Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1871/17.7 BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:12/16/2021
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
JUÍZO DE CONTRATOS PÚBLICOS
Sumário:
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. RELATÓRIO

A Exma. Senhora Juíza do juízo de contratos públicos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 36.º do ETAF e artigos 109.º, n.ºs 2 e 3 e 111.º, n.º 1, ambos do CPC, requerer oficiosamente, junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, a resolução do conflito negativo de competência em razão da matéria, suscitado entre si e a Exma. Senhora Juíza do juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, visto que as Magistradas Judiciais dos referidos juízos atribuem-se, mutuamente, competência, negando a própria, para conhecer da acção administrativa que o MUNICÍPIO DE LISBOA instaurou no TAC de Lisboa contra M................

Neste TCA foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1 do CPC.

Os autos foram com vista ao Digno Procurador-Geral Adjunto, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia na qual sustenta que o tribunal materialmente competente para o conhecimento da presente acção é o juízo administrativo comum do TAC de Lisboa.

I. 1. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o juízo de contratos públicos do TAC de Lisboa ou se o juízo administrativo comum do mesmo tribunal.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. DE FACTO

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais:

1. O MUNICÍPIO DE LISBOA, em 17.08.2017, intentou no TAC de Lisboa uma acção administrativa contra M..............., pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe o montante global de EUR 26.036,07, a título de prestações em dívida relativas aos anos de 2011 a 2016.

2. Por sentença proferida a 28.06.2021, o Juízo Administrativo Comum do TAC de Lisboa determinou a remessa dos presentes autos ao Juízo de Contratos Públicos do mesmo Tribunal, por considerar ser este Juízo o competente, em razão da matéria, para conhecer do objeto do presente litígio.

3. Por sentença proferida a 14.09.2021, o Juízo de Contratos Públicos declarou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto desta ação, por entender que a competência para a conhecer cabia ao Juízo Administrativo Comum do mesmo Tribunal.

4. Em 15.11.2021, a Senhora Juíza do juízo de contratos públicos do TAC de Lisboa

5. As decisões em conflito transitaram em julgado (consulta do SITAF).

II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições se encontram regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

No contencioso administrativo, por força do disposto no artigo 13.º do CPTA, a competência, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.

Tal equivale a dizer que o presente conflito de competência, suscitado oficiosamente ao abrigo do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, foi levantado por quem tem legitimidade para tal.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

É sabido que o critério de atribuição de competência material ao juiz projecta a habilitação funcional do tribunal para a matéria que constitui o objecto do seu conhecimento (in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, p.107). Na verdade, a eficiência da organização judiciária com vista à melhor prestação da qualidade da Justiça reclama que se atribua a competência ao tribunal que mais vocacionado estiver para conhecer do objecto da causa respectiva. E quanto mais apurado for o critério atributivo de competência material, que é aquele aqui em causa, melhor surtirá a garantia da qualidade com que a Justiça é administrada ao cidadão a quem se destina.

A questão que nos é trazida a juízo – persistentemente - coloca-se por via da alteração ao artigo 9.º e dos aditados artigos 9.º-A e 44.º-A, ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº13/2002, de 19 de Fevereiro, operada pela Lei n.º 114/2019, de 12/09 (vide, artigos 2º e 3º).

No seguimento desta revisão foi publicado em 13.12.2019 o Decreto-Lei n.º 174/2019 que procedeu – no aqui e, agora, importa – à criação de juízos de competência especializada no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, onde além do juízo administrativo comum e do juízo administrativo social, criou ainda um juízo de contratos públicos, com jurisdição alargada sobre o conjunto das áreas de jurisdição atribuídas aos Tribunais Administrativos de Círculo de Almada, Lisboa e Sintra (cfr. artigo 2.º, n.ºs 1 e 2 deste diploma).

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44º-A (aditado pela Lei nº 114/2019, de 12/9) e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional.

De acordo com o citado artigo 44º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual; i.é, caso as matérias em dissidio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum.

A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

E na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo de contratos públicos, a execução de um contrato de procura pública com interesse concorrencial. Por isso o legislador utilizou a expressão “contratação pública”, para o que nos remete para o Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos (CCP).

Feito este enquadramento, é chegado o momento de apreciar a natureza do litígio que subjaz à presente à acção administrativa para se aferir se a competência cabe ao juízo de contratos públicos do TAC de Lisboa ou, inversamente, se esta radica no juízo administrativo comum do mesmo Tribunal.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc.11/2006.

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Recorde-se que na presente acção administrativa o autor, MUNICÍPIO .........., veio pedir ao Tribunal que se condene a pagar-lhe o montante global de EUR 26.036,07€, a título dos cânones superficiários em dívida relativos aos anos de 2011 a 2016, no valor de EUR 8.678,79, elevado ao triplo, nos termos do disposto no artigo 1531º, nº2 do Código Civil, e bem assim de todas as prestações que se vierem a vencer, as quais deverão, ser pagas, em triplo, em caso de mora. (cf. p.i.).

A causa de pedir emerge do incumprimento por parte do R., desde 2011 a 2016, das prestações anuais que convencionou pagar ao A., ao abrigo das condições para cedência de um dos lotes de terreno, sito na Quinta .............., Bairro do Oriente, em Lisboa, que ficaram reguladas pela Proposta n.º 7/97, aprovada em reunião de câmara de 08.01.1997 e mais precisamente da fórmula de pagamento da cedência do direito de superfície, o qual podia ser pago através de renda anual -ponto 3 da Proposta 96/92 (cf. documento nº 3, junto com a petição inicial). O direito de superfície foi constituído a favor do R, por escritura pública celebrada em 26.11.1988, pelo prazo de 70 anos.

Este tipo de contratos de cedência do direito de superfície, caraterizam-se pela autorização que é dada ao superficiário, in casu, o Réu, pelo titular do terreno, o Município de Lisboa, de utilizar os bens do domínio da pessoa colectiva postos à sua disposição por um prazo muito longo, tendo como contrapartida o pagamento do preço que pode ser pago por uma única vez ou através de rendas anuais ou mensais actualizadas ao longo do prazo de vigência do contrato.

Não nos oferece qualquer dúvida que o contrato de cedência do direito de superfície não corresponde a nenhuma das categorias de contratos submetidos à parte II do CCP, nem está sujeito ao regime substantivo dos contratos públicos inscrito na sua parte III (artigo 280º do CPC.). Antes se integra numa categoria de contratos expressamente excluídos do âmbito de aplicação do CCP (artº 4º, nº 2, al. c), do CCP).

O que vale por dizer que o objecto dos presentes autos não se reporta a um litigio emergente de contrato de procura pública com interesse concorrencial, mas estamos, antes perante um ” contrato de cedência de direito de superfície (que se destina, neste caso, a promover a recuperação das construções e legalização dos fogos destinados à habitação própria dos ocupantes no prédio descrito no artigo 1.º da petição inicial, que é da propriedade do Município) levada a cabo pelo Município de Lisboa a favor do aqui Réu, em relação ao qual se aplica as tais Propostas n.ºs 96/92 e 71/97 e as Condições Gerais de Cedência de Lotes de Terreno em Direito de Superfície, como ainda as regras contidas na Escritura de Constituição do Direito de Superfície outorgada entre as partes.”, como bem decidiu a Sra. Juiz do Juiz dos Contratos Públicos.

Efectivamente, para que se considere que um determinado contrato está sujeito às normas da contratação pública, é necessário que haja procura pública, no sentido de corresponder esta à satisfação de um interesse próprio e de uma necessidade da entidade adjudicante. (cfr., a este propósito, Pedro Costa Gonçalves, Direito dos Contratos Públicos, 4.ª ed., 2020, p. 312 e s.). O que não é seguramente o caso dos presentes autos, como acima já se deixou dito.

Em face do que fica dito, teremos que concluir, em face do teor da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF e tendo presente o objecto do litígio – o qual se prende incumprimento das prestações anuais que convencionou pagar ao A. no âmbito do contrato de cedência do direito de superfície de um lote de terreno municipal - que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito, não cabe ao juízo de contratos públicos do TAC de Lisboa, mas sim ao juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, nºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 2.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e artigo 1.º alínea a) da Portaria nº 121/2020, de 22 de Maio.


III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa.

Sem custas.

Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul
PEDRO MARCHÃO MARQUES