Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:486/19.0 BELRA-A
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:01/25/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:ESCUSA DE JUIZ
MOTIVOS JUSTIFICATIVOS
Sumário:I- Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 119.º do CPC (pedido de escusa por parte do juiz), “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
II- De acordo com o art. 121.º, n.º 1, al. g), do CPC, constitui fundamento de suspeição a existência de “inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários”.
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

1. A Senhora Juíza de Direito, Dra. A ……………….., a exercer funções no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria e na Equipa de Recuperação de Pendência da Zona Centro, área administrativa, veio, ao abrigo do disposto no artigo 119º, nº1, do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, pedir que lhe seja concedida dispensa de intervir na acção administrativa com o n.º 486/19.0 BELRA que lhe foi distribuída na sequência do Despacho n.º 3/2022, de 11 de Janeiro, da Senhora Juíza Presidente dos TAF´s da Zona Centro e, em que a ali Autora, A........- Comércio ………….., Lda, constituiu como seus mandatários, os advogados, Dr. A.J. ………. e Dra. I …………. .

A justificar a pretensão deduzida, a Senhora Juíza alega, à semelhança aliás do que fizera no âmbito do processo nº 830/07.2BELRA, que os advogados que foram constituídos são seus familiares, embora num grau não enquadrável na previsão do artigo 115.º, n.º 1, alínea b) do CPC. São, contudo, pessoas da sua família com quem mantém convivência regular, pois “são visita regular de casa , com quem, designadamente, passam a véspera e o dia de Natal, passagens de ano, casamentos e aniversários, desde que a memória permite alcançar e até ao momento presente, com excepção do período em que foram impostas medidas restritivas relativas à pandemia por SARS-CoV-2”.

2. Com o pedido de escusa junta certidão emitida pela secção de processos de onde consta, designadamente, uma procuração passada pela Autora nos autos principais, A........- Comércio ……………. Lda, a favor dos Ilustres Mandatário, os advogados, Dr. A.J. …….. e Dra. I …………..

3. Apreciando:

4. Considerando que o presente pedido de escusa se funda nas mesmas circunstâncias que foram elencadas no anterior pedido formulado no processo n.º 830/07.2BELRA, já decidido neste Tribunal Superior, e inexistindo razões para divergir do ali determinado, limitar-nos-emos a acompanhar o que foi dito.

Escreveu-se no incidente processual de escusa de 12.02.2021(proc. n.º 830/07.2BELRA-A) que:

“(…)

5. Estatutariamente aos juízes na sua missão de julgar é exigido, como garantia do seu exercício, que o façam com o dever de independência e imparcialidade, nos artigos 4º e 7º, do EMJ, aprovado pela Lei nº21/85, de 30-7, sucessivamente alterado e republicado pela Lei nº 67/2019, de 27-8.

6. Julgar com independência é fazê-lo sem sujeição a pressões, venham elas de onde vierem, deixando fluir o curso do pensamento com sujeição apenas à lei, à consciência e as decisões dos tribunais superiores e ser imparcial é posicionar-se numa posição acima e além das partes, dizendo o direito aplicável na justa composição de interesses cuja resolução lhe é pedida.

7. Pode dizer-se, de um modo geral, que a causa de recusa do juiz, ou pedido de escusa do juiz, há-de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com algum dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o objecto da sua decisão – cfr. Alberto do Reis, Comentário, vol. I, pag.439 e ss. .

8. Esses especiais contactos e/ou relação(ões) deverão ser de molde a criarem uma predisposição favorável ou desfavorável no julgamento e deverão ser aferidos tendo em conta o juízo que um cidadão médio, representativo da comunidade, possa, fundadamente, fazer sobre a imparcialidade e independência do juiz – cfr. acórdão da Relação de Évora de 5-3-96, CJ, tomo II, pag. 281.

9. Na verdade, a imparcialidade é um atributo fundamental dos juízes e da função judicial que visa garantir o direito de todos os cidadãos a um julgamento justo e equitativo. Recai sobre os julgadores o dever de adoptar uma conduta pessoal, social e profissional que, aos olhos de uma pessoa razoável, bem informada e de boa fé, seja entendida como íntegra, leal e correcta.

10. É “a confiança pública nos juízes (que) garante o respeito pelas suas decisões e o prestígio e boa imagem da Administração da Justiça e do próprio Estado de direito democrático. Essa percepção social da incorruptibilidade, probidade e honestidade dos juízes não pode ser minimamente beliscada por qualquer atitude do juiz que a ponha em causa” , estando constantemente, sujeito a escrutínio público, ao juiz exige-se que evite “comportamentos que ponham em causa a confiança nas suas qualidades para administrar a Justiça, tendo sempre presente que o seu exemplo pessoal quotidiano é relevante…” [Compromisso Ético dos Juízes Portugueses - Princípios para a Qualidade e Responsabilidade”, documento aprovado no oitavo congresso dos juízes portugueses, editado pelo ASJP.].

11. «No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade. (2) – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança. (3) – A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição -art.32.º, n.º9-, só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita.» (cfr. acórdão do STJ de 14-6-2006, processo nº1286/06-5).

12. Deste breve excurso, podemos resumir os contornos essenciais da questão - escusa - a um único objectivo ou finalidade qual seja o de garantir a imparcialidade do juiz, que se presume e que só em situações limite por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal, deve o mesmo ser escusado de intervir num processo.

13. É, pois essencial que o cargo de juiz seja rodeado de cautelas para assegurar que seu desempenho funcional se faça com isenção e independência de molde a garantir que a comunidade confie nele, pois a confiança da comunidade nas decisões é essencial ao administrar a justiça “em nome do povo”, além de que só assim se materializa o direito constitucionalmente previsto dos cidadãos a um processo justo, nos termos, respectivamente, dos artigos 202, nº1 e 32º, nº1 da CRP. ( cfr. acórdão do TC n.º124/90 de 8-2)

14. Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a entender imparcialidade e objectividade exigidas para se dizer o direito, deve ser apreciada num duplo sentido: “numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done.

Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.» (cfr. notas para um processo equitativo, análise do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à luz da jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem», in Documentação e Direito Comparado, nºs. 49/50, pp. 114 e 115)

15. Volvendo ao caso dos autos temos por seguro que, neste incidente não se discute a imparcialidade subjectiva da juiz escusante (que se presume até prova em contrário), nem se põe em causa que, se porventura viesse a julgar esta acção, o faria seguramente de modo independente e imparcial, apesar da relação familiar que a une [aos mandatários da Autora].

16. E, apesar de não existir laços de parentesco ou de afinidade entre o Exmª Juíza requerente e os mandatários da Autora [Dr. A.J. …………. e a Dra. I …………], que legitimem o seu pedido de escusa ao abrigo do estatuído na alínea b) do nº1 do artigo 115º do CPCivil , a relação de grande convivência e proximidade que a escusante diz manter com estes advogados, alicerçada no grau familiar que os une e que é fortalecida ao longo dos anos por um convívio regular, (visita da casa, com quem se reúne na véspera, dia de Natal, passagens de ano, casamentos e aniversários, desde que a memória permite alcançar e até ao momento presente), pode criar dependências ou solidariedades que são em certos casos tão (ou mais) fortes do que as que se surpreendem no seio da família nuclear.

17. Ora tendo em conta o circunstancialismo de facto relatado e o estatuído na alínea g) do nº1 do artigo 120º do citado Código, é legítimo e procedente o pedido de escusa da Mmº Juiz, por existir grande intimidade, (ou pelo menos amizade e convivência) entre ela o mandatário da contra-interessada, o que poderia levar os demais intervenientes processuais a contraparte a suspeitar da sua imparcialidade, razão pela qual se entende ser de deferir a sua pretensão.

À luz do que fica dito, terá que concluir-se que as razões invocadas pela escusante são enquadráveis na alínea g) do n.º 1 do artigo 120.º do CPC.

5. Decidindo:

Pelo exposto, defere-se o pedido de dispensa formulado pela Senhora Juíza, Dra. …………………………. de intervir na tramitação e julgamento da acção administrativa com o n.º 486/19.0 BELRA.

Sem tributação.

Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul

PEDRO MARCHÃO MARQUES