Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08834/15
Secção:CT- 2º JUÍZO
Data do Acordão:07/10/2015
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:DAÇÃO EM PAGAMENTO/AVALIAÇÃO/PRESSIPOSTOS DE FACTO E DE DIREITO/ABUSO DE DIREITO
Sumário:I – Embora seja certo que a validade de um acto administrativo, mesmo em matéria tributária, é uma questão de legalidade, não é menos certo que essa legalidade se não esgota na consideração isolada de um acto do procedimento ou no relevo de uma norma ou instituto, competindo, em especial ao julgador, aferir, caso a caso e para efeitos de apreciação dessa legalidade, não só da aplicação de uma norma que abstractamente seja aplicável à situação sub iudice, mas igualmente ponderar se a resolução da situação que vem exposta não impõe o afastamento daquela norma directamente aplicável e a consequente aplicação de outras normas, institutos ou princípios que em concreto devam ser reconhecidos como se sobrepondo àquela primeira.

II – O ordenamento jurídico - tributário português, que acolheu a dação em pagamento e em função do pagamento, estabeleceu um conjunto de requisitos formais de admissibilidade do pedido ou requerimento de dação e de admissibilidade substancial ou material da própria dação.

III - Do ponto de vista formal, o requerimento contendo o pedido de dação deve ser deve ser submetido à Administração Fiscal no prazo de dedução de Oposição, isto é, no prazo de 30 dias, por força do preceituado no artigo 203.º n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, do mesmo devendo constar de forma descriminada o bem ou bensatravés do qual (quais) se pretende que a mesma seja realizada.

IV - Do ponto de vista substantivo, o dever de apreciação da Administração Fiscal desdobra-se em vários níveis ou patamares de obrigações: primeiro, a Administração Fiscal tem de aferir da verificação do valor do imóvel em que a dação se irá, admitida que seja, traduzir, já que se o mesmo for superior à dívida exequenda e legais acréscimos - e a não ser que esteja demonstrada a possibilidade de imediata utilização dos referidos bens para fins de interesse público ou social, ou de a dação se efectuar no âmbito do processo conducente à celebração de acordo de recuperação de créditos do Estado -, a dação não é legalmente admissível; em segundo lugar (e caso não seja de indeferir por o valor do imóvel não ser superior ao valor da divida exequenda e legais acréscimos), tem de proceder á avaliação do imóvel (valor de mercado), o que deverá realizar no prazo de 30 dias; em terceiro lugar, sendo o valor de mercado do imóvel dado em dação ao da dívida exequenda, ponderar se tal dação deve ser admitida, enquanto extinção parcial da dívida exequenda, sem prejuízo de a execução prosseguir para cobrança do remanescente em dívida, seja pelo pagamento em prestações, seja pela penhora de outros bens.

V - É ilegal o despacho de indeferimento do pedido de dação em pagamento proferido pela Administração Fiscal que assentou exclusivamente no facto de o valor de mercado do imóvel ser inferior ao valor da dívida exequenda, se aquela Entidade, para chegar a esse juízo de insuficiência, teve por referência um valor de execução liquidado em momento posterior ao da formulação do pedido de dação em pagamento, ao da data do seu próprio despacho liminar de admissibilidade da dação e posterior ao prazo que legalmente dispunha para proceder à respectiva avaliação do imóvel que deveria suportar aquele mesmo juízo.

VI – Nem o artigo 201.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário proíbe, nem a dação em pagamento impõe (nos termos latos em que aquele preceito deve ser interpretado e tendo em consideração o conteúdo, natureza e efeitos da própria dação), que aquela não possa ocorrer relativamente a parte da obrigação tributária, desde que a Administração Tributária a tal nada tenha a obstar, mantendo-se quanto ao remanescente o prosseguimento da execução.

VII - A figura do abuso do direito constitui, como correntemente se afirma, uma espécie de ‘válvula de segurança’ do sistema através da qual se obsta a que certos direitos, válidos em tese, se consumem, por se traduzirem, em concreto, numa clamorosa ofensa da Justiça.

VIII – O “venire contra factum proprium”, na sua formulação dogmática e no quadro do instituto do abuso do direito, assume uma estrutura que pressupõe duas condutas sucessivas mas distintas, temporalmente distanciadas e de sinal contrário, protagonizadas pelo mesmo agente: o “factum proprium” (uma inacção ou acção em determinado sentido) seguido, em contradição, do ‘venire’ (acção em sentido oposto).

IX - Condicionada pelo interesse público e vinculada de forma estrita às opções assumidas pelo legislador no que concerne à prossecução daquele, à Administração Pública não pode ser reconhecido o dever (nem o direito) de permanecer vinculada a um sentido de decisão, muito menos a uma hipótese de decisão, como foi o caso, se posteriormente vem a reconhecer que esse mesmo sentido de decisão projectado ou mesmo uma decisão antes proferida afronta a lei e o interesse a cujo cumprimento e fim está obrigada.

X – Se no caso concreto não houve inacção ou acção definitiva num sentido seguida de acção em sentido oposto e, sobretudo, se estamos numa situação em que ao agente não pode ser reconhecida liberdade de conformação da sua conduta, como ocorre nos domínios, designadamente, da liberdade contratual ou da autonomia privada em geral, o abuso do direito só deve ter-se como verificado se o agente actuando no quadro dos poderes formais de que está investido os exercer tendo em vista a obtenção do seu próprio benefício.

XI - Destinando-se o abuso do direito fundamentalmente a impedir que haja uma compensação para o abusador, não se subsume a essa qualificação a conduta da Administração Fiscal se esta se limita a actuar em cumprimento ou observância do que julgou ser, na situação que lhe era colocada, a defesa da legalidade, sobretudo se não fica demonstrado que tenham sido excedidos os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I - Relatório

José ……….., inconformado com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, que julgou improcedente a reclamação deduzida, nos termos do artigo 276.º do CPPT, do acto praticado pelo Órgão de Execução Fiscal substanciado no despacho que àquele indeferiu o pedido de dação em cumprimento efectuado no âmbito dos processos de execução fiscal nºs ………………e apenso pendente no Serviço de Finanças de Câmara de Lobos, dela veio interpor o presente recurso jurisdicional.

Terminou as suas alegações de recurso enunciando as seguintes conclusões:

«A) A fazenda nacional, numa primeira decisão, diz que não aceita a dação em pagamento, apenas porque o valor da bem é superior ao valor em dívida, e quando o apelante apresenta um bem cujo valor é inferior ao valor da dívida, com uma diferença de apenas 5.342,96 euros (103.500,00 euros/valor da avaliação - 108.842,96 euros/valor da dívida), a fazenda nacional alega que não aceita a dação em pagamento porque o valor é inferior ao valor da dívida.

B) Ou seja: uma leitura (à contrário) do primeiro despacho, seria: que a FN aceita a dação em cumprimento, se o apelante apresentar um bem imóvel de valor inferior ao valor em dívida, e claro, ficando em divida o remanescente.

C) A Fazenda Nacional, ao alegar que não aceita a dação em pagamento, porque o valor é superior ao valor em dívida, fica, tacitamente obrigada a aceitar a dação em pagamento se o contribuinte apresentar um outro bem imóvel, cujo valor do imóvel seja inferior ao valor da dívida, ficando, em dívida, o remanescente.

D) Se a FN tivesse argumentado uma outra razão, que não o valor do imóvel, como seja: não aceitar dações em pagamento de bens imóveis com uma determinada tipologia, localidade, entre outras razões, seria, salvo melhor opinião, uma situação diferente.

E) Mas, não foi isso que aconteceu, a FN aceitou o pagamento através da dação em pagamento, contudo, no primeiro despacho condiciona a aceitação da dação em pagamento se o valor do imóvel for inferior ao valor da dívida.

F) E assim, salvo melhor opinião, quando o apelante apresentou um bem imóvel, cujo valor é inferior ao valor em dívida - se não podia ser superior, tinha que ser inferior, quanto muito, de valor identico, que seria um achado - a FN ficou vinculada a aceitar o bem dado em dação em pagamento.

G) Se assim não se entender, salvo melhor opinião, estamos perante um abuso de direito por parte da Fazenda Nacional.

H) A fazenda Nacional tem consciência de que o seu procedimento é abusivo, má fé, se não queriam aceitar um bem imóvel em dação em pagamento, bastava, desde logo, dizerem que não aceitam dações em pagamento de bens imóveis, e não dizer que aceitam, e quando o apelante apresenta o bem imóvel dizem que não aceitam porque o valor é superior ao valor da dívida, e quando o apelante apresenta um bem de valor inferior, em apenas 5.342,96 euros, dizem que não aceitam porque o valor é inferior ao valor da dívida.

I) A Fazenda Nacional deve exercer o direito dentro dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, e excedidos de forma evidente.

Nestes temos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas, deve ao presente recurso ser concedido provimento, revogando-se a Sentença, e ordenando a dação de pagamento».

Admitido o recurso e notificada a Fazenda Pública, por esta não foram apresentadas contra-alegações.

Neste Tribunal Central, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Com dispensa dos vistos legais, atenta a natureza do processo (artigo 657º do CPC e artigo 278º, nº5 do CPPT), cumpre agora apreciar e decidir, visto a tal nada obstar.

II – Objecto do recurso

Como é sabido, sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remate a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639°, n°1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.

Assim, e pese embora na falta de especificação no requerimento de interposição se deva entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635°, n°2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n°3 do mesmo art. 635°), razão pela qual todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.

Acresce que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos por seguro que, in casu, o objecto do mesmo está circunscrito à questão de saber se o despacho que indeferiu o pedido de dação em pagamento formulado pelo Executado é ilegal por ter assentado em pressupostos de facto e direito errados e constituir a sua prolação, nos termos e data em que foi proferido e o procedimento que o antecedeu, abuso de direito.

III – Fundamentação de Facto

3.1. O Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal julgou como provada e com relevo para a apreciação do mérito dos autos a seguinte factualidade:

1. Em 30/12/2010 o Reclamante e cônjuge apresentaram um pedido de dação em pagamento no âmbito do processo de execução fiscal ………., indicando para o efeito o prédio urbano -terreno para construção situado na Estrada Nova do Empreendimento Solar ……………, Sítio ……………, freguesia e concelho de Câmara de………., inscrito na matriz sob o artigo ………… - Cfr. documento a fls. 208 do processo de execução fiscal.

2. Em 06/07/2011 o Reclamante e cônjuge na sequência da notificação do projecto de decisão de indeferimento do pedido referido em 1. supra, vieram propor a dação em pagamento da fracção autónoma designada pela letra D do prédio urbano denominado ………, situado …………….., descrito na conservatória do registo predial de Câmara de ……….., freguesia de Câmara de ……….. sob o n°……….. e inscrito na matriz sob o artigo …….. - Cfr. documento a fls. 361 do processo de execução fiscal.

3. Em 15/01/2015 o Reclamante foi notificado através do ofício 186 do Serviço de Finanças de Câmara de ,,,,,,,,,,, do despacho de indeferimento do Director Regional dos Assuntos Fiscais de 12/12/2013 sobre o pedido de dação em pagamento referido em 2. supra, bem como do relatório de avaliação patrimonial do prédio inscrito na matriz sob o artigo ……………, fracção ……. da freguesia e concelho de Câmara de ……………- Cfr. documento a fls. 12-22 dos autos e fls. 460/v do processo de execução fiscal.

3.2 Mais ficou consignado, a título de «Factos não provados» que «Não foram alegados factos relevantes para a decisão da causa a dar como não provados» e em sede de «Motivação da decisão de facto» que a convicção do Tribunal assentou «teve por base os documentos juntos aos autos aí referidos, bem como os documentos juntos pelo Serviço de Finanças (processo de execução fiscal), os quais não foram impugnados».

Nos termos e ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do código de processo Civil, porque documentalmente comprovado e relevante para a apreciação do mérito do recurso, aditam-se ao probatório os seguintes factos:

4. O projecto de decisão referido em 2. consta de fls. 370 a 374 (cujos teores aqui se são por integralmente por reproduzidos) daí constando, designadamente, o seguinte:

(….) ASSUNTO: EXERCÍCIO DO DIREITO DE AUDIÇÃO.
(…)
PROJECTO DE DECISÃO
l - DO PEDIDO

Através do Ofício n°29 do Serviço de Finanças de …………………, de 2011/01/06, entrada nesta Direcção Regional de requerimento apresentado por José ……………., NIF ……………, e sua esposa Maria ……………, NIF …………., residentes à Estrada ………………., 122, concelho de Câmara de …………, através do qual vieram, ao abrigo do disposto no artigo 189°, n°4 do CPPT, requerer cumulativamente o pedido de dação em pagamento e pagamento em prestações, para efeitos, extinção da dívida ínsita nos processos de execução fiscal n°……………… e apenso (inclui o processos de execução fiscal n°………………..), para pagamento da quantia de €108 842,96 (quantia exequenda, acrescida de juros de mora e custas processuais), pendente no Serviço de Finanças de Câmara de …………..
II - DO PEDIDO DE DAÇÃO EM PAGAMENTO (ARTIGO 204.° DO CPPT)
Para efeitos da referida dação em pagamento, os ora executados ofereceram o seguinte bem imóvel:
- Prédio Urbano, terreno para construção, situado na Estrada Nova do Empreendimento "……………..", sítio do Rancho, freguesia e concelho de Câmara de ………….., com a área de 1 273 m2, inscrito na matriz sob o artigo ………….°.
(…)
E) Da Questão de Fundo
(…)
No caso em análise, o executado veio requerer a dação em pagamento a 30 de Dezembro de 2010, nos termos do artigo 837.° do C.Civil e 203.° do CPPT, para pagamento da dívida referente aos processos de execução fiscal n°…………………. e apenso (inclui o processos de execução fiscal n°……………………), para pagamento da quantia de € 108 842,96 (quantia exequenda, acrescida de juros de mora e custas processuais).
No requerimento, o executado dá em dação, um bem imóvel:
- Prédio Urbano, terreno para construção, situado na Estrada ………………. "Solar …………..", sítio do Rancho, freguesia e concelho de Câmara de Lobos, com a área de 1 273 m2, inscrito na matriz sob o artigo …………….°.
Através de consulta ao sistema informático, na parte relativa ao Património, verificou-se que o prédio urbano acima identificado possui um valor patrimonial actualizado de €255 450,00, avaliado no ano de 2008.
Ora, à partida, o VPT da fracção em causa é suficiente para acautelar a totalidade da dívida acrescida dos demais acréscimos legais, no montante de € 108 842,96.
No entanto, a alínea b) do nº1 do artigo 201.° do CPPT refere que os bens dados em pagamento não podem ter valor superior à dívida exequenda e acrescido, salvo os casos de se demonstrar a possibilidade de imediata utilização dos referidos bens para fins de interesse público ou social, ou de a dação de efectuar no âmbito do processo conducente à celebração de acordo de recuperação de créditos do Estado.
De facto, compreende-se esta exigência, na medida em que, sendo o valor dos bens dados em pagamento de valor superior ao da dívida exequenda e do acrescido, o executado passaria a ficar constituído como credor da Administração Tributária pelo excesso. Assim sendo, a aceitação da dação em pagamento não teria o efeito de extinção imediata e "automática" da obrigação, mas sim uma extinção condicionada ao ressarcimento por parte do credor da prestação da dívida.
Deste modo, a dação, nestas circunstâncias, só é de autorizar nos casos excepcionais referidos no supra mencionado artigo, e desde que, nestes mesmos casos, se demonstre um interesse público e social relevante.
Pelo contrário, sendo o valor dos bens de montante inferior ao da dívida e do acrescido, não existe qualquer problema, já que o executado poderá efectuar o pagamento do restante em prestações (vide artigo 189°, n°5 do CPPT) ou poderá a execução prosseguir pela importância em falta.
Assim, e uma vez que o artigo 201° n°3 do CPPT, admite que o pedido de dação não seja autorizado com fundamento no desinteresse da dação, (conceito indeterminado, que confere margem de discricionariedade técnica à administração fiscal de enquadrar o conceito de acordo com a solução mais correcta com base no princípio da prossecução do interesse público), e considerando que a autorização do presente pedido de dação é uma solução desadequada e desproporcional em relação aos fins de interesse público, não deve ser dada autorização para que a dívida em cobrança coerciva no processo de execução fiscal n°……………….e apenso (inclui o processos de execução fiscal n°……………….) seja extinta por via da dação em pagamento.
(…).
Ill - DA CONCLUSÃO
A) Dação em Pagamento
Pelo exposto, o requerimento de dação em pagamento, apresentado pelos sujeitos passivos José ………………., NIF ……………, e sua esposa Maria ……………….., NIF ………….., ambos residentes à Estrada …………….., 122, concelho de Câmara ………………., é indeferido, com fundamento no desinteresse da dação para a Fazenda Pública da Região Autónoma da Madeira (cfr. artigo 201° n° 3 do CPPT), uma vez que o bem imóvel oferecido - Prédio Urbano, terreno para construção, situado na Estrada …………… "Solar …………", sitio do ………., freguesia e concelho de …………., com a área de 1 273 m2, inscrito na matriz sob o artigo ………….° - possui um valor patrimonial actualizado de € 255 450,00, o que é muito superior ao valor em dívida, no total de € 108 842,96, relativa aos processos de execução fiscal n°…………….. e apenso (inclui o processos de execução fiscal n°………………..), cfr. artigos 201°, n°1, al. b), n°3,1ª parte do CPPT e 837.° do C.Civil. (…)»

6. O despacho de indeferimento referido em 3. foi proferido sobre informação com o seguinte teor:
«l - DO PEDIDO
Através do Ofício n°29 do Serviço de Finanças de Câmara de Lobos, de 2011/01/06, deu entrada nesta Direcção Regional de requerimento apresentado por José …………., NIF ……………., e sua esposa Maria ………………, NIF …………, ambos residentes à Estrada ………….., 122, concelho de Câmara de ……….., através do qual vieram, ao abrigo do disposto no artigo 189.°, n°4 do CPPT, requerer cumulativamente o pedido de dação em pagamento e pagamento em prestações, para efeitos de extinção da dívida ínsita nos processos de execução fiscal n°……………..e apenso (inclui o processos de execução fiscal n°……………..), para pagamento da quantia de € 108 842,96 (quantia exequenda, acrescida de juros de mora e custas processuais), pendente no Serviço de Finanças de Câmara de ………...
(…)
E) Da Questão de Fundo
No caso em análise, o executado veio requerer a dação em pagamento a 30 de Dezembro de 2010, nos termos do artigo 837.° do C.Civil e 203.° do CPPT, para pagamento da dívida referente aos processos de execução fiscal n°……………. e apenso (inclui o processos de execução fiscal n°…………………), para pagamento da quantia de € 108 842,96 (quantia exequenda, acrescida de juros de mora e custas processuais).
No requerimento, o executado dá em dação, um bem imóvel:
- Prédio Urbano, terreno para construção, situado na Estrada ……………… "Solar ……..", sítio do …………, freguesia e concelho de Câmara de ……………, com a área de 1 273 m2, inscrito na matriz sob o artigo ……………...°.
Através de consulta ao sistema informático, na parte relativa ao Património, verificou-se que o prédio urbano acima identificado possui um valor patrimonial actualizado de €255 450,00, avaliado no ano de 2008.
Ora, à partida, o VPT da fracção em causa é suficiente para acautelar a totalidade da dívida acrescida dos demais acréscimos legais, no montante de € 108 842,96.
No entanto, a alínea b) do nº1 do artigo 201.° do CPPT refere que os bens dados em pagamento não podem ter valor superior à dívida exequenda e acrescido, salvo os casos de se demonstrar a possibilidade de imediata utilização dos referidos bens para fins de interesse público ou social, ou de a dação de efectuar no âmbito do processo conducente à celebração de acordo de recuperação de créditos do Estado.
De facto, compreende-se esta exigência, na medida em que, sendo o valor dos bens dados em pagamento de valor superior ao da dívida exequenda e do acrescido, o executado passaria a ficar constituído como credor da Administração Tributária pelo excesso. Assim sendo, a aceitação da dação em pagamento não teria o efeito de extinção imediata e "automática" da obrigação, mas sim uma extinção condicionada ao ressarcimento por parte do credor da prestação da dívida.
Deste modo, a dação, nestas circunstâncias, só é de autorizar nos casos excepcionais referidos no supra mencionado artigo, e desde que, nestes mesmos casos, se demonstre um interesse público e social relevante.
Pelo contrário, sendo o valor dos bens de montante inferior ao da dívida e do acrescido, não existe qualquer problema, já que o executado poderá efectuar o pagamento do restante em prestações (vide artigo 189°, n°5 do CPPT) ou poderá a execução prosseguir pela importância em falta.
Assim, e uma vez que o artigo 201° n°3 do CPPT, admite que o pedido de dação não seja autorizado com fundamento no desinteresse da dação, (conceito indeterminado, que confere margem de discricionariedade técnica à administração fiscal de enquadrar o conceito de acordo com a solução mais correcta com base no princípio da prossecução do interesse público), e considerando que a autorização do presente pedido de dação é uma solução desadequada e desproporcional em relação aos fins de interesse público, não deve ser dada autorização para que a dívida em cobrança coerciva no processo de execução fiscal n°……………….. e apenso (inclui o processos de execução fiscal n°………………) seja extinta por via da dação em pagamento.
Ill - DO DIREITO DE AUDIÇÃO
O sujeito passivo foi notificado a 26-05-2011 do projeto de decisão (…) tendo alegado que, uma vez que o fundamento da proposta de decisão é no sentido do indeferimento e atendendo a que o fundamento dessa mesma decisão é o excesso substancial do valor patrimonial tributário do imóvel proposto em relação ao da dívida, então propuseram a dação em pagamento de outro imóvel:
- Fração autónoma, destinada a habitação, identificada pela letra "………", localizada no 1.°, Bloco A, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado "Solar ………….", situado na Estrada ………….., sítio do ……….., freguesia e concelho de …………………, inscrito na matriz respetiva sob o artigo …………com o valor patrimonial tributário, correspondente à fração, de € 114 716,89, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Câmara de ………..sob o n°………………, onde a aquisição da fração acha-se registada a favor dos proponentes, pela AP. ……. de 2011/03/01.
Em apreciação aos argumentos invocados pelo sujeito passivo em sede de direito de audição verificou-se o seguinte:
Os processos de execução fiscal n.°s ……………….. e …………8 encontram-se atualmente com os valores em dívida de € 58 143,40 e € 60 775,84, respetivamente, perfazendo o valor total de €118.919,24;
Sendo que o executado dá em dação um outro bem imóvel: fracão autónoma, destinada a habitação, identificada pela letra "…….", localizada no 1.°. Bloco A. do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado "Solar ……………", situado na Estrada ……………, sítio do Rancho, freguesia e concelho de Câmara ……………, inscrito na matriz respetiva sob o artigo ………….°. com o valor patrimonial tributário, correspondente à fracão, de € 114 716.89.
Ora, à partida, o valor de mercado do bem imóvel apresentado pelo contribuinte era suficiente para acautelar a totalidade da dívida acrescida dos demais acréscimos, pelo que da prestação da dação se cumpriria o seu segundo requisito cumulativo - a extinção imediata da dívida fiscal. No entanto, o deferimento do pedido ficou condicionado à posterior avaliação do bem imóvel supra referido, através de uma comissão cuja constituição foi promovida pelo órgão de execução, neste caso, pelo Serviço de Finanças de Câmara …………...
IV) DA AVALIAÇÃO DE MERCADO DO BEM
(…)
Ora, a referida fração autónoma foi avaliada a 02 de outubro de 2013 (data constante do relatório de avaliação patrimonial), daí resultando um valor real de mercado de € 103 500,00.
V-DA CONCLUSÃO
Pelo exposto, entende-se que o requerimento de dação em pagamento, apresentado pelo executado poderá ser indeferido pelo Diretor Regional dos Assuntos Fiscais, órgão com competência delegada para o efeito (cf. ponto n°1.20 do Despacho de Delegação de Competências de 2 de Abril de 2007 do Sr. Secretário Regional do Plano e Finanças, publicado na II Série do JORAM, n°171, de 17 de Setembro de 2007), uma vez que o valor real de mercado de €103 500,00, resultante do Relatório de Avaliação Patrimonial de 02 de outubro de 2013 (método de mercado), do bem imóvel oferecido aquando do exercício do direito de audição - fração autónoma, destinada a habitação, identificada pela letra "……", localizada no 1.°. Bloco A. do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado "Solar …………", situado na Estrada ……………., sítio …………., freguesia e concelho de Câmara ………….., inscrito na matriz respetiva sob o artigo …………..º, com o valor patrimonial tributário, correspondente á fração. de €114 716,89, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Câmara ………….sob o n.° ………………, onde a aquisição da fração acha-se registada a favor dos proponentes, pela AP, ……..…de 2011/03/01), não será suficiente para extinguir a obrigação de pagamento constante dos processos de execução fiscal n.° ………………. e ………………., cuja dívida ascende atualmente ao total de € 126 897,67 (cf. artigos 201.°, n.° 3, 1.a parte do CPPT e 837.° do C.Civil).).» (cfr. fls. 426-433, teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
6. No âmbito da execução fiscal no âmbito do qual foi proferido o despacho que constitui objecto da presente reclamação e para garantia do pagamento da quantia exequenda foram já realizadas penhoras de diversos bens imóveis (cfr. fls. 62 a 175, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

IV – Fundamentação de Direito

A presente reclamação, como claramente resulta do seu teor, assenta no inconformismo do ora Recorrente com a sentença proferida em 1ª instância que julgou válido o acto de indeferimento de 12 de Dezembro de 2013 e que lhe foi notificado a 15 de Janeiro de 2015.

Nos termos do então decidido pela Administração Fiscal, o pedido de dação em pagamento da dívida exequenda, a realizar através da fracção autónoma designada pela letra ……… do prédio urbano denominado Solar ……………., situado no Rancho, descrito na conservatória do registo predial de Câmara ……………, freguesia de Câmara de Lobos sob o n°……………… e inscrito na matriz sob o artigo…………….. não foi aceite por o valor do referido imóvel ser inferior ao valor da referida dívida cifrada em € 126. 897,67.

Para o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal a decisão em reclamação é válida por, estando a dação em pagamento dependente da aceitação do credor e entendendo a Administração Fiscal não a aceitar, é intocável o despacho de indeferimento impugnado.

Para o ora Recorrente este julgamento não pode subsistir na ordem jurídica por três ordens de razão.

A primeira, é a de que tendo a Administração Fiscal indeferido um pedido por si formulado de dação em pagamento por o imóvel através do qual pretendia que a mesma se concretizasse ser de valor manifestamente superior ao da dívida exequenda, tem necessariamente que presumir-se que o aceitaria se fosse similar ou inferior, pelo que, não podia a Administração fiscal posteriormente com fundamento num valor alegadamente inferior indeferir o mesmo pedido.

A segunda é a de que, tendo sido aquele o fundamento (valor do imóvel superior ao do valor da dívida exequenda) o exercício da faculdade legal de recusar a dação perante imóvel de valor inferior, cerca de dois anos após o eu requerimento e a sua notificação cerca de 3 anos após o mesmo requerimento ter sido apresentado constitui um abuso de direito.

Por último, não constituir fundamento legal de recusa da dação em pagamento o facto de o valor do imóvel oferecido ser inferior.

Vejamos, pois, o que se nos oferece dizer, começando por salientar que embora concordemos com o Tribunal a quo quanto a ser a legalidade do acto de indeferimento que cumpre apreciar, afigura-se-nos, como o revela já o aditamento da matéria de facto que entendemos realizar ao probatório e a fundamentação jurídica que infra realizaremos, que na sentença recorrida, não foram ponderados todos os factos e o direito que a apreciação daquela legalidade exige.

De facto, porque na petição inicial o Reclamante mencionara já expressamente todo um conjunto de actos procedimentais sustentadores da sua pretensão e relevantes para a decisão desta que foram parcialmente ignorados pelo Tribunal. De direito porque mesmo os que foram considerados relevantes para a decisão foram interpretados e integrados de direito de forma muito limitada.

E se é certo que a validade de um acto administrativo, mesmo em matéria tributária, é uma questão de legalidade, não é menos certo que essa legalidade se não esgota na consideração isolada de um acto do procedimento ou no relevo de uma norma ou instituto, competindo, em especial ao julgador, aferir, caso a caso e para efeitos de apreciação dessa legalidade, não só da aplicação de uma norma que abstractamente seja aplicável à situação sub iudice, mas igualmente ponderar se a resolução da situação que vem exposta não impõe o afastamento da norma abstractamente aplicável e a consequente aplicação de outras normas ou institutos que devam reconhecer-se como se sobrepondo àquela primeira.

Vem o que vimos expondo a propósito do necessário enquadramento de facto e jurídico que o presente recurso convoca, já que, como bem refere o Recorrente, o presente processo, que teve como objecto directo o despacho de indeferimento de 12-12-2013 (notificado a 15-1-2015), foi atacado por factos que se iniciaram bem antes da sua prolação e muito antes da sua notificação.

Recordemos os factos:

- A 30 de Dezembro de 2010, o Reclamante (e cônjuge) apresentou um pedido de dação em pagamento no âmbito do processo de execução fiscal …………………, indicando para o efeito o prédio urbano -terreno para construção situado na Estrada Nova do Empreendimento Solar ……………., Sítio ……………, freguesia e concelho de Câmara ……………., inscrito na matriz sob o artigo …………..7;

- A 26 de Maio de 2011, o Recorrente foi notificado de um “projecto de decisão” no qual lhe foi dado conhecimento, em resumo, que a Administração Fiscal não iria aceitar a dação em pagamento porque o imóvel possuía o valor patrimonial tributário de cerca de € 255,450,000 (avaliação de 2008), isto é, um valor substancialmente superior ao valor em dívida à data (€ 108.842,96), o que constituía fundamento da não aceitação, adiantando que, tal já não ocorreria se o valor do imóvel fosse inferior por nessa situação nada obstar a essa aceitação, sem prejuízo de a execução prosseguir para satisfação do valor remanescente.

- Na sequência desse projecto de decisão, o Recorrente indicou, a 6 de Julho de 2011, para os mesmos efeitos (dação em pagamento), um outro imóvel, no valor patrimonial de €114, 716,89, tendo sido proferida decisão de deferimento do pedido condicionada à avaliação do valor de mercado do imóvel indicado;

- Em 15 de Janeiro de 2015 o Recorrente foi notificado do despacho do Director Regional dos Assuntos Fiscais de 12 de Dezembro de 2013 pelo qual lhe tinha sido indeferido o pedido de dação em pagamento por o valor do imóvel, avaliado a 2 de Outubro de 2013 em € 103.500,00, ser inferior ao valor actua em dívida nessa data e que ascendia a € 126.897,67.

Do que vimos expondo podem retirar-se desde já duas ilações ou conclusões de facto: nunca houve qualquer decisão de indeferimento do pedido apresentado pelo Recorrente de dação de pagamento por recurso ao imóvel avaliado no valor de € 255.450,00 mas somente um projecto de decisão que formalmente indicava que não seria aceite, exclusivamente pelo valor da dívida ser manifestamente superior ao valor do imóvel; a Administração Tributária indeferiu o requerimento do Recorrente de dação em pagamento pela entrega do novo imóvel indicado por o valor ser insuficiente para solver a dívida exequenda calculada à data da prolação do despacho de indeferimento, isto é, a 12-12-2013 (sem que tenha havido, quanto a este pedido, lugar a audiência prévia, eventual vício de que se não conhecerá por não ser de conhecimento oficioso e não ter sido arguido como fundamento da Reclamação).

Estas ilações ou conclusões são assaz relevantes por das mesmas resultarpara além da falta de razão do Recorrente quanto a um inicial indeferimento que, como dissemos já, nunca existiuuma delimitação do objecto da própria reclamação e deste recurso, o qual se deve entender como circunscrito ao pedido de dação da dívida exequenda através do segundo imóvel indicado, por ser manifesto que ao indicar um novo imóvel, o Recorrente implicitamente desistiu das sua pretensão de fazer operar aquele mecanismo através do primeiro imóvel indicado.

O que não significa que este Tribunal não possa relevar as concretas circunstâncias que determinaram o contribuinte a assim agir, as quais, de resto, estão bem expressas no segundo requerimento formulado onde consta que «notificados (…) do projecto de decisão de indeferimento do pedido de dação do imóvel em pagamento da dívida exequenda, e atendendo a que o fundamento dessa decisão é o excesso substancial do valor patrimonial tributário do imóvel (…) vêm propor a Vossa Excelência a dação e pagamento do seguinte imóvel (…) cujo valor praticamente iguala o da dívida exequenda e acréscimos(…)».

Posto isto, isto é, devidamente delimitado o objecto desta reclamação, do presente recurso e as razões de facto que estão na base da indicação do imóvel através do qual o Recorrente pretendia extinguir a obrigação e as que determinaram o seu indeferimento, importa agora dar resposta à questão colocada: é ou não legal o despacho de indeferimento de 12 de Dezembro de 2013, comunicado ao recorrente a 15 de Janeiro de 2015, relativamente ao pedido de dação em pagamento da dívida exequenda pelo imóvel indicado?

Vejamos.

Como é por demais sabido, a dação em pagamento constitui - a par da consignação em depósito, da compensação, da novação, da remissão e da confusão -, uma causa de extinção da obrigação que pode assumir dois tipos ou modalidades: a dação em cumprimento, prevista e regulada nos artigos 837.º a 839.º do Código Civil, que se traduz na realização de uma prestação diferente da que é devida com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação e a dação em função do cumprimento, prevista e regulada no artigo 840.º do mesmo Código, que, enquanto dação condicional, não tem por fim imediato a extinção da obrigação mas assegurar (facilitar) o seu cumprimento.

Num análise sintética sobre os efeitos de ambos os tipos de extinção integráveis na dação em pagamento, pode afirmar-se que, enquanto na dação em pagamento (“datio in solutum”) o credor aceita que o devedor dê fim à relação de obrigação existente entre eles pela substituição do objecto da prestação, ou seja, o devedor realiza o pagamento na forma de algo que não estava originalmente na obrigação estabelecida, mas que a extingue da mesma forma, na dação em função do cumprimento ("pro solvendo") a obrigação não se extingue de imediato, antes se mantendo e vai-se extinguindo se e na medida em que o respectivo crédito (que se visa solver) for sendo satisfeito. (1)

Tem vindo a ser jurisprudência uniforme dos nossos Tribunais Superiores, seguindo de perto desde sempre entendimento perfilhado pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (2), à luz do regime que se mostrava já acolhido no Código de Procedimento Tributário, que a expressa previsão desta forma de extinção da obrigação no campo tributário, designadamente as referências efectuadas nos artigos 201.º e 202.º para “dação de bens em pagamento”, “dação em pagamento” e “bens dados em pagamento” não devem ser interpretadas restritivamente, isto é, no sentido de apenas abrangerem a dação em cumprimento, mas extensivamente, ou seja, de nessas referências e regime jurídico se incluir igualmente a dação em função do cumprimento, adiantando-se, como fundamento desse julgamento interpretativo ou densificação legal razões históricas relativas à evolução histórica do próprio regime jurídico da dação em pagamento no direito tributário, e de ordem sistemática e teleológica.

Ora, como se disse em acórdão deste Tribunal Central (3), não se vislumbrando razões para divergir desse entendimento, firmado num quadro ou referência legislativa que no essencial se manteve no actual Código de Procedimento e Processo Tributário, vejamos o que estabeleceu o legislador em concreto nesta matéria para alcançarmos de que forma o caso concreto e os factos apurados nele se integram.

Dispõe o artigo 201.º do último Código citado, sob a epígrafe «Da dação em pagamento. Requisitos» (a cuja transcrição integral procedemos por, como se demonstrará, a argumentação esgrimida em recurso pelo recorrente convocar, ainda que não expressamente, vários normativos aí integrados e que importará analisar, desde já se consignando ser de nossa autoria o negrito realizado), que:

«1 - Nos processos de execução fiscal o executado ou terceiro podem, no prazo de oposição, requerer ao ministro ou órgão executivo de quem dependa a administração tributária legalmente competente para a liquidação e cobrança da dívida a extinção da dívida exequenda e acrescido, com a dação em pagamento de bens móveis ou imóveis, nas condições seguintes:

a) Descrição pormenorizada dos bens dados em pagamento;

b) Os bens dados em pagamento não terem valor superior à dívida exequenda e acrescido, salvo os casos de se demonstrar a possibilidade de imediata utilização dos referidos bens para fins de interesse público ou social, ou de a dação se efectuar no âmbito do processo conducente à celebração de acordo de recuperação de créditos do Estado.

2 - Apresentado o requerimento, o órgão da execução fiscal enviará ao dirigente máximo do serviço, no prazo de 10 dias, cópia do requerimento, bem como o resumo do processo e dos encargos que incidam sobre os bens, com conhecimento, no mesmo prazo, ao imediato superior hierárquico, quando exista.

3 - Recebido o processo, o dirigente máximo do serviço poderá remetê-lo para despacho do ministro competente, com fundamento no desinteresse da dação, ou solicitar a avaliação dos bens oferecidos em pagamento, através de uma comissão cuja constituição será promovida pelo órgão de execução fiscal, que presidirá, e dois louvados por ele designados que serão, no caso de bens imóveis, peritos avaliadores das listas regionais e, no caso de bens móveis, pessoas com especialização técnica adequada, devendo a comissão efectuar a avaliação no prazo máximo de 30 dias após ser determinada a sua realização.

4 - Em situações de especial complexidade técnica, o dirigente máximo do serviço solicitará a avaliação dos bens, conforme os casos, à Direcção-Geral do Património do Estado, à Direcção-Geral do Tesouro e ao Instituto de Gestão do Crédito Público ou a entidade especializada designada por despacho do Ministro das Finanças.

5 - A avaliação é efectuada pelo valor de mercado dos bens, tendo em conta a maior ou menor possibilidade da sua realização.

6 - As despesas efectuadas com as avaliações referidas nos n.os 3 e 4 entram em regra de custas do processo de execução fiscal, devendo o devedor efectuar o respectivo preparo no prazo de 5 dias a contar da data da notificação, sob pena de não prosseguimento do pedido.

7 - Reunidos os elementos referidos nos números anteriores, o processo será remetido para despacho ao ministro ou ao órgão executivo competente, que poderá, antes de decidir, determinar a junção de outros elementos no prazo de 10 dias, sob pena de o pedido não ter seguimento, salvo se o atraso não for imputável ao contribuinte.

8 - O despacho que autorizar a dação em pagamento definirá os termos de entrega dos bens oferecidos, podendo seleccionar, entre os propostos, os bens a entregar em cumprimento da dívida exequenda e acrescido.

9 - Em caso de aceitação da dação em pagamento de bens de valor superior à dívida exequenda e acrescido, o despacho que a autoriza constitui, a favor do devedor, um crédito no montante desse excesso, a utilizar em futuros pagamentos de impostos ou outras prestações tributárias, na aquisição de bens ou de serviços no prazo de 5 anos ou no pagamento de rendas, desde que as receitas correspondentes estejam sob a administração do ministério ou órgão executivo por onde corra o processo de dação.

10 - O crédito previsto no número anterior é intransmissível e impenhorável e a sua utilização depende da prévia comunicação, no prazo de 30 dias, à entidade a quem deva ser efectuado o pagamento.

11 - Em caso de cessação de actividade, o devedor pode requerer à administração tributária, nos 60 dias posteriores, o pagamento em numerário do montante referido no n.º 9, que só lhe será concedido se fizer prova da inexistência de dívidas tributárias àquela entidade.

12 - A dação em pagamento operar-se-á através de auto lavrado no processo.

13 - Na dação em pagamento de bens imóveis lavrar-se-á um auto por cada prédio.

14 - O auto referido nos números anteriores valerá, para todos os efeitos, como título de transmissão.

15 - O executado poderá desistir da dação em pagamento até 5 dias após a notificação do despacho ministerial, mediante o integral pagamento da totalidade da dívida exequenda e acrescido, incluindo as custas das avaliações a que se referem os n.os 3 e 5 do presente artigo.

16 - Autorizada a dação em pagamento, seguir-se-ão, na parte aplicável, as regras previstas nas alíneas c) e d) do artigo 255.º deste Código.

17 - O terceiro a que se refere o n.º 1 só ficará sub-rogado nos direitos da Fazenda Pública nos termos e condições definidos nos artigos 91.º e 92.º do presente Código.

18 - As despesas de avaliação, que compreendem os salários e abonos de transporte dos membros da comissão constituída por promoção do órgão de execução fiscal, serão fixadas por portaria do Ministro das Finanças.».

Resulta, assim, do preceito transcrito, para o que ora nos importa considerar, que o ordenamento jurídico - tributário português, que como vimos acolheu a dação em pagamento e em função do pagamento, estabeleceu um conjunto de requisitos formais de admissibilidade do pedido ou requerimento de dação e de admissibilidade substancial ou material da própria dação.

Do ponto de vista formal, o requerimento contendo o pedido de dação deve ser deve ser submetido à Administração Fiscal no prazo de dedução de Oposição, isto é, 30 dias, por força do preceituado no artigo 203.º n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, do mesmo devendo constar de forma descriminada o (s) bem (bens) através do qual (quais) se pretende que a mesma seja realizada.

Do ponto de vista substantivo, o dever de apreciação da Administração Fiscal desdobra-se em vários níveis ou patamares de obrigações.

Primeiro, a Administração Fiscal tem de aferir da verificação do valor do imóvel em que a dação se irá, admitida que seja, traduzir, já que se o mesmo for superior à dívida exequenda e legais acréscimos - e a não ser que esteja demonstrada a possibilidade de imediata utilização dos referidos bens para fins de interesse público ou social, ou de a dação se efectuar no âmbito do processo conducente à celebração de acordo de recuperação de créditos do Estado -, a dação não é legalmente admissível.

Em segundo lugar, e caso não seja de indeferir por o valor do imóvel não ser superior ao valor da divida exequenda e legais acréscimos, avaliar o imóvel (valor de mercado), o que deverá realizar no prazo de 30 dias.

Em terceiro lugar, sendo inferior o valor de mercado do imóvel, ponderar se tal dação deve ser admitida, enquanto extinção parcial da divida exequenda, sem prejuízo de a execução prosseguir para cobrança do remanescente em dívida, seja pelo pagamento em prestações, seja pela penhora de outros bens.

No caso concreto, quanto ao primeiro pedido e imóvel indicado, formulado a 30-12-2010, a Administração Fiscal manifestou a 16-5-2011 a sua intenção de o indeferir exactamente por o valor daquele ser manifestamente superior ao valor da dívida em causa, respectivamente de € 255.450,00 e € 108.842,96, concluindo não haver interesse na dação, tendo ainda deixado consignado na informação/projecto de decisão, que a decisão poderia ser distinta se o valor do imóvel fosse inferior já que «sendo o valor dos bens de montante inferior ao da dívida e do acrescido, não existe qualquer problema, já que o executado poderá efectuar o pagamento do restante em prestações (videartigo 189.º, n.º 5 do CPPT) ou poderá a execução prosseguir pela importância em falta.».

Quanto ao segundo requerimento, isto é, ao pedido do Recorrente de que a dação se efectuasse através de um outro imóvel, de valor de mercado quase idêntico ao da divida exequenda, e que se aproximaria eventualmente do valor exacto com os acréscimos devidos e o actual valor do mercado (valor do imóvel reportado a 2008 cifrava-se no valor de € 114, e a dívida cifrava-se nos € 108,842,96) a Administração Fiscal entendeu admitir liminarmente o mesmo (a dação), ficando, no entanto, a decisão final condicionada ao resultado da avaliação que iria determinar.

Foi essa avaliação que o Director Regional a 13-8-2012 ordenou que fosse realizada por uma comissão cuja constituição determinou fosse promovida pelo órgão de execução fiscal (Serviço de Finanças da Câmara …………), expressamente consignando que aquele serviço à mesma deveria presidir e ser ainda integrada por dois louvados pelo referido órgão designados (peritos avaliadores de bens imóveis constantes das listas regionais), no prazo de 30 dias.

Essa avaliação foi efectuada a 2 de Outubro de 2013, tendo sido fixado o valor do mercado do imóvel em € 103.500,00.

E foi esse resultado avaliativo que foi notificado ao requerente a 15 de Janeiro de 2015 e que sustenta exclusivamente a decisão de indeferimento da dação em pagamento que nessa mesma data lhe foi notificada por nessa data o valor em dívida ascender a € 126.897,67.

Ora, contrariamente ao que pretende o Recorrente, pelo menos numa primeira linha de argumentação, não é o facto de a Administração Fiscal ter assumido no projecto de decisão relativamente ao primeiro requerimento de dação em pagamento que se o valor do imóvel fosse inferior a decisão poderia ser distinta do indeferimento projectado, que esta se mostrava obrigada a, perante um novo pedido de dação em pagamento, a aceitar, sem mais, essa mesma dação, uma vez que em cada procedimento ou apreciação do pedido a Administração Fiscal está, em primeira linha, vinculada à lei, bem podendo acontecer que, numa posterior análise dos pressupostos e perante novo pedido, venha a concluir que os requisitos legais de um eventual deferimento não se mostram preenchidos e, consequentemente, agir em conformidade com a lei.

Ou seja, considerando os deveres legais que impendem sobre a Administração e ainda que num primeiro momento ou na apreciação de outro requerimento a Administração Fiscal tenha apontado num sentido de decisão, não fica vinculada, não neste estrito domínio em que nos movemos, a perpetuar uma (projectada) ilegalidade ou até o seu cometimento (no caso de eventual prática de acto ilegal cometida em idêntica situação de facto ou direito da que ex novo se lhe depara).

E também não é o mero facto de todos os prazos previstos no artigo 201.º do CPPT terem sido ultrapassados durante este procedimento, como ostensivamente os autos evidenciam e implicitamente constitui fundamento deste recurso e das alegações que o acompanham, que permite, também sem mais, concluir pela ilegalidade do acto cometido ou de um abuso de direito, já que a violação do princípio da celeridade que percorre de forma impressiva todo o dispositivo regulador deste procedimento não constitui vício capaz de o invalidar nem, através dele, o acto administrativo, ainda que eventualmente possa ser considerado bastante a determinar uma responsabilidade disciplinar ou civil dos serviços ou dos funcionários que no procedimento tiveram intervenção.

Matéria que, como está bem de ver, não cumpre apreciar no âmbito deste processo de reclamação judicial, como, de resto, o Recorrente bem sabe, uma vez que, não obstante ter chamado à colação o diploma que rege a Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Pessoas Colectivas de Direito Público (DL n.º 67/2007 de 31 de Dezembro) dessa invocação não extraiu, a final (pedido) quaisquer consequências.

Porém, já constitui fundamento de ilegalidade do despacho de indeferimento proferido o facto de assentar em pressupostos de facto e direito que não correspondem à realidade materializada nos autos nem ao direito constituído.

Para que bem se compreenda o que vimos dizendo importa que salientemos, que o indeferimento da Administração Fiscal assentou exclusivamente no facto de o valor do imóvel ser inferior ao valor da dívida exequenda. Ou seja, a Administração Fiscal ao longo do procedimento nunca afirmou, por qualquer razão, que a dação em pagamento seria, no caso concreto, e a qualquer título, inadmissível ou que nunca daria o seu acordo à mesma (independentemente da validade ou legitimidade que lhe assistira para dar ou indiciar uma postura dessa natureza). Pelo contrário, quer no procedimento iniciado com o primeiro requerimento em que expressamente consigna que o se o valor do imóvel fosse inferior seria provável que a decisão fosse inversa e não no sentido projectado, quer no procedimento desenvolvido quanto ao segundo dos imóveis indicados, que liminarmente admitiu, a Administração Fiscal mostra-se disponível, receptiva a essa dação, ainda que condicionada à posterior avaliação do imóvel.

E foi precisamente na sequência dessa avaliação realizada após liminar aceitação da dação em pagamento, realizada cerca de 2 anos após a apresentação desse pedido de dação e com base num valor de execução calculada quase 4 anos após a formulação desse pedido, que vem a assentar o indeferimento por o valor de mercado do imóvel entretanto avaliado ser inferior ao valor da execução e legais acréscimos nessa data considerado.

Ora, salvo o devido respeito, o valor que a Administração Fiscal deveria ter considerado não podia, em hipótese alguma, ser o valor em dívida à data do despacho de indeferimento. Mesmo que o princípio da boa fé, da confiança e da justiça não a tivessem determinado a considerar como valor em dívida para apreciação do pedido de dação - e sem prejuízo de a execução prosseguir quanto ao mais em dívida à data da notificação-, o valor devido à data de formulação daquele pedido acrescido dos acréscimos vencidos entre essa data e a data em que deveria ter sido proferida a decisão se todos os prazos previstos no artigo 201.º tivessem sido cumpridos, insista-se, mesmo que se não julgasse no dever legal de os considerar e, em conformidade decidir, teria, sempre e no mínimo, de ter considerado como valor de referência o valor exequendo à data da decisão liminar e não o valor em dívida à data da decisão proferida cerca de 3 anos depois (respectivamente € 118. 919,24 e € 126.897,67).

Aliás, a não ser assim, nunca qualquer requerente ou contribuinte poderá fazer qualquer juízo de suficiência do valor do imóvel que pretenda apresentar ou, mais grave, bem poderá acontecer que um imóvel previamente considerado como de valor manifestamente inferior (como foi o caso) vir, a final, a provar-se ser o de valor adequado para aceitação da dação se a decisão em vez de ser proferida 3/4 depois for proferida um ou dois anos mais tarde.

Acresce que, o que igualmente sempre constituiria fundamento de anulação do despacho de indeferimento sindicado, o artigo 201.º do CPPT não proíbe, nem a dação em pagamento impõe, nos termos latos em que o primeiro deve ser interpretado e a segunda nos moldes em que deixámos fixado o seu conteúdo, natureza e efeitos, que a dação não possa ocorrer relativamente a parte da obrigação tributária, desde que a Administração Tributária a tal nada tenha a obstar, como até à data do despacho não tinha (repete-se, não foi essa a postura que foi assumida até á data de entrada da presente reclamação nos serviços de finanças a qual assentou sempre ou num valor manifestamente superior do imóvel ou num valor inferior do imóvel para solver toda a dívida) mantendo-se quanto ao remanescente o prosseguimento da execução, tanto mais que, como evidenciam os autos, vários outros bens imóveis se encontram já penhorados, desconhecendo-se se foram ou não considerados (porque o despacho nada refere) para efeitos daquele juízo de insuficiência do valor do imóvel para solver a obrigação.

Tudo concorrendo, pois, em nosso entender, para a ilegalidade do despacho proferido.

E embora o que vimos decidindo se mostre já bastante para fundamentar a decisão de revogação da sentença recorrida, não podemos deixar de apreciar um ultimo argumento invocado pelo Recorrente para suportar a ilegalidade do despacho e que se traduz na qualificação da actuação da Administração Fiscal e na decisão por esta proferida como constituindo abuso de direito.

Nesse sentido alega o Recorrente que, mesmo que se não entenda que o despacho viola o preceituado no artigo 201.º do CPPT, a sua prolação nos termos em que foi realizada constitui um manifesto abuso de direito por parte da Fazenda Nacional já que esta não pode deixar de ter consciência de que o seu procedimento é abusivo e de má-fé uma vez que se não queriam aceitar um bem imóvel em dação em pagamento, bastava, desde logo, dizerem que «não aceitam dações em pagamento de bens imóveis, e não dizer que aceitam, e quando o apelante apresenta o bem imóvel dizem que não aceitam porque o valor é superior ao valor da dívida, e quando o apelante apresenta um bem de valor inferior, em apenas 5.342,96 euros, dizem que não aceitam porque o valor é inferior ao valor da dívida.».

Conclui, assim, que a conduta da Fazenda Nacional descrita revela claramente que não exerceu o seu direito dentro dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico que lhes está subjacente.

Vejamos, então, o que se nos oferece dizer, adiantando, no entanto e desde já, que para nós o abuso do direito, genericamente consagrado no artigo 334º do Código Civil, não tem aplicação à conduta da Administração Fiscal no caso concreto, que se limitou, como demonstraremos, a proferir decisão que julgou ser a devida, atentos os factos e normativos que relevou e aplicou, sendo que não é o facto de ter andado mal quanto à relevância concreta que lhes deu que é, só por si, suficiente para que qualifiquemos essa conduta como de abuso de direito.

Tal como não é suficiente a suportar idêntico juízo o facto de em momento anterior a Administração Tributária, e perante um outro requerimento, ter adiantado um juízo sobre uma hipotética situação em que alegadamente tomaria decisão distinta, pois, como deixámos já supra expresso, os interesses públicos prosseguidos pela Administração e a sua vinculação acentuada ao princípio da legalidade sempre obstariam a que de uma posterior decisão em sentido contrário se extraísse, sem mais, a qualificação da sua conduta como de abuso de direito (independentemente como já também deixámos apontado, de eventuais responsabilidades de outra natureza que lhe possam nessa situação ser assacadas).

Aliás, como é sabido, a figura do abuso do direito constitui, como correntemente se afirma, uma espécie de ‘válvula de segurança’ do sistema através da qual se obsta a que certos direitos, válidos em tese, se consumem por, em concreto, se traduzirem numa clamorosa ofensa da Justiça, entendida enquanto expressão do sentimento jurídico socialmente dominante. (4)

Ora, no caso concreto, o que mais impressiona de forma negativa na decisão não é o facto de a Administração Fiscal ter “assumido” que numa situação distinta (que posteriormente o Requerente julga ter preenchido) a sua decisão seria distinta, mas, sim, que para aferir dos pressupostos ou requisitos da dação nessa “situação distinta” o não tenha feito por referência a factos e no enquadramento jurídico que este Tribunal Central julgou como o único legalmente correcto, que anteriormente considerou como bons e a que não dispensa uma referência mínima.

Note-se, aliás, como vários acórdãos dos nossos Tribunais Superiores tem salientado, que o “venire contra factum proprium(que é no fundo o que o Recorrente invoca ao fazer a comparação entre o juízo realizado na decisão projectada e a decisão final), na sua formulação dogmática e no quadro do instituto do abuso do direito, assume uma estrutura que pressupõe duas condutas, sucessivas mas distintas, temporalmente distanciadas e de sinal contrário, protagonizadas pelo mesmo agente: o “factum proprium(uma inacção ou acção em determinado sentido) seguido, em contradição, do ‘venire(acção em sentido oposto). (5)

Ora, no caso concreto, não só não chegou a haver inacção ou acção definitiva num sentido seguida de acção em sentido oposto como, reafirme-se, não estamos, face à qualidade do agente e aos deveres e interesses prosseguidos no quadro em referência, numa situação em que ao mesmo possa ser reconhecida liberdade de conformação da sua conduta, como ocorre nos domínios, designadamente, da liberdade contratual ou da autonomia privada em geral.

Condicionada pelo interesse público e vinculada de forma estrita às opções assumidas pelo legislador no que concerne à prossecução daquele, à Administração Pública não pode ser reconhecido o direito de permanecer vinculada a um sentido de decisão, muito menos a uma hipótese de decisão, como foi o caso, quando posteriormente vem a reconhecer que esse mesmo sentido de decisão projectado ou uma decisão antes proferida afronta a lei e o interesse a cujo cumprimento e fim está obrigada.

O que vimos expondo não significa, ou pelo menos não pretendemos que daí seja extraído o entendimento de que a figura do abuso de direito nunca possa encontrar razão de ser numa actuação administrativa latu sensu considerada, mas, sim, que a mesma, nos limites ou com as limitações supra mencionadas só poderá alcançar reconhecimento num quadro em que seja patente que “uma pessoa, no exercício de um poder formal que lhe foi atribuído por lei” e “em contradição com os fins (económicos ou sociais) ou com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) a que esse poder se encontra adstrito - alcançar benefícios para cuja obtenção o mesmo não foi, manifestamente, concebido de sorte a que o sentimento de justiça dominante saia gravemente ferido.». (6)

Destinando-se, assim, a figura do abuso do direito a “impedir que o uso indevido do direito possa ser virtuoso ou compensador para o abusador” (7) facilmente se compreende que tenhamos concluído no sentido de que a situação apresentada nos autos não é subsumível àquela qualificação já que a Administração Fiscal se limitou a actuar em cumprimento ou observância do que julgou ser, na situação que lhe era colocada, a defesa da legalidade, não revelando o probatório que tenha excedido os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

E, sendo assim, é de julgar improcedente a alegação de a conduta da Administração Pública constitui abuso de direito.

V – Decisão

Por todo o exposto, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso do Tribunal Central Administrativo, julgando procedente o recurso, em revogar a sentença recorrida e, consequentemente, anular o acto objecto da presente reclamação.

Custas pela Recorrida.

Registe e notifique.

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Lisboa, 10 de Julho de 2015

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(Anabela Russo)

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(Lurdes Toscano)

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(Ana Pinhol)

(1) Cfr., Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 5ª. edição, Almedina, 1992, vol.II, pág.168 e seguintes e António Menezes Cordeiro, “Direito das Obrigações”, II volume, A.A.F.D.L., 1990, pág.209 e seguintes.
(2) Cfr. Parecer 45/98, de 15/6/1998 e Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de , proferidos, respectivamente nos processos n.ºs e do Tribunal Central Administrativo Sul de e Tribunal Administrativo Norte de , todos integralmente disponíveis em www.dgsi.pt
(3) Acórdão de 8-8-2012, proferido no processo n.º 5814/12, integralmente disponível em www.dgsi.pt.
(4) Cfr., neste sentido, Vaz Serra, BMJ n.º 85/253; Coutinho de Abreu, “Do Abuso do Direito”, 1983; Manuel de Andrade, “Teoria Geral das Obrigações”, 3.ª Edição, pgs.63-64; Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 6.ª Edição, página 516 e Pires de Lima/A. Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª Edição, página 299.
(5) Vide, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 2013, integralmente disponível em www.dgsi.pt.
(6) Cfr., Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Maio de 2005, proferido no processo n.º 209/05, integralmente disponível em www.dgsi.pt.
(7) Cfr., o mesmo Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo citado na nota 6.