Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1755/08.0 BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:09/15/2022
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:INCOMPETÊNCIA HIERÁRQUICA
Sumário:Para o conhecimento dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos Tribunais Tributários de 1ª. Instância é competente o Supremo Tribunal Administrativo quando o recurso tiver por fundamento exclusivamente matéria de direito e se a decisão se tiver pronunciado sobre o mérito e, pelo contrário, é competente a Secção de Contencioso Tributário de um dos Tribunais Centrais Administrativos se o fundamento não for exclusivamente de direito ou, sendo-o, se a sentença não tiver apreciado o mérito da causa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

Por sentença de 26/03/2021, do Tribunal Tributário de Lisboa foi julgada procedente a impugnação judicial e anulada a liquidação de IRC do exercício de 2003, no valor de €29.987, 00, deduzida pela sociedade AIFA 2- Fotografia e Edições, Unipessoal, Lda..

Inconformada com tal decisão, a Fazenda Pública veio recorrer para este TCA Sul, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:

«A. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente a Impugnação Judicial deduzida contra os atos de liquidação adicional de IRC do exercício de 2003, no valor total de €29.987.00.

B. Uma nota fundamental para o presente Recurso: Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os seus fundamentos.

C. Na sentença proferida, refere o Tribunal a quo, na sua fundamentação de direito e em jeito de conclusão, que:
“(…) Nestes casos a AT não pode simplesmente recusar-se analisar os referidos documentos na fase graciosa, e empurrar a Impugnante para os Tribunais.
A fase graciosa é concebida para evitar a continuação dos litígios nos Tribunais, com dispêndio de tempo e dinheiro para o Estado e para os contribuintes.
Se a Autoridade Tributário tivesse analisado os referidos documentos oferecidos e concluído que os mesmos não eram suficientes, aí nenhuma censura merecia a actuação da AT.
Mas não foi isso que ela fez (…)”.

Por conseguinte, a liquidação impugnada padece de vício de violação de lei por errada apreciação dos pressupostos de facto e de direito, cominada com a anulabilidade, devendo a AF apreciar os documentos que a Impugnante se propõe agora a apresentar (…)”. Realçado nosso.

D. Não obstante, decide o Tribunal julgar totalmente procedente a impugnação e determinar a anulação da liquidação de IRC e de juros compensatórios, controvertidas.

E. Com o devido respeito que é muito, não pode a Fazenda Pública concordar com o assim decidido, considerando que há uma clara oposição entre a fundamentação e a decisão, susceptível de determinar a nulidade da sentença, nos termos do art. 615º, nº 1, al. c) do CPC.

F. De facto, considera a Fazenda Pública que, a decisão deveria ser no sentido da sua Procedência, devendo ser ordenada a AT, para proceder à apreciação dos documentos que a Recorrida se propõe a apresentar, conforme decorre da fundamentação do Tribunal a quo.

G. A nulidade da sentença a que se refere a 1.ª parte da al. c), do n.º1, do art.º 615.º do CPC, remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos.

H. Pelo que, considera a Fazenda Pública, padecer a sentença recorrida de nulidade nos termos do citado preceito.

I. Pelo que deverá o presente Recurso ser considerado procedente e, consequentemente, ser anulada, a Sentença recorrida e substituída por uma outra, onde seja ordenada a AT, para proceder à apreciação dos documentos que a Recorrida se propõe a apresentar.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser considerado procedente o presente recurso e revogada a douta sentença na parte recorrida, como é de Direito e Justiça.»


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Não há registo de contra-alegações.

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O Exmo. Magistrado do Ministério Público (EMMP) junto deste Tribunal emitiu parecer no qual suscita a exceção de incompetência em razão da hierarquia deste Tribunal, dado que o recurso deduzido apenas versa matéria de direito.

Fê-lo nos seguintes termos:

“Analisando os autos, desde já se suscita a questão prévia da competência deste Tribunal para conhecer do presente recurso.

O presente recurso versa apenas matéria de direito, o que resulta da leitura das conclusões das alegações.

Acresce que, da leitura das próprias alegações de recurso da recorrente, não resulta que seja posto em causa quaisquer dos factos constantes do probatório da douta sentença recorrida, sendo apenas suscitadas questões quanto ao entendimento do Tribunal “a quo” relativamente aos factos dados como provados e ás disposições legislativas invocadas.

Nos termos dos art. 280º nº 1 do C.P.P.T. e 26º, al. b), do E.T.A.F., das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que cabe recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.

No caso dos autos, a matéria em recurso é exclusivamente de direito, pelo que para dela conhecer é competente a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.

Esta questão deve ser resolvida, antes do mais, como determina o art. 13º do C.P.T.A., aplicável “ex vi” art. 2º, al. c), do C.P.P.T.

A violação da regra de competência, em razão da hierarquia, determina, por previsão explícita do art. 16º nº 1 do C.P.P.T., a incompetência absoluta do Tribunal, ao qual é, indevidamente, dirigido o recurso.

Como decorre do art. 641º nº 5 do C.P.C. (aplicável “ex vi” do art. 2º, al. e), do C.P.P.T.), o despacho que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Superior, pelo que nada obsta a que se aprecie e decida a questão prévia da competência do Tribunal, que é de conhecimento oficioso, que se consubstancia na incompetência do T.C.A. “ad quem” em razão da hierarquia.

Deste modo deve ser julgada verificada a excepção de incompetência absoluta deste Tribunal, em razão da hierarquia, nos termos das disposições combinadas dos art. 280º nº 1 do C.P.P.T., 26º, al. a) do E.T.A.F. e 96º al. a), 97º nº 1, 98º, 99º nº 2, 576º nº 1 e 2, 577º, al. a), e 578º do C.P.C., estes aplicáveis por força do disposto no art. 2º, al. e), do C.P.P.T..”

Atenta a questão da incompetência hierárquica, tal como suscitada, a Recorrida e a Recorrente foram notificadas para, sobre tal, se pronunciarem.

Nada disseram.


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Com dispensa dos vistos, vêm os autos à conferência.

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A sentença recorrida fixou o seguinte quadro factual:

«A) A Impugnante era uma sociedade por quotas que exercia como actividade principal “Actividades Fotográficas”, inscrita com o CAE 74810, e estando enquadrada em sede de IVA no regime normal com periodicidade mensal – cfr. fls. 21 do Processo de Reclamação apenso aos Autos;

B) Em 22/07/2005, a Autoridade Tributária emitiu oficiosamente, em nome da Impugnante, a liquidação de IRC n.º 20058310100291 no valor de 29.987,82€ - cfr. fls. 7 dos Autos;

C) Em 27/11/2005, a Impugnante remeteu para o Autoridade Tributária a Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC referente a 2003 – cfr. fls. 2 e 32 do Processo de Reclamação apenso aos Autos;

D) A declaração referida na alínea não foi liquidada pela AF – cfr. print de fls. 32 do Processo de Reclamação apenso aos Autos;

E) Em data não concretamente apurada, mas antes de 2/12/2005, a Impugnante foi notificada da liquidação indicada em B) – por confissão, artigo 10º da p.i.;

F) Em 2/12/2005, a Impugnante apresentou junto da Repartição de Finanças de Lisboa 12 a Reclamação Graciosa contra a liquidação de IRC de 2003 - cfr. fls. 4 do Processo de Reclamação apenso aos Autos;

G) Em 9/11/2006, a Direcção de Finanças de Lisboa remeteu para a Impugnante o instrumento constante a fls. 35 do Processo de Recurso Hierárquico apenso aos Autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e onde consta o seguinte: « Com referência ao processo de Reclamação Graciosa identificado em epígrafe, sobre IRS de 2003, e atendendo a que no âmbito do processo gracioso de reclamação (art.. 68° e 69° do Código de Procedimento e de Processo Tributário - CPPT) se encontra estabelecida a limitação dos meios probatórios à forma documental, aos elementos oficiais de que os serviços disponham, sem prejuízo do direito de se ordenar outras diligências complementares, e tendo em conta que pelo estabelecido no n.°1 do art.° 74° da Lei Geral Tributária (LGT) “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque ”, fica V. Ex.ª notificado, nos termos do art. 38° do CPPT para, no prazo de 10 (dez) dias, apresentar nesta Divisão de Justiça Administrativa, os seguintes elementos:
Declaração Anual, incluindo o Anexo J e L;
• Livro de Inventário e Balanços;
• Balancete do Razão Geral antes do apuramento dos Resultados do exercício de 2003;
• Balancete do Razão Geral depois do apuramento dos Resultados do exercício de 2003;
• Acta da Assembleia Geral que aprovou as Contas do exercício de 2003;
• Extractos contabilísticos de todas as contas (assinados pelo responsável da contabilidade) e de todos os documentos de suporte dos registos efectuados no exercício de 2003;
• Inventários analíticos das “existências” em 31/12/02 e em 31/12/2003, com a indicação da referência, quantidades e valores. (…)»;

H) O Impugnante não entregou os documentos de suporte dos registos contabilísticos efectuados no exercício de 2003 – por confissão, artigo 15º da p.i.;

I) Em 8/05/2007, a Reclamação referida em F) foi indeferida por despacho do Director de Finanças – cfr. fls. 383 do Processo de Reclamação apenso aos Autos;

J) Em 14/06/2007, a Impugnante apresentou o Recurso Hierárquico constante a fls. 1 a 6 do Processo de Recurso Hierárquico apenso aos Autos, o qual acabou por ser indeferido por despacho de 8/05/2008 – cfr. fls. não numeradas do Processo Administrativo apenso aos Autos;

K) No artigo 15º da petição de Recurso Hierárquico, a ora Impugnante solicitou que lhe fosse facultada a apresentação dos documentos de suporte – cfr. fls. 6 do Processo de Recurso Hierárquico apenso aos Autos;

L) A PI deu entrada no TT de Lisboa a 1/10/2008 - cfr. fls. 3 dos autos.


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Motivação: A convicção do Tribunal que permitiu dar como provados os factos acima descritos assentou na análise dos documentos constantes dos Autos, tudo conforme discriminado em cada uma das alíneas dos Factos Assentes, conjugado com o princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço para alcançar a verdade material, analisando dialecticamente os meios de prova ao seu alcance, procurando harmonizá-los entre si de acordo com os princípios da experiência comum.

Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados.»


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Importa, pois, a título prévio, decidir da questão da competência deste TCA Sul para conhecer do presente recurso, pois, como é sabido, o conhecimento desta questão precede o de qualquer outra que se coloque nos autos [cfr. artºs 16.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 96º e 97º do CPC)], prejudicando, se procedente, a apreciação e julgamento de qualquer outra questão aqui suscitada.

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Nos termos do artigo 280º, nº1 do CPPT, “Das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso, a interpor pelo impugnante, recorrente, executado, oponente ou embargante, pelo Ministério Público, pelo representante da Fazenda Pública e por qualquer outro interveniente que no processo fique vencido, para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a decisão proferida for de mérito e o recurso se fundamente exclusivamente em matéria de direito, caso em que cabe recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo”.

A violação desta regra de competência, em razão da hierarquia, determina, nos termos do artigo16º, nº1 do CPPT, a incompetência absoluta do tribunal, ao qual é, indevidamente, dirigido o recurso.

Nos termos do artigo 26º, al. b), do ETAF, atribui-se competência à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo para conhecer dos recursos interpostos de decisões de mérito dos tribunais tributários, com exclusivo fundamento em matéria de direito;

Por sua vez, o artigo 38º, al. a), do ETAF, atribui competência à Secção de Contencioso Tributário de cada Tribunal Central Administrativo para conhecer dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, ressalvando-se o disposto no citado artigo 26º, al. b), do mesmo diploma.

Quer isto dizer que para o conhecimento dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos Tribunais Tributários de 1ª. Instância é competente o Supremo Tribunal Administrativo quando o recurso tiver por fundamento exclusivamente matéria de direito e se a decisão se tiver pronunciado sobre o mérito e, pelo contrário, é competente a Secção de Contencioso Tributário de um dos Tribunais Centrais Administrativos se o fundamento não for exclusivamente de direito ou, sendo-o, se a sentença não tiver apreciado o mérito da causa.

“Na delimitação da competência do STA em relação à dos tribunais centrais administrativos, a efectuar com base nos fundamentos do recurso, deve entender-se que o recurso não tem por fundamento exclusivamente matéria de direito sempre que nas conclusões das respectivas alegações, que fixam o objecto do recurso (art. 684º, nº3, do CPC), o recorrente pede a alteração da matéria fáctica fixada na decisão recorrida ou invoca, como fundamento da sua pretensão, factos que não têm suporte na decisão recorrida, independentemente da atendibilidade ou relevo desses factos para o julgamento da causa” – cfr. Jorge Lopes de Sousa, CPPT, anotado e comentado, 2006, I, Áreas Editora, pag. 213. (Vide o acórdão do STA, de 26/10/11, rec. nº 0805/11, nos termos do qual “(…) as conclusões integrarão matéria de direito se discutirem a interpretação ou aplicação de certo preceito legal ou a solução de determinada questão jurídica. E integrarão matéria de facto se traduzirem discordância sobre factos materiais da vida real na sua perspectiva actual ou histórica uma vez que a sentença os não tenha considerado ou os tenha fixado em desacordo com a prova produzida ou com aquela que devia ter sido produzida, ou se traduzirem discordância com as ilações de facto retiradas pelo julgador da factualidade apurada”.)

Por seu turno, as conclusões das alegações de recurso integram matéria de direito se discutirem apenas a interpretação ou aplicação de certo preceito legal ou a solução de determinada questão jurídica.

No caso, não estando em causa que a sentença se debruçou sobre o mérito da causa, e perante as conclusões do recurso jurisdicional, conclui-se que a questão que se coloca é apenas de direito, sendo certo que não vem posta em causa factualidade considerada na decisão recorrida, nem se invocam factos que aí não hajam sido contemplados, nem é feito qualquer juízo sobre questões probatórias.

A Recorrente apenas põe em causa a interpretação e aplicação da lei que foi feita pelo Tribunal Tributário de Lisboa na decisão recorrida.

Inexiste, como é patente, controvérsia factual a dirimir, sendo certo que a matéria controvertida neste recurso se resolve mediante uma exclusiva actividade de aplicação e interpretação dos comandos jurídicos invocados.

Nesta perspectiva, o recurso tem por exclusivo fundamento matéria de direito, sendo, por isso, competente para o seu conhecimento a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de harmonia com o disposto nos artigos 26º, nº 1, al. b) e 38º, nº 1, al. a), do ETAF e 280º nº 1 do CPPT.

De acordo com o disposto no artigo 16º do CPPT, a incompetência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do tribunal (nº1), é de conhecimento oficioso e pode ser arguida até ao trânsito em julgado da decisão final (nº2). Nos termos do artigo 18º, nº1 do CPPT, a decisão judicial de incompetência implica a remessa oficiosa do processo, o que deverá ser observado.


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DECISÃO

Termos em que se declara este Tribunal incompetente em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso e competente, para o efeito, a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.

Remeta-se o processo ao STA, observando-se o disposto no artigo 18º do CPPT.

Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.

Registe e notifique.

Lisboa,


Catarina Almeida e Sousa

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Isabel Fernandes

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Jorge Cortês

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