Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:7869/14.0BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:12/03/2020
Relator:JORGE CORTÊS
Descritores:IVA;
DIREITO À DEDUÇÃO;
CORRECÇÕES ARITMÉTICAS.
Sumário:i) Na imposição de correcções aos erros das declarações do contribuinte em sede de imposto liquidado, a AT não pode descurar os elementos relativos ao imposto dedutível, em nome do mecanismo do direito à dedução do imposto e da faculdade de regularização do imposto dedutível; ii) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem sublinhado que o condicionamento do direito ao reembolso pela legislação interna está sujeito à demonstração de que o encargo económico correspondente à recusa de dedução do imposto sobre o valor acrescentado foi integralmente neutralizado.
Votação:RELATOR POR VENCIMENTO - MAIORIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a 1ª Sub-Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

J................, LDA, veio, na sequência da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, deduzir Impugnação Judicial contra a liquidação adicional de IVA nº ................, referente ao ano de 2000, no valor de €18.194,35.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, por sentença de 31 de Março de 2014, julgou procedente a impugnação.
Não concordando com a sentença, a Fazenda Pública veio interpor recurso da mesma, tendo nas suas alegações formulado as seguintes conclusões:
«a) Foram violados pela douta sentença o artigo 19º do RITI, o artigo 19º do CIVA e o artigo 74º da LGT.
b) Conforme evidenciado pela douta sentença e nos autos pela fazenda, a dedução não é automática, nem resulta das disposições legais que os serviços a devessem efectuar. Com efeito, não existe uma obrigação, ao contrário da obrigatoriedade de liquidação, mas apenas o direito à dedução e, além disso, tal direito só pode ser exercido em relação ao imposto pago. Dispõe o artigo 19º do RITI que "poder-se-á deduzir ao imposto incidente sobre as operações tributáveis o imposto pago nas aquisições intracomunitárias de bens". E, considerando o direito à dedução ter natureza financeira e não física, querendo com isso significar-se que o apuramento se faz por período de imposto, sem cuidar de saber quais são os bens vendidos ou serviços prestados. A dedução em função do imposto suportado no período, tanto o relativo a bens do activo permutável como do imobilizado, tanto o suportado com consumos correntes e serviços como o relativo a matérias-primas - cfr. Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, anotado e comentado, 2ª Edição, F. Pinto Fernandes e J. Cardoso dos Santos.
c) Logo, não existe da parte da administração tributária qualquer dever no cômputo do imposto dedutível.
d) Por outro lado, na análise do direito à dedução da impugnante, a administração tributária estaria a substituir-se à mesma, uma vez ser seu o ónus da prova do mesmo e sem que a impugnante jamais tenha dado o seu assentimento à administração tributária para actuar em seu nome. "Nos casos em que esteja em causa a desconsideração do direito à dedução do IVA, no pressuposto de que as operações tituladas pelas facturas não têm aderência à realidade, não é a AT que tem de demonstrar a inexistência das operações tituladas pelas facturas, antes e ao invés, é o contribuinte, que pretende fazer valer esse invocado direito à dedução, que se impõe provar a aderência à realidade de tais operações" - Cfr. Acórdão do TCA Sul de 09/05/2007, Rec. 01500/06. Sendo que a impugnante não logrou fazer a prova, nos termos e para os efeitos do artigo 74º da LGT, nem deu assentimento à AT para actuar em seu nome.
e) No que se refere aos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, eles constam dos autos e da douta sentença, tendo sido juntos quer pela impugnante/recorrida, quer pela fazenda.
As presentes alegações de recorrente são enviadas no terceiro dia útil seguinte após o último dia de prazo não sendo paga a multa nos termos do artigo 145/5 do CPC na sequência do Acórdão proferido pelo STA, processo nº 0985/12, de 31/10/2012, nos termos do qual "nos processos instaurados antes de 1 de Janeiro de 2004, a fazenda pública, por estar isenta de custas, pode usar da faculdade prevista no art.º 145°, nº 5.º, do CPC, sem sujeição à multa aí cominada".
Pelo que, com o mais que Vossas Excelências se dignarão suprir, deve ser dado provimento ao recurso e em consequência ser revogada a decisão recorrida.»
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A recorrida, devidamente notificada para o efeito, optou por não contra-alegar.

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O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo, devidamente notificado para o efeito, ofereceu aos autos o seu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Com dispensa de vistos, vem o processo submetido à conferência desta 1ª Sub-Secção do Contencioso Tributário para decisão.

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II – FUNDAMENTAÇÃO
1. De facto

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

« A)   A impugnante é uma pessoa colectiva, com o NIPC ................, sujeito passivo enquadrado no regime normal de periodicidade mensal e dedica-se à actividade de comercialização de veículos automóveis, com o CAE 50100 [cf. relatório de inspecção de fls. 4 a 30 do PA apenso].

B)      Durante o ano de 2000 a impugnante adquiriu ao operador alemão “Mapa Elektronick GmbH”, Contribuinte n° DE ................, as seguintes viaturas:


«imagem no original»

C) Em cumprimento da Ordem de Serviço n° 7804, de 31-01-01, a impugnante foi alvo de uma acção de inspecção incidente sobre IRC e IVA dos anos de 1999 e 2000, com início em 15-02-01 e fim em 31-07-01 [cf. relatório de inspecção de tis. 4 a 30 do processo administrativo (PA) apenso].

D) Em 31-07-2001 foi elaborado o relatório final de inspecção de fls. 4 a 30 do PA apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e do qual consta, além do mais, o seguinte:

«(...)

Capítulo III - Descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas à matéria tributável

2- IRC

2.1.      -2000

2.2.1.   — Análise Compras

1 - Do confronto entre elementos arquivados no processo individual e os registos na contabilidade, detectamos a omissão do registo da compra da viatura matrícula ................, marca BMW, no valor de 1.950.000S00. Esta viatura usada, foi adquirida a um particular pela retoma da venda da viatura .................

2- Através do sistema informático IVA - VIES, verificamos que existiam divergências nas aquisições intracomunitárias efectuadas pela empresa. Analisados os documentos de compras registadas na contabilidade, constatamos que o sujeito passivo para além do valor da compra da viatura também incluía no campo 10 da D.P. o valor do I.A. Elaborou-se o quadro seguinte a fim de apurar divergências entre o valor do VIES e a contabilidade, já que em relação aos valores da D.P. estas existem uma vez que foi incluído o valor do imposto automóvel.


«imagem no original»


Da análise deste quadro verificamos a existência de divergências positivas, ou seja o sujeito passivo em análise não registou todas as aquisições declaradas pelos operadores comunitários, no entanto, algumas compensam-se de um trimestre com outro, à exceção do operador alemão, NIF ................, em que as diferenças se verificam no 2°, 3º e 4° trimestres.

Solicitado esclarecimento ao sócio gerente, este referiu-nos que ia confirmar junto do seu fornecedor, pedindo o envio de todas as facturas por ele emitidas neste exercício.

Confrontamos todos os documentos enviados com os registados na contabilidade, constatamos a omissão de registo dos seguintes:


«imagem no original»

            Do exposto no n° 1 e 2, existe nos termos do artigo 23° do CIRC, omissão de compras no montante de 23.278.500$00.

            2.2.2.   Análise Vendas

Do mesmo modo, a referida viatura usada, matrícula ................, não consta do inventário, e conforme declarado pelo sócio gerente em auto de declarações, cf Anexo I, foi vendida no final do exercício pelo valor de 2.100.000$00.

Consideramos que este valor de venda é aceitável, já que se encontra dentro da margem normal por ele praticada. Regista-se assim, nos termos do artigo 20° do CIRC, omissão de vendas no valor de 2.078.205500 (2.100.000$00 - IVA de 21,795$00, cf. 2.3).

(...)

2.3 - IVA

1 - De acordo com o referido no ponto 2.2.2., a venda de viatura usada, encontra-se sujeita a IVA, nos termos do n° 1 do artigo Io do CIVA. Para determinação do valor do IVA em falta, propõe-se a tributação pela margem, nos termos do Dec. Lei 199/96 de 18/10.

Assim o imposto em falta, nos termos do n° 1 do artigo 26° do CIVA, no período de 0012, é de 21.795S00, cf. Cálculos:

Margem: (2.100.000S00 - 1.950.000$00) = 150.000$00

Valor IVA: 150.000500/1,17 *0,17 = 21.795500

2 - Nas facturas, em Anexo II, descritas no n° 2 do ponto 2.2.1., no valor de 21.328.500500, referente à aquisição de viaturas e extras, ao s. p. alemão, NIF ................, não é indicada a opção pela tributação de bens em 2ª mão, considerando-se que se trata de aquisições intracomunitárias, nos termos da alínea a) n° 1 do artigo Io e do artigo 3º do RITI, e como tal encontram-se sujeitas a IVA nos lermos da alínea c) n° 1 do artigo 1º do CIVA, competindo-lhe a liquidação do imposto nos termos do artigo 23° e 28° ambos do RITI.

Daí que se verifique imposto em falta no total de 3.625.845S00, discriminado pelos seguintes períodos de imposto:


«imagem no original»


Capitulo IV — Motivos e exposição dos factos que implicam o recurso a métodos indirectos

(...)

Capitulo V - Critérios e cálculos dos valores corrigidos com recurso a métodos indirectos

1. - Propõe-se que as vendas, sejam calculadas com recurso a métodos indirectos, nos termos da alíneas d) do n° 1 do artigo 51° do e alínea c) do artigo 88° da L.G.T. A determinação do lucro tributável será efectuada com base na alínea a) do n°l do artigo 90° da L.G.T.

2. Determinação Valor Presumível Vendas

2.1.- IRC/2000

O sujeito passivo adquiriu viaturas, conforme referimos no n° 2 do ponto 2.2.1., que não registou na contabilidade. De acordo, com artigo 80° do CIVA, as referidas viaturas presumem-se vendidas.

Para cálculo do valor de venda consideramos a margem média aplicada para viaturas usadas, registada na contabilidade, de 5%, já que o sócio gerente referiu que se tratava de viaturas usadas, (consideram-se apenas as vendas das viaturas registadas antes do inicio da acção de fiscalização).


«imagem no original»

No valor de custo das viaturas não se considerou o Imposto Automóvel, porque possivelmente estas foram legalizadas em nome de terceiros (eventualmente em nome dos adquirentes-destinatários), uma vez que não constam das listagens enviadas pela Direcção Geral da Alfândega (1999-2000).

2 - Para além da omissão das vendas de viaturas usadas, também não registou a aquisição de extras adquiridos para as viaturas ................ vendida em 1/09/2000, para a qual apurou uma margem de comercialização de 5%. Neste caso, consideramos razoável a aplicação da mesma margem ao valor dos extras, donde resulta o valor presumível de 507.914$00 (483.727$00* 1,05%).

Deste modo, nos termos do artigo 20 do CIRC, existe omissão de vendas 21.011.442$00.

2.2. - IVA

As vendas de mercadorias omitidas, no valor de, 21.011.442$00 são passíveis de IVA nos termos do n° 1 do artigo 1º do CIVA. Assim, conforme o estabelecido nos artigos 26°, 82° do mesmo diploma, existe imposto em falta, à taxa de 17%, no valor 3.571.945$00.

Considerou-se que a venda das viaturas ocorreu no mês de Dezembro e os extras da viatura ................ no mês de Setembro (veículo vendido em Setembro), sendo o imposto em falta nos períodos 0009 de 86.345$00 e 0012 de 3.485.600$00.

Apesar do valor do imposto em falta ser referente a viaturas usadas, e conforme já referido, uma vez que na factura de aquisição emitida pelo sujeito passivo alemão não é mencionado a opção pelo regime de bens em 2a mão, consideramos que esta segue o regime geral, daí que na transmissão se liquide o imposto sobre o valor da venda.

(...)

Capítulo IX — Direito de audição-fundamentação

O sujeito passivo foi notificado nos termos do artigo 60° da L.G.T. e artigo 60° do R.C.P.I.T., a fim de exercer o direito de audição, tendo apresentado uma exposição, na qual dá conta que não adquiriu nem vendeu as viaturas identificadas no ponto 2.1. do capítulo VI desta informação.

Ora, no Anexo II, constam as facturas, desses veículos, emitidas pelo sujeito passivo registado na Alemanha - Mapa Electronik GMBH, Nif ................, cedidas pelo s.p. em análise, que não se encontravam registadas na contabilidade. Refira-se que estes documentos foram declarados pelo fornecedor alemão, uma vez que constam do sistema- VIES (última consulta - print 30/07/01)

Deste modo, e de acordo com os elementos que dispomos, concluímos que o sujeito passivo adquiriu as viaturas, e uma vez que não constam do inventário, presumem-se vendidas, mantendo-se os valores inicialmente apurados (...)».

E) Em resultado das conclusões extraídas na acção de inspecção, foram efectuadas, em sede de IVA do ano de 2000, correcções com recurso a métodos indirectos no montante de 3.571.945$00 e correcções de natureza meramente aritmética no montante de 3.647.640$00 [cf. relatório de inspecção de fls. 4 a 30 do PA apenso].

F) Na sequência da correcção de natureza meramente aritmética identificada na alínea anterior, com fundamento no artigo 82° do CIVA, foi elaborada a nota de apuramento Mod. 382, com vista ao apuramento do IVA a liquidar no valor 3.647.640$00 [cf. fls. 87 e verso do PA apenso].

G) Em 01-11-2001 a Administração Tributária procedeu à emissão das seguintes liquidações adicionais em sede de IVA:


«imagem no original»

H) Em 20-12-2001, a impugnante apresentou na Repartição de Finanças de Almeida reclamação graciosa, dirigida ao Director de Finanças da Guarda, tendo por objecto as liquidações identificadas na alínea anterior, fls. 69 a 70 do PA apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e da qual o seguinte: «(...) se o sujeito passivo não fez a mera operação contabilística deve esta ser feita, oficiosamente, pela administração fiscal. Não sendo devido o imposto, pois a liquidação quando efectuada, implica a dedução automática, sendo apenas uma mera operação contabilística, os juros correspondentes aos valores dos impostos mal liquidados pela administração fiscal de são necessariamente também indevidos. Assim, requer-se a anulação das liquidações controvertidas, uma vez que são indevidas pelas razões atrás expostas».

I) Em 28-07-2003, o Director de Finanças elaborou o projecto de indeferimento da reclamação graciosa, constante de fls. 149 a 151, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, onde além do mais se pode ler o seguinte: «(...) Quanto à dedução do imposto liquidado: Não se trata de uma dedução ou operação automática, nem resulta das disposições legais que os Serviços a devessem efectuar; Com efeito, não existe obrigação, mas apenas o direito de dedução, e além disso tal direito só pode ser exercido em relação ao imposto pago (art° 19° n° 1 do citado RITI); Contudo, não tendo sido exercido em tempo tal direito, não se encontrará a reclamante impedida de requerer autorização para efectuar a dedução, nos termos do n° 7 do artigo 71° do Código do IVA, posto que se encontre pago o imposto dedutível. Relativamente aos juros compensatórios, considerando que estando o sujeito passivo obrigado a liquidar o imposto, tinha igualmente o direito à sua dedução e atendendo que, caso tivesse procedido de acordo com as normas aplicáveis quanto à liquidação e dedução, não se apuraria imposto a entregar ao Estado relativamente às referidas aquisições, entender-se não serem devidos os juros compensatórios, conforme despacho do S. Exa o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de 1997.07.28. Com os fundamentos expostos: indefiro o pedido quanto à liquidação de IVA, a qual deve manter-se por não sofrer de qualquer vício; defiro-o quanto aos juros compensatórios correspondentes ao IVA liquidado pelas aquisições intracomunitárias, mantendo-se o respeitante à falta de liquidação de IVA pela alienação da viatura matrícula ................ (...)».

J) Em 29-07-2003 foi enviado à impugnante o ofício n° 5121 através de carta registada com aviso de recepção a comunicar-lhe o projecto de decisão a que se refere a alínea anterior e para querendo exercer o direito de audição [cf. fls. 152 a 154 do PA apenso].

K) Em 28-08-2003, o Director de Finanças proferiu despacho a converter em definitivo o projecto de indeferimento da reclamação graciosa [cf. fls. 155 do PA apenso].

L) Em 02-09-2003 foi enviado à impugnante, através de carta registada com aviso de recepção, o oficio n° 5583 a comunicar-lhe a decisão identificada na alínea anterior [cf. fls. 156 e 157 do PA apenso].


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Nada mais se provou com interesse para a decisão da causa.

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Motivação: A decisão da matéria de facto efectuou-se com base nos documentos juntos aos autos e no processo administrativo apenso, conforme discriminado em cada uma das alíneas dos factos provados.

Quanto ao facto descrito na alínea B) dos factos provados, o Tribunal atendeu aos documentos juntos a fls. 20 a 26 do Processo Administrativo apenso, os quais consistem em facturas emitidas pelo operador alemão “Mapa Elektronic GmbH”. Foi exactamente com base nestas facturas que a administração tributária concluiu pela aquisição dos bens descritos no relatório de inspecção tributária.

Para abalar a convicção que o Tribunal possa formar com base em tais documentos a impugnante veio alegar que a emissão de tais facturas se deveu a um mero lapso de facturação.

Para prova da sua tese juntou aos autos declarações, não datadas, constantes de fls. 12 dos autos e de fls. 75 dos autos, subscritas por A................, na qualidade de gerente do operador alemão.

No contexto da prova produzida, o Tribunal desvalorizou os referidos documentos, na medida em que se tratam, no fundo, da prestação de um depoimento por escrito, fora das circunstâncias legalmente admissíveis pela lei de processo, subtraído ao exercício do contraditório em audiência. Por outro lado, não se afigura verosímil, de acordo com as regras da experiência, que a emissão de diversas facturas, em datas distintas, se deva a um mero lapso de facturação por parte do operador alemão, sendo certo que se tal tivesse de facto ocorrido sempre o operador alemão teria emitido as correspondentes notas de crédito e não meras declarações.

Também a circunstância das referidas transacções terem correspondência no sistema IVA-VIES contribui para a falta de credibilidade da existência de um erro no processamento das facturas.»


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2.2. De Direito
2.2.1. A presente intenção recursória centra-se sobre o alegado erro de julgamento em que terá incorrido a sentença recorrida, ao julgar procedente a impugnação, na parte relativa à omissão da correcção do IVA dedutível, porquanto, sustenta a recorrente, terão sido violados os preceitos dos artigos 19.º do RITI, 19.º do CIVA e 74.º da LGT.
2.2.2. A sentença julgou a impugnação procedente e, «em consequência, anulou parcialmente o acto de liquidação impugnados, na parte relativa à correcção de 3.625.845$00».
Para assim proceder, a sentença estruturou, em síntese, a argumentação seguinte:
«No caso dos autos, conforme decorre do relatório de inspecção, os serviços de inspecção tributária procederam a uma correcção ao IVA do ano de 2000, no valor de 3.625.845$00, correspondente ao imposto incidente sobre a aquisição intracomunitária de sete viaturas e extras omitidas na contabilidade e que a impugnante estava obrigado a auto-liquidar nos termos do artigo 23° do RITI. // Com fundamento naquela correcção a AT procedeu oficiosamente à rectificação da declaração do sujeito passivo nos termos do artigo 82° do CIVA, tendo liquidado IVA a favor do Estado em substituição do sujeito passivo, mas fê-lo, desconsiderando o direito à dedução do respectivo imposto, sendo essa a única razão pela qual resultou imposto a pagar pelo sujeito passivo. // E neste ponto, importa salientar que a AT reconhece que caso o contribuinte tivesse cumprido o sua obrigação declarativa não seria devido qualquer imposto a favor do Estado, sendo precisamente esse reconhecimento que levou o Director de Finanças, em sede de reclamação graciosa, a determinar, e bem, a nosso ver, a anulação das liquidações de juros compensatórios (cf. alínea I) do probatório). // No entanto, exigências de justiça material impunham que a própria liquidação fosse anulada, não se compreendendo a falta de congruência do assim decidido, dada a relação umbilical entre os juros compensatórios e a liquidação. // Na verdade, embora inexista norma positiva que imponha à AT o dever de deduzir ofíciosamente o imposto em situações como a dos presentes autos, certo é que tal obrigação decorre dos princípios que orientam a actividade administrativa tributária. // A actividade da AT deve guiar-se pelo cumprimento de dois deveres: o dever de repor a verdade material quanto à determinação da matéria colectável e o dever de prossecução do interesse público. (…) // No caso dos autos, não sendo a actuação da AT consentânea com o princípio da justiça, a liquidação resultante de tal actuação administrativa padece de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto, devendo em consequência ser anulada na parte relativa à correcção de 3.625.845$00, referente à aquisição intracomunitária de sete viaturas e extras de duas viaturas».
2.2.3. A recorrente não se conforma com o veredicto que fez vencimento na instância, porque entende que não existem qualquer obrigação legal a cargo da AT de proceder ao cálculo do imposto dedutível e de proceder, de forma oficiosa, ao apuramento e reembolso do mesmo.
Apreciação. Está em causa correcção aritmética à base tributária do IVA, por omissão de compras (V. alínea D), RIT, capitulo III e RIT, 2.3., n.º 2). O procedimento da AT foi o de adicionar o imposto em falta, no montante de 3.625.845$00, em virtude da omissão de liquidação no momento da aquisição, sem, contudo, contabilizar o imposto dedutível, o qual seria acionável através da declaração periódica correspondente. Instada pelo contribuinte a realizar a correcção da liquidação em seu favor, a AT rejeitou o pedido, com base no argumento de que não existem deduções automáticas ou oficiosas, devendo o contribuinte apresentar requerimento no sentido pretendido (alíneas H) e I, do probatório).
Vejamos.
«Estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado (IVA): // As aquisições intracomunitárias de bens efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo dos referidos no n.º 1 do artigo 2.º, agindo como tal, quando o vendedor for um sujeito passivo, agindo como tal, registado para efeitos do IVA noutro Estado-membro, que não esteja aí abrangido por um qualquer regime particular de isenção (…)» (artigo 1.º/a), do Regime do IVA nas transacções intracomunitárias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 290/92, de 28 de Dezembro - RITI[1]).
«São considerados sujeitos passivos do imposto pela aquisição intracomunitária de bens: // As pessoas singulares ou colectivas mencionadas na alínea a), do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, que realizem transmissões de bens ou prestações de serviço que conferem direito à dedução total ou parcial do imposto» (artigo 2.º/1/a), do RITI).
«Para efeitos da aplicação do disposto no artigo 19.º do Código do IVA, poder-se-á deduzir ao imposto incidente sobre as operações tributáveis o imposto pago nas aquisições intracomunitárias de bens»[2]. «O Direito à dedução do imposto devido pelas aquisições intracomunitárias de bens nasce no momento em que o mesmo se torne exigível, de acordo com o estabelecido no artigo 13.º»[3]. «Nas aquisições intracomunitárias de bens, o imposto torna-se exigível: // a) no 15º dia do mês seguinte àquele em que o imposto é devido// b) Na daa da emissão da factura ou documento equivalente, se tiverem sido emitidos entes do prazo previsto na alínea a)»[4].
A questão que se suscita nos autos consiste em saber se, uma vez efectuada correcção à base tributável do IVA, por omissão de compras, no âmbito de aquisições intracomunitárias, o IVA suportado e dedutível, a propósito das referidas aquisições, não deve ser apurado e liquidado pela AT, por referência à declaração periódica objecto da correcção em causa, se para tal for instada pelo contribuinte.
A este propósito, cumpre ter presente o princípio da neutralidade do IVA, associado ao direito à dedução do imposto suportado pelo sujeito passivo. Elementos estruturantes do IVA são o princípio da neutralidade e, em particular, o direito à dedução, enquanto parte integrante do mecanismo do imposto[5]. O princípio constitui uma aplicação do princípio geral da igualdade de tratamento[6]. De acordo com este, nomeadamente, «as diferentes categorias de operadores económicos que se encontrem numa situação comparável [devem ser] … tratados de maneira idêntica para evitar qualquer distorção da concorrência no mercado interno»[7]. O «princípio da neutralidade fiscal deve ser interpretado no sentido de que uma diferença de tratamento em termos de IVA de duas prestações de serviços idênticas ou semelhantes do ponto de vista do consumidor e que satisfazem as mesmas necessidades deste basta para demonstrar uma violação deste princípio», sem que se exija «que também seja demonstrada a existência efectiva de concorrência entre os serviços em causa ou uma distorção da concorrência causada pela referida diferença de tratamento»[8]. Por seu turno, o direito à dedução constitui mecanismo de garantia da neutralidade do imposto. O princípio da neutralidade exige que o imposto incidente sobre os inputs de qualquer actividade económica tributável seja inteiramente dedutível[9].
No caso em exame, é pacífico que o adicionamento à base tributável imposta pela correcção em apreço determinou o aumento do imposto a liquidar pelo sujeito passivo, ora impugnante. No entanto, com base no entendimento de que a dedução está dependente de requerimento, a operação contabilística de correcção da declaração periódica do contribuinte, com a inscrição do imposto dedutível no período em causa, por referência à operação económica em referência não foi realizada pela AT. Os argumentos que sustentam a recusa em realizar o cômputo do imposto dedutível consistem no seguinte[10]: (i) «não existe obrigação, mas apenas o direito de dedução, e além disso tal direito só pode ser exercido em relação ao imposto pago (art° 19° n° 1 do citado RITI)»; «não tendo sido exercido em tempo tal direito, não se encontrará a reclamante impedida de requerer autorização para efectuar a dedução, nos termos do n° 7 do artigo 71° do Código do IVA, posto que se encontre pago o imposto dedutível»; (ii) «considerando que estando o sujeito passivo obrigado a liquidar o imposto, tinha igualmente o direito à sua dedução e atendendo que, caso tivesse procedido de acordo com as normas aplicáveis quanto à liquidação e dedução, não se apuraria imposto a entregar ao Estado relativamente às referidas aquisições» (alínea I). Ou seja, tal recusa funda-se no facto de que o contribuinte não ter apresentado requerimento, no tempo próprio, com vista à dedução do imposto pago, com o comprovativo do pagamento do imposto em causa.
«Em casos devidamente justificados, a correcção de [erros materiais] de que tenha resultado imposto entregue a mais pode ainda ser autorizada nos quatro anos civis seguintes ao período a que se reporta o erro, mediante requerimento dirigido ao director-geral dos impostos» (artigo 71.º/7, do CIVA).
No caso dos autos, o contribuinte dirigiu à AT pedido de reembolso do imposto dedutível, tendo por base a operação de aquisição em causa e a correcção aritmética imposta à declaração periódica nos termos do artigo 82.º do CIVA (alínea H). Por seu turno, a AT reconhece que, caso fosse contabilizado o imposto dedutível, a liquidação do imposto em causa seria nula (alínea I), mas entende que a operação só pode ser realizada na sequência de requerimento a apresentar pelo contribuinte.
De onde se impõe concluir que a exigência de apresentação de requerimento com vista à dedução do imposto, juntamento com o comprovativo do pagamento do mesmo, não se mostra conforme com o regime do IVA, concretamente, com a faculdade que assiste ao contribuinte de correcção de erros materiais das suas declarações (artigo 71.º/7, do CIVA). e, em particular, colide com o princípio da neutralidade do imposto.
O contribuinte liquidou e pagou o imposto pela aquisição dos bens em causa, mas viu ser-lhe cerceado o direito à dedução do imposto suportado pela referida aquisição, o que mostra que o mecanismo do IVA, aplicado pela AT interfere com o resultado da actividade económica do sujeito passivo, ao invés da ideia de indemnidade imposta pelo princípio da neutralidade do IVA.
A este propósito, o Tribunal de Justiça da União Europeia [TJUE] teve ocasião de sublinhar que «no caso de a exclusão do regime de deduções não ter sido estabelecida em conformidade com as disposições da Sexta Directiva, as autoridades fiscais nacionais não podem opor a um sujeito passivo uma disposição derrogatória ao princípio do direito a dedução do IVA (…). // Caso o sujeito passivo tenha sido sujeito a essa medida, deve poder recalcular a dívida de IVA que lhe incumbe, em conformidade com o artigo 17.°, n.° 2, da Sexta Directiva, se os bens e os serviços tiverem sido utilizados para as necessidades inerentes a operações tributadas (…)».[11]
O TJUE referiu também que «O princípio do reembolso dos impostos cobrados por um Estado‑Membro em violação das regras do direito da União deve ser interpretado no sentido de que permite a esse Estado recusar o reembolso de uma parte do imposto sobre o valor acrescentado, cuja dedução tinha sido proibida por uma medida nacional contrária ao direito da União, (…) na condição de o encargo económico correspondente à recusa de dedução do imposto sobre o valor acrescentado ter sido integralmente neutralizado (…)»[12].
Do exposto se infere que a sentença recorrida ao julgar procedente a impugnação e anular a liquidação, na parte respeitante à correcção em causa, não incorreu em erro, devendo ser mantida na ordem jurídica, ainda que com a presente fundamentação.
Termos em que se julgam improcedentes as presentes conclusões de recurso.

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III- Decisão

Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da 1ª Sub-Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.
Lisboa, 03 de Dezembro de 2020

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( Jorge Cortês)

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(Isabel Fernandes)-VENCIDA

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(Lurdes Toscano)




Vencida. Concederia provimento ao recurso pelas razões expostas no projecto de Acórdão que elaborei, nos seguintes termos:

 “No caso dos autos, a AT, na sequência de acção inspectiva incidente sobre IRC e IVA dos anos de 1999 e 2000, efectuou a liquidação adicional de IVA referente ao ano de 2000 objecto da presente impugnação.

A sentença recorrida, considerou parcialmente procedente a impugnação judicial, tendo anulado parcialmente a liquidação adicional de IVA do ano de 2000 impugnada, por ter acolhido o entendimento de que, não sendo a actuação da AT consentânea com o princípio da justiça, a liquidação de IVA resultante da actuação administrativa padece de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto, pela circunstância de a AT não ter considerado o direito à dedução de imposto, o que deu origem à existência de imposto a pagar por parte do sujeito passivo.

Dissente do decidido a Recorrente Fazenda Pública por entender que a dedução do IVA não é automática, nem que resulte das disposições legais aplicáveis que os serviços da AT a devessem efectuar.

Adiantemos que a razão está do lado da Recorrente.

Não existem dúvidas que o direito à dedução do IVA é um direito que assiste à Recorrida, como resulta do teor dos artigos 19º do CIVA e 19º do RITI (na redacção à data aplicável). Porém, esse direito não só não é automático, como para o exercer o sujeito passivo tem ónus a cumprir ao nível dos requisitos formais e, no que ao aqui interessa, o dever de o impulsionar. Por outras palavras, é ao sujeito passivo que cabe exercer o seu direito à dedução.

O que significa que, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, não cabia à AT proceder à dedução do IVA, nem tal obrigação pode resultar dos princípios que norteiam a actividade administrativa que, como é sabido, está obrigada a cumprir o princípio da legalidade, não lhe sendo permitido actuar contra o regime legal estabelecido.

Acresce que o facto de não ter a dedução sido efectuada oficiosamente não impedia a Recorrida de a ter solicitado, como, aliás, refere a Recorrente nas alegações de recurso. Sendo certo que um eventual incumprimento dos prazos legais para o efeito nunca poderá ser imputável à AT, mas antes ao sujeito passivo, uma vez que foi a circunstância de não ter contabilizado devidamente as facturas em causa que deu origem à liquidação adicional de imposto.

Assim sendo, resta concluir que a sentença recorrida não se pode manter, já que a procedência do recurso determina a sua revogação e, consequentemente, a improcedência da impugnação judicial.”


(Isabel Fernandes)

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[1] V. também artigo 28.º-A, n.º 1, al. a), da Directiva 77/388/CEE, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, In https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:01977L038820060101&from=EN#tocId15

[2] Artigo 19.º/1, do RITI V. artigo 28.º-F da Directiva 77/388/CEE, de 17 de Maio de 1977, citada.

[3] Artigo 20.º/1, do RITI.

[4] Artigo 13.º/1, do RITI.

[5] De acordo com tal princípio, «o imposto neutro é aquele que não interfere nas decisões dos agentes económicos, deixando a produtores a liberdade de escolher o que produzir e como produzi-lo (neutralidade do produtor), ao mesmo tempo que deixa a consumidores a liberdade de escolher o que consumir sem os afastar da sua inclinação natural (neutralidade do consumidor)». V. Sérgio Vasques, O imposto sobre o valor acrescentado, Almedina, Coimbra, 2015, p. 105.

[6] V.g., Acórdão do TJUE, de 29.10.2009, P. C-174/08, §§ 40 e 41; e Acórdão do TJUE de 08.05.2019, C‑566/17, § 36.

[7] Acórdão do TJUE, de 29.10.2009, P. C-174/08, citado, § 44.

[8] Acórdão do TJUE, de 10.11.2011, P. apensos C-259/10 e 260/10, §36.

[9] V. Sérgio Vasques, O imposto sobre o valor acrescentado, Almedina, Coimbra, 2015, p. 109

[10] Alínea I).

[11] §§33 a 35, do Acórdão de 23/04/2009, P. C‑74/08, in http://curia.europa.eu/juris/document/document_print.jsf?docid=77985&text=&dir=&doclang=PT&part=1&occ=first&mode=lst&pageIndex=0&cid=15000531

[12] Acórdão de 16/05/2013, P. C‑191/12, in http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=137423&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=15001259