Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:420/20.4BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:11/12/2020
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:IMPUGNAÇÃO DO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO;
ÓNUS PROCESSUAIS;
CONTRATAÇÃO PÚBLICA;
SUSPEITA DA QUEBRA DE UM CONTRATO PROMESSA DE EXCLUSIVIDADE;
DOCUMENTOS CLASSIFICADOS;
ART.º 66.º DO CCP.
Sumário:I - O artigo 640.º do CPC estabelece como ónus a cargo da parte que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a necessidade de especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, sobre os diversos pontos da matéria de facto impugnados;
II - Por seu turno, os art.ºs 640.º e 662.º do CPC, permitem a reapreciação e a modificabilidade da decisão de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância apenas nas situações em que o tribunal recorrido apresente um julgamento errado, porque fixou factos de forma contrária às regras da prova, ou os fixou de forma inexacta, ou porque os valorou erroneamente;
III – A alegação de uma suspeita de quebra de um contrato promessa de exclusividade na indicação do respectivo nome para efeitos de integrar uma lista de médicos um concurso público não é uma razão que mereça protecção no regime legal da contratação pública, que inquine a actuação da entidade adjudicante, ou que implique uma invalidade procedimental;
IV- Não ocorre uma violação do direito de audiência prévia pelo facto de não terem sido facultados aos concorrentes, pelo júri de um concurso público, previamente a essa audiência, certos documentos que tinham sido classificados nos termos do art.º 66.º, n.º 1, do CCP e continham dados pessoais e nominativos relativos aos vários médicos.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul


I - RELATÓRIO


I.............. LDA, interpôs recurso da sentença do TAF de Leiria que julgou improcedente a acção de contencioso pré-contratual na qual se pedia a condenação Centro Hospitalar de Leiria, EPE (CHL) a abster-se de celebrar o contrato de aquisição de serviço com a Contra-interessada, T........ – ........, SA, relativamente ao lote 3 do concurso público A0/56/2020. Mais se pedia, a substituição da decisão de adjudicação à proposta da A., ou, subsidiariamente, a caducidade da adjudicação à Contra-interessada e a adjudicação da prestação à proposta da A.

Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões: ”1. Deverá ser aditada à matéria dos factos dados como assentes, os que se acham vertidos e foram alegados pela A., designadamente nos pontos 44 e 45 da petição Inicial, a saber:
A) Pelo concurso ponto 7.5 a concorrente obriga-se que a prestação de serviços médicos de medicina interna será assegurada pelo corpo clínico identificado na lista apresentada nos termos do ponto 7.4.
B) A Contra Interessada T........, contactou logo para a primeira escala, para prestarem os serviços médicos decorrentes do concurso em apreço, em conformidade com a escala que a referida empresa, estaria a preparar para o mês de Maio de 2020, o qual seria o primeiro mês de sua actividade após a dita, e já referida, decisão de adjudicação, pelo menos, quatro dos médicos que se achavam contratualizados pela A. e que não constavam da lista da dita Contra-Interessada.
Tais factos são importantes e, mesmo essenciais, para se aferir da postura da contra interessada e da falsidade, ou reserva mental da mesma na sua proposta vencedora, determinando a caducidade do procedimento
2 Ocorreu violação do direito de audição prévia da A., sendo que uma coisa é saber-se e discutir-se quais os meios que estavam ou estão à disposição de uma qualquer parte para reagir relativamente a qualquer violação de direito, outra é registar-se se essa violação ocorreu ou não.
3 Diga-se ainda, que deixando-se cair a questão da coincidência de nomes dos médicos das propostas da A. e da Contra Interessada a questão - a qual foi responsabilidade da R. - é que a dita Contra Interessada pretende fazer as escalas com os médicos, não indicados por si na proposta, mas antes e outrossim, pelos contratualizados pela A..
4 Sendo que a proposta vencedora, se obriga a uma prestação de serviços com determinados e específicos médicos e não com outros e sabendo-o, ou disso tendo posterior conhecimento, não pode deixar a R. de ser condenada a absterse de celebrar qualquer contrato de aquisição de serviços com a Contrainteressada, relativamente ao Lote 3 e, consequentemente, ser substituída a decisão de adjudicação do indicado Lote 3 à Contra-interessada, por ser ilegal, e pela adjudicação da mesma à proposta ordenada em segundo lugar, ou seja, à A., ou subsidiariamente, caso tal se não entenda, o que se admite por mero exercício de raciocínio, já que, não pode deixar de se ter, em qualquer caso, determinada a caducidade da adjudicação do Lote 3 à Contra-interessada por a mesma não pretender, conforme se pode verificar, pelo confronto das propostas e dos documentos, por reserva mental, não correspondendo a documentação e indicação dos médicos por si apresentados àqueles que é efectiva intenção da Contra Interessada irem proceder á prestação dos serviços médicos em causa, e nessa medida não deixando de ocorrer falsas declarações, adjudicando-se a prestação da proposta da A., ordenada segundo lugar.
5 Ao não ter decido em conformidade, e não tendo decidido em conformidade com o pedido pela A., a douta sentença recorrida violou entre outros o disposto nos artigos 9.º, 56.º e 125.º do CPA, art.º 268.º da CRP, e os artigos 70 n.º 2 al. g); 146 n.º 2 als m) e o) e, 148.º, todos do CCP, ao não ter reconhecido o vício da decisão do concurso sub judice”.

O Recorrido CHL nas contra-alegações formulou as seguintes conclusões: “1ª – Abandonada a tese da falsidade dos documentos por força das evidencias constantes do PA e a clareza do decidido na D. Sentença recorrida, insiste a A./recorrente na invalidade do ato de adjudicação, porque, segundo testemunhos assinados em documentos particulares, em fins de abril de 2020 a concorrente T........ contactou médicos com vista á prestação de serviços objeto do contrato a celebrar, distintos dos que identificou nos documentos da sua proposta exigidos nos termos dos pontos 7.4 e 7.5 do Programa do Procedimento.
2ª – Aplica-se aqui o raciocínio expendido na D. Sentença recorrida, por via do qual na mesma se concluiu que o alegado pela A. quanto às hipotéticas falsas declarações e documentos falsos apresentados pela concorrente rival, ainda que provado, não seria bastante para preencher os pressupostos da exclusão da proposta desta, por aplicação dos artigos 70º/2 g) e 146º/2 m) do CCP.
3ª – De facto, ainda que fosse correta a afirmação inserta no artigo 44º da p.i. - no que não se concede, como aliás já se afirmou -, tal não seria bastante para concluir que: i) o corpo clinico com que o contrainteressado se propunha realizar a prestação de serviços por conta do R. objeto do concurso e constante da sua proposta tivesse sido alterado;
ii) ou que o propósito da concorrente com a apresentação da proposta, não fosse o de prestar os serviços ao R. que constituiriam o objeto do contrato a celebrar com os profissionais identificados na sua lista – que subscreveram as competentes declarações para o efeito – pretendendo na verdade usar outro para tal fim.
4ª - É, pois, irrelevante à apreciação da causa, a introdução da matéria do artigo 44º da p.i, não sendo aquela apta a determinar a invalidade do ato de adjudicação, a sua caducidade, ou a invalidade do contrato a celebrar.
5ª - Por outro lado, a D. Sentença recorrida já incluiu no ponto 2. dos Factos Assentes, o teor do ponto 7.5. do programa do procedimento, não havendo, portanto, fundamento para acrescentar à matéria provada, os dois pontos propostos pela recorrente, nem, por consequência, para alterar o decidido.
6ª – O órgão que promoveu a decisão de contratar estava vinculado, nos termos do artigo 66º/6 do CCP, até ao fim do procedimento, a reservar a confidencialidade dos documentos da recorrente e da contrainteressada relativos à identidade e habilitações dos médicos que cada uma delas se propunha afetar à prestação de serviços pretendida contratar pelo R..
7ª – A apresentação de tais documentos era exigida para a admissão das propostas, embora não respeitasse aos atributos das propostas submetidos à concorrência pelo procedimento.
8ª – O Relatório Preliminar foi notificado aos concorrentes, nos termos do disposto no artigo 147º do CCP, para o exercício do direito de audiência prévia.
9ª – A recorrente pronunciou-se nessa sede, por requerimento de 26-fev.-2020, tendo inclusivamente suscitado nele a questão subjacente ao conhecimento dos referidos dados, isto é, o cumprimento correto dos pontos 7.4 e 7.5 do programa do procedimento.
10ª – No Relatório Final, apreciou-se a pronúncia da recorrente, nos termos que aqui se têm por reproduzidos.
11ª – Sem prejuízo da limitação no quadro do exercício do direito de audiência prévia decorrente da classificação dos referidos documentos, esta não foi omitida.
12ª – E a lei não deixa de salvaguardar ao concorrente prejudicado com tal limitação, o direito de sindicar aqueles aspetos da proposta do concorrente, em tempo útil.
13ª – De facto, ao concorrente interessado em sindicar o teor da proposta quanto aos documentos desta classificados, assiste o direito de requerer a intimação da entidade adjudicante para lhe dar a conhecer o teor dos dados classificados, no quadro do procedimento previsto nos artigos 104º e segs. do C.P.T.A., salvaguardando a suspensão do prazo de impugnação judicial do ato de adjudicação, e assim, o exercício dos direitos que, devido ao conflito de direito supra exposto, foram comprimidos no exercício do direito de audiência prévia.
14ª – Não estamos, portanto, perante a preterição do direito de audiência prévia como formalidade essencial no procedimento.
15ª - A D. Sentença recorrida fez, assim, justa e correta aplicação do Direito, sendo conforme ao disposto nos artigos 9º, 56º, 125º do CPA e 268º da C.R.P..
16ª – Alega-se ainda subsidiariamente, para hipótese académica – no que não se concede – de se concluir, contrariamente ao decidido, pela preterição de formalidade essencial consubstanciada na falta de audiência prévia, há que atender, que é pacífico nos autos que a proposta da contrainteressada cumpre os requisitos fixados nos pontos 7.4 e 7.5 do Programa do Procedimento, não contendo falsas declarações ou documentos falsos.
17ª – Pelo que, nunca haveria lugar, em qualquer caso, à anulação do ato de adjudicação, por não se verificarem os pressupostos de exclusão da proposta adjudicada, nos termos dos invocados artigos 70º/2 g) e 146º/2 m) do CCP, pois que não se verifica a existência de fortes indícios de atos, acordos, práticas ou informações suscetíveis de falsear as regras de concorrência, ou de que a dita proposta seja constituída por documentos falsos ou na qual os concorrentes prestem culposamente falsas declarações.
18ª – Assim, a hipotética anulação da adjudicação por força do vício procedimental de omissão de formalidade essencial consubstanciado na omissão da audiência prévia prevista no artigo 147º do CCP, imporia a reconstituição do procedimento a partir daí, com a prolação de um ato de adjudicação com o mesmo conteúdo do anulado.
19ª - Sempre se imporia, nesse caso, a manutenção do ato de adjudicação impugnado ao abrigo do Princípio do Aproveitamento do Ato Administrativo, ou da inoperância dos vícios, e assim, perante o vício de forma por preterição de formalidades essenciais, reconhecer a degradação da formalidade omitida em apreço numa omissão de formalidade não essencial, mantendo-se por válido, o ato impugnado.
21ª – Uma vez que a anulação não traria qualquer vantagem para o Recorrente, causando apenas o retrocesso do procedimento prejuízo ao interesse público.
22ª - A Douta Sentença recorrida fez exemplar interpretação dos factos e aplicação do direito, não merecendo, por isso, qualquer crítica.”

O DMMP não apresentou a pronúncia.
Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, vem o processo à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
Na 1.ª instância foram fixados os seguintes factos, que se mantém:
1. No dia 25.11.2019 foi publicado no Diário da República (II série, n.º 226) o anúncio de procedimento n.º 12989/2019, referente ao concurso público A0/56/2020, tendente à celebração de contrato para “Prestação de serviços médicos de medicina interna” –cf. anúncio junto com a PI como doc. 1 e Programa do procedimento junto como doc. 3, cujo teor se dá por reproduzido.
2. No ponto 7 do Programa do Procedimento, sob a epígrafe “Documentos da Proposta”, estabelecia-se, além do mais, o seguinte:
A proposta deve ser redigida em língua portuguesa, sem emendas ou rasuras, e terá que ser acompanhada obrigatoriamente pelos seguintes documentos, os quais deverão individualmente conter assinatura eletrónica qualificada, sob pena de exclusão nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo n.º 70 do CCP:
(…)
7.4. Lista dos profissionais que desempenharão as funções contratadas, licenciados em medicina, detentores da especialidade de medicina interna e de inscrição válida na Ordem dos Médicos, constituída por um corpo clínico de, no mínimo:
LOTE 1 –Hospital de Santo André -Leiria
6 (seis) profissionais
LOTE 2 –Hospital Distrital de Pombal
1 (um) profissional
LOTE 3 –Hospital de Alcobaça Bernardino Lopes de Oliveira
6 (seis) profissionais
Tal lista deverá ser elaborada por lote, conforme modelo do Anexo III do presente programa, devendo obrigatoriamente conter os seguintes elementos: nome, domicílio, número de identificação civil, número de identificação fiscal, identificação da apólice de seguro profissional, número da Ordem dos Médicos e número de anos de experiência no desempenho de funções em medicina;
7.5. Declaração pela qual o concorrente se comprometa que a prestação de serviços médicos de medicina interna será assegurada pelo corpo clínico identificado na lista
apresentada nos termos do ponto anterior, o qual, integrando as escalas do Serviço de Medicina Interna do CHL, EPE, garanta:
a) LOTE 1
No Hospital de Santo André do CHL, EPE, o número de horas estimadas executar, 8.760 (oito mil, setecentas e sessenta) horas, com a seguinte distribuição:
Serviço de Urgência Médico-Cirúrgica do HSA (Leiria)
1 Médico das 00:00 às 24:00 horas
b) LOTE 2
No Hospital Distrital de Pombal do CHL, EPE, o número de horas estimadas executar, 2.496 (duas mil, quatrocentas e noventa e seis) horas, com a seguinte distribuição:
Serviço de Urgência Básica do HDP (Pombal)
1 Médico, 48 horas por semana, das 08:00 às 20:00 horas
Centro Hospitalar Leiria, E.P.E.
Rua das Olhalvas -Pousos
2410 –197 Leiria
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c) LOTE 3
No Hospital de Alcobaça Bernardino Lopes de Oliveira do CHL, EPE (Lote 3) o número de horas estimadas executar, 8.760 (oito mil, setecentas e sessenta) horas, com a seguinte distribuição:
Serviço de Urgência Básica do HABLO (Alcobaça)
1 Médico das 00:00 às 24:00 horas” –cf. Programa junto com a PI como doc. 3, cujo teor se dá por reproduzido.
3. Quer a autora, quer a contrainteressada, na fase da apresentação das propostas, requereram a classificação dos documentos dos profissionais médicos a apresentar nos termos do ponto 7 do Programa do Procedimento –cf. Pasta 04 “Pedido classificação de documentos” do processo administrativo junto aos autos.
4. As requeridas classificações de documentos referidas no ponto anterior foram autorizadas por despacho do Presidente do Conselho de Administração do réu de 12.12.2019 e notificados aos concorrentes –cf. Pasta 04 “Autorização de classificação de documentos” do processo administrativo junto aos autos.
5. Em 20.12.2019, a autora enviou ao júri do procedimento “exposição”, na qual argumentou que, sendo a actual prestadora de serviços médicos de Medicina Interna em Alcobaça e tendo acesso à informação da escala, tinha conhecimento que apenas 10 internistas foram a Alcobaça nos últimos 7 meses, afirmando que 8 deles se haviam comprometido com a prestação de serviços exclusivamente à autora, concluindo com a solicitação de que previamente fosse solicitado ao concorrente uma primeira escala de serviço, vinculativa para efeitos de concurso, uma vez que a efectividade das declarações apresentadas no ponto 7.5 só poderia ser verificada no decurso do contrato –cf. exposição junta com a PI como doc. 4, cujo teor se dá por reproduzido.
6. Em 07.02.2020 foi elaborado o “Relatório preliminar”, no qual se propôs, quanto ao lote 3, a ordenação da proposta da contra-interessada em 1.º lugar e da proposta da autora em 2.º lugar –cf. Relatório Preliminar junto com a PI como doc. 2, cujo teor se dá por reproduzido.
7. Por documento datado de 19.02.2020, a autora requereu ao júri do procedimento o seguinte:
“(…) que seja, no imediato, e com carácter de urgência seja fornecida à concorrente I........ Lda., a identidade (nomes) dos médicos que se acham indicados pela concorrente T........ 24 –Serviços Permanentes, Lda, e a referida especialidade (…)” –cf. exposição junta com a PI como doc. 5, cujo teor se dá por reproduzido.
8. Em 10.03.2020 foi elaborado pelo júri do procedimento “Relatório Final”, do qual consta, além do mais, o seguinte:


«IMAGENS NO ORIGINAL»


II.2 - O DIREITO
As questões a decidir neste recurso são:
- aferir do erro no julgamento da matéria de facto, por interessarem para a decisão do litígio e estarem provados os factos aduzidos nos artigos 44 e 45 da PI;
- aferir do erro decisório e da violação dos art.ºs 9.º, 56.º, 125.º, do Código de Procedimento Administrativo (CPA), 268.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), 70.º, n.º 2, al. g), 146.º, n.º 2, als, m), o) e 148.º do Código de Contratos Públicos (CCP), porque a T........ contactou vários médicos visando a integração no seu corpo clínico, nas escalas de Maio 2020, que tinham assinado uma promessa com a A. e Recorrente de exclusividade na indicação do seu nome para efeitos de concurso, logo, porque aquela empresa terá incluído na sua proposta nomes de médicos que estavam impedidos de lhe prestar serviços;
- aferir do erro decisório e da violação dos art.ºs 9.º, 56.º, 125.º, do CPA, 268.º da CRP, 70.º, n.º 2, al. g), 146.º, n.º 2, als, m), o), 148.º do CCP e do direito de audiência prévia da A. e Recorrente, porque não lhe foi facultada a indicação do nome dos médicos que compunham o corpo clínico da T........ e a Recorrente não pôde confirmar as suas suspeitas.

Nos termos dos art.ºs 636.º, n.º 2 e 640.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do art.º 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), podem as partes, nas respectivas alegações, impugnar a decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto.
Mas o artigo 640.º do CPC estabelece como ónus a cargo da parte que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a necessidade de especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, sobre os diversos pontos da matéria de facto impugnados.
Por seu turno, os art.ºs 640.º e 662.º do CPC, permitem a reapreciação e a modificabilidade da decisão de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância apenas nas situações em que o tribunal recorrido apresente um julgamento errado, porque fixou factos de forma contrária às regras da prova, ou os fixou de forma inexacta, ou porque os valorou erroneamente.
Aqui vale o princípio da livre apreciação da prova, remetendo-se para uma íntima convicção do julgador, formada no confronto dos vários meios de prova, que uma vez exteriorizada através de uma fundamentação coerente, razoável, plausível, que obedeça às regras da lógica, da ciência e da experiência comum, torna-se uma convicção inatacável, salvo para os casos em que a prova deva ser feita através de certos meios de prova, que apresentem uma determinada força probatória.
Nestes termos, a impugnação da matéria de facto e a modificabilidade da mesma pelo tribunal superior não visa alterar a decisão de facto fundada na prova documental ou testemunhal, apenas porque a mesma é susceptível de produzir convicções diferentes, podendo ser diversa a tomada no tribunal superior daquela que teve o tribunal da 1.ª instância. Diferentemente, este tribunal superior só pode alterar a matéria de facto porque as provas produzidas na 1.ª instância impunham, decisiva e forçosamente, outra decisão diversa da aí tomada (cf. art.º 662.º do CPC).
Portanto, para a modificação da matéria de facto é necessário que haja uma dada matéria de facto que foi identificada e apreciada pelo tribunal de 1.ª instância e que este tenha exteriorizado a sua convicção na fixação da matéria provada e não provada. Só depois, se face às provas produzidas e para as quais o Recorrente remete, se impuser forçosamente decisão diversa da tomada pela 1.ª instância, há que alterar aquela. Mas terá que se tratar de uma prova firme, indiscutível ou irrefutável, que necessariamente abala a convicção que o tribunal de 1.ª instância retirou da prova produzida.
Igualmente, a matéria de facto que se exige fixada e que pode justificar a alteração em sede de recurso é apenas a que releve para a decisão da causa e não qualquer outra que haja sido alegada pelo A. e R. Ou seja, ainda que seja alegada determinada matéria de facto e ainda que a mesma resulte provada nos autos, se a mesma for irrelevante para a decisão a proferir, não há-de ser tomada em consideração pelo juiz em sede de 1.ª instância e tal omissão também não conduz a um erro decisório.
Ora, apreciado o recurso verifica-se, em primeiro lugar, que o Recorrente não cumpriu minimamente os seus ónus processuais. Basta esta constatação para fazer claudicar o invocado erro decisório.
Sem embargo, acrescente-se, que o Recorrente diz estarem em falta os factos aduzidos nos artigos 44 e 45 da PI, que invoca corresponderem aos seguintes factos:
a) Pelo concurso ponto 7.5 a concorrente obriga-se que a prestação de serviços médicos de medicina interna será assegurada pelo corpo clínico identificado na lista apresentada nos termos do ponto 7.4.
b) A Contra Interessada T........, contactou logo para a primeira escala, para prestarem os serviços médicos decorrentes do concurso em apreço, em conformidade com a escala que a referida empresa, estaria a preparar para o mês de Maio de 2020, o qual seria o primeiro mês de sua actividade após a dita, e já referida, decisão de adjudicação, pelo menos, quatro dos médicos que se achavam contratualizados pela A. e que não constavam da lista da dita Contra- Interessada.”
Apreciados os referidos artigos a PI, constata-se que neles não figura o indicado em a) e relativamente ao indicado em b) a alegação não é feita de forma similar. Ou seja, os factos que o A. e Recorrente diz estarem em falta não correspondem nos seus precisos termos ao alegado nos citados artigos 44.º e 45.º da PI.
Depois, é manifesto que o invocado no art.º 45 da PI não constitui um facto, mas constitui, sim, uma mera conclusão ou um juízo conclusivo.
Quanto ao afirmado no art.º 44.º da PI, vem também impugnado face às invocações feitas nos art.ºs 16.º a 22.º da contestação apresentada pelo CHL.
Acresce, que o facto que se diz em falta na referida alínea a) das alegações de recurso foi levado ao julgamento de facto no ponto 2. da sentença recorrida. No ponto 2. da sentença assentou-se tal facto depurado de expressões conclusivas, isto é, fez-se constar do julgamento de facto o teor do texto do ponto 7.5. do Programa de Procedimento, sem outras apreciações conclusivas.
Por último, o que o A. e Recorrente refere na supra indicada al. b) é irrelevante para a decisão a tomar.
Assim, falece manifestamente o invocado erro na fixação da matéria de facto.

Igualmente falece o invocado erro decisório.
A possibilidade da T........ ter contactado médicos para integrarem o seu corpo clinico nas escalas de Maio 2020, que tinham assinado uma promessa de exclusividade na indicação do seu nome para efeitos de concurso, em si mesma, não implica qualquer violação das regras concursais ou, sequer, que se tivesse integrado nas listas apresentadas a concurso médicos inibidos de exercer a profissão, porque prestavam serviços em exclusividade com outra entidade.
Nos termos do concurso em análise os concorrentes apenas teriam de apresentar uma declaração através da qual se comprometiam a prestar os serviços médicos com base num corpo clinico que fosse identificado numa lista nominativa. Posteriormente, mediante pedido e autorização expressa, poderiam vir a substituir os profissionais antes indicados – cf. art.º 4.º do Caderno de Encargos (CE), 7.4 e 7.5 do Programa de Concurso (PC).
Dos documentos concursais resulta, pois, que a obrigação de prestação de serviços era uma obrigação fungível, que poderia ser satisfeita quer pelo corpo de médicos indicados na lista da proposta, quer por outros médicos, que viessem a substituir os iniciais, desde que tal substituição fosse pedida e aprovada e, claro, desde que os novos médicos se mantivessem a apresentar as aptidões e qualificações exigidas nos termos do concurso.
Portanto, a eventualidade da T........ ter contactado médicos para integrarem o seu corpo clinico nas escalas de Maio 2020, em si mesma não colide com as regras concursais nem põe em causa a lista de médicos por esta empresa apresentada ou a lista apresentada pela Indepurpe. Tal contacto também não pressupõe que o nome desses mesmos médicos já fizesse parte da lista apresentada a concurso pela T........, podendo visar, apenas, uma substituição ulterior. Da mesma forma, tal contacto também não pressupõe a aceitação dos referidos médicos.
Mais se assinale, que a A. e Recorrente não invoca que os médicos que integravam a lista da T........ estavam inibidos de tal integração por já deterem um outro contrato de trabalho que lhes impunha a exclusividade de funções. O que vem invocado pela A. e Recorrente é algo diferente, é a alegação de uma suspeita de quebra de um contrato promessa de exclusividade na indicação do respectivo nome para efeitos de integrar uma lista de médicos num concurso público. Ora, esta especifica razão para a não integração do nome dos médicos na lista da T........ não é protegida no âmbito das cláusulas concursais ou do regime legal que enforma a contratação pública.
Em suma, as meras suspeitas da A. e Recorrente relativas à quebra dos contratos promessa que celebrou com os médicos do seu corpo clínico, ou a existência de eventuais contactos da T........ com esses médicos, em si mesmas são circunstâncias que não inquinam a actuação da entidade adjudicante, nem implicam qualquer invalidade procedimental.
Na decisão recorrida também já se afastou a hipótese de existirem aqui falsas declarações. Assim, quanto a este aspecto, subscreve-se a decisão recorrida, que está certa, designadamente quando na mesma se decidiu o seguinte: “Na realidade, ainda que existisse coincidência entre os médicos indicados em ambas as propostas e aqueles se tivessem comprometido a prestar serviços exclusivamente à autora, a conclusão de que a contra-interessada estaria a prestar falsas declarações não seria legítima.
Desde logo, porque não saberia a autora se, independentemente do acordo a que tivesse chegado com tais médicos, estes haveriam, numa fase anterior ou posterior, consentido a sua indicação por parte da contra-interessada.
Por outro lado, uma vez que não vem alegado, nem se ensaiou demonstrar nos autos, que a própria contra-interessada conhecesse as declarações de exclusividade subscritas por aqueles médicos – com o que se invalidaria, logo à partida, a tese da prestação de falsas declarações, à vista da necessidade, óbvia, de ser conhecida da declarante a inveracidade das mesmas.
Por fim, e em tese, uma vez que, mesmo que existisse a referida coincidência e a contra-interessada conhecesse aquelas declarações, a questão da exclusividade seria um assunto das partes, totalmente alheia à entidade adjudicante, e a qual, por isso, sempre se afiguraria inócua à tramitação procedimental.
Nesta ordem de ideias, não se verificando que tenham sido prestadas falsas declarações ou apresentados documentos falsos, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146.º, n.º 2, al. m) do CCP, não se verifica qualquer vício conducente à invalidade da adjudicação.”
Por seu turno, no que se refere à violação do direito de audiência prévia da A. e Recorrente por não lhe ter sido facultada a indicação do nome dos médicos que compunham o corpo clinico referido nos documentos da proposta apresentada pela T........, assim permitindo à A. e Recorrente confirmar as suas suspeitas, confirma-se também a decisão recorrida.
Na decisão recorrida julgou-se quanto a este aspecto da seguinte forma: “Começa a autora por associar a invalidade da decisão de adjudicação à impossibilidade de aferir do cumprimento, pela proposta da contra-interessada, das condições estipuladas no programa do procedimento, uma vez que não lhe havia sido facultada a lista, integradora da proposta daquela concorrente, dos médicos que haveriam de prestar os serviços a adjudicar.
Refere-se, se bem se entende, à violação do seu direito de audiência prévia, tal como se estipula no art. 123.º do Código dos Contratos Públicos (“CCP”):
“Artigo 123.º
Audiência prévia
1 - Elaborado o relatório preliminar referido no artigo anterior, o júri envia-o a todos os concorrentes, fixando-lhes um prazo, não inferior a três dias, para que se pronunciem, por escrito, ao abrigo do direito de audiência prévia
- Durante a fase de audiência prévia, os concorrentes têm acesso às atas das sessões de negociação com os demais concorrentes e às informações e comunicações escritas de qualquer natureza que estes tenham prestado, bem como às versões finais integrais das propostas apresentadas.”
Do teor do preceito transcrito resulta, com efeito, que o direito de audiência inclui o acesso aos documentos integradores da proposta dos demais concorrentes, em termos tais que a sonegação de tais elementos acarreta, de acordo com a doutrina, a invalidade da adjudicação:
“(…) os concorrentes têm o direito de requerer ao júri que preste informação sobre a eventual existência de documentos não disponibilizados nas áreas de acesso restrito (a eles, concorrentes) da plataforma e que, em caso afirmativo, os disponibilize, como o exige o princípio da colaboração da Administração e da participação dos interessados (…) e decorre do artigo 61.º [actual 82.º do CPA] – constituindo a sonegação de qualquer informação ou documento procedimental causa imediata da invalidade do acto de adjudicação” [cf. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e outros procedimentos de contratação pública, Almedina, 2014, p. 992].
Dir-se-ia assim, à primeira vista, que a omissão de envio da lista solicitada pela autora [cf. “7.” dos factos provados] consubstanciaria linear violação do direito de audiência prévia da autora.
Todavia, importa considerar, para este efeito, a matéria apurada para os autos, relativa à classificação dos documentos, requerida por autora e contra-interessada [cf. “3.” dos factos provados] e deferida pela entidade adjudicante [cf. “4” da matéria assente”].
Na realidade, evidenciado nos autos que a lista com a identificação dos médicos que integrava as propostas da contra-interessada e da autora foi, na sequência de requerimento para o efeito, devidamente classificada, nos termos previstos no art. 66.º do CCP, então não pode considerar-se indevida a recusa do seu fornecimento.
Efectivamente, estabelece o n.º 6 do mencionado artigo que “[a] entidade adjudicante não deve divulgar as informações constantes dos documentos classificados das propostas.”
Em qualquer caso, ainda que considerasse indevida esta recusa, sempre a autora teria ao seu dispor o mecanismo previsto nos artigos 104.º e ss. do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, requerendo a intimação da entidade adjudicante a conceder o acesso aos documentos solicitados – assim sindicando, pelo meio próprio, a legitimidade da recusa e, em simultâneo, fazendo suspender o prazo de impugnação – cf. art. 106.º do CPTA.
Nesta ordem de ideias, não só não se mostra violado o direito de audiência prévia da autora, como se apresentaria a intimação para consulta de documentos o meio idóneo para aferir da eventual ilegitimidade da recusa.
Por todo o exposto, uma vez que a recusa de envio da lista não configura violação do direito de audiência prévia da autora, não é possível afirmar a invalidade da decisão de adjudicação.”
Este julgamento é para manter, pois está certo.
É pacifico que os documentos a que a A. e Recorrente pretendia aceder tinham sido classificados nos termos do art.º 66.º, n.º 1, do CCP e continham dados pessoais e nominativos relativos aos vários médicos (cf. também os art.ºs 3.º, n.º 1, al. b), 4.º e 6.º, n.ºs 4 e 5 da lei n.º 26/2016, de 22/08).
Assim, a conduta do júri do concurso pautou-se pelo indicado art.º 66.º, n.º 1, do CCP, a que devia respeito.
Como deriva dos factos provados, no caso, ocorreu um momento de audiência prévia e a A. e Recorrente exerceu efectivamente o seu direito.
Atendendo à factualidade apurada não resulta que o exercício do direito de audiência da Recorrente tenha ficado comprometido por desconhecer os concretos nomes dos médicos que integravam a proposta da T......... Na verdade, ainda que a ora Recorrente desconhecesse os concretos nomes dos médicos que faziam parte da lista entregue pela T........, nada obstava que em sede de resposta à audiência prévia indicasse todos os médicos do seu corpo clinico com os quais tinha celebrado o contrato promessa de exclusividade. Tal bastava para que o júri compreendesse e tivesse que averiguar acerca da situação. Isto é, a I........ podia ter exercido plenamente o seu direito de audiência prévia ainda que desconhecesse naquela data o nome de cada um dos médicos que integravam o corpo clínico da T.........
Assim, a classificação dos documentos decorre do preceituado no art.º 66.º do CCP e é matéria que não colide directamente com o direito de audiência prévia. Neste caso, pode apenas ter ficado ferido o direito de informação procedimental, não o direito de audiência prévia.
Ora, considerando a A. e Recorrente que tal acesso não lhe podia ter sido negado, por se tratarem de dados nominativos de terceiros relativamente aos quais tinha um interesse directo, pessoal e legítimo, havia a mesma de ter reagido tal como o fez, por via de um pedido de emissão de certidão dos documentos, accionando, depois, as vias adequadas para reagir à negação desse direito.
Em suma, a circunstância do CHL não ter facultado à A. e Recorrente o nome dos médicos que integravam a lista da T........ previamente ao momento da audiência prévia, por tal informação estar classificada e a coberto do art.º 66.º do CCP, não conduziu, no caso, à violação do direito de audiência prévia da I.........

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam:
- em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.
- custas pelo Recorrente (cf. art.ºs. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2, do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).

Lisboa, 12 de Novembro de 2020.

(Sofia David)

O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art.º 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1/05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Dora Lucas Neto e Pedro Nuno Figueiredo.