Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:664/11.0BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:12/07/2021
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores:TRIBUTAÇÃO AUTÓNOMA, AGRAVAMENTO RETROATIVO, INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário:Não pode a lei agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efetuadas aquando da sua entrada em vigor, incorrendo a norma do artigo 5.º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de dezembro, ao determinar a retroação de efeitos a 1 de janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, em inconstitucionalidade por violação da proibição imposta no artigo 103.º, nº 3, da Constituição.
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 2.ª Subsecção da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por S. – S. P. D. G. S.A, no seguimento da notificação do indeferimento da reclamação graciosa, na qual peticiona a correção à autoliquidação de IRC relativa à tributação autónoma incidente sobre encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e viaturas, suportados até 5/12/2008, inclusive, e o reembolso da diferença apurada, no valor de EUR 6.300,12.

A Recorrente apresentou as suas alegações e formulou as seguintes conclusões (que aqui oficiosamente numeramos):
«
1 - Na douta Sentença, ora recorrida, o Tribunal “a quo”, julgou a impugnação procedente, por, segundo o entendimento, ali vertido, a autoliquidação padecer do vício de ilegalidade invocado pela Impugnante, com fundamento na inconstitucionalidade do disposto no artigo 81.°, n.° 3 do CIRC, actual 88.°, n.° 3, na parte que determina a retroacção dos seus efeitos aos factos tributários ocorridos em data anterior a 6/12/2008, tal como invocado pela Impugnante.
2 - Decisão com a qual, salvo o devido respeito, que é muito, não se pode concordar, porque, como dito, em sede de contestação, não são passíveis de crítica as conclusões vertidas na Decisão de Indeferimento da Reclamação Graciosa (RG) que integra o processo administrativo (PA) junto aos autos.
3 - Na verdade, o artigo 81.°, do CIRC, sob a epígrafe «Taxas de tributação autónoma», na redacção dada pela Lei n.° 55-B/2004, de 30 de Dezembro, entretanto alterada pela Lei n.° 67-A/2007, de 31 de Dezembro, determinava, na parte relevante, o seguinte:
“3 -São tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras ou mistas, motos ou motocícolos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.” 
4 - Por efeito da redacção introduzida pela Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, o n.° 3, do mesmo preceito passou a dispor do seguinte modo:
“3 - São tributados autonomamente, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica:
a) À taxa de 10 %, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relecionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistos, motos ou motociclos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola;
(…)”
5 - A Lei n.° 64/2008, entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, conforme prevê o seu artigo 6.°, mas a produção de efeitos retroage a 1 de Janeiro de 2008, por força do estabelecido no artigo 5.°, do mesmo diploma.
6 - Consequentemente - neste sentido, vide, sff, o então alegado em sede de Contestação, que seguidamente se transcreve - como o pressuposto temporal do IRC apenas se verifica no último dia do período em apreço, como estabelece o n.° 9, do artigo 8.°, do IRC, o facto gerador do imposto considera (apenas) verificado no último dia do período de tributação.
7 - Logo, não existe motivo para correcção porque, como antedito, no caso em apreço, o facto gerador do imposto, porque verificado no dia 31 de Dezembro de 2008, posteriormente à entrada em vigor da sobredita Lei 64/2008, de 5 de Dezembro.
8 - Por conseguinte, tal como dito no excerto da Contestação, que seguidamente se transcreve, na verdade, e











9 - Assim sendo, ao invés do alegado pela Impugnante e, sempre com o devido respeito, do entendimento vertido na douta Sentença, a Impugnante liquidou o imposto de acordo com a taxa em vigor.
10 - Daí que não exista motivo para qualquer correcção, devendo também, desta forma, a impugnação improceder.
11 - E ainda que assim não fosse, ou sucedesse, mas estando a Administração Tributária sujeita ao princípio da legalidade, arts. 266°, n° 2, da CRP, e 55° da LGT, é consabido que esta não poderia deixar de aplicar a norma com fundamento de inconstitucionalidade.
12 - Neste sentido, mutatis mutandis, douto acórdão do STA, in processo n.° 0471/14, de 22-03-2017, consultável em www.dgsi.pt.
13 - Acresce, ainda que, a ora Impugnante, à data Reclamante, foi, em 4-07-2011, notificada do Projecto de Decisão de Indeferimento da Reclamação Graciosa, através do oficio n.° 20646, de 1-07-2011, nos termos do disposto no artigo 60.°, da Lei Geral Tributária (LGT), não tendo exercido o direito de audição.
14 - A assim não ser entendido, estar-se-ia perante uma violação, desde logo, do n.° 9 (o facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação) do artigo 8.°, bem como do artigo 81.°, n.° 3, na redação então em vigor, actual artigo 88.°, após numeração pelo DL 159/2009, de 13 de Julho, ambos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas - IRC.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicável, requer-se, a Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, se dignem julgar PROCEDENTE o presente Recurso, por provado, e, em consequência, ser a douta decisão do Tribunal “a quo”, ora sob recurso, revogada e substituída por douto Acórdão que julgue improcedente a impugnação, tudo com as devidas consequências legais.»

A Recorrida apresentou as suas contra-alegações, tendo formulado as conclusões seguintes:
«1.ª A douta sentença recorrida julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela Impugnante, ora Recorrida, contra a autoliquidação de IRC do exercício de 2008, tendo concluído pela ilegalidade da tributação autónoma, em virtude da inconstitucionalidade do artigo 5.º da Lei n.º 64/2008, por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal;
2.ª Não se conformando com o decidido pelo Tribunal a quo, a Fazenda Pública interpôs recurso da referida sentença, invocando mera discordância com a mesma e fazendo alusão a um Acórdão isolado e antigo do Tribunal Constitucional;
3.ª Ora, verifica-se, desde logo, que as alegações de recurso não encerram qualquer discordância relativamente à matéria de facto, não sendo invocado qualquer erro ou omissão quanto à factualidade dada como provada e não provada e quanto ao julgamento emitido em face da mesma, nem tão-pouco foi observado o ónus de impugnação especificada da matéria de facto, previsto no artigo 640.º do CPC, pelo que o Tribunal Central Administrativo Sul é incompetente em razão da hierarquia para julgar o presente recurso;
4.ª Sem prescindir, também não colhe qualquer erro de julgamento de direito, pois o Tribunal a quo, na sua decisão, optou, e bem, por acompanhar a jurisprudência do Tribunal Constitucional mais recente e unânime, bem como a jurisprudência consensual do Supremo Tribunal Administrativo nesta matéria, a qual julgou inconstitucional, por violação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, no segmento em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração, consagrada no artigo 1.º-A desse diploma, do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas;
5.ª Por sua vez, também não assiste razão à Fazenda Pública quando afirma que a tributação autónoma segue o IRC, tratando-se de um imposto periódico cujo facto gerador se verifica no último dia do ano.
6.ª Vasta doutrina e jurisprudência (a título meramente exemplificativo, ALBERTO XAVIER, RUI DUARTE MORAIS e PAULA ROSADO PEREIRA, obs. Cit., e Acórdão deste TCAS, de 17.03.2016, proc. n.º 09322/16, para além da vasta jurisprudência enunciada) pugna pela tributação autónoma enquanto imposto de obrigação única, que incide sobre factos tributários instantâneos.
7.ª No que não se concede, mas por cautela de patrocínio se admite, mesmo que se entendesse que não são factos instantâneos aqueles sobre os quais incide a tributação autónoma, ainda assim haveria que aplicar um princípio pro rata temporis (cf. artigo 12.º, n.º 2, da LGT), aplicando-se a lei nova apenas aos factos ocorridos a partir da entrada em vigor da norma, sob pena de violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal.
8.ª Em face de todo o supra exposto, deve julgar-se improcedente o recurso apresentado pela Fazenda Pública, mantendo-se a sentença recorrida, por não ocorrer qualquer erro de julgamento.
Por todo o exposto, e o mais que o ilustrado juízo desse Ilustre Tribunal suprirá, deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a sentença recorrida, assim se cumprindo com o DIREITO e a JUSTIÇA!»
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O Magistrado do Ministério Público ofereceu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.

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As questões invocadas pela Recorrente nas suas conclusões das alegações de recurso, que delimitam o objecto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir consiste em aferir se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento, nos seguintes termos:
_ não é passível de crítica a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, uma vez que o facto gerador do imposto se verificou a 31/12/2008, assim não se entendendo, estar-se-ia perante uma violação do n.º 9, do art. 8.º do CIRC, bem como do art. 81.º, n.º 3, do CIRC (atual art. 88.º do CIRC) – conclusão 14 das alegações de recurso, não ocorrendo a violação do disposto no art. 103.º, n.º 3 da CRP (conclusões 1 a 8);
_ a impugnante liquidou o imposto de acordo com a taxa em vigor pelo que não há que proceder a qualquer correção (conclusões 9 a 10);
_ ainda que assim fosse a AT não poderia deixar de aplicar norma com o fundamento de inconstitucionalidade (conclusão 11 e 12);
_ a Reclamante não exerceu o direito de audição nos termos do art. 60.º da LGT sobre o projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa (conclusão 13).

II. FUNDAMENTAÇÃO

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:


1. Em 28/5/2009, a Sociedade S. – S. P. D. G., S.A., apresentou a ¯Declaração Modelo 22 de IRC via internet, constante de fls. 39 a fls. 44 dos autos, cujo conteúdo se dá por reproduzido, na qual declarou no campo 365 do quadro 10 da declaração, o valor global de EUR 13.101,20 dos quais 13.094,86 correspondem à tributação autónoma incidente sobre os encargos previstos no n.º 3 do artigo 81.º do CIRC, relativas às seguintes despesas:


2. Em 26/5/2011, a Impugnante apresentou no Serviço de Finanças de Setúbal, a reclamação graciosa contra o acto de liquidação de IRC relativo ao exercício de 2008, na parte respeitante à tributação autónoma, nos termos constantes de fls. 2 a fls. 37 do PAT, cujo conteúdo se dá por reproduzido.

3. Em 1/7/2011, o Chefe de Divisão da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de Setúbal, emitiu o projeto de decisão da reclamação apresentada pela Impugnante, no sentido do seu indeferimento, nos termos e com os fundamentos da informação constante de fls. 49 a fls. 61 do PAT, cujo conteúdo se dá por reproduzido, na qual consta em síntese o seguinte:
“(…)
ENQUADRAMENTO.
O sujeito passivo S. – S. D. G. N. S.A., NIF 502 …, veio apresentar reclamação graciosa contra o acto de autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2008, na parte respeitante à tributação autónoma incidente sobre os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos suportados até ao dia 5 de Dezembro de 2008 inclusive.
A reclamante peticiona a revogação parcial do acto de autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2009, solicitando a restituição do montante global de € 6.300,12, alegando que alterações introduzidas pela Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, que procedeu à alteração das taxas de tributação autónoma previstas no artigo 81.° n.°s 3 e 4 do Código do IRC (.hoje artigo 88.°) na medida em produzem efeitos desde 1 de Janeiro de 2008 e não apenas a partir da data de entrada em vigor de tais alterações, viola o princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal.
Apesar de a reclamante ter procedido à autoliquidação e aplicado as novas taxas a encargos suportados antes da entrada em vigor da nova lei, entende a reclamante o referido acto tributário de autoliquidação é ilegal na parte em que traduz a aplicação da nova taxa de tributação autónoma a factos verificados anteriormente à entrada em vigor da lei n.° 64/2008, por violação do artigo 103.° n.° 3 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 12.° n°s 1 e 2 da Lei Geral Tributária (LGT).
FACTOS.
Com relevância para a presente decisão foi apurada a seguinte factualidade:
1. A reclamante procedeu à entrega da declaração modelo 22 em 28-05-2009 referente ao período de tributação compreendido entre 01-01-2008 e 31-12-2008.
2. A reclamante inscreveu no campo 365 do quadro 10 da declaração o valor de € 13.094,86 correspondentes à tributação autónoma incidente sobre os encargos previstos no n.° 3 do artigo 81.° do Código do IRC.
3. Para o referido valor a reclamante aplicou as taxas introduzidas pela Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, cuja entrada em vigor ocorreu em 6 de Dezembro de 2008.
4. Em 26-05-2011 foi apresentada a presente reclamação graciosa.
DIREITO.
A reclamante tem legitimidade, capacidade tributária, o meio procedimental para discutir a questão é o próprio e o pedido é tempestivo de harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 18.° n.° 3 54.° n.° 1 alínea f), 65.° todos da LGT, e artigo 9.° e 68.°, 69.°, 70 ° e 131.° do CPPT.
A reclamante peticiona a revogação parcial do acto de autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2009, solicitando a restituição do montante global de € 6.300,12. Alega a reclamante que as alterações introduzidas pela Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, que procedeu à alteração das taxas de tributação autónoma previstas no artigo 81.° n.°s 3 e 4 do Código do IRC (hoje artigo 88.°) na medida em produzem efeitos desde 1 de Janeiro de 2008 e não apenas a partir da data de entrada em vigor de tais alterações, viola o princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal.
(…)
Assim, uma vez que à Administração tributária se encontra vedada a possibilidade de revogar o acto com base na alegada inconstitucionalidade invocada pela reclamante, só por aqyi teria a reclamação necessariamente de improceder.
Ainda assim, e uma vez que o único argumento invocado pela reclamante é precisamente a questão da inconstitucionalidade, não deixaremos, sem prejuízo do acima invocado, de rebater a argumentação expendida pela reclamante, por não nos afigurar que lhe assista razão.
Vejamos então, procedendo em primeiro lugar à identificação ao quadro legal em causa. (…)
Assim, parece-nos que o diploma em causa não comporta para o IRC, nomeadamente para a tributação autónoma qualquer alteração de natureza retroactiva própria ou autêntica. A verificar- se alguma aparência de retroactividade, a mesma mais não é do que o que a doutrina designa retroactividade de 3.° grau, imprópria ou inautêntica, não relevando, para sustentar um juízo de inconstitucionalidade por retroactividade como pretende a reclamante fazer crer, ai abrigo do n.° 3 do artigo 103.° da CRP.
Aliás, diga-se, em abono da tese aqui sustentada, que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta questão em concreto da alegada inconstitucionalidade das alterações introduzidas nas taxas de tributação autónoma, quer à luz do princípio da irretroactividade da lei fiscal, quer à luz do princípio da protecção da confiança. E em ambos os casos a conclusão a que chegou foi de não verificação de desconformidade constitucional de tais alterações. Embora os efeitos de tal aresto apenas se repercutam quanto ao caso concreto, parece-nos clara a sua aplicação ao presente caso.
Assim, pode ler-se no acórdão do Tribunal Constitucional n.° 18/2011 de 12 de Janeiro de 2011, tirado do processo n.° 204/2010, a propósito da sua apreciação à luz do artigo 103.° n.° 3 da CRP que:
(…)
Face ao exposto, deve a presente reclamação graciosa ser indeferida.
(…)

4. Em 1/7/2011, o Chefe de Divisão da Divisão de Justiça Tributária da Direção do Serviço de Finanças de Setúbal emitiu o oficio 020646, dirigido ao mandatário da impugnante com o assunto ¯NOTIFICAÇÃO PARA EXERCICIO DE AUDIÇÃO PRÉVIA NOS TERMOS DO ARTIGO 60.º DA LGT – RECLAMAÇÃO GRACIOSA N.º 3530201104001974 (cf. oficio e AR a fls. 63 do PAT).

5. Em 11/8/2011, o Chefe de Divisão da Divisão de Justiça Tributária da Direção do Serviço de Finanças de Setúbal, no âmbito de delegação de competências do Diretor de Finanças, emitiu o despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Impugnante (cf. despacho a fls. 68 do PAT).

6. Em 23/8/2011, a Impugnante rececionou o aviso de recepção que acompanhou o envio do ofício n.º 10296 emitido pela Direção de Finanças de Setúbal, com a comunicação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa (cf. ofício e avisos de recepção constantes a fls. 69 e 70 do PAT).

7. Em 1/9/2011, a presente impugnação foi apresentada no TAF de Almada (cf. fls.1 dos autos).


A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais constantes dos autos, e especificados nos vários pontos da matéria de facto provada.
*

Nada mais foi provado com interesse para a decisão da causa, atenta a causa de
pedir.»

*

Considerando a exceção suscitada pela Recorrida nas contra-alegações cumpre, antes de mais, aferir da competência deste Tribunal Central Administrativo Sul em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso, pois a infração às regras de competência em razão da hierarquia determina, nos termos do disposto no art. 16.º, n.º 1 do CPPT, a incompetência absoluta do tribunal, sendo certo que, considerando a data da sentença e da interposição do recurso (2021), in casu, são aplicáveis as alterações introduzidas no CPPT e no ETAF, respetivamente, pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, e pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro.

As questões de competência absoluta são de conhecimento oficioso, precedendo o seu conhecimento o de qualquer outra questão, e pode ser arguida por qualquer interessado, Fazenda Pública e suscitada pelo Ministério Público (cf. art.º 16.º, n.º 2, do CPPT).

Por conseguinte, a competência do Tribunal em razão da hierarquia constitui questão que o tribunal deve conhecer oficiosamente ou mediante arguição, com prioridade sobre qualquer outra, até ao trânsito em julgado da decisão final (cf. Ac. do STA de 09/04/2014, proc. n.º 0161/14).

Deste modo, é competente para conhecer dos recursos interpostos de decisões de mérito dos tribunais tributários, com exclusivo fundamento em matéria de direito a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (art. 26.º, al. b), do ETAF), sendo competente a Secção de Contencioso Tributário de cada Tribunal Central Administrativo nos demais casos (art. 38.º, al. a), do ETAF).

Em consonância com aquelas regras de competência, dispõe o art. 280.º, n.º 1 do CPPT que das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a decisão proferida for de mérito e o recurso se fundamente exclusivamente em matéria de direito, caso em que cabe recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo. Para aferir da competência do tribunal em razão da hierarquia há que atender aos fundamentos do recurso, que devem constar das conclusões, uma vez que estas fixam o objeto do recurso nos termos do disposto no art. 635.º, n.º 4, do CPC.

Passando ao caso dos autos.

A decisão recorrida consubstancia uma decisão de mérito, na medida em que conheceu do mérito dos fundamentos da impugnação judicial e julgou a impugnação procedente, anulando a liquidação impugnada.

E, apesar de nas conclusões de recurso que delimitam o objeto do mesmo, parecer resultar que o presente recurso versa unicamente sobre matéria de direito, conjugada com as alegações que a complementam, a Recorrente parece retirar ilações de facto relativamente à matéria de facto assente no ponto 1 dos factos provado (cf. alegações 18.ª), o que, em abstrato poderá implicar a reapreciação de matéria de facto, o que tanto basta para que este TCAS seja competente em razão da hierarquia, improcedendo a exceção suscitada.

Prosseguindo.

Invoca a Recorrente Fazenda Pública erro de julgamento da sentença recorrida, entendendo que não é passível de crítica a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, uma vez que o facto gerador do imposto se verificou a 31/12/2008, assim não se entendendo, estar-se-ia perante uma violação do n.º 9, do art. 8.º do CIRC, bem como do art. 81.º, n.º 3, do CIRC (atual art. 88.º do CIRC) – conclusão 14 das alegações de recurso, não ocorrendo a violação do disposto no art. 103.º, n.º 3 da CRP, (conclusões 1 a 8).

Contudo, sem razão.

Efetivamente, é a seguinte a fundamentação da sentença recorrida:

“O Impugnante vem apresentar a presente Impugnação judicial contra o acto de autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2008, na parte relativa à tributação autónoma incidente sobre os encargos relativos as despesas de representação e a viaturas ligeiras ou mistas, motos ou motociclos, suportadas até 5 de dezembro de 2008.
Para o efeito alega que a Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, que entrou em vigor em 6 de dezembro de 2008, veio alterar a taxa de 5% para 10% e 20% a todos os referidos encargos, retroagindo a sua aplicação a 1 de janeiro de 2008, o que no seu entender, viola o princípio da não retroatividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.º da CRP e artigo 12º, n.º 1 e 2 da LGT, o que constitui fundamento para a anulação do acto tributário.
Mais alega que há que distinguir entre os factos tributários que conduzem à tributação em sede de IRC e que são de formação sucessiva ao longo do período de exercício e os factos tributários sujeitos a tributação autónoma, caso em que estamos perante factos tributários simples, em que a obrigação tributaria nasce com a realização de um determinado encargo. E assim sendo, conclui que ao abrigo do artigo 81.º do CIRC haverá tantos factos tributários quantas as despesas realizadas.
Em consequência, peticiona a anulação parcial da liquidação de IRC relativa ao ano de 2008, no valor de EUR 6.300,12, correspondente ao diferencial da taxa.
A Administração Tributária, por sua vez entende que não está em causa a violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal, sustentando a sua posição no Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional n.º 18/2011 de 12/01/2011 (processo n.º 204/2010), no qual julgou que não se verificava a invocada inconstitucionalidade material por estarem em causa normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei, situação que se considerou ser correspondente à de retroatividade inautêntica, não coberta pela regra do artigo 103.º, n.º 3 da CRP.
Cumpre apreciar e decidir.
A questão suscitada nos presentes autos, consiste em saber se a liquidação de IRC relativa ao ano de 2008, no que respeita à tributação autónoma incidente sobre as despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros, padece do vício de ilegalidade, com base na inconstitucionalidade da norma do artigo 5° da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.°, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e ainda por violação do princípio da proteção da confiança, na medida em que essa disposição determinou que o agravamento da taxa de 5% para 10% sobre essas despesas e encargos, resultante da nova redação dada ao artigo 81.°, n.º 3, alínea a), do CIRC, produzisse efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2008.
A Lei n.º 55-B/2004, de 30 de dezembro (Orçamento de Estado para 2005) conferiu a seguinte redação art. 81.º, n.º 3, al. a), do CIRC:
"São tributados autonomamente, à taxa de 5 %, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola" (art.º 29.).
Posteriormente, a Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, alterou a redação da dita disposição fiscal nos seguintes termos:
"3 — São tributados autonomamente, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica:
a) À taxa de 10 %, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola" (art. 1°-A).‖
Esta lei entrou em vigor em 6 de dezembro de 2008 (cf. art. 6.º) mas, nesta parte, determinou a produção dos seus efeitos desde 1 de janeiro de 2008 (cf. art. 5.º, n.º 1).
Resulta, assim, que a lei nova (na redação introduzida pela Lei n.º 64/2008) agravou em 5% a taxa de tributação da lei antiga (na redação introduzida pela Lei n.º 55- B/2004), relativamente aos mesmos factos tributários (no caso, encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e a viaturas ligeiras de passageiros).
A questão que se coloca é pois a de saber se o art. 5.º da Lei n.º 64/2008, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008, a alteração ao artigo 81.º, n.º 3, al. a), do CIRC, viola a proibição constitucional de impostos com natureza retroativa e, nessa medida, deve ser considerado como materialmente inconstitucional, por violação das disposições dos artigos 103.º, n.º 3, e 277.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
O Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido em 14/06/2012, no processo n.º 0757/11, disponível para consulta em www.dgsi.pt entendeu, o seguinte:
“(…)
I - A tributação autónoma sobre encargos com viaturas ligeiras de passageiros e despesas de representação incide sobre a despesa, constituindo cada acto de despesa um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período respetivo.
II - Sendo assim, independentemente de a tributação autónoma ser devida com referência a um determinado período que coincide com o ano civil, a cada acto de despesa deve ser aplicada a taxa em vigor na data da sua realização.
III - Deste modo, sofre de inconstitucionalidade, por violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.°, n.º 3, da Constituição da República, a norma do artigo 5.º da Lei n.° 64/2008, de 5 de Dezembro, que determinou que o agravamento da taxa de 5% para 10% sobre despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros, resultante da nova redacção dada ao artigo 81.°, n.º 3, alínea a), do CIRC, produzisse efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2008, na medida em que representa uma aplicação da lei nova a factos tributários integralmente ocorridos antes da sua entrada em vigor.
IV - As novas taxas, por isso, apenas podem ser aplicadas aos actos de despesa posteriores à entrada em vigor da alteração do citado artº 81º, nº 3, alínea a) do CIRC.
(…)”
Já no Acórdão proferido no processo n.º 0281/11, em 6/7/2011, o Supremo Tribunal Administrativo, se tinha pronunciado no sentido da inconstitucionalidade, por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.°, n.º 3, da Constituição da República, da norma do artigo 5.º da Lei n.º 64/2008, de 5 de Dezembro, que determinou que o agravamento da taxa de 5% para 10% sobre despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros, resultante da nova redação dada ao artigo 81.°, n.º 3, alínea a), do CIRC, produzisse efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2008.
Mais recentemente o Tribunal Constitucional, chamado de novo a pronunciar-se sobre a mesma questão, procedeu à alteração da sua jurisprudência anterior, e nos Acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional n.º 310/2012, no processo n.º 150/2012 e n.º 382/2012 (processo n.º 121/12) decidiu:
“(…)
Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC).
Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.
Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso).
Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa.
E esta distinção tem relevância, designadamente, para efeitos de aplicação da lei no tempo e para a análise da questão da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável prevista no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Com efeito, conforme refere Cardoso da Costa “(…) a linha demarcadora do âmbito da retroatividade fiscal constitucionalmente admissível passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias «permanentes» e «periódicas» e «factos» cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma «instantaneamente», para cada um deles «de per si» (maxime, pela distinção entre «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única»), e passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias, cujo possível peso não poderá ignorar-se.” (Cfr. Cardoso da Costa, "O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal", in Perspetivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição, Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418).

Neste caso estamos perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, em que o facto gerador do tributo surge isolado no tempo, originando, para o contribuinte, uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Ou seja, as taxas de tributação autónoma aqui em análise não se referem a um período de tempo, mas a um momento: o da operação isolada sujeita à taxa, sem prejuízo de o apuramento do montante devido pelos agentes económicos sujeitos à referida “taxa” ser efetuado periodicamente, num determinado momento, conjuntamente com outras operações similares, sem que a liquidação conjunta influa no seu resultado.
Por esta razão, Sérgio Vasques (cfr. Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pág. 293, nota 470) chama a atenção para a circunstância de os impostos sobre o rendimento contemplarem elementos de obrigação única, como as taxas liberatórias do IRS ou as taxas de tributação autónoma do IRC.
Regressando ao caso concreto, é manifesto que se está perante uma hipótese de aplicação retroativa do disposto no artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, na redação introduzida pela Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, ou seja, aplicação de lei nova a factos tributários de natureza instantânea, já completamente formados, anteriores à data da sua entrada em vigor.
Com efeito, o facto gerador da obrigação fiscal – a realização de despesas de representação ou com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, no período de 1 janeiro de 2008 até à entrada em vigor da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro (6 de dezembro de 2008) – ocorre indubitavelmente antes da publicação da lei nova, não sendo possível entender que se está perante um facto jurídico-fiscal complexo de formação sucessiva.
A aplicação da nova lei a este facto ocorrido anteriormente à sua aprovação envolve, pois, uma retroactividade autêntica.
O que releva, face aos princípios constitucionais enunciados, não é o momento de liquidação de um imposto, mas sim o momento em que ocorre o ato que determina o pagamento desse imposto. É esse ato que vai dar origem à constituição de uma obrigação tributária, pelo que é nessa altura, em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da proteção da confiança, que se exige, como medida preventiva, que já se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento desse imposto, de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.
Uma vez que a alteração efetuada ao artigo 83.º, n.º 3, do CIRC, através da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, veio aumentar a taxa de tributação autónoma aplicável a despesas de representação e com viaturas, agravando a situação dos contribuintes abrangidos, estava-lhe vedada uma eficácia retroativa.
Contudo, como vimos, embora a referida Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, tenha entrado em vigor em 6 de dezembro de 2008, o seu artigo 5.º, n.º 1, determinou que tal alteração produzia efeitos a partir de 1 de janeiro de 2008.
Ora, tendo já ocorrido o facto que deu origem à obrigação tributária posteriormente agravada por lei nova, as razões que presidiram à consagração da regra de proibição da retroatividade neste domínio estão integralmente presentes, uma vez que importa prevenir o risco abstrato de que a lei publicada com retroação de efeitos provoque agravos financeiros desrazoáveis, pela impossibilidade em que se encontravam os contribuintes afetados, vinculados a tais factos já ocorridos, de prever e prover quanto às suas consequências tributárias, determinadas por lei futura.
Assim, não pode a lei, sob pena de violação da proibição imposta no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efetuadas aquando da sua entrada em vigor, pelo que, tendo a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, determinado a retroação de efeitos a 1 de janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, violou a referida proibição constitucional.
(…)”
Nos termos expostos, o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008, a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal.
Face à vasta jurisprudência exposta, nos presentes autos, a autoliquidação padece do vicio de ilegalidade invocado pela Impugnante, com fundamento na inconstitucionalidade do disposto no artigo 81.º, n.º 3 do CIRC, na parte que determina a retroação dos seus efeitos aos factos tributários ocorridos em data anterior a 6/12/2008, tal como é invocado pela Impugnante, motivo pelo que deverá ser parcialmente anulada e devolvido à impugnante o valor de EUR 6.300,12, relativo ao diferencial da taxa aplicada aos encargos declarados pela Impugnante sujeitos à taxa de tributação autónoma."

Ora, nenhum reparo há a fazer à sentença recorrida que seguiu a jurisprudência do STA e do Tribunal Constitucional.

Na verdade, ainda recentemente o STA vem reiterar no acórdão de 23/10/2019, proc. n.º 01682/11.3BELRS 0690/18 o seguinte: “I - Nas tributações autónomas não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas, que constituem o facto gerador de imposto, uma vez que cada despesa é um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC, no fim do período, sendo irrelevante que esta parcela de imposto só venha a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC
II - A taxa a aplicar a cada despesa é a que vigorar à data da sua realização, uma vez que o facto tributário se verifica no momento em que se incorre nas despesas sujeitas a tributação autónoma, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo do ano, mas perante um facto tributário instantâneo
III - Não pode a lei agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efectuadas aquando da sua entrada em vigor, incorrendo a norma do artigo 5.º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, ao determinar a retroacção de efeitos a 1 de Janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, nº 3, do CIRC, em inconstitucionalidade por violação da proibição imposta no artigo 103.º, nº 3, da Constituição” - (v. também, acórdãos do STA de 6.07.2011 processo nº 281/11, 14.06.2012 processo nº 757/11, 14.02.2013 (processo nº 1375/12), 17.04.2013 (processo nº 166/13), 22.01.2014 (processo nº 1714/13) e 21.01.2015 (processo nº 470/14)).

Efetivamente, o Tribunal Constitucional decidiu “Julgar inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal” – v. acórdão do Plenário do TC n.º 85/2013, 5 fevereiro 2013, proc. n.º 121/2012.

In casu, na autoliquidação impugnada verifica-se a aplicação retroativa do disposto no artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, na redação introduzida pela Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, considerando que foram aplicadas as taxas desta nova lei. Por conseguinte, estamos perante uma situação em que esta lei se aplicou a factos tributários anteriores à data da sua entrada em vigor, factos tributários de natureza instantânea, estamos, pois perante uma retroatividade autêntica, ou seja, a aplicação da nova lei a facto ocorrido anteriormente à sua aprovação. Sendo de confirmar a fundamentação da sentença recorrida, para a qual se remete.

Assim sendo, improcedem as conclusões 1 a 8, e conclusão 14 das alegações de recurso.

No que diz respeito à questão colocada pela Recorrente de que a impugnante liquidou o imposto de acordo com a taxa em vigor pelo que não há que a AT não tem de proceder a qualquer correção (conclusões 9 e 10), refira-se que tal não obsta ao direito à impugnação judicial, porque foi apresentada reclamação graciosa nos termos do art. 131.º, n.º 1 do CPPT. Na verdade, nos termos deste preceito legal impugnação judicial em caso de erro na autoliquidação, tem de ser obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa, o que no caso dos autos sucedeu conforme resulta do ponto 2 da matéria de facto assente. Ora, ainda que o contribuinte tenha liquidado o imposto de acordo com a taxa prevista na nova lei, a verdade é que tal não obsta a que posteriormente, dentro dos prazos e termos da lei, venha sindicar a autoliquidação por considerar que tais taxas com base nas quais o imposto foi liquidado se encontram erradas. Pelo que improcedem os fundamentos das conclusões 9 e 10.

Relativamente, à questão suscitada nas conclusões 11 e 12 das alegações de recurso, nomeadamente que a AT não poderia deixar de aplicar norma com o fundamento de inconstitucionalidade, refira-se que tal questão releva para efeitos do direito a juros indemnizatórios, que depende do pressuposto “erro imputável aos serviços” (art. 43.º, n.º 1, da LGT) – v. por todos, nesse sentido, ac. do STA de 30/10/2019, proc. n.º 01344/11.1BELRS 01164/17 – questão que não se encontra sindicada no presente recurso, desde logo porque não foi suscitada, nem decidida em 1.ª instância. Contudo, tal não obsta a que o tribunal deve anular o ato de liquidação (in casu, autoliquidação) que assentou em norma que viola a Constituição, como sucede no caso dos autos, e cujo tratamento jurisprudencial tem sido reiterado e uniforme como supra exposto.

Relativamente à questão suscitada de que a Reclamante não exerceu o direito de audição nos termos do art. 60.º da LGT sobre o projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa (conclusão 13, das alegações de recurso), e apesar de a Recorrente não densificar o que pretende ver apreciado com esta questão, sempre se dirá que o art. 60.º da LGT que versa sobre o “princípio da participação” consagra um direito dos contribuintes, e não uma obrigação, e nessa medida, o não exercício desse direito legal não aporta a consequência que parece retirar a Recorrente, nomeadamente, o de obstar a que o contribuinte possa impugnar a decisão de reclamação graciosa. Pelo que sem mais considerações por manifestamente desnecessárias, também improcede nesta parte o recurso.

Em suma, improcedem todas as conclusões de recurso, sendo de confirmar a sentença recorrida.

Nos termos do artigo 527.º do CPC aplicável ex vi do artigo 2.º alínea e) do CPPT a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte a que elas houver dado causa (n.º 1), entendendo-se que dá causa às custas do processo a parte vencida na proporção em que o for (n.º 2), e, portanto, vencida no recurso a Recorrente, esta é responsável pelas custas.

Sumário (art. 663.º, n.º 7 do CPC)

Não pode a lei agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efetuadas aquando da sua entrada em vigor, incorrendo a norma do artigo 5.º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de dezembro, ao determinar a retroação de efeitos a 1 de janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, em inconstitucionalidade por violação da proibição imposta no artigo 103.º, nº 3, da Constituição.





DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da 2.ª Subsecção, da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
****
Custas pela Recorrente.
D.n.
Lisboa, 7 de dezembro de 2021.

Cristina Flora (Relatora)



Patrícia Manuel Pires (1.ª adjunta)

Vital Lopes (2.º adjunto)