Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11750/14
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:02/12/2015
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:DIREITO DOS REFUGIADOS, PRINCÍPIO DO “BENEFÍCIO DA DÚVIDA”, PRINCÍPIO DO “NON-REFOULEMENT”
Sumário:I - O Direito dos refugiados é o mecanismo mais efetivo e autónomo para aqueles que, simplesmente, não podem permanecer em segurança nos seus próprios países.

II - O princípio do “benefício da dúvida” refere-se ao estabelecimento e prova dos factos ante a autoridade nacional, como que suavizando o normal ónus da prova. Assim, não havendo facto duvidoso ou minimamente verosímil, não há que aplicar tal princípio.

III - O princípio do “non-refoulement” apresenta-se como argumento e norma imperativa do direito internacional, sendo hoje entendido como uma forma de proteção dos direitos humanos para um tipo específico de pessoa, o refugiado, desde logo pela proibição de expulsar ou de repelir o estrangeiro para um lugar onde a sua vida ou liberdade estejam ameaçadas. É hoje verdadeiro direito consuetudinário internacional, ius cogens
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· ABOUBACAR ………………., alegado nacional da Guiné-Conacri, detido no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, intentou

Impugnação judicial da decisão do Diretor Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), de 04.04.2014, que lhe indeferiu o pedido de asilo por si formulado, nos termos do disposto no artigo 25º, nº1, da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho (Estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária) (1), atualizada, contra

· M.A.I./ Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Pediu ao T.A.C. de LISBOA o seguinte:

“Deve julgar-se procedente a presente impugnação judicial, condenando-se o SEF a admitir o pedido de asilo, pelas declarações do ora A. sendo justo a aplicação do princípio do benefício da dúvida ou à cautela que seja ordenada a instrução do processo para verificar as condições atuais da Guine Conacri por parte do SEF; Deverá ser notificado o Conselho Português de Refugiados e ACNUR a fim de se pronunciar pela admissibilidade do pedido de asilo, conforme estipula a Lei. Mais se requerendo que esta mesma decisão administrativa seja suspensa na execução, de acordo com o art°25, nº1 da Lei nº27/2008, de 30 de Junho e que a presente ação seja de imediato notificada Ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, centro de Instalação Temporária do Aeroporto, a fim do impugnante não ser deportado para a Guiné Conacri.”

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Por sentença de 21-10-2014, o referido tribunal decidiu julgar improcedentes os pedidos.

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Inconformado, o a. recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1. O ora impugnante é perseguido por ser de etnia Soussou e não falar malinké.

2. Parece-nos a nós, salvo melhor opinião, que o relato do ora A. é convincente quanto ao facto de ser ameaçado, porque demonstrou com as suas declarações que pertence aos Soussou, tendo especificado como foi perseguido, agredido e fugiu, sendo que é mais que credível que os malinké, dos quais fazem parte os militares, irão exercer represálias se o mesmo voltará Guine Conacri, sentindo-se com medo e por isso ter fugido do Pais de origem e da sua residência habitual, devido à situação de insegurança vivida em consequência da perseguição que afirmou ter sido vitima podendo vir a ser enquadrada tal situação muito bem no artº 7, nº 2, alínea c) da lei de asilo (2), nomeadamente pelo facto de não se poder garantir que o ora impugnante venha a ter uma vivência tranquila ao regressar ao seu pais de origem, bem como pelo facto de existir enorme risco de ser perseguido pelos malinké e bem como que venha a ser morto pelos malinké conforme declarações do mesmo, porquanto o já terem ameaçado diretamente por pertencer aos Soussou.

3. Pois que face a tal contexto sociopolítico da Guiné Conacri não são infundadas as declarações do ora A. quanto ao medo de sofrer ofensa grave à sua integridade física, ou vir a torturado, caso volte ao seu país de origem, derivado do facto dos malinké os encontrarem caso o ora A volte ao seu país de origem, sendo que o estado da Guiné Conacri é um Pais sobejamente conhecido pela suspensão da constituição e assim dos direitos do Povo…

4. Considerando as afirmações do ora A., são estes motivos suficientes para que lhe seja concedido o asilo que ora se requer, por razões humanitárias, o Conselho Português dos Refugiados, ao ser chamado a pronunciar-se, fê-lo pela instrução do processo, sendo que o CPR é bem conhecedor da situação que se vive na Guina Conacri.

5. O ora A. concretiza com as suas declarações, uma medida individual de natureza persecutória violadora da pessoa humana, merecendo pelo menos o benefício da dúvida, dados os elementos pessoais que carreou para os autos administrativos, sendo normal que os relatos do ora requerente sejam titubeantes á causa da situação em que se encontra.

6. A entidade impugnada deveria, salvo melhor opinião, ter seguido com a instrução do processo, a fim de averiguar melhor as afirmações do ora A., pelo menos no sentido de averiguar, tal como informou o CPR, das condições existentes na Guine Conacri em relação aos Soussou serem perseguidos pelos Malinké, tal como se verifica com os Peule.

7. A decisão que ora se impugna, viola quanto a nós, pelo menos, na parte em que não considerou aplicável o regime de proteção subsidiária, contante do artº acima referido, padece de violação da lei por errónea interpretação da mesma, sendo que não foi tido em conta o Principio do beneficio da dúvida e o Principio "non-refoulement" consagrado no artº 33º da Convenção de Genebra de 1951 (3), conjugado com os preceitos do artº 3 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (4), pelo que deve ser anulável nos termos do artº 135º CPA.

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O recorrido contra-alegou, sem concluir.

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O Exmº representante do Ministério Público junto deste Tribunal foi notificado para se pronunciar como previsto na lei de processo.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

Este tribunal tem presente o seguinte: (i) o “primado do Estado democrático e social de Direito material”, num contexto de uma vida política e económica submetida ao “bem comum” e à “suprema e igual dignidade de cada pessoa”; (ii) os “valores ético-jurídicos do ponto de vista da nossa lei fundamental”, (iii) os “princípios estruturantes do Estado de Direito” (ex.: juridicidade, segurança jurídica (5) e igualdade (6)), (iv) as “normas-regras” e as “normas-princípios” pertinentes (7), e ainda (v) as “máximas metódicas” do Estado democrático e social de Direito material, como por exemplo e sempre que metodologicamente possível e necessário, a “igualdade” e a “proporcionalidade jurídica” através das suas três submáximas racionais.

*

Os recursos, que devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal a quo e seus fundamentos, têm o seu âmbito objectivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido (ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas).

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido

«(…)»

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Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há melhores condições para se compreender o recurso e para, de modo facilmente sindicável, apreciarmos o seu mérito.

Embora as conclusões do recurso pequem muito do ponto de vista técnico-jurídico, já que não se referem muito claramente à sentença, percebe-se que o recorrente discorda da sentença por

1º-alegada violação do cit. artigo 7º/2 da Lei do Asilo (i.e., das condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária, e dos estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária), com alegada falta de instrução do p.a. e violação do princípio do “benefício da dúvida”, e

2º-alegada violação do princípio do “non-refoulement”.

Vejamos, pois.

A)

O direito dos refugiados é o mecanismo mais efetivo e autónomo para aqueles que, simplesmente, não podem permanecer em segurança nos seus próprios países (JAMES C. HATHAWAY, The rights of refugee under international law, Cambridge, Cambridge University Press, 2005, p. 14).

Ora, o artigo 7º da nossa Lei do Asilo dispõe assim:

1 - É concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3.º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave.

2 - Para efeitos do número anterior, considera-se ofensa grave, nomeadamente:

a) A pena de morte ou execução;

b) A tortura ou pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu País de origem; ou

c) A ameaça grave contra a vida ou a integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos.

3 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo anterior.

B)

O princípio do “benefício da dúvida” refere-se ao estabelecimento e prova dos factos ante a autoridade nacional, como que suavizando o normal ónus da prova. Segundo o recorrente, o desrespeito por este princípio (de direito internacional humanitário probatório) conduziu à violação do cit. artigo 7º, que prevê a autorização de residência por proteção subsidiária.

Como se diz no Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado, da autoria da ACNUR,

«O processo de constatação e avaliação dos fatos pode, portanto, ser resumido da seguinte forma: (a) O solicitante deverá: dizer a verdade e apoiar integralmente o examinador no estabelecimento dos fatos refe­rentes ao seu caso; esforçar-se para sustentar suas declarações com todas as evidências disponíveis e dar uma explicação satisfatória em relação a qualquer falta de elementos de prova. Se necessá­rio, ele deve esforçar-se para obter evidências adicionais; fornecer todas as informações pertinentes sobre a sua pessoa e a sua experiência pre­térita com o máximo de detalhes possíveis para permitir que o examinador conheça os fatos relevantes. É preciso pedir ao solicitante que explique de maneira coerente todas as razões invocadas como fundamentos do seu pedido de refúgio e responda a todas as questões que lhe são colocadas. (b) O examinador deverá: assegurar que o solicitante apresente o seu caso de forma tão completa quanto possível e com todos os elementos de provas disponíveis; apreciar a credibilidade do solicitante e avaliar os elementos de prova (se necessário, dando ao requerente o benefício da dúvida) a fim de estabelecer os elementos objetivos e subjetivos do caso; relacionar estes elementos com os critérios relevantes da Convenção de 1951, de modo a obter uma conclusão correta sobre a concessão da condição de refugiado ao solicitante».

Ora, a verdade é que a factualidade invocada pelo estrangeiro interessado não se enquadra de todo no previsto nos artigos 10º ss ou 7º (Proteção subsidiária) da Lei do Asilo.

Daí que não haja qualquer facto duvidoso, cujo ónus da prova tenha de ser invertido ou suavizado.

C)

Na aceção do cit. artigo 33.º da Convenção de Genebra (8) (e do nosso artigo 47º/2 da atual Lei do Asilo), o princípio do “non-refoulement” apresenta-se como argumento e norma imperativa do direito internacional, sendo hoje entendido como uma forma de proteção dos direitos humanos para um tipo específico de pessoa, o refugiado, desde logo pela proibição de expulsar ou de repelir o estrangeiro para um lugar onde a sua vida ou liberdade estejam ameaçadas. É hoje verdadeiro direito consuetudinário internacional, ius cogens.

De facto, a razão de ser deste princípio relaciona-se com o medo de perseguição expresso na definição de refugiado do art. 1.º - A da Convenção de Genebra. Como tal, são a ameaça à vida ou à integridade física o que sustêm, ab initio, este princípio.

Ora, no presente caso, cuja factualidade foi atrás bem descrita, não existe o mínimo sinal de que o interessado regressará para um lugar onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.

Trata-se apenas, segundo a versão do recorrente, de uma altercação com um grupos de jovens, num país onde nunca teve problemas por causa de raça ou política.

Portanto, não se provou que haverá aqui um regresso a um país em que, por causa da raça, da religião, da nacionalidade, da filiação em certo grupo social ou de opiniões políticas, o ora interessado veja a sua vida ou liberdade ameaçadas.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com o disposto nos artigos 202º e 205º da Constituição, acordam os Juizes do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo do recorrente, que beneficia de “proteção jurídica” (artigo 25º/4 da Lei do Asilo).

(Acórdão processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator)

Lisboa, 12-2-2015

Paulo Pereira Gouveia

Nuno Coutinho

Carlos Araújo


(1) A decisão proferida pelo diretor nacional do SEF é suscetível de impugnação jurisdicional perante os tribunais administrativos, no prazo de quatro dias, com efeito suspensivo.
(2) 1 - É concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3.º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave.
2 - Para efeitos do número anterior, considera-se ofensa grave, nomeadamente:
a) A pena de morte ou execução;
b) A tortura ou pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu País de origem; ou
c) A ameaça grave contra a vida ou a integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo anterior.
(3) ARTIGO 33 Proibição de expulsar e de repelir
1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçados em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.
2. Contudo, o benefício da presente disposição não poderá ser invocado por um refugiado que haja razões sérias para considerar perigo para a segurança do país onde se encontra, ou que, tendo sido objeto de uma condenação definitiva por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do dito país.
(4) Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.
(5) Cfr. Ac. do T.C. nº 128/2009.
(6) Cfr. Acs. do T.C. nº 39/88, nº 186/90, nº 310/2000 e nº 491/2002 e nº 187/2013; Robert Alexy, A Theory of Constitutional Rights, trad., pp. 44 ss, 394-395 e 414.
(7) Cfr. Robert Alexy, A construção dos direitos fundamentais, in: Direito & Política, nº 6 (2014), pp. 38-48.
(8) ARTIGO 33º - Proibição de expulsar e de repelir
1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçados em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.

2. Contudo, o benefício da presente disposição não poderá ser invocado por um refugiado sobre quem haja razões sérias para considerar um perigo para a segurança do país onde se encontra, ou que, tendo sido objeto de uma condenação definitiva por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do dito país.