Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12891/16
Secção:CA
Data do Acordão:04/07/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTEÇÃO DE DIREITOS; ATENDIMENTO PRIORITÁRIO; GRÁVIDAS
Sumário:I - Face ao que nos impõe o artigo 9º do Código Civil, deve-se concluir que o artigo 9º/1 do Decreto-Lei nº 135/99 não deixa à Administração qualquer margem de livre decisão ou de livre apreciação quanto a integrar as pessoas grávidas na previsão da norma legal, não havendo, portanto, lugar a ponderações e a concretizações pela Administração Pública da máxima metódica da proporcionalidade, relativamente a dar prioridade de atendimento às grávidas.
II - Uma grávida pode trabalhar sem restrições administrativas, pode ir em trabalho ou não às conservatórias; no caso de a trabalhadora grávida ir a uma conservatória, o facto de ali se deslocar todos os dias não a diminui em nada ante a referida norma legal; todas as grávidas, todos os dias, têm o direito subjetivo infraconstitucional, não absoluto, previsto no artigo 9º/1 do Decreto-Lei nº 135/99.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:· D., residente na Rua …, 8.º Direito, …-027 Lisboa, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa

intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias contra

· IRN - INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO, I.P.

Pediu o seguinte:

- Condenação do IRN a reconhecer a autora como utente prioritária da Conservatória dos Registos Centrais.

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Por sentença de 17-11-15, o referido tribunal decidiu condenar o Instituto dos Registos e do Notariado I.P. a reconhecer a D., por estar grávida e enquanto o estiver, o direito a atendimento prioritário nos termos do artigo 9.º, n. º1 do Decreto-Lei n. º135/99, de 22 de abril, na Conservatória dos Registos Centrais.

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Inconformado, o réu recorre de apelação para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1) A Recorrida, representada pela Senhora Dra. A., M.I. advogada e sócia da … – Sociedade de Advogados, RL, instaurou contra o Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. (IRN, I.P.), a ação identificada em epígrafe, pedindo a intimação do ora recorrente para que ordenasse o reconhecimento da Recorrida enquanto utente prioritária da Conservatória dos Registos Centrais, por considerar que a referida ação era indispensável para assegurar, em tempo útil, o exercício de direitos fundamentais, como a proteção especial, garantida pela Constituição da República Portuguesa nos seus artigos 59º, nº 2, alínea c) e 68º, nº 3 e pelo Decreto-Lei nº 135/99, de 22 de abril, e o direito à igualdade e não discriminação, garantido pelo artigo 13º da Constituição da República Portuguesa;

2) Com efeito, a Recorrida alegou que exercia funções na … – Sociedade de Advogados, RL, consistindo as mesmas em funções de secretaria, sendo inerente das suas funções diversas tarefas administrativas, bem como deslocações externas, deslocando-se diariamente à Conservatória dos Registos Centrais, que se encontrava grávida e que desde que o seu estado se tornou visível, passou a exercer o direito de prioridade previsto para as gestantes;

3) Em 29 de julho de 2015, foi a Recorrida informada de que a partir daquela data já não lhe seria permitido exercer a sua prioridade, tendo a sua entidade empregadora solicitado informações à direção da Conservatória dos Registos Centrais;

4) Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida em 17 de novembro de 2015, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em que se considerou totalmente procedente a presente intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, por provada e, em consequência condenou o Instituto dos Registos e do Notariado I.P. a reconhecer a D., por estar grávida e enquanto o estiver, o direito a atendimento prioritário nos termos do artigo 9.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º135/99, de 22 de Abril, na Conservatória dos Registos Centrais.

5) Tendo a Recorrida, funcionária forense, sido representada nos presentes autos pela sua entidade patronal, invocando o direito a ser atendida prioritariamente pelo facto de se encontrar grávida, o patrocínio judiciário da Recorrida assumido pela sua entidade patronal, compromete os deveres de isenção, imparcialidade e objetividade da mandatária da Recorrida, nos termos do Código de Deontologia dos Advogados Europeus e dos artigos 81º nº 1 e 83 nº 1 e 2 do EOA, existindo um verdadeiro impedimento nesta representação;

6) O artigo 9º do Decreto-Lei nº 135/99, de 22.04 dispõe sobre as prioridades no atendimento que: “Deve ser dada prioridade ao atendimento dos idosos, doentes, grávidas, pessoas com deficiência ou acompanhadas de crianças de colo e outros casos específicos com necessidades de atendimento prioritário”.

7) Quanto aos advogados e solicitadores, a preferência no seu atendimento quando se dirijam a serviços públicos, no exercício da sua profissão, tem subjacente, na opinião do Provedor de Justiça, “o reconhecimento de que tais profissionais agem em representação e no interesse dos seus constituintes, pelo que tal preferência não traduz, de todo, uma discriminação positiva dos advogados ou solicitadores face aos demais cidadãos. O atendimento preferencial destes profissionais não visa proteger interesses pessoais ou de classe, antes sendo uma forma de assegurar maior celeridade e eficácia no exercício de funções ao serviço da justiça”.

8) A Recorrida, não sendo advogada, não tem preferência no seu atendimento;

9) O Provedor de Justiça, a propósito do atendimento prioritário, pronunciou-se no sentido de que nas situações enumeradas no Decreto-Lei nº 135/99, de 22.04, “se pretendeu essencialmente minorar o desgaste provocado pela espera em local público àquelas pessoas que, por se encontrarem em situações especiais, suportariam uma penosidade acrescida durante tal período de espera”;

10) Para o Provedor de Justiça, “mais importante do que dotar os funcionários que fazem atendimento ao público de uma lista de prioridades dentro do atendimento prioritário, é essencial dar-lhes a conhecer a ratio das normas em que se baseia cada uma das prioridades e sensibilizá-los para a importância de, caso a caso, ponderarem os diferentes interesses em presença – ou em conflito – e ordenar o atendimento de acordo com essenciais regras de bom senso e de sã convivência social”.

11) O Provedor de Justiça recomenda ainda a afixação de avisos contendo o essencial das normas sobre o atendimento preferencial ou prioritário, bem como a existência de balcões, filas ou senhas especiais para estes casos, assim permitindo uma prévia orientação dos utentes e prevenindo situações de conflito no momento em que cada um pretende ser atendido.

12) Pelo que o artigo 9º do Decreto-Lei nº 135/99, de 22.04, comporta exceções, devendo ser analisado caso a caso, os diferentes interesses em presença ou em conflito.

13) Não se verificou nenhuma violação do princípio da igualdade por parte da Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa, face ao caso concreto em que a Recorrida, funcionária forense e invocando ainda o facto de se encontrar grávida, diariamente se desloca à Conservatória, e sistematicamente invoca a prioridade de atendimento, para tratar de assuntos de sua entidade patronal, desvirtuando a ratio o regime e os objetivos visados pelo legislador, configurando a situação dos presentes autos uma situação de abuso de direito por parte da Recorrida e da sua entidade patronal, na medida em que o pedido sistemático e diário de prioridade pela trabalhadora, para tratar de assuntos de sua entidade patronal conhecedora do seu estado físico, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé.

14) A vinculação da administração pelo princípio da igualdade encontra-se em vários momentos relevantes, nomeadamente, na autovinculação da administração no âmbito dos seus poderes discricionários, devendo ela utilizar critérios substancialmente idênticos para a resolução de casos idênticos, sendo a mudança de critérios, sem qualquer fundamento material, violadora do princípio da igualdade.

15) Ora a resolução do caso concreto pela Conservatória dos Registos Centrais baseou-se em critérios substancialmente idênticos para a resolução de casos idênticos, tendo a referida decisão sido tomada fundamentadamente, baseada nos princípios materiais da norma contida no artigo 9º do Decreto-Lei nº 135/99, de 22.04, não se tendo verificado qualquer violação do princípio da igualdade.

16) Devendo ser revogada a douta sentença recorrida.

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O recorrido contra-alegou, concluindo:

1) Nestes termos e nos melhores de direito R. a Vª Exª que julgue a presente instância extinta por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277º alínea e) do CPC;

2) E caso assim não se entenda, subsidiariamente: deverá o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, e, consequentemente, ser confirmada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, com todos os efeitos legais.

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O MP, através do seu digno representante junto deste tribunal, foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.(1)

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ÂMBITO (questões a resolver)

Os recursos, seja para o Tribunal Central Administrativo, seja para o Supremo Tribunal Administrativo, devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e os respetivos fundamentos.

Os recursos têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão a proferir, está provado o seguinte quadro factual:


“Texto e/ou quadro no original como imagem”

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Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há condições para se compreender este recurso e para apreciar o seu mérito de acordo com os princípios estruturantes de um Estado constitucional e democrático de Direito, designadamente os princípios estruturantes da juridicidade e legalidade (2), da igualdade substantiva de tratamento de todas as pessoas humanas, da segurança jurídica e da tutela jurisdicional efetiva. Utilizamos, por isso, um método(3) de Ciência do Direito adequado à garantia efetiva dos direitos dos cidadãos(4), cidadãos que são quem dá legitimidade jurídico-democrática a toda e qualquer atividade de exercício público de poderes de autoridade (com ou sem margem de livre decisão), o que exige uma correta argumentação jurídica, necessária aos diálogos e aos “polilogos multipartes” próprios do processo jurisdicional europeu continental, capaz de garantir com efetividade o disposto nos importantes artigos 2º, 17º, 18º/2, 20º, 266º e 268º da Constituição e 3º ss do Código de Procedimento Administrativo.

Vejamos, pois, as questões a resolver.

A)

Não cabe apreciar aqui a estranha questão levantada, aliás só agora, pelo IRN com referência aos artigos 81º e 83º do EOA, pois que está fora do âmbito da decisão recorrida e porque diz respeito apenas a um suposto impedimento legal e deontológico dos advogados (que não descortinamos), da competência da entidade administrativa pública Ordem dos Advogados.

B)

QUESTÃO A RESOLVER: o invocado erro de julgamento de direito relativamente ao direito a atendimento prioritário referido, num contexto em que a grávida atua como trabalhadora por conta de outrem

B.1.

O Decreto-Lei 135/99 (“princípios gerais de ação a que devem obedecer os serviços e organismos da Administração Pública na sua atuação face ao cidadão”) estabelece, no seu artigo 9º/1, a seguinte regra jurídica injuntiva:

«Deve ser dada prioridade ao atendimento dos idosos, doentes, grávidas, pessoas com deficiência ou acompanhadas de crianças de colo e outros casos específicos com necessidades de atendimento prioritário».

No caso presente, como vimos, o IRN negou tal prioridade à autora, cidadã grávida, como trabalhadora (ou colaboradora, como agora se diz) de uma sociedade de advogados, secretária que se deslocava todos os dias à cit. Conservatória.

O tribunal a quo, com base em considerações decorrentes das normas constitucionais sobre igualdade, não discriminação das mulheres trabalhadoras grávidas e ainda sobre o direito ao emprego seguro de todos, decidiu dar razão à autora.

Embora não conste das explicações escritas dadas pelo IRN (assentes sobretudo em alegadas ponderações administrativas casuísticas), este invoca agora um abuso do direito (parece que por parte da entidade patronal, ou empregadora, como agora se diz).

Vejamos.

B.2.

Em primeiro lugar, parece-nos, face ao que nos impõe o artigo 9º do Código Civil, que o cit. artigo 9º/1 do Decreto-Lei 135/99 não deixa à Administração qualquer margem de livre decisão ou de livre apreciação quanto a integrar as pessoas grávidas na previsão da norma legal, não havendo, portanto, lugar a ponderações e a concretizações pela A.P. da máxima metódica da proporcionalidade, relativamente a dar prioridade de atendimento às grávidas. Portanto, o que se pode e deve fazer é “apenas” aferir se o caso factual da vida real encaixa ou não na previsão da norma legal. Para isso, temos de aplicar bem o artigo 9º do Código Civil.

Pelo elemento literal ou gramatical da interpretação das leis (a base textual atualista, nas dimensões sintática e semântica; o “first meaning”), concluímos que sim: a autora é uma pessoa grávida; está em causa o atendimento pela conservatória.

Portanto, neste momento de cumprimento do artigo 9º do Código Civil, tudo indicia (“first meaning”) que a A. tem razão. O IRN não poderia excluir a A. daquela prioridade de atendimento, baseando-se no facto de ela, grávida, ser trabalhadora por conta de outrem ou no facto de pretender ser ali atendida todos os dias; a letra da lei não permite, em geral ou abstrato, tais condições ou justificações.

Mas, é claro que o dever previsto no artigo 9º/1 da Lei 135/99 não corresponde a um direito subjetivo público absoluto da A., não sendo independente das condições reais concretas verificadas no momento do atendimento. Significa, sim, que ela está entre as pessoas que aquela norma visa proteger através do seu cumprimento pela A.P.

Falta agora verificar se os restantes elementos da interpretação (o lógico-histórico; o elemento lógico-sistemático ou “de conexão e coerência com o sistema jurídico atual, sob a égide do princípio da igualdade”; e o importantíssimo elemento lógico-teleológico através da “consideração da estatuição normativa à luz das circunstâncias atuais, dos princípios jurídicos a otimizar e da aferição das consequências compatíveis com o sistema”) apontam ou não para que o significado da lei, o pensamento legislativo (“deep meaning”), é coincidente com o da letra (interpretação confirmatória), ou se é mais amplo (interpretação reconstrutiva extensiva, paeter litteram, em que o espírito da lei fica aquém da letra) ou mais restrito (interpretação reconstrutiva restritiva Onde parece se integrar a chamada redução teleológica., citra litteram, em que a letra da lei é como que derrotada ou diminuída pelo seu espírito) do que o cit. significado que inferimos da letra da fonte de Direito cit.

Ora, começando pelo importante elemento teleológico nos termos acima explanados, temos o seguinte como relevante: atualmente há uma grande preocupação jurídica com a tutela das posições jurídicas ativas (pessoais, privadas, públicas, sociais, laborais) de certos grupos sociais e ou de pessoas em certas condições físicas ou psicológicas; visa-se otimizar o princípio da igualdade entre todos os seres humano, nomeadamente as mulheres (seres com a capacidade de engravidarem) e também no contexto laboral, bem como ainda otimizar o direito fundamental a constituir família; assim, a tese da A. não surge como estranha no atual sistema jurídico, como é fácil de ver, onde existem as preocupações constitucionais referidas na petição inicial e na sentença com a tutela jurídica específica das mulheres grávidas em geral.

Poder-se-ia contrapor que aquela norma legal visa apenas a atuação das grávidas fora da sua atividade laboral, pois esta ocorre no interesse da entidade patronal. Mas não pode ser assim. Isso significaria que uma secretária (forense ou não) grávida, a trabalhar por conta de outrem, não teria o direito conferido pelo artigo 9º/1 da Lei 135/99; significaria que a A. não poderia trabalhar por causa de uma lei ordinária, em flagrante contraste com a letra clara da lei e ainda com a otimização da Constituição e seus princípios.

Em síntese: uma grávida pode trabalhar sem restrições administrativas, pode ir em trabalho ou não às conservatórias; no caso de a trabalhadora grávida ir a uma conservatória, o facto de ali se deslocar todos os dias, para trabalho a sério, não a diminui em nada ante a referida norma legal; todas as grávidas, todos os dias, têm o direito subjetivo infraconstitucional, não absoluto, previsto no artigo 9º/1 da Lei 135/99.

Os elementos histórico e sistemático da interpretação nada toleram em contrário do que acabámos de referir.

B.3.

Diz agora o IRN, algo vagamente, que há abuso do direito subjetivo público (conferido pelo cit. artigo 9º/1), porque a A se desloca à conservatória todos os dias em trabalho.

Ora, desde já, cumpre referir que a A se desloca à conservatória em trabalho subordinado, porque a entidade patronal assim lho determina. Teríamos, por isto, a entidade patronal a “abusar do direito” conferido à A., nos termos previstos no artigo 334º do Código Civil: exercício de um direito, aqui subjetivo público, em que o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

É, pois, fácil de concluir que a entidade patronal da A., com lícito poder de direção, não está a agir com abuso do direito aqui em causa, pois que é um direito das grávidas, isto é, da ora A.

Por outro lado, também não há, de todo, um abuso do seu direito por parte da A., porque esta está a trabalhar licitamente, estando no estado natural de grávida, como previsto na lei, lei esta que não exceciona, naturalmente, a possibilidade de a necessidade de atendimento pela A.P. ser todos os dias.

É claro que a autora deve respeitar um sub-mandamento da boa fé, o alterum nom laedere, isto é, a ora A. deve exercer o seu direito de modo a não causar nos outros prejuízos desnecessários ou evitáveis. Mas isto já tem que ver, apenas, com a mera casuística diária do atendimento efetivamente prioritário aqui em causa, fora do objeto deste processo.

Por outro lado, não vemos como considerar que esta conduta diária da A., cidadã a trabalhar diariamente por conta de outrem, e que está grávida, esteja a se desviar do fim social do direito correspetivo do dever previsto no cit. artigo 9º/1 (fim já atrás referido, onde se inclui o minorar do sofrimento físico das grávidas causado pelo esperar nas repartições públicas e ainda o de eliminar obstáculos à normal atividade social e laboral das senhoras grávidas).

Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os Juizes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, julgando-o improcedente.

Custas a cargo do recorrente.

D.N. (notificação; registo; publicação nos termos legais)

Lisboa, 7-4-16


(Paulo H. Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)


(1)Para decidir, este tribunal superior tem omnipresente a nossa Constituição e as três dimensões do Direito (isto é, os valores éticos, as normas e os factos sociais). Dali resulta o seguinte:
I- O primado do Estado democrático e social de Direito, num contexto de uma vida socioeconómica submetida aos valores ético-jurídicos (i) da dignidade humana, (ii) da liberdade e (iii) do bem comum; II- Os princípios constitucionais estruturantes do Estado democrático e social de Direito, como (i) a juridicidade, (ii) a igualdade jurídico-material e jurídico-social de todos os seres humanos, (iii) a tutela jurisdicional efetiva e, ainda, (iv) a segurança jurídica de todas as pessoas; III- Os habituais comandos definitivos ou normas jurídicas que exigem algo de modo definitivo, dispositivo ou quase-conclusivo (i.e., as Normas-Regra, compostas por hipótese e estatuição ou consequência jurídica), sob a égide dos importantes artigos 9º a 11º do Código Civil, que se aplicam normalmente através da chamada subsunção; têm uma eficácia jurídica positiva ou simétrica; IV- Os (menos frequentes) coman­dos jurídicos gerais do sistema, quase sempre comprome­tidos axiológica e eticamente, como "razões de agir", i.e., os eventuais comandos que têm de ser otimizados no concreto (diferentes dos princípios constitucionais estruturantes ou valores constitucionais estruturantes), que exigem do aplicador a sua otimização transparente ante as possibilidades de facto e de direito existentes no caso concreto, através da ponderação ou sopesamento racional e justificado das aplicáveis normas colidentes que tenham significados não específicos ou valorativos (i.e., as Normas-Princípio, comandos quase sempre sem estatuição, normas não conclusivas, com objetiva textura aberta, ou objetiva ambiguidade semântica/sintática/pragmática, ou objetiva vagueza de linguagem no predicado ou com óbvio significado valorativo, numa exigência de fazer opções com base nos ideais de justiça, equidade ou moralidade, sendo ainda que a sua validade decorre do seu próprio conteúdo, e têm uma função explicadora e justificadora das regras concretas), ponderação pela qual se acaba por escolher a norma a concretizar adequadamente, depois, no caso de vida a resolver; estas normas-princípio têm uma eficácia jurídica negativa e têm na sua estrutura (i) uma metaregra “a se” (segundo a qual o “dever-ser ideal” ínsito na norma, decorrente do valor superior da Justiça, deve ser otimizado no concreto até ao “dever-ser real”, por causa do princípio estruturante da segurança jurídica) e (ii) a norma-princípio (o objeto da otimização, o “dever-ser ideal”); V- A máxima interpretativa da unidade e coerência atualista do sistema jurídico (importante também contra a omissão jurisdicional de controlo das chamadas “discricionariedades”); VI- E, quando for juridicamente lícito e objetivamente necessário, a máxima metódico-racional da proporcionalidade (cf. arts. 2º e 18º da Constituição e 335º do Código Civil); afinal, com a proporcionalidade, como máxima metódica transparente e racional, o tribunal, que nunca logra fazer uma concordância prática, exerce sim um duplo “poder discricionário” com racionalidade: o juiz cria uma hierarquia axiológica entre as normas colidentes, a fim de escolher uma delas, e depois continua objetivamente livre para modificar os valores comparativos dos dois princípios perante uma nova controvérsia ante os mesmos princípios.

(2)Com efeito, a lei é (i) o pressuposto, (ii) o fundamento e (iii) o limite das atividades de administração pública (direta, indireta, autónoma e, ainda, a novel e socialmente dispendiosa “Administração Pública independente ou de mera regulação”). Paradoxalmente, pode-se obter a diminuição do controlo jurisdicional e da tutela jurisdicional efetiva, através do expediente da chamada “regulação administrativa”, de desnecessária importação anglo-saxónica, normalmente aliada à perigosa autocontenção do legislador democrático defensor do bem comum e, pior ainda, aliada à expansão das chamadas autoridades administrativas independentes, correspetiva do encolhimento das direções-gerais da Administração Pública central de tipo europeu continental. Assim se consegue o domínio da “racionalidade técnica, mercantil ou funcional” sobre a racionalidade jurídica das atividades de administração pública num Estado democrático de Direito.

(3)Como exposição do modo de chegar à correção do conhecimento (cfr. I. KANT, Lógica, trad., Edições Texto & Grafia, 2009, Lisboa, pág. 131).

(4)Previamente à diferente e menos complexa obtenção de uma das premissas do silogismo judiciário (qualificação jurídica dos factos, aplicação do Direito, ou “fact-oriented interpretation” – MICHEL TROPER, “La théorie du droit, le droit, l' État”, ed. P.U.F., Paris, 2001, págs. 106 ss), o juiz deve fazer a exigente interpretação em sentido próprio, ou abstrato, da fonte de Direito (“text-oriented interpretation”), atividade esta que tem de respeitar (i) a Constituição, maxime os direitos fundamentais e o princípio estruturante da segurança jurídica, e (ii) as seguintes três máximas interpretativas para se inferir, das fontes de Direito, a regra jurídica aplicável ao caso concreto (e não para o tribunal criar novas normas jurídicas):
1ª Máxima lógico-interpretativa das fontes escritas de Direito - a interpretação da lei pelo juiz (conforme o art. 9º do Código Civil) é a reconstituição do pensamento legislativo atual - “deep meaning” - (i) sempre a partir dos textos normativos (“first meaning”; ou significado literal e filológico), tendo sobretudo em conta, sem contradições, (ii) o elemento lógico-sistemático atualista da interpretação (iluminado pelas ideias de sistema, de igualdade e de coerência), (iii) o elemento lógico-histórico da interpretação (a justificação para a produção da fonte de direito) e (iv) o elemento lógico-teleológico atualista da interpretação (a finalidade que justifica a vigência da fonte de Direito, ou “ratio legis”; o juiz atende aqui aos princípios jurídicos, formais e materiais, em que se funda a regra no presente, bem como às consequências previsíveis mais compatíveis com o sistema jurídico atual) – cf. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 13ª edição refundida, 2005, e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, I, 4ª edição, 2012;
2ª Máxima lógico-interpretativa das fontes escritas de Direito - o pensamento legislativo atual assim apurado pelo juiz (“deep meaning”) deve ter sempre um mínimo de correspondência verbal na letra da lei. Trata-se de uma importante garantia contra o arbítrio interpretativo, violador da segurança jurídica, num sistema jurídico democrático de tipo romano-germânico, como é o português, onde se descobriu há vários séculos como diminuir a insegurança jurídica;

3ª Máxima lógico-interpretativa das fontes escritas de Direito - o juiz deve presumir que o legislador democrático consagrou as soluções mais acertadas e que soube exprimir-se em termos adequados. É também uma garantia contra o arbítrio interpretativo, que tende hodiernamente a confundir o modo específico de aplicar (de sopesar para concretizar) as excecionais normas-princípio com o modo de aplicar as habituais normas-regra, normas-regra que demandam do aplicador a utilização imediata e rigorosa dos arts. 9º a 11º do Código Civil, sem recurso à chamada “ponderação racional” como 3º subexame da máxima metódica da proporcionalidade. Note-se, ainda, que é somente depois da interpretação em sentido abstrato (“text-oriented interpretation”) que haverá lugar à subsunção, isto é, à “fact-oriented interpretation”. Também é nesse momento, posterior à interpretação da fonte, que o juiz poderá concluir que existe uma lacuna ou uma antinomia (assim R. GUASTINI, Problemi di interpretazione, in Le fonti del diritto e l´interpretazione, ed. Giuffrè, Milano, 1993, cap. XXV)