáveis ao caso sub judice.

aa) O “Relatório” apresentado ao Recorrente, tal como lhe foi exibido, não configura um relatório per se com informações detalhadas e essenciais ao processo conforme regula e obriga o Artigo 17.º da Lei do Asilo, sob a epígrafe, «Relatório» e o Artigo 5.º do Regulamento de Dublin III.

bb) Resulta assim dos autos que não foi elaborado qualquer relatório nos termos do Artigo 17.º da Lei do Asilo e do Artigo 5.º do Regulamento de Dublin III.

cc) A elaboração do Relatório é uma formalidade essencial atendendo ao facto de ter sido declarada e anunciada a possibilidade de o pedido do Recorrente vir a ser considerado inadmissível e de o mesmo vir a ser transferido para outro Estado.

dd) Ao ser preterida essa formalidade não foi dada ao Recorrente a possibilidade de pronunciar-se sobre um Relatório nos termos do n.º 2 do Artigo 17.º da Lei do Asilo, com todas as garantias legalmente exigíveis.

ee) Só na posse de um Relatório e de uma proposta de decisão seria possível ao A., acompanhado de advogado (a), pronunciar-se, manifestando a sua concordância ou discordância da possibilidade de retoma a cargo por Itália.

ff) A omissão da realização e notificação do Relatório deveria ter sido considerada pelo Tribunal a quo na Sentença recorrida reconhecendo-se a violação pelo SEF dos direitos de participação na formação das decisões, de audiência e de defesa vertidos nos Artigos 12.º, 121.º e seguintes conjugado com o Artigo 163.º, todos do CPA e no n.º 1 e n.º 5 do Artigo 267.º da CPR.

gg) O Tribunal a quo deveria ter declarado a omissão de formalidades essenciais por parte do SEF e condenado o mesmo a dar-lhes cumprimento, o que não sucedeu.

hh) O Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da matéria em crise fazendo uma incorrecta interpretação dos factos e do direito e, consequentemente, da subsunção dos factos concretos às normas aplicáveis ao caso, Artigo 82.º, Artigos 12.º e 121.º e seguintes, todos do CPA, o n.º 1 e n.º 5 do Artigo 267.º da CPR e o n.º 1 e n.º 2 do Artigo 17.º da Lei do Asilo, violando-as.

ii) Na decisão que tomou o SEF tomou em consideração apenas elementos de direito e desconsiderou totalmente os elementos de facto em evidência no procedimento.

jj) Enquanto entidade administrativa o SEF está legalmente vinculado, nos actos que emite, ao cumprimento do dever de imparcialidade, colaboração e boa-fé com todos os cidadãos.

kk) A decisão proferida pelo SEF é ilegal na medida em que apenas toma em consideração os elementos de direito sem ponderar os demais elementos de facto trazidos pelo Recorrente ao procedimento e sem investigar oficiosamente outros factos.

ll) Tal vício foi-lhe comunicado pela ilegalidade do próprio procedimento resultante do desrespeito pelo princípio da imparcialidade, nas suas vertentes positiva e negativa, o qual implicaria que fossem tomados em consideração todos os factos e interesses relevantes e desconsiderados todos os irrelevantes.

mm) O Tribunal a quo deveria ter revogado a decisão proferida pelo SEF, ao abrigo do n.º 1 do artigo 163º do CPA, por violação do disposto no Artigo 9º do CPA, o que não sucedeu, incorrendo em erro na apreciação da matéria em crise fazendo uma incorrecta interpretação dos factos e do direito e, consequentemente, da subsunção dos factos concretos às normas aplicáveis ao caso, n.º 1 do artigo 163º do CPA, por violação do disposto no Artigo 3.º, 9º, 10º, 11.º 58.º do CPA, violando-as.”.

Pede a procedência do recurso e, em consequência, a revogação da sentença recorrida e a anulação do ato impugnado.


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O Recorrido, notificado, não contra-alegou o recurso, nada tendo dito ou requerido.

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O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, não emitiu parecer.

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O processo vai sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente, indo à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de:

1. Erro de julgamento de facto, na fixação, apreciação e valoração da prova e na apreciação da matéria de facto, no tocante: (i) à situação do país de origem, (ii) das condições de acolhimento em Itália no momento em que o requerente entrou naquele país e (iii) das condições atuais de acolhimento, em violação dos artigos 413.º do CPC e 362.º do CC, devendo ser aditados factos ao julgamento da matéria de facto;

2. Erro de julgamento de direito, com fundamento em: (i) o Estado português ser o responsável pela apreciação do pedido, nos termos dos artigos 19.º, n.º 3, do Regulamento de Dublin III e 33.º, n.º 1 da Convenção de Genebra, (ii) por ter sido concedida autorização de permanência ao requerente, (iii) por enfermar a decisão impugnada de défice instrutório, em violação do artigo 58.º do CPA, existindo indícios de existência de falhas sistémicas e de situação degradante em Itália e (iv) por o Relatório exibido ao requerente não configurar um relatório com informações detalhadas, em violação do artigo 17.º da Lei do Asilo, sendo negado o direito ao requerente de se pronunciar sobre esse relatório, em violação do artigo 17.º, n.º 2 da Lei do Asilo e dos direitos de participação na formação das decisões, de audiência e de defesa, previstos nos artigos 12.º e 121.º e seguintes, conjugado com o artigo 163.º, todos do CPA e 267.º da CRP.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

“1. Em 26.02.2020, o Autor, nacional da Gâmbia, apresentou um pedido de proteção internacional junto do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em Lisboa, que foi registado sob o número de processo 357/2020 - cf. fls. 14 do PA;

2. Na sequência da recolha de impressões digitais do Autor, foi consultado o sistema EURODAC e detetados os registos n.º ........., inserido pela Itália, em Belluno, a 15.05.2014 e n.º ........., inserido pela Itália, em Caserta, a 07.02.2019 – cf. fls. 3 e 4 do PA;

3. Em 12.03.2020, o Autor prestou declarações, junto do SEF, em língua mandinga, por assim ter solicitado, tendo sido lavrado o instrumento intitulado “Entrevista/Transcrição”, de cujo teor, que aqui se dá por integralmente reproduzido, se destaca, designadamente, o seguinte:

– cf. fls. 21 a 28 do PA;

4. Findas as declarações, foi, de seguida, o Autor informado do sentido provável da decisão de inadmissibilidade e, consequente transferência para Itália e para no prazo de 5 dias uteis sobre ela se pronunciar, nos seguintes termos:

- cf. fls. 30 do PA;

5. Em 09.04.2020, no âmbito do processo de determinação de responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional, os serviços do Gabinete de Asilo e Refugiados (GAR) efetuaram um pedido de retoma a cargo do Autor, às autoridades Italianas, invocando o artigo 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento (UE) 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, e as ocorrências registadas, na base de dados do Sistema Eurodac, sob as referências “.........” e “.........”. – cf. fls. 37 a 42 do PA;

6. Em 24.04.2020, na sequência da comunicação que antecede, os serviços do GAR, do SEF, remeteram às autoridades italianas, por correio eletrónico, comunicação onde se consignou que, devendo o Estado Membro responder ao pedido em duas semanas, nos termos do artigo 25.º, n.º 2, do Regulamento de Dublin, concluiu-se que, não tendo havido resposta, Portugal considera que Itália aceitou retomar a cargo o Autor – cf. fls. 43 do PA;

7. Em 24.04.2020, os serviços do GAR emitiram a informação n.º 0910/GAR/2020, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, onde se extrai, designadamente, o seguinte:



- cf. fls.46 a 53 do PA;

8. Em 24.04.2020, foi proferido despacho, pelo Diretor Nacional Adjunto do SEF, com o seguinte teor:

- cf. fls. 54 do PA;

9. Em 27.05.2020, a decisão referida, no ponto anterior, foi comunicada ao Autor, em língua mandinga, tendo-lhe sido entregue cópia da decisão e da informação referidas nos pontos 7 e 8 – cf. fls. 47 do PA;

Não existem factos não provados, com relevo para a decisão.


*

A convicção, que permitiu julgar provados os factos acima descritos, formou-se com base na análise dos documentos constantes dos autos e do processo administrativo (PA), conforme indicado em cada um dos pontos dos factos assentes.”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do recurso jurisdicional.

1. Erro de julgamento de facto, na fixação, apreciação e valoração da prova e na apreciação da matéria de facto, no tocante: (i) à situação do país de origem, (ii) das condições de acolhimento em Itália no momento em que o requerente entrou naquele país e (iii) das condições atuais de acolhimento, em violação dos artigos 413.º do CPC e 362.º do CC, devendo ser aditados factos ao julgamento da matéria de facto

No presente recurso vem o Recorrente assacar o erro de julgamento à sentença recorrida, com o fundamento na insuficiência da matéria de facto provada, devendo ser aditados factos ao elenco dos factos provados, incorrendo a sentença recorrida em erro quanto à fixação, apreciação e valoração da prova e na apreciação da matéria de facto, no tocante à situação do país de origem, das condições de acolhimento em Itália no momento em que o requerente entrou naquele país e das condições atuais de acolhimento nesse país.

Entende que a matéria de facto referente a tais circunstâncias se encontra devidamente provada por prova documental e por se tratarem de factos notórios, pelo que, ao desconsiderar tais meios de prova, a sentença viola os artigos 413.º do CPC e 362.º do CC.

Para tanto, considera que o Tribunal a quo deveria ter considerado provados os factos que se mostram invocados na conclusão k) do presente recurso e que os mesmos deveriam ter sido ponderados na fundamentação de direito.

Segundo a Recorrente os factos descritos nos artigos 46.º a 104.º da petição inicial estão provados através das páginas 3 a 8 do documento 2, dos documentos 13 e 14, dos links indicados nas notas de rodapé 1 e 2, dos documentos 16, 17, 18 e 19 e dos links indicados nas notas de rodapé 6 e 10.

Vejamos.

O fundamento do presente recurso prende-se em assacar o erro de julgamento de facto à sentença recorrida, baseado na insuficiência da matéria de facto, com reflexo na decisão da questão de direito, por invocar o Recorrente que a sentença recorrida valorou incorretamente os factos e as provas produzidas.

Nos termos enunciados na conclusão k) do presente recurso são os seguintes os factos que o Recorrente considera que deveriam ter sido dado como provados:

“a. «A realidade vivida na Gâmbia tem sido noticiada e tem sido alvo de crítica internacional.»;

b. «A República da Gâmbia é um País com uma profunda instabilidade social e política, sendo palco de vários conflitos militares.»;

c. O Recorrente fugiu da Gâmbia porque «não confiava no sistema de justiça do seu país: «Saí do meu país porque tive problemas com a justiça na Gâmbia. Eu tinha uma namorada com 15 anos de idade, que perdeu a virgindade comigo. Quando a mãe dela soube foi fazer queixa à polícia e eu fui preso por ter tido relações com uma menor de idade. Após 2 meses fui liberto e fugi do meu país.»;

d. «O A. tem medo de regressar ao seu País de origem pois sente-se impossibilitado de o fazer atendendo à sistemática violação de direitos humanos que ali existe e que é do conhecimento público, bem como por saber que corre o risco sério de sofrer ofensas graves caso regresse.»;

e. «Em 10/12/2019, o Estado Italiano expulsou o Autor de Itália, tendo-o abandonado à sua sorte (…), o que inculcou no Autor o receio de ser forçado a regressar ao seu País de origem e motivou a vinda do Autor para Portugal para encontrar a protecção internacional que lhe foi recusada por Itália (…)»;

f. «a situação calamitosa que se viveu nos anos mais recentes, e continua a viver, em Itália é conhecida de todos.»;

g. «em consequência da afluência de elevado número de migrantes e requerentes de asilo, as capacidades de acolhimento dos mesmos por parte da Itália tem-se degradado nos últimos tempos, apresentando falhas sistémicas nesse mesmo acolhimento, em especial para requerentes vulneráveis.»;

h. O Estado Italiano «tem vindo a adotar uma política cada vez mais restritiva no que concerne ao acolhimento de migrantes»;

i. «o Governo italiano recusou, em Agosto de 2019, a atracagem de um navio contendo 134 migrantes resgatados do Mar Mediterrâneo por organizações não governamentais» e

j. «a entidade administrativa não promoveu quaisquer diligências instrutórias que lhe permitissem averiguar com mais detalhe a situação pessoal do Autor, nem promoveu quaisquer diligências instrutórias que lhe permitissem averiguar a situação de acolhimento de cidadãos refugiados em Itália a fim de certificar-se se o Estado Italiano tem capacidade para assegurar ao Autor o cumprimento e respeito de todas as regras nacionais, comunitárias e internacionais à luz do direito interno italiano (Costituzione della Repubblica Italiana), da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU) e outros instrumentos jurídicos de relevo em matéria de direitos humanos, asilo e protecção internacional.».”.

Antes de analisar se tais factos resultam provados segundo os meios de prova invocados pelo Recorrente – por prova documental e por serem factos notórios – e se errou a sentença recorrida ao não julgar provados os factos invocados pelo Recorrente, o que, para tanto, exige dilucidar se o ora Recorrente cumpre os requisitos legais de impugnação da matéria de facto, previstos no artigo 640.º do CPC, impõe-se analisar da relevância dos factos invocados para a decisão a proferir.

Isto por que apenas deve ser julgada a matéria de facto que seja pertinente para a decisão a proferir sobre o mérito da causa, o que exige aferir a sua relevância, nos termos em que estabelece o disposto no artigo 90.º, n.º 1 do CPTA, quanto a instrução da causa recair sobre os factos relevantes da causa.

Nos termos da citada disposição legal, a instrução não recai sobre todos e quaisquer factos alegados pelas partes, incluindo os factos irrelevantes ou impertinentes, ainda que os meios de prova carreados para os autos permitam o julgamento desses factos como provados.

Assim, previamente a analisar se errou a sentença recorrida na apreciação e valoração da prova documental produzida nos autos e se os factos alegados pelo Autor, ora Recorrente, resultam provados nos termos da prova produzida, antes importa perscrutar da pertinência e relevância desses factos, pois apenas nesse caso se impõe aferir da correspondência da alegação factual feita nos articulados com os meios de prova produzidos.

Considerando cada um dos factos invocados pelo Recorrente, supra indicados, constantes da conclusão k) do recurso, de imediato se pode afirmar que o eventual juízo probatório positivo formulado em relação em qualquer desses factos não assume relevância para a decisão a proferir sobre os fundamentos da ação e também do presente recurso, sendo, por isso, indiferentes ou neutrais para a decisão a proferir.

Senão vejamos, considerando cada um dos factos invocados pelo Recorrente.

No respeitante aos factos relativos ao Estado da proveniência do requerente de proteção internacional, estão em causa os factos invocados sob as alíneas a. a d. da citada conclusão k) do recurso, a saber:

“a. «A realidade vivida na Gâmbia tem sido noticiada e tem sido alvo de crítica internacional.»;

b. «A República da Gâmbia é um País com uma profunda instabilidade social e política, sendo palco de vários conflitos militares.»;

c. O Recorrente fugiu da Gâmbia porque «não confiava no sistema de justiça do seu país: «Saí do meu país porque tive problemas com a justiça na Gâmbia. Eu tinha uma namorada com 15 anos de idade, que perdeu a virgindade comigo. Quando a mãe dela soube foi fazer queixa à polícia e eu fui preso por ter tido relações com uma menor de idade. Após 2 meses fui liberto e fugi do meu país.»;

d. «O A. tem medo de regressar ao seu País de origem pois sente-se impossibilitado de o fazer atendendo à sistemática violação de direitos humanos que ali existe e que é do conhecimento público, bem como por saber que corre o risco sério de sofrer ofensas graves caso regresse.».

Tal factualidade invocada pelo Autor e ora Recorrente, não é apta a dar por verificado o requisito da perseguição ou o risco fundado que o requerente vá ser perseguido caso regresse ao seu país de origem, em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, ou sequer que exista uma sistemática e reiterada violação dos direitos humanos na Gâmbia, nos termos do artigo 3.º da Lei de Asilo, aprovada pela Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, na sua redação alterada pela Lei n.º 26/2014, de 05 de maio.

Nos termos estabelecidos no artigo 5.º da Lei de Asilo, os atos de perseguição suscetíveis de fundamentar o direito de asilo devem constituir, pela sua natureza ou reiteração, grave violação de direitos fundamentais ou traduzir-se num conjunto de medidas que, pelo seu cúmulo, natureza ou repetição, afetem o estrangeiro ou apátrida de forma semelhante à que resulta de uma grave violação de direitos fundamentais, o que, de todo, não é possível extrai da alegação do requerente de proteção internacional.

Além de que podendo as “Ações judiciais ou sanções desproporcionadas ou discriminatórias” ser consideradas um ato de perseguição, segundo a alínea c), do n.º 2 do artigo 5.º da Lei de Asilo, a factualidade invocada pelo requerente, quanto a ter sido preso por ter tido relações com uma menor de idade, assim não permite subsumir.

A demais factualidade invocada pelo Requerente é genérica ou assume natureza meramente conclusiva, não permitindo extrair quaisquer factos sobre a sistemática violação de direitos humanos na Gâmbia ou que o requerente corre o risco sério de sofrer ofensas graves caso regresse.

Daí que, todo o alegado não seja relevante para a decisão a proferir, não sendo idóneo a abalar o julgamento em que se estriba a sentença recorrida.

Do mesmo modo ocorre em relação aos alegados factos atinentes ao Estado Italiano, por de nenhum modo se poder extrair que o requerente aí tenha sido maltratado ou tenha sido submetido a condições degradantes.

No demais, o alegado a respeito de saber se a Entidade Demandada promoveu ou não a instrução do procedimento de proteção internacional é matéria que resulta integralmente da prova documental extraída dos autos e do processo administrativo instrutor, nos termos resultantes do julgamento da matéria de facto constante da sentença recorrida.

O alegado facto que o Recorrente pretende que este Tribunal de recurso julgue provado, relativa «a entidade administrativa não promoveu quaisquer diligências instrutórias que lhe permitissem averiguar com mais detalhe a situação pessoal do Autor, nem promoveu quaisquer diligências instrutórias que lhe permitissem averiguar a situação de acolhimento de cidadãos refugiados em Itália a fim de certificar-se se o Estado Italiano tem capacidade para assegurar ao Autor o cumprimento e respeito de todas as regras nacionais, comunitárias e internacionais à luz do direito interno italiano (Costituzione della Repubblica Italiana), da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU) e outros instrumentos jurídicos de relevo em matéria de direitos humanos, asilo e protecção internacional.».”, não só é conclusivo, como encerra um juízo de direito, que não cabe no julgamento da matéria de facto.

Por conseguinte, nenhum dos factos invocados pelo Recorrente como fundamento do recurso, sob a alegação de terem sido erradamente julgados no elenco da matéria de facto provada, reveste importância para a decisão a proferir sobre o mérito da causa, pelo que, nenhum deve ser aditado a esse julgamento.

Nestes termos, será de negar provimento ao fundamento do recurso, por não provado, mantendo-se integralmente a factualidade julgada provada na sentença recorrida.

2. Erro de julgamento de direito, com fundamento em: (i) o Estado português ser o responsável pela apreciação do pedido, nos termos dos artigos 19.º, n.º 3, do Regulamento de Dublin III e 33.º, n.º 1 da Convenção de Genebra, (ii) por ter sido concedida autorização de permanência ao requerente, (iii) por enfermar a decisão impugnada de défice instrutório, em violação do artigo 58.º do CPA, existindo indícios de existência de falhas sistémicas e de situação degradante em Itália e (iv) por o Relatório exibido ao requerente não configurar um relatório com informações detalhadas, em violação do artigo 17.º da Lei do Asilo, sendo negado o direito ao requerente de se pronunciar sobre esse relatório, em violação do artigo 17.º, n.º 2 da Lei do Asilo e dos direitos de participação na formação das decisões, de audiência e de defesa, previstos nos artigos 12.º e 121.º e seguintes, conjugado com o artigo 163.º, todos do CPA e 267.º da CRP

No demais, assaca o ora Recorrente o erro de julgamento de direito da sentença recorrida, com base num conjunto de fundamentos integrativos desse erro de julgamento, defendendo que, ao contrário do decidido, o Estado português é o responsável pela apreciação do pedido, por ter sido concedida autorização de permanência no território nacional ao requerente, por a decisão impugnada enfermar de défice instrutório e por o Relatório exibido ao requerente não configurar um relatório com informações detalhadas, não permitido assegurar o direito ao requerente de se pronunciar sobre esse relatório.

Vejamos cada um dos fundamentos invocados.

(i) Sobre o suscitado, importa, antes de mais atender à concreta matéria de facto julgada provada na presente ação, pois será com base nela que se apreciará do suscitado.

Considerando a factualidade provada, resulta do probatório que em consequência do pedido de proteção internacional apresentado pelo requerente em 26/02/2020, os serviços do SEF apuraram que o mesmo já havia solicitado pedido de proteção internacional, em Itália.

Com base nesta informação, houve necessidade de se proceder à determinação do Estado responsável através do procedimento especial, regulado pelos artigos 36.º a 40.º da Lei de Asilo (estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, transpondo para a ordem jurídica interna as Diretivas nºs 2004/83/CE, do Conselho, de 29 de abril e 2005/85/CE, do Conselho de 1 de dezembro), aprovada pela Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 26/2014, de 5 de maio.

O referido procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, regulado nos artigos 36.º a 40.º, do Capítulo IV, da Lei de Asilo, estabelece, no artigo 36.º, que “Quando haja lugar à determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de proteção internacional é organizado um procedimento especial”.

Em conformidade, dispõe o artigo 37.º, n.º 1, do mencionado diploma, o seguinte: “Quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, o SEF solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo.”.

Por isso, no âmbito do referido procedimento especial, o SEF formulou um pedido de retoma a cargo do ora Autor, ao Estado italiano, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, alínea d) do Regulamento n.º 604/2013 (Regulamento de Dublin).

Não tendo as autoridades Italianas respondido no prazo de duas semanas, tal como decorre do disposto no artigo 25.º, n.º 2, do Regulamento de Dublin, foi considerado aceite o pedido de tomada a cargo.

Acresce que, de acordo com o preceituado no nº 2 da citada norma, “Aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o diretor nacional do SEF profere, no prazo de cinco dias, decisão nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A e do artigo 20.º, que é notificada ao requerente, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, e é comunicada ao representante do ACNUR e ao CPR enquanto organização não governamental que atue em seu nome, mediante pedido apresentado, acompanhado do consentimento do requerente”.

Resulta, assim, do enquadramento legal mencionado que, uma vez considerado o pedido inadmissível, por ser outro o Estado-Membro responsável para a sua apreciação, e aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, compete ao SEF assegurar a execução da transferência do requerente de proteção internacional, nos termos do disposto no artigo 38º da Lei nº 27/2008.

No Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho (Regulamento de Dublin), constam os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional, apresentado num dos Estados-Membros, por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida.

Designadamente, no artigo 3º, do citado Regulamento, sob a epígrafe “Acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional” dispõe-se o seguinte:

1. Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.

2. Caso o Estado-Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado-Membro em que o pedido tenha sido apresentado. Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado- Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.

Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável. (…)”.

Por outro lado, o artigo 19º-A, nº 1, alínea a), do referido diploma legal, estabelece que o pedido é considerado inadmissível quando se verifique que “Está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV”.

Acresce que, segundo o disposto no n.º 2 da norma em apreço, nas situações em que o pedido é considerado inadmissível, “prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional”.

Ora, nos termos do artigo 18.º, nº 1, alínea d), do Regulamento n.º 604/2013, o Estado-Membro responsável pela apreciação de um pedido é obrigado a retomar a cargo o nacional de um país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro.

Pelo que, o contrário do alegado pelo Recorrente, decidiu a sentença recorrida corretamente no sentido de a Entidade Demandada, ora Recorrida, ter atuado de acordo com as regras previstas no Regulamento n.º 604/2013 e ao abrigo dos artigos 36.º e seguintes da Lei de Asilo, estando impedida de analisar o pedido de proteção internacional e vinculada a proferir decisão no sentido da inadmissibilidade daquele pedido, nos termos do disposto no artigo 19.º-A, n.º 1, a), da referida Lei, competindo-lhe, apenas, proferir a decisão de transferência.

Assim, a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional apresentado pelo Recorrente, não pertence ao Estado Português, é antes de Itália, sendo este o Estado responsável pela sua retoma a cargo.

Pelo exposto, não assiste qualquer razão ao Recorrente na censura que dirige contra a sentença recorrida, pois ao contrário do por si invocado, o Estado português não é o responsável pela análise e decisão do pedido de proteção internacional, antes o sendo o Estado italiano, não resultando violados os artigos 19.º, n.º 3, do Regulamento de Dublin III e 33.º, n.º 1 da Convenção de Genebra.

(ii) No demais, não incorre a sentença recorrida no erro de julgamento de direito quanto à questão de o requerente beneficiar de uma autorização de permanência em território nacional, por força do Despacho n.º 3863-B/2020, de 27 de março de 2020.

Nos termos decididos pela sentença recorrida:

(…) O Autor invoca, também, que o Despacho n.º 3863-B/2020 de 27/3/2020, que produziu efeitos à data da declaração do Estado de Emergência Nacional (19.03.2020), determina que a alegada responsabilidade do Estado Italiano, pela análise do seu pedido, cessaria em virtude do ato emanado por via do mesmo.

Vejamos se tal consequência decorre do Despacho mencionado.

Determina o referido Despacho n.º 3863-B/2020, de 27/3/2020, na parte respeitante aos pedidos de proteção internacional, que

«1 - No caso de cidadãos estrangeiros que tenham formulado pedidos (…) ao abrigo da Lei n.º 26/2014, de 5 de maio, que procede à primeira alteração à Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, considera-se ser regular a sua permanência em território nacional com processos pendentes no SEF, à data de 18 de março, aquando da declaração do Estado de Emergência Nacional

(…) [e que]

7- O atendimento ao público do Gabinete de Asilo e Refugiados mantém-se aberto para a apresentação e registo de novos pedidos de proteção internacional, suspendendo-se os prazos legais nos processos de proteção internacional. (…)».

Conforme decorre do mencionado normativo, está em causa garantir que as dificuldades que a situação de estado de emergência acarreta para o funcionamento dos serviços do SEF, não se traduzam em consequências negativas na situação particular dos requerentes de asilo.

Por outro lado, visa também que, à inércia ou omissão que possa verificar-se nalgum desses procedimentos, não corresponda a normal/legal consequência jurídica, desde logo, por se suspenderem os prazos legais, o que inclui o prazo de decisão.

Ora, não está em causa qualquer alteração das regras quanto à competência para determinação do Estado responsável, pela análise do pedido de proteção subsidiária, garantindo-se, tão só, no mesmo, a regularidade da permanência no território nacional.

Assim, conclui-se que tal normativo não afeta, nem positiva nem negativamente, a decisão que a Administração viesse a tomar sobre o pedido de proteção internacional apresentado pelo Requerente, na medida em que não dispõe sobre o seu conteúdo, nem delimita qualquer critério sobre essa questão; apenas regulando os termos da permanência dos requerentes em território nacional enquanto a sua pretensão não é decidida.

Do exposto não resulta, pois, que a decisão impugnada tenha violado o disposto no referido Despacho n.º 3863-B/2020, de 27/3/2020, pelo que improcede o invocado, quanto ao fundamento em causa.”.

O Despacho n.º 3963-B/2020, de 27 de março de 2020, proferido no âmbito da declaração do Estado de Emergência Nacional, visou acautelar todas as eventuais dificuldades acrescidas para os requerentes de proteção internacional, assegurando a regularidade de permanência em território nacional, mas não pretendeu pôr em causa o prosseguimento dos procedimentos administrativos, nem tão pouco as decisões administrativas que neles venham a ser tomadas, como no presente caso.

Consequentemente, tal Despacho não afeta a validade ou sequer a eficácia das decisões administrativas tomadas no âmbito desses procedimentos.

Por outras palavras, pretendendo tal Despacho conferir proteção provisória e cautelar aos requerentes de proteção internacional, assegurando a regularidade da sua permanência em território nacional, não visou produzir quaisquer efeitos sobre os procedimentos de proteção internacional, de forma a conceder o estatuto de refugiado ou a conferir autorizações de residência, como vem pretender o Recorrente.

De forma que os efeitos do Despacho n.º 3963-B/2020, de 27 de março de 2020 não se projetam sobre o procedimento de proteção internacional respeitante ao Autor, ora Recorrente, não interferindo com a definição do direito operada pelo ato impugnado.

Nesse sentido, o Recorrente carece em absoluto de razão quanto ao erro de julgamento dirigido contra a sentença recorrida.

(iii) No respeitante ao erro de julgamento de direito fundado no défice de instrução, é igualmente improcedente todo o alegado pelo Recorrente.

Nos termos decididos pela sentença recorrida:

“(…) alega, também, o Autor que a decisão impugnada é inválida porquanto o procedimento não foi instruído com informação fidedigna e atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália.

Face à atual redação dos artigos 3º, nº 2 e 17º, nº1 do Regulamento, se se verificar que existem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional, num dado Estado- Membro, que impliquem um risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), tornando impossível a transferência do requerente de proteção, ainda que tal Estado-Membro seja o responsável pela análise do procedimento de asilo face às regras de competência do indicado Regulamento, aquele mesmo pedido deve manter-se a ser analisado pelo Estado-Membro onde foi posteriormente apresentado, que prossegue na análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III do Regulamento e, eventualmente, com a própria instrução e apreciação do pedido de proteção (cf. também os artigos .31º e 32º do Regulamento).

A cláusula de salvaguarda prevista no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento Dublin III, exige, assim, a verificação de um duplo condicionalismo – a) que existam “motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse estado membro e b) que tais falhas impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Ora, o Autor nada alegou, nem nada resulta do próprio procedimento, que permita concluir pela verificação das circunstancias previstas no § 2.º do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Dublin, designadamente, quaisquer factos concretos relacionados com o Requerente que permitissem, pelo menos, indiciar a ocorrência daquelas circunstâncias.

Com efeito, o Autor limita-se a alegar, em juízo, o défice instrutório do procedimento, no que se refere às atuais condições de acolhimento em Itália, invocando que o declarado refere-se a circunstâncias temporárias, não traduzindo a realidade que viveu posteriormente, nem hoje, no campo de refugiados.

Pelo contrário, tudo o alegado e relatado no procedimento, foi no sentido de ter beneficiado de condições de acolhimento adequadas e não ter sido alvo de qualquer tipo de agressão, maus-tratos ou perseguição.

Com efeito, afirmou, quando entrevistado, que, em Itália, tinha comida e alojamento (num campo de refugiados), assistência médica, aulas de Italiano das vezes por semana e 75,00€ por mês para gastos pessoais, tendo decidido vir para Portugal por “acreditar mais no sistema Português”.

Para além disso, o Autor nega ter quaisquer problemas de saúde, não relatando outras circunstâncias pessoais especiais (idade, sexo, pertença a um grupo social especialmente vulnerável, percurso do requerente) que tornem a transferência um risco de colocação numa situação desumana ou degradante, que ponha em perigo a sua integridade física e psíquica.

Face ao já exposto, o Requerente, nascido no ano de 1989, enquanto individuo novo e sem problemas de saúde, não pode ser considerado uma pessoa vulnerável ou doente no que concerne ao acolhimento de refugiados.

É neste contexto fáctico que se compreende a conduta adotada pelo SEF, quando não sopesou a cláusula de salvaguarda incluída no artigo 3º do Regulamento, pois que não se encontrando o Requerente numa situação fragilizada, afigura-se desnecessário que discorresse sobre as condições de acolhimento do país competente, neste caso, a Itália, pois a referida transferência não traz um risco real e comprovado de o Requerente vir a sofrer um tratamento cruel, degradante ou desumano, na aceção do art.4º da CDFUE, e nem de a sua situação cair na previsão dos arts.3º, nº 2 e 17º, nº1 do Regulamento.

Conforme resulta de forma expressa da jurisprudência, quer nacional quer, em particular, do Tribunal de Justiça da União Europeia, não basta a alegação de existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo em Itália, sendo ainda necessário e imprescindível que tais falhas levem ao risco sério de um tratamento desumano ou degradante do requerente de asilo, na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, atenta a situação concreta deste [cf., acórdãos do TJUE de 21.12.2011 (processos C-411/10 e C-493/10), de 16.02.2017 (processo C-578/16 PPU) e de 19.03.2019 (processo C-163/17), disponíveis em http://curia.europa.eu].

No sentido de não serem suficientes as alegações genéricas sobre eventuais falhas sistémicas (que no presente caso apenas decorrem do requerimento inicial apresentado nos presentes autos), cf. o Acórdão do STA de 16.01.2020. no processo n.º 02240/18.7BELSB, onde se escreveu, designadamente, o seguinte:

“(…) Porém, atendendo ao conteúdo pertinente das «declarações» prestadas pelo requerente [ver ponto H do provado], e ao conteúdo das notícias oficiosamente pesquisadas pelo tribunal [ver pontos L a P do provado], e levadas ao provado enquanto factos notórios [ver artigo 412º do CPC ex vi 1º do CPTA], as instâncias, mormente o acórdão recorrido, entenderam que cairíamos no âmbito dos parágrafos 2º e 3º, do nº2, do artigo 3º do Regulamento em referência. Ou seja, porque entenderam haver indícios de

«falhas sistémicas» no procedimento de asilo e condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália, decidiram condenar o SEF a instruir o pedido com informação atualizada sobre as condições de acolhimento dos refugiados e requerentes de proteção internacional em Itália.

Mas, cremos, esta decisão não poderá manter-se, porque as circunstâncias deste caso, quer no tocante ao conteúdo das declarações do requerente quer ao conteúdo das ditas notícias, não impunham ao SEF o dever de proceder à pesquisa oficiosa de informações relativas ao procedimento de asilo e às condições de acolhimento de refugiados em Itália.

3. Na verdade, das «declarações» prestadas pelo requerente [ponto H do provado], apenas se colhe que ele veio de Itália para Portugal porque não se sentia em segurança dado haver muitos problemas no campo onde estava e porque era muito difícil ir ao hospital. Ou seja, ele invoca essencialmente razões de segurança, e de difícil assistência hospitalar, fazendo-o, diga-se, de forma muito genérica, dado que «não concretiza» qualquer episódio que possa ilustrar a sua queixa.

Ora, resulta dos «considerandos 4 e 5» do Regulamento [EU] 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06.2013, que se pretendeu implementar um método claro e operacional para determinar o Estado-membro responsável pela análise dos pedidos de asilo, e que esse método se deverá basear em critérios objetivos e equitativos, de modo a permitir uma determinação rápida do Estado-membro responsável e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.

Daí resultar que apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em existam motivos válidos para crer que «há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes» e que tais falhas impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação atualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos. Nestes casos, de ponta, não há quaisquer razões de celeridade e eficiência que possam suplantar a proteção devida ao requerente de asilo.

O que obviamente não ocorre neste caso, no qual as queixas do requerente, relativas à sua permanência em campo de «refugiados», em Itália, e desde logo por falta da sua necessária densificação, não são de molde a induzir qualquer «suspeita séria» - motivos válidos - de vir a sofrer - por parte do Estado Italiano - tratamento «desumano ou degradante», nos termos expostos.

E isto bastaria, a nosso ver, para impor o julgamento de total improcedência da ação, uma vez que não devendo o SEF ser condenado no sentido em que o foi, a sua decisão administrativa está em sintonia com as normas legais em que se louvou. (…)”

No mesmo sentido, dispõe o recente Acórdão do STA de 04.06.2020, processo n.º 01322/19.2BELSB, disponível em www.dgsi.pt, onde se sumariou o seguinte: “O SEF não se encontra obrigado a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento quando, no caso concreto, não existam indícios de que o requerente tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III.”

Nesta conformidade, a decisão impugnada não incorreu em défice de instrução.

Analisada a argumentação recursiva do Recorrente e a concreta fundamentação de direito da sentença recorrida, é manifesta a falta de razão que assiste ao Recorrente, à luz dos factos provados e da consequente aplicação dos aplicativos de direito.

Como se extrai de abundante jurisprudência administrativa, não sendo o Estado português o responsável pela análise e decisão do pedido de proteção internacional apresentado pelo Autor, nem decorrendo do seu relato apresentado no procedimento administrativo, perante as autoridades nacionais portuguesas, quaisquer factos donde possa resultar qualquer situação de vulnerabilidade, nem resultando indícios da existência de falhas sistémicas do Estado de acolhimento, nem as mesmas serem relatadas pelo requerente, não se configura existir qualquer dever de instrução do Estado português sobre as condições do sistema de asilo do Estado de acolhimento, tanto mais por estar em causa, um procedimento especial, de retoma a cargo.

As questões suscitadas, relativas ao alegado défice de instrução, têm merecido a análise dos tribunais superiores em inúmeros arestos, em situações materialmente idênticas, em termos que são contrários à alegação efetuada pelo ora Recorrente no presente recurso.

Como antes decidido no Acórdão deste TCAS, Processo n.º 1932/19.8BELSB, de 16/04/2020, de que fomos relatora, assumiu-se o entendimento que no procedimento especial de determinação do Estado membro responsável, o artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo dispensa a análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional, mas não dispensa a análise das condições sistémicas relativas ao Estado de retoma, referentes à atual situação das condições de acolhimento nesse Estado, assim como que nos termos do artigo 3.º do Regulamento de Dublin, recai sobre as autoridades nacionais o ónus de instrução sobre as condições do procedimento de asilo e as condições atuais de acolhimento no Estado membro responsável pela apreciação do pedido, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, não podendo a autoridade nacional defender que já estão ultrapassadas as dificuldades no Estado de acolhimento, sem qualquer indagação prévia que assim o ateste.

Por isso, nesse aresto se decidiu negar provimento ao recurso e em manter a sentença recorrida na parte em que procedeu à condenação à reinstrução do procedimento, com base no défice de instrução.

No entanto, desde então foram proferidos outros arestos, que mediante a ausência da concretização pelo requerente de proteção internacional de quaisquer elementos de facto atinentes à sua situação particular e perante a falta de evidência da falta de condições de acolhimento pelo Estado responsável, vieram negar qualquer dever de indagação adicional por parte das autoridades nacionais em relação ao sistema de asilo italiano.

Neste sentido, vide a jurisprudência do STA sobre a matéria, como nos Acórdãos proferidos em 04/06/2020, no Processo n.º 01322/19.2BELSB e em 02/07/2020, nos Processos n.ºs 01088/19.6BELSB e 01786/19.4BELSB, assim como todos os demais posteriores, neste mesmo sentido, entre os quais, a título meramente exemplificativo, o Acórdão do STA, datado de 10/12/2020, Processo n.º 02212/19.4BELSB.

Também no presente processo o requerente de proteção internacional, ora Recorrente, nada concretiza sobre qualquer má condição de acolhimento que tenha existido aquando a sua permanência em Itália, nem justifica porque motivos entende não existirem tais condições na atualidade.

Assim, no caso do presente litígio, não é possível extrair do relato factual apresentado pelo requerente de proteção internacional qualquer imputação ao deficiente funcionamento do sistema de acolhimento em Itália, visto nada alegar a esse respeito.

Além disso, encontra-se em sintonia com a jurisprudência do STA, não se vislumbrando motivos, em face dos concretos contornos fácticos do litígio em presença, para dela divergir.

Assim, considerando que o ora Recorrente no relato que apresentou às autoridades nacionais portuguesas nada expressou em desabono das condições de acolhimento em Itália, acolhe-se para o presente caso o entendimento expresso no citado aresto do STA, a propósito do caso italiano, nos termos da seguinte fundamentação:

A cláusula de salvaguarda prevista no artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III, exige a seguinte verificação:

“a) – que existam “motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro,” e

b) – e que tais falhas “impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”.

A este propósito conclui-se no Ac. do TJUE proferido no caso A. Jawo c/Alemanha de 19 de Março de 2019, proc. C-163/17, que:

“O artigo 4.º da Carta deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a tal transferência do requerente de proteção internacional, a menos que o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso da decisão de transferência conclua, com base em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados e por referência ao nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, que esse risco é real para o requerente, pelo facto de que, em caso de transferência, este se encontraria, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema.(...)

A este respeito, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência dispõe de elementos apresentados pela pessoa em causa para demonstrar a existência de tal risco, esse órgão jurisdicional deve apreciar, com base em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados e por referência ao nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, a existência de falhas sistémicas ou generalizadas, ou que afetem determinados grupos de pessoas (v., por analogia, Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C-404/15 e C-659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.º 89).(...)

“Esse limiar de gravidade particularmente elevado é alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tiver por consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontre, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permita fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e ter alojamento, e que atente contra a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana (v., neste sentido, TEDH, 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia, CE:ECHR:2011:0121JUD003069609, §§ 252 a 263).

Como tal, o referido limiar não pode abranger situações que se caracterizem por uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida da pessoa em causa, quando estas não impliquem uma privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de gravidade tal que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante.”.

O A., e aqui recorrido, quer nas declarações que prestou no SEF quando foi ouvido, quer na petição inicial, não alegou quaisquer factos concretos que pudessem fundamentar a existência de um risco de vir a ser sujeito a tratamento desumano.

Nas suas declarações iniciais apenas refere que no campo onde estava em Itália havia lutas todos os dias e não havia assistência médica mas não refere que tenha precisado de tratamentos médicos e que os mesmos não lhe foram prestados, tendo até referido ser saudável.

Portanto invocou deficiências genéricas e abstratas nas suas condições de acolhimento em Itália, onde esteve durante cerca de 2 meses mas não invocou quaisquer factos concretos suscetíveis de conduzir a um risco efetivo de tratamento desumano.

Não refere quaisquer factos concretos de onde se possa concluir por um risco efetivo de poder vir a ser sujeito em Itália a um tratamento desumano, nos termos que se encontram previstos no artº 3º nº 2 do Regulamento EU nº 604/2013.

No caso concreto o A. também não tem problemas de saúde e não referiu ter sofrido quaisquer problemas no seu acolhimento em Itália, mas apenas problemas familiares no seu país de origem, a Serra Leoa.

Em suma das suas declarações não se indicia qualquer falha sistémica no seu acolhimento em Itália nem qualquer risco de tratamento desumano ou degradante sendo que lhe competia a ele alegar e demonstrar a existência de circunstâncias excepcionais que lhe fossem próprias e não o conhecimento comum e generalizado as dificuldades de acolhimento em Itália.

Pelo que o SEF não se encontrava obrigado a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento italiano, uma vez que, no caso concreto, inexistem quaisquer indícios de que o A. tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III.

Não resulta, assim, alegada a existência de quaisquer factos que permitam indiciar que o autor vá ser transferido para um país onde se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e condições de acolhimento que impliquem o risco de ser desrespeitado o seu direito absoluto a não ser sujeito a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos.

E quanto à questão que se alude na decisão recorrida de que resulta de H) a M) da matéria de facto informações veiculadas pela comunicação social e por organizações internacionais de direitos humanos que relatam situações que evidenciam a existência de falhas sistémicas ao nível do funcionamento do procedimento de proteção internacional italiano, bem como ao nível das garantias processuais e condições de acolhimento dos requerentes, sendo algumas dessas informações relativas ao corrente ano de 2019, o Acórdão deste STA 02240/18.7BELSB de 01/16/2020, a que aderimos, responde da seguinte forma:

“Por seu turno, as notícias pesquisadas oficiosamente pelo tribunal também não são, atento todo o circunstancialismo em que surgem, de forma a impor essa condenação.

Não poderemos escamotear o facto delas se referirem a um Estado-membro da «União Europeia», tal como o Estado Português, responsável desde logo pelo cumprimento da respectiva Carta dos Direitos Fundamentais, bem como noticiarem ocorrências relativas a uma situação inusitada: a do fluxo anormal de imigração ilegal de cidadãos de países africanos para a Europa, via Itália.

Esta «imigração ilegal», que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de atividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social [ver artigo 2º, alínea ac), da Lei nº27/2018, de 30.06, redação dada pela Lei nº26/2014, de 05.05].

Foi esta avalancha de imigração ilegal, constituída por um universo de imigrantes onde se integrarão potenciais refugiados mas não só, que provocou um deficit nas condições do seu acolhimento por parte de Itália, e terá provocado uma reação política hostil na mira de suscitar a participação solidária dos demais Estados-membros na resolução do problema.

Assim, os epifenómenos traduzidos nas notícias oficiosamente respigadas pelo tribunal, refletem toda essa inusitada situação vivida, nomeadamente, em Itália, mas não são aptos a implicar o risco de tratamento desumano ou degradante, mormente tortura, dos requerentes de proteção internacional por parte do Estado Italiano.

Temos, por conseguinte, que as notícias levadas ao acervo factual provado, a título de factos notórios, não deixando de traduzir uma «situação anómala», não são, por si só, e atentos os contornos da situação, susceptíveis de configurar motivos válidos para crer que se preenche - no caso concreto - a hipótese legal prevista no 2º parágrafo do nº2 do artigo 3º do Regulamento [EU] 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06.2013. Isto é, elas não constituem razões sérias e verosímeis de que o requerente corra o risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, mormente tortura, por parte das autoridades italianas.”.

Aliás, recentemente, por Acórdão de 21/5/2020 no P. 1300/19, a formação do 150º, não admitiu revista interposta por Requerente de asilo relativamente a Ac. do TCA que julgara neste mesmo sentido.

Não se impunha, pois, no presente caso, como se concluiu no acórdão recorrido, obrigar o SEF a averiguar acerca das indicadas condições no procedimento de asilo e no acolhimento, e, por isso, “a instruir o procedimento administrativo com informação fidedigna e atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália.”.

Deste modo, em face do antecede, é de entender que as autoridades nacionais portuguesas não se encontram obrigadas a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento quando, no caso concreto, não existam indícios de que o requerente tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente, com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artigo 3.º n.º 2 do Regulamento Dublin III.

No demais, aferindo-se ser outro o Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional e da concessão de proteção internacional, nada mais se exige ao Estado português.

Por isso, como recentemente decidido no Acórdão do STA, datado de 10/12/2020, Processo n.º 02212/19.4BELSB:

I – Não é de concluir que, independentemente de uma forte pressão migratória que se constata existir, ou ter existido, num específico Estado-Membro da União Europeia (Itália), haja indícios sérios de que um requerente de proteção internacional que para aí deva ser transferido vá ser vítima de “falhas sistémicas” com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III, ou objeto de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

II – Segundo a jurisprudência do TJUE, esse limiar de gravidade particularmente elevado só é alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tiver por consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontre, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permita fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e ter alojamento, e que atente contra a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana, aí não se abrangendo as situações que, embora caracterizadas por uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida da pessoa em causa, não impliquem uma privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de gravidade tal que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante.

III – Embora a Administração não se encontre limitada, na sua atividade inquisitória, pelas declarações do visado se, por outra forma, tiver indícios sérios de perigo de que, com a projetada transferência, este venha a sofrer, no país de destino, tratamento desumano ou degradante, não é menos certo que sempre a experiência, real e concreta, relatada pelo Autor como vivida nesse país de destino da transferência ao longo de quase 3 anos, serve como indício da inexistência, no caso, de perigo de tratamento desumano e degradante.

IV – Acresce que, sendo o país de destino da transferência um Estado-Membro da União Europeia, vigora o princípio da confiança mútua entre os Estados-Membros que impõe uma presunção de tratamento dos requerentes de asilo e de proteção internacional de acordo com o direito da UE e com os direitos fundamentais nesta vigentes, o que mais afasta a exigência de uma ulterior atividade instrutória, ou a sua justificação, a não ser perante indícios fortes e concretos em sentido contrário, que no caso se não divisam.

V - Não resultando do procedimento dos autos qualquer indício sério e concreto de que o Autor viesse a sofrer tratamento desumano ou degradante, na aceção do art. 4º da CDFUE, em resultado da sua transferência para Itália – sendo certo que nada nesse sentido se revelou nas suas declarações sobre a sua anterior vivência de quase 3 anos nesse país -, não se impunha nem se justificava qualquer atividade instrutória suplementar por parte do SEF previamente à prolação do despacho nestes autos impugnado, não se constatando, pois, défice instrutório procedimental que afete a validade do ato impugnado que determinou a sua transferência.”.

Decorrendo da matéria de facto provada que a situação concreta do Autor, ora Recorrente, não permite concluir no sentido de que a assunção da responsabilidade do Estado italiano implica, para o mesmo, a exposição ao risco, direto ou indireto, de tratamento desumano ou degradante, na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, não pode este Tribunal declarar a responsabilidade do Estado Português pela análise do pedido de proteção internacional em caus, nem tão pouco que sobre ele recaia o dever de instrução nos termos invocados pelo Recorrente.

Apenas no caso de a responsabilidade do Estado italiano pela retoma a cargo do ora Recorrente ter sido afastada se poderia considerar a responsabilidade do Estado português pela apreciação e decisão do pedido de proteção internacional, pressuposto que não se verifica.

Donde, improceder, por não provado o fundamento do recurso.

(iv) Por último, no que respeita ao erro de julgamento de direito quanto à questão da preterição dos direitos de audição, defesa e de participação, por o Relatório exibido ao requerente não configurar um relatório com informações detalhadas, em violação do artigo 17.º da Lei do Asilo, falece também razão ao Recorrente na censura que dirige contra a sentença recorrida.

Nos termos decididos na sentença sob recurso:

Invoca também o Autor, que a decisão impugnada padece de vício de forma por preterição de formalidades essenciais, designadamente, falta de elaboração de relatório e falta de notificação da proposta de decisão do SEF.

Alcança-se do probatório que em sede de procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido, foi realizada uma entrevista com o Autor, tendo por objetivo, desde logo, explicitar ao requerente de proteção que o seu pedido estaria sujeito a um procedimento especial de determinação no Estado responsável pela análise do pedido, tendo o mesmo sido questionado, designadamente, acerca do percurso realizado até chegar a Portugal e da sua entrada/estadia noutros países europeus e, bem assim, quanto a pedidos de proteção anteriormente formulados ou quanto a ter facultado as suas impressões digitais noutros Estados.

Foi, ainda, o Autor questionado acerca dos motivos subjacentes ao seu pedido de proteção internacional.

No âmbito dessa entrevista, foi, também, o Autor informado que, tendo apresentado pedido de proteção noutro país da União Europeia – Itália – nos termos do disposto no artigo 18º, nº 1, alínea d), do Regulamento nº 604/2013 tal determina a responsabilidade daquele Estado-Membro pela análise do pedido.

Confrontado com tal realidade, referiu o Autor que não queria regressar à Itália, pretendendo permanecer em Portugal, por “acreditar mais no sistema português”.

Ora, a decisão impugnada foi tomada no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, regulado no capitulo IV da Lei de asilo, tendo a respetiva tramitação um regime próprio.

No referido regime jurídico não está contemplada a elaboração de um relatório, tal como está consagrado no artigo 17.º da referida Lei, onde se prevê que, após a prestação de declarações, pelo requerente de proteção, o SEF elabora um relatório escrito do qual constam as informações essenciais relativas ao pedido e notifica o requerente para que o mesmo se possa pronunciar sobre o mesmo no prazo de cinco dias.

Ao invés, no citado Regulamento, a matéria da audiência do interessado, no âmbito do procedimento de determinação do Estado responsável pela análise dos pedidos de proteção, surge regulada no artigo 5º, referente à entrevista pessoal.

Com efeito, o mencionado artigo 5º, sob a epígrafe “Entrevista pessoal”, dispõe designadamente, que: “1. A fim de facilitar o processo de determinação do Estado-Membro responsável, o Estado-Membro que procede à determinação realiza uma entrevista pessoal com o requerente. A entrevista deve permitir, além disso, que o requerente compreenda devidamente as informações que lhe são facultadas nos termos do artigo 4.º. (…) 3. A entrevista pessoal deve realizar-se em tempo útil e, de qualquer forma, antes de ser adotada qualquer decisão de transferência do requerente para o Estado-Membro responsável nos termos do artigo 26.º, n.º 1. (…) 6. O Estado-Membro que realiza a entrevista pessoal deve elaborar um resumo escrito do qual constem, pelo menos, as principais informações facultadas pelo requerente durante a entrevista. Esse resumo pode ser feito sob a forma de um relatório ou através de um formulário-tipo. O Estado-Membro assegura que o requerente e/ou o seu advogado ou outro conselheiro que o represente tenha acesso ao resumo em tempo útil.”

Sobre a participação do Requerente de proteção subsidiária no procedimento em causa, e no sentido de não ser exigível a elaboração de relatório, mencionado no artigo 17.º da Lei de Asilo, cf. Acórdão do TCA Sul de 26.09.2019, processo n.º 751/19.6BELSB, disponível em www.dgsi.pt., onde se sumariou, designadamente, o seguinte:

“I - No procedimento especial de determinação do Estado-Membro responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional não se aplica o art.º 17.º da Lei n.º 27/2008, de 30-06, não sendo exigível a elaboração do relatório aí indicado; II – Por força do art.º 5.º do Regulamento (EU) n.º 604/2013, de 26-06, no procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional deve ocorrer uma entrevista pessoal com o requerente da proteção, que é acompanhada de um resumo escrito, que lhe será entregue. Essa entrevista serve para ouvir o requerente, para colher as suas informações, mas também para o informar acerca do seu pedido e respetivo enquadramento legal. Tal entrevista servirá, ainda, para recolher do requerente a sua pronúncia acerca da própria decisão a tomar-se no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional (…).”.

Regressando ao caso dos autos, constata-se, tal como já mencionado supra, que ocorreu a audiência prévia do Requerente, em sede da entrevista realizada, tendo, depois, sido o mesmo notificado, em língua que afirmou compreender, do teor da decisão a proferir. Verifica-se, assim, que foi devidamente cumprido o disposto no artigo 5.º do Regulamento de Dublin, tendo sido concedida, ao Autor, a oportunidade de no procedimento e, especificamente, aquando da entrevista pessoal, alegar ou explicitar aquilo que constituiria a sua situação jurídica e factual, no Estado para o qual o mesmo seria eventualmente transferido, bem como a possibilidade de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade e, consequentemente, a sua transferência para Itália.

Improcede, pelo exposto, o alegado no que se refere à violação do direito de informação, participação, audição prévia e defesa do Autor.”.

Tal como assumido na fundamentação vertida na sentença recorrida, não tem o Recorrente quanto às exigências colocadas ao Relatório.

Estando em causa um procedimento especial, de retoma a cargo do requerente de proteção internacional, nos termos do qual é outro o Estado responsável pela análise e decisão do pedido, não é exigível a elaboração de relatório, mencionado no artigo 17.º da Lei de Asilo.

Neste sentido, o tem decidido os Tribunais Superiores, afastando os pressupostos em que o Recorrente dirige a censura contra a sentença recorrida.

Além de a matéria de facto julgada provada revelar que o requerente teve oportunidade de ser ouvido e, por isso, participar no âmbito do procedimento administrativo, do mesmo modo que lhe foi transmitido o sentido da decisão provável a tomar, recusando-se qualquer violação das normas de participação, de audição e de defesa.

Pelo que, em face do exposto, não assiste razão ao ora Recorrente quanto ao suscitado.

No demais, não vem devidamente caracterizado o erro de julgamento de direito da sentença recorrida com fundamento na violação dos princípios da legalidade e da imparcialidade, nas suas vertentes positiva e negativa, bem como os princípios da boa-fé, da colaboração e do inquisitório, os quais, de resto, não se mostram violados nos termos do procedimento prosseguido pela Entidade Demandada.

Pelo que, nos termos e com as razões antecedentes, não assiste razão ao Recorrente quanto aos fundamentos do recurso em análise, sendo de manter a sentença recorrida.


*

Termos em que, em face de todo o exposto, será de negar provimento ao recurso interposto e em manter a sentença recorrida.

***

Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. O Despacho n.º 3963-B/2020, de 27 de março de 2020, proferido no âmbito da declaração do Estado de Emergência Nacional, visou acautelar todas as eventuais dificuldades acrescidas para os requerentes de proteção internacional, assegurando a regularidade de permanência em território nacional, mas não pretendeu pôr em causa o prosseguimento dos procedimentos administrativos, nem tão pouco as decisões administrativas que neles venham a ser tomadas.

II. Consequentemente, tal Despacho não afeta a validade ou sequer a eficácia das decisões administrativas tomadas no âmbito desses procedimentos.

III. Não cabe a responsabilidade ao Estado português pela apreciação e decisão do pedido de proteção internacional, se outro país é o responsável pela retoma a cargo.

IV. As autoridades nacionais portuguesas não se encontram obrigadas a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento quando, no caso concreto, não existam indícios de que o requerente tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente, com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artigo 3.º n.º 2 do Regulamento Dublin III.


*

Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e em manter a sentença recorrida.

Sem custas – artigo 84º da Lei n.º 27/2008, de 30/06.

Registe e Notifique.

A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01/05, tem voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores, Pedro Marchão Marques e Alda Nunes.

(Ana Celeste Carvalho - Relatora)