Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:83/18.7BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:06/05/2019
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:IMPUGNAÇÃO DE DECISÃO ARBITRAL – ACTO INTERLOCUTÓRIO
Sumário:1. Salvo circunstâncias excepcionais, não é admissível a impugnação de actos interlocutórios praticados no processo arbitral tributário.
2. É absolutamente inadmissível a impugnação, para o Tribunal Central Administrativo, de um acto interlocutório praticado no processo arbitral tributário, com fundamento em erro de julgamento.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 1.ª SUBSECÇÃO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:
1. Relatório
1.1. As partes
C…, Lda., não se conformando com o despacho arbitral proferido na acção arbitral interposta no CAAD contra a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), que dispensou a inquirição de testemunhas, veio impugnar o referido despacho.
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1.2. O Objecto do recurso
1.2.1. Alegações
Nas suas alegações a recorrente formulou as seguintes conclusões:
1.ª O despacho de dispensa de inquirição de testemunhas arroladas, proferido pelo Tribunal a quo, é manifestamente violador a principio do contraditório ínsito nos artigos 16.º, al. a) e 28.º, n.º 1, al. d) do RJAT.
2.ª Com efeito, ao dispensar a inquirição das testemunhas arroladas pela ora Impugnante o Tribunal a quo fere de forma clamorosa a garantia constitucionalmente consagrada a tutela jurisdicional efectiva - vide artigo 20.° da CRP.
3.ª A Impugnante requereu a produção de prova testemunhal, por considerar que o mesmo esclarecera o Tribunal sobre a natureza das operações realizadas pela Impugnante e que constituem o fundamento do pedido e da causa de pedir, a saber:
4.ª O que esta em causa na ação arbitral é a natureza de custos corrigidos pela AT e cuja tributação é formalizada pelo ato impugnado, sendo essencial à decisão da causa que se comprove que que os custos se subsumem no art. 23° do Código do IRC
5.ª Afigura-se que a produção de prova testemunhal é essencial a descoberta da verdade material e à decisão da Acão arbitral e concretamente dos factos atinentes a determinação e qualificação dos gastos corrigidos pela AT e motivadores do ato liquidatário impugnado como "gastos incorridos ou suportados para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC" (art. 23° do Código do IRC).
6.ª Estes factos são todos os que constam dos artigos 3°, 4°, 5°, 62, 7°, 8°, na parte relativa as dificuldades de venda dos imóveis em carteira, 9°, 10°, 11°, 13°, 14°, 15°, 16°, 17°,18°, 19°, 22°, 23°, 24°, 25°, 28°, 29°, 30°, 31°, 33°, 34°, 35°, 36°, 37°, 38°, 39°, 40°, 41°, 42°, 43°, 44°, 45°, 46°, 47°, 48°, 49°, quanto à não experiencia internacional da Impugnante, 50°, 53°, 54°, 64°, na parte relativa efetivação da prestação de serviços.
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1.2.2. Contra-alegações
A impugnada AT não apresentou contra-alegações.
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1.3. Parecer do Ministério Público
O Exm.º Magistrado do Ministério Público (EMMP) junto deste Tribunal emitiu o seguinte douto parecer:
“O MAGISTRADO DO MINISTERIO PUBLICO em exercício de funções na Jurisdição, notificado nos termos e para os efeitos do ART 146° Ni CPTA intervém e pronuncia-se sobre o mérito do recurso em defesa:
1 dos direitos fundamentais dos cidadãos;
2 de interesses públicos especialmente relevantes; ou
3 de bens ou valores constitucionalmente protegidos como
A saúde pública;
O ambiente;
O urbanismo;
O ordenamento territorial;
A qualidade de vida;
O património cultural; e
Os bens do ESTADO, incluindo RA e AL
Na presente ACCÃO JUDICIAL classificada como IMPUGNAÇÃO DECISÃO ARBITRAL / a empresa contribuinte e recorrente, pretende obter a DECLARAÇÃO de ANULAÇÃO da LIQUIDAÇÃO de IRC em causa, com decisão arbitral, sob recurso.
Em primeiro lugar não se verifica qualquer violação de direitos fundamentais, interesses públicos especialmente relevantes ou de bens e valores constitucionalmente protegidos, ou bens do Estado pois discute-se apenas a LIQUIDACAO de IRC.
O MINISTÉRIO PÚBLICO não emite pronúncia sobre o mérito do RECURSO JURISDICIONAL, porque não estão em causa DIREITOS FUNDAMENTAIS dos CIDADÃOS, interesses públicos especialmente relevantes ou algum dos bens e valores previstos no ART 9° N 2 CPT”.
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1.4. Despacho do Relator
Após o que o Relator proferiu o seguinte despacho:
“Face ao disposto no artigo 286.°, n.° 1, parte final, do CPPT, notifiquem-­se as partes ao abrigo do artigo 655.°, n.° 1, do CPC, para se pronunciarem, querendo e em dez dias, sobre o não conhecimento do objecto do recurso”.
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1.4. Questões a decidir
1. Se a impugnação pode ser conhecida
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2. Fundamentação
2.1. De facto
2.1.1. Factos considerados provados na sentença:
a. A Impugnante apresentou no CAAD um pedido de pronúncia arbitral visando:

a. Em 14-07-2018 o árbitro proferiu o seguinte despacho:
“Ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 19.°, n.° 2, e 29.°, n.° 2, do RJAT), tendo em conta que a exceção suscitada pode ser conhecida na decisão arbitral, e considerando a dimensão da prova já produzida e a natureza das questões a decidir, o Tribunal decide:
I. Dispensar a produção de prova testemunhal e das declarações de parte;
2. Dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.° do RJAT;
3. Determinar que, salvaguardado o período de férias judiciais (art.° 17.°-A do RJAT), o Processo prossiga com alegações escritas facultativas, a apresentar pelas Partes no prazo simultâneo de 20 dias, conforme previsto no art.° 120.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e no artigo 91.°-A do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicáveis por forca do disposto nos normativos das alíneas a) e c) do n.° 1 do artigo 29.° do RJAT;
4. Determinar que, no prazo definido no número anterior, as Partes enviem ao CAAD os respetivos articulados em formato editável (Word);
5. Fixar o dia 15 de Outubro de 2018 como data limite para a prolação da decisão arbitral.
Por último, o Tribunal adverte a Requerente que até à data da prolação da decisão arbitral deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.° 3 do artigo 4.° do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD.
Notifique-se”.
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2.2. De Direito
Vem a presente impugnação interposta do despacho arbitral que dispensou a prova testemunhal, despacho esse com o qual a impugnante não concorda por considerar que o mesmo ofende os princípios do contraditório e da igualdade de partes, e potencia o risco de o tribunal arbitral decidir sem ter apreendido todos os elementos de factos necessários para uma justa decisão.
Não nos vamos debruçar de imediato sobre estes argumentos, porque a questão nuclear consiste em saber se, face ao regime legal aplicável, este tribunal está vinculado a proferir uma decisão de mérito sobre o pedido.
Nos termos do artigo 16.º do RJAT, constituem princípios processuais aplicáveis aos processos arbitrais de natureza tributária, “a autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas” [al. c)], a “oralidade e a imediação, como princípios operativos da discussão das matérias de facto e de direito” [al. d)], e a “livre apreciação dos factos e a livre determinação das diligências de produção de prova necessárias, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros” [al. e)].
Na verdade, o processo arbitral, qualquer que ele seja, caracteriza-se por uma ampla margem de liberdade dos árbitros, no sentido de avaliação e apreciação das provas, dos argumentos e dos factos, mas sem que tal liberdade se traduza em arbítrio, já que as suas decisões devem ser suficientemente fundamentadas, de modo a permitir às partes o controle do raciocínio e do iter decisório.
Por isso o artigo 30.º, n.º 4, da Lei de Arbitragem Voluntária, estabelece como princípio fundamental, entre outros, o de o tribunal arbitral “determinar a admissibilidade, pertinência e valor de qualquer prova produzida ou a produzir”, princípio que o artigo 19.º, n.º 1, in fine, do RJAT acolhe ao estabelecer a livre apreciação de prova e a autonomia do tribunal arbitral na condução do processo.
O artigo 27.º do RJAT prevê a impugnação das decisões arbitrais mas este normativo não parece talhado para a impugnação dos despachos interlocutórios proferidos no processo arbitral de natureza tributária, já que a referência à impugnação da decisão arbitral visa, claramente, a decisão final proferida no processo e que implica a dissolução do tribunal arbitral (artigo 23.º do RJAT), como claramente decorre do artigo 28.º do RJAT.
Contudo, pode defender-se, prima facie, que em matéria de provas a eventual discordância de uma parte com alguma decisão interlocutória nessa matéria possa justificar a sua imediata impugnação.
Sucede que no processo tributário os despachos interlocutórios não sobem de imediato, conforme flui do disposto no artigo 286.º, n.º 1, do CPPT, pois embora sejam interpostos no prazo de dez dias apenas sobem com o recurso interposto da decisão final, só assim não sucedendo se a retenção do recurso o tornar inútil (n.º 2).
Mas, como é jurisprudência antiga e reiterada, a mera repetição de actos processuais por efeito do provimento de recurso de decisões interlocutórias, não gera a inutilidade do recurso.
Ora, se assim é para o processo tributário, então nenhuma razão há para que este regime não se aplique aos processos arbitrais de natureza tributária, visto que o CPPT é de aplicação subsidiária ao processo arbitral [artigo 29.º, n.º 1, al. a), do RJAT].
E cremos que foi de caso pensado que o legislador do RJAT não editou qualquer norma contrariando o princípio da retenção das decisões interlocutórias do processo tributário, pois bem sabia que a aparente desvantagem que resulta da retenção da impugnação do despacho interlocutório proferido no processo arbitral é compensada pela dinâmica mais acelerada deste quando comparada com a dinâmica do processo tributário. A solução inversa iria introduzir um factor de morosidade no processo arbitral, todo ele talhado para a celeridade, como resulta da expressa menção a uma decisão em prazo razoável constante do artigo 16.º, al. c), do RJAT, que frustraria os intentos do legislador.
Assim, cotejando o disposto no artigo 286.º, n.º 1, do CPPT, com o estabelecido nos artigos 27.º e ss. do RJAT para a impugnação da decisão arbitral, crê-se ser claramente de rejeitar, por inadmissibilidade legal, a impugnação de uma decisão interlocutória como aquela a que se refere a situação sub judice.
É claro que o disposto no artigo 20.º, n.º 1, da CRP, consagra um verdadeiro direito à prova, mas tal não significa que haja uma imposição constitucional para a apreciação e valoração de todas as provas apresentadas pelas partes; o núcleo essencial da norma apenas exige que a parte não possa ser privada de fazer valer os seus pontos de vista através da prova pertinente que queira oferecer. Não significa que toda e qualquer prova tenha necessariamente de ser admitida.
Por isso a decisão da prova deve ser exaustivamente fundamentada, sobretudo quando cerceia a produção de prova de alguma das partes, para que se perceba o raciocínio subjacente e as razões que a levam a dispensar e seja afastado qualquer indício de arbitrariedade, mas sem que fique afastada, obviamente, a eventualidade de se vir a verificar um erro de julgamento ou outro vício invalidante da decisão.
Mas o erro de julgamento não justifica a impugnação imediata dessa decisão interlocutória, porque bem vistas as coisas, podendo inquinar a decisão final, acaba por cair sob a alçada dos artigos 25.° e ss.do RJAT, que constituem a válvula de escape para tal situação; por outro lado, nem sequer pode ser apreciado pelo TCA, visto que o âmbito da competência deste tribunal se limita aos fundamentos previstos no artigo 28.° do RJAT.
E sendo certo que a verificar-se algum desses vícios previstos no neste normativo o momento adequado para os conhecer será aquando da impugnação da decisão final, prevista no artigo 27.° do RJAT.
Em face de todo o exposto, concluiu-se que, salvo situações excepcionais, é inadmissível a impugnação de decisões interlocutórias proferidas no processo arbitral, razão pela qual se decide não conhecer do objecto da presente impugnação, cuja excepcionalidade não foi nem está demonstrada.
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3 - Dispositivo:
Face ao exposto, acordam os Juízes da 1.ª Subsecção da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em, não conhecendo do objecto do recurso, absolver a demandada da instância.
Custas pela impugnante.
D.n.
Lisboa, 2019-06-05
(Benjamim Barbosa, Relator)
(Ana Pinhol)
(Isabel Fernandes)