Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:432/18.8BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:12/16/2020
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:ART.º 114.º DO RGIT
NULIDADE DA DECISÃO DE APLICAÇÃO DE COIMA
ADMOESTAÇÃO
Sumário:
I. O art.º 114.º, n.º 5, al. a), do RGIT, tipifica como contraordenação a falta de entrega de imposto liquidado ou que devesse ter sido liquidado em fatura ou documento equivalente, não sendo elemento essencial do tipo que o imposto tenha sido recebido.

II. Os pressupostos da admoestação não se confundem com os pressupostos da atenuação especial da coima.

III. A aplicação de admoestação depende da verificação cumulativa de dois requisitos: a) reduzida gravidade da infração; b) reduzida gravidade da culpa do agente.

IV. A gravidade da infração a considerar, para efeitos de indagar da possibilidade de aplicar a sanção admonitória, deve ser aferida pela conjugação de todas as circunstâncias concretas do comportamento ilícito.

V. O diminuto grau de culpa remete para o concreto comportamento do agente.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:P.º n.º 432/18.8BELRA

Descritores

Art.º 114.º do RGIT

Nulidade da decisão de aplicação de coima

Admoestação

Sumário

[art.º 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil (CPC)]
I. O art.º 114.º, n.º 5, al. a), do RGIT, tipifica como contraordenação a falta de entrega de imposto liquidado ou que devesse ter sido liquidado em fatura ou documento equivalente, não sendo elemento essencial do tipo que o imposto tenha sido recebido.
II. Os pressupostos da admoestação não se confundem com os pressupostos da atenuação especial da coima.
III. A aplicação de admoestação depende da verificação cumulativa de dois requisitos: a) reduzida gravidade da infração; b) reduzida gravidade da culpa do agente.
IV. A gravidade da infração a considerar, para efeitos de indagar da possibilidade de aplicar a sanção admonitória, deve ser aferida pela conjugação de todas as circunstâncias concretas do comportamento ilícito.
V. O diminuto grau de culpa remete para o concreto comportamento do agente.


*

Acórdão


I. RELATÓRIO

T....., Lda (doravante Recorrente) veio apresentar recurso do despacho decisório proferido a 23.11.2018, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, no qual foi julgado improcedente o recurso por si apresentado, da decisão de aplicação de coima, proferida pelo Chefe do Serviço de Finanças (SF) do Cartaxo, no processo de contraordenação (PCO) a que foi atribuído, na fase administrativa, o n.º ......

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“I – A decisão em crise padece de erro de julgamento.

II – A sentença colocada em crise entende que, como o recebimento do IVA deixou de ser elemento do tipo legal da contra-ordenação, a decisão administrativa não padece de uma nulidade insuprível, reconhecendo até que há omissão, no despacho de fixação, da factualidade que descreva que na prestação tributária tenha sido deduzido o IVA.

III – Não é esse o entendimento da mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 1406/16, de 08/03/2017 e em que assumiu a função de relatora a Conselheira ISABEL MARQUES DA SILVA.

IV – Deste modo, a decisão em crise viola o art. 79.º, n.º 1, al. b) e 114.º, n.º 1, 2 e 5 do RGIT e, como tal, deve ser revogada.

V – Por outro lado, o Tribunal a quo enumera a posição da recorrente relativamente à admoestação da seguinte forma: atendendo: «…à sua débil situação financeira e à infração ter sido praticada a título de negligência, se mostram verificados os pressupostos para que a coima seja especialmente atenuada para não mais do que uma admoestação».

VI – Ora, o art. 32.º, n.º 2 do RGIT consagra a possibilidade de atenuação especial da coima, quando se preencham dois requisitos: i) a falta se encontrar regularizada e ii) o arguido assumir a sua responsabilidade, pedido de atenuação esse que não foi formulado pela recorrente.

VII – Por outro lado, a jurisprudência, perante a falta de consagração expressa da admoestação no RGIT, admite a sua aplicação no procedimento e processo contra-ordenacional.

VIII – Os requisitos para a admoestação são: i) a reduzida gravidade da infracção e ii) da culpa.

IX – Ou seja, a atenuação especial da coima e a admoestação constituem dois institutos de natureza diversa.

X – No caso concreto, o Tribunal a quo, apesar de referir que se encontra a analisar a possibilidade de admoestação refere-se concretamente à atenuação especial de coima, fazendo até menção do art. 32.º, n.º 2 do RGIT.

XI – Por isso e, salvo o devido respeito, a sentença erra na determinação da norma aplicável.

XII – Em bom rigor, as normas concretamente aplicáveis à apreciação do vício apontado são o art. 51.º do RGCO, subsidiariamente aplicável às contra-ordenações tributárias por força da alínea b) do artigo 3.º do RGIT e como tal, também por aqui, a decisão deve ser revogada.

XIII – Na verdade, a própria autoridade administrativa, no despacho de fixação da coima, sustenta que o ilícito foi praticado a título de negligência simples.

XIV – A contra-ordenação aqui em causa é nos termos do art. 23.º, n.º 2 do RGIT qualificada como simples.

XV – Bem como, a decisão judicial recorrida dá como provado que a sociedade arguida deve € 9 022, 00 a um fornecedor (8 dos factos assentes).

XVI – Concomitantemente, tem a arguida um crédito sobre: i) Teodoro Gomes Alho, S.A., no valor de € 48 833,07, reclamado e reconhecido no processo de insolvência n.º 1011/10.3TYLSB do 4º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa e ii) José A. Guardado & Filhos, Lda., no valor de € 238 480,90, reclamado e reconhecido no processo de insolvência n.º 3847/11.9TJCBR dos Juízos Cíveis de Coimbra (9 e 10 dos factos assentes).

XVII – Ou, dito de outro modo, constituem valores pecuniários emergentes de prestações de serviços que ainda não conseguiu receber

XIX – Por isso, verificam-se os requisitos para a admoestação, circunstância que impõe a revogação da decisão recorrida”.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Notificados a Fazenda Pública e o Ilustre Magistrado do Ministério Público (IMMP), nos termos e para os efeitos previstos nos art.ºs 411.º, n.ºs 5 e 6, e 413.º, ambos do Código de Processo Penal (CPP), aplicáveis ex vi art.º 41.º, n.º 1, do Regime Geral do Ilícito de mera ordenação social (RGCO), ex vi art.º 3.º, al. b), do Regime Geral das Infrações Tributária (RGIT), foi apresentada resposta pelo segundo, na qual foram formuladas as seguintes conclusões:

1. A douta decisão recorrida mostra-se bem fundamentada, não se alcançando a razão de ser e fundamento da omissão invocada pela recorrente.

2. Resultou provado na decisão recorrida e dos autos decorre que não se verificam nos autos os pressupostos legais da aplicação de sanção de admoestação, como é pretendido pela ora recorrente, e nem tão pouco os requisitos da atenuação especial da coima.

3. A decisão de aplicação da coima, sob a epígrafe «Descrição Sumária dos Factos», consta que a infracção) reporta-se à falta de pagamento do IVA dentro do prazo, com referência ao período de tributação, cujo prazo de pagamento voluntário terminou, tendo sido instaurado processo de cobrança executiva no serviço de finanças, como decorre do probatório.

4. Sendo certo que quer da decisão administrativa quer da decisão judicial ora impugnada consta que a arguida, ora recorrente, satisfazia o requisito de “prática frequente” de factos como os subjacentes aos presentes autos o que inviabiliza que o Tribunal a quo pudesse admoestar ou atenuar a sanção de modo especial, como foi mencionado na motivação supra.

5. E sob a epígrafe «Normas Infringidas e Punitivas», consta a indicação de que as «Normas Infringidas» são os arts. 27.°, n.° 1, e 41.°, n.° 1, al. A), do CIVA, e que as «Normas Punitivas» são os arts. 26.°, n.° 4, e 114.°, n.°s 2 e 5 do CIVA. Medida da Coima e respectivo Despacho …sendo devidamente fundamentada a aplicação do montante referido, a título de Coima (artigos 114.º n.º2, n.º5 al.a) e 26.º do RGIT, com respeito pelos limites do artigo 26.º do mesmo diploma legal, sendo ainda devidas custas.

6. A decisão de aplicação da coima em análise cumpre assim com o disposto no art 79.°, n.° 1, al. b), do RGIT.

7. Não se verificando pois a nulidade invocada pela recorrente relativamente à decisão administrativa.

8. Preenche assim o tipo legal da infracção em causa a conduta da ora recorrente de falta de entrega da prestação tributária”.

Foram os autos remetidos ao Supremo Tribunal Administrativo (STA), nos quais, por Acórdão de 17.06.2020, o mesmo se declarou incompetente em razão da hierarquia, ordenando a sua remessa a este TCAS.

O IMMP neste TCAS pronunciou-se, no sentido já plasmado pelo IMMP do TAF de Leiria na sua resposta.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, nada tendo sido dito.

Colhidos os vistos legais vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:
a) Verifica-se erro de julgamento, dado ocorrer nulidade insuprível da decisão de aplicação de coima?
b) Verifica-se erro de julgamento, por se reunirem os pressupostos para aplicação de admoestação?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

1. Em 25.01.2018, foi levantado auto de notícia, do qual aqui se recolhe por excerto parte do seu teor, que é o seguinte [fls. 4 processo físico]: “(…)

(…)”

2. Tendo por base o auto de notícia referido no ponto anterior, foi autuado o processo de contraordenação n.º ..... [fls. 3 processo físico].

3. Foi remetida comunicação à Recorrente nos mesmos autos de contraordenação, com a designação “NOTIFICAÇÃO PARA APRESENTAÇÃO DE DEFESA OU PAGAMENTO ANTECIPADO DA COIMA( ART.º 70 (…)RGIT” que apresenta, além do mais, o seguinte teor [fls. 6 processo físico]:“(…)

(…)”

4. Em 18.02.2018, foi proferida “DECISÃO DE FIXAÇÃO DE COIMA” que se considera integralmente reproduzida e da qual consta, além do mais, o seguinte [fls. 9-10, processo físico]: “(…)

(…)”

5. Em 28.02.2018, foi recebido pela Recorrente o ofício de “NOTIFICAÇÃO ART. 79.º, N.º 2 RGIT”, que se considera integralmente reproduzido [fls. 11-12 processo físico].

6. Em 20.03.2016 foi registada a entrada do recurso da decisão que aplica a coima no Serviço de Finanças do Cartaxo [fls. 13 processo físico].

Mais se provou que,

7. O IVA respeitante ao período de 2017/11, no montante de € 5.268,89, não foi pago, tendo sido instaurado o processo de execução n.º ..... [fls. 28-29 do processo físico].

8. Em 28.07.2013 venceu-se a factura emitida em 29.05.2013, pela C..... Lda. à ora Recorrente, no valor de 9.022,00, com IVA incluído, que esta não pagou [fls. 20 processo físico].

9. A Recorrente tem sobre a empresa Teodoro Gomes Alho, SA um crédito no valor de € 48.833,07, reclamado e reconhecido no Processo de insolvência 1011/10.3TYLSB, do Tribunal do Comércio de Lisboa, 4.º Juízo [fls. 21 processo físico].

10.A Recorrente tem sobre a empresa José A. Guardado Carvalho & Filhos, Lda., um crédito no valor de € 238.480,9, reclamado e reconhecido no Processo de insolvência 3847/11.9TJCBR, dos Juízos Cíveis de Coimbra [fls. 22 processo físico].

11.A Recorrente reclamou sobre a empresa Rosas Construtores, SA, um crédito no valor de € 157.411,20, no Processo Especial de Revitalização 971/14.0T2AVR, da Comarca do Baixo Vouga, Juízo de Comércio [fls. 23-25 processo físico]”.

II.B. Refere-se ainda no despacho decisório recorrido:

“Não existem outros factos, provados ou não provados, com relevo para a decisão”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“O tribunal julgou provada a matéria de facto, com base na análise da prova documental.

A prova documental relevante para a convicção formada é a concretamente identificada junto a cada um dos pontos do probatório. No que respeita ao ponto 7, o mesmo decorre de assim ter sido informado pelo serviço de finanças e de a Recorrente nada ter invocado relativamente ao pagamento da prestação tributária que deu origem à instauração do processo de contraordenação”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento, quanto à nulidade insuprível

Considera, desde logo, a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que se verifica nulidade insuprível da decisão administrativa recorrida, dado que desta nada consta quanto ao recebimento do IVA.

As nulidades insupríveis, em processo de contraordenação tributário, são de conhecimento oficioso (art.º 63.º, n.º 5, do RGIT) e o seu conhecimento prevalece sobre as demais questões invocadas.

De acordo com o art.º 63.º, n.º 1, do RGIT:

“1 - Constituem nulidades insupríveis no processo de contraordenação tributário:

a) O levantamento do auto de notícia por funcionário sem competência;

b) A falta de assinatura do autuante e de menção de algum elemento essencial da infração;

c) A falta de notificação do despacho para audição e apresentação de defesa;

d) A falta dos requisitos legais da decisão de aplicação das coimas, incluindo a notificação do arguido”.

No tocante aos requisitos legais da decisão de aplicação de coima, há que atentar no disposto no art.º 79.º, n.º 1, do RGIT, nos termos do qual:

“1 - A decisão que aplica a coima contém:

a) A identificação do infrator e eventuais comparticipantes;

b) A descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas;

c) A coima e sanções acessórias, com indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação;

d) A indicação de que vigora o princípio da proibição da reformatio in pejus, sem prejuízo da possibilidade de agravamento da coima, sempre que a situação económica e financeira do infrator tiver entretanto melhorado de forma sensível;

e) A indicação do destino das mercadorias apreendidas;

f) A condenação em custas”.

Assim, determina esta disposição legal, na sua al. b), que a decisão que aplica a coima deve conter a descrição sumária dos factos e a indicação das normas violadas e punitivas.

A decisão administrativa, não tendo de conter a profundidade de uma sentença, tem, no entanto, de ser suficientemente fundamentada e de forma expressa, não sendo admissível a fundamentação por remissão, por exemplo, para o auto de notícia.

As exigências de fundamentação consideram-se suficientes quando seja possível ao infrator exercer o seu direito de defesa, permitindo-lhe apreender os factos que lhe são imputados.

Como referido por Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos[1], “… [a] «descrição sumária» referida naquele art. 79.º, nº 1, al . b), não exige «a enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal», que é exigida pelo art. 374.º, n.º 2, do CPP para as sentenças proferidas em processo criminal. // Trata-se, neste art. 79.º, n.º 1, al. b), de estabelecer um regime de menor solenidade para as decisões de aplicação de coimas comparativamente com as sentenças criminais, regime esse justificável pela menor gravidade das sanções contra-ordenacionais. // O que exige aquela al. b) do n.º 1 do art. 79.º, interpretada à luz das garantias do direito de defesa, constitucionalmente assegurado (art . 32.º, n.º 10, da CRP) é que a descrição factual que consta da decisão de aplicação de coima seja suficiente para permitir ao arguido aperceber-se dos factos que lhe são imputados e poder, com base nessa percepção, defender-se adequadamente…”.

Por outro lado, nos termos do art.º 114.º do RGIT:

“1 - A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstratamente estabelecido.

2 - Se a conduta prevista no número anterior for imputável a título de negligência, e ainda que o período da não entrega ultrapasse os 90 dias, será aplicável coima variável entre 15 % e metade do imposto em falta, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstratamente estabelecido.

(…) 5 - Para efeitos contraordenacionais são puníveis como falta de entrega da prestação tributária:

a) A falta de liquidação, liquidação inferior à devida ou liquidação indevida de imposto em fatura ou documento equivalente, a falta de entrega, total ou parcial, ao credor tributário do imposto devido que tenha sido liquidado ou que devesse ter sido liquidado em fatura ou documento equivalente, ou a sua menção, dedução ou retificação sem observância dos termos legais”.

Assim, esta disposição legal expressamente equipara “a falta de liquidação, liquidação inferior à devida ou liquidação indevida de imposto em fatura ou documento equivalente, a falta de entrega, total ou parcial, ao credor tributário do imposto devido que tenha sido liquidado ou que devesse ter sido liquidado em fatura ou documento equivalente” a “falta de entrega da prestação tributária”, ao contrário do que sucedia na primitiva redação do art.º 114.º do RGIT.

Com efeito, antes da alteração ao RGIT pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, era entendimento jurisprudencial unânime que uma situação fática como a dos autos (entrega de declaração periódica de IVA desacompanhada do respetivo meio de pagamento) não preenchia o tipo legal previsto no art.º 114.º do RGIT[2].

Já atualmente, a redação do art.º 114.º, n.º 5, al. a), do RGIT, em vigor tipifica como contraordenação a falta de entrega de imposto liquidado ou que devesse ter sido liquidado em fatura ou documento equivalente, não sendo elemento essencial do tipo que o imposto tenha sido recebido.

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20.04.2016 (Processo: 0156/16), “[c]omparando a letra dos dois preceitos, haverá de se concluir que de facto se verificou um alargamento da previsão legal, de molde a abarcar todas as condutas omissivas da obrigação tributária, independentemente do recebimento do imposto por parte do adquirente dos bens ou serviços”.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

In casu, como resulta da decisão de aplicação de coima, a mesma foi aplicada considerando como normas punitivas os art.ºs 114.º, n.ºs 2 e 5, al. a), e 26.º, n.º 4, do RGIT.

Não é aqui, pois, aplicável a jurisprudência mencionada nas conclusões da Recorrente, situação onde não foi feita qualquer menção ao art.º 114.º, n.º 5, do RGIT, o que, como vimos, não sucede in casu.

Portanto, analisando a decisão administrativa recorrida e considerando que a mesma foi proferida ao abrigo do art.º 114.º, n.ºs 2 e 5, al. a), do RGIT, decorre que, ao contrário do defendido pela Recorrente, a mesma não padece da nulidade que lhe vem assacada, porquanto, tal como refere o Tribunal a quo, não é elemento do tipo contraordenacional nem a dedução de IVA nem sequer o efetivo recebimento do imposto.

Como tal, não assiste razão à Recorrente nesta parte.

III.B. Do erro de julgamento, quanto à aplicação de admoestação

Considera, por outro lado, a Recorrente que padece a decisão em crise de erro de julgamento, reunindo-se os pressupostos para aplicação de pena de admoestação, atento o disposto no regime geral das contraordenações, sendo que a análise efetuada pelo Tribunal a quo foi apenas sob a perspetiva da atenuação especial.

In casu, o Tribunal a quo, para efeitos de apreciação do alegado em termos de admoestação, limitou-se a analisar os pressupostos para efeitos de atenuação especial, previstos no art.º 32.º do RGIT, institutos que, como refere a Recorrente, se revelam distintos.

Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20.04.2020 (Processo: 03078/15.9BESNT), cuja doutrina, apesar de atinente ao preenchimento dos requisitos relativos à dispensa de aplicação de coima, se considera ora transponível:

“[N]em a sanção da admoestação equivale à dispensa de coima nem os requisitos da sua aplicação são os do artigo 32.º citado.

(…) E os requisitos da sanção de admoestação não são os do artigo 32.º citado, porque estão previstos no artigo 51.º do RGCO. (…).

Assim sendo, não faz sentido remeter, como faz a Recorrente, para os requisitos da dispensa da pena contemplados no referido artigo 32.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, incluindo a inexistência de prejuízo efectivo, que não consta dos requisitos da sanção de admoestação previstos no artigo 51.º do RGCO”.

Assim, para efeitos de aplicação de sanção de admoestação, face à ausência de previsão expressa no RGIT, há que apelar ao regime constante do RGCO a este propósito, por força da remissão constante do art.º 3.º, al. b), do RGIT.

Nos termos do art.º 51.º do RGCO:

“1 - Quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”.

Portanto, deste normativo decorre que a prolação de uma admoestação depende da verificação cumulativa de dois requisitos:
a) Reduzida gravidade da infração;
b) Reduzida gravidade da culpa do agente.

Como resulta da decisão sob escrutínio, a Recorrente incorreu na prática de contraordenação subsumível aos n.ºs 2 e 5, al. a), do art.º 114.º do RGIT.

Quanto à gravidade da infração, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.10.2018 (Processo: 0800/14.4BEVIS 0560/18):

“A gravidade da infracção a considerar para efeitos de indagar da possibilidade de aplicar a sanção admonitória deve ser aferida pela conjugação de todas as circunstâncias concretas do comportamento ilícito, não podendo considerar-se essa possibilidade inelutavelmente arredada pela classificação como contra-ordenação grave prevista no art. 23.º do RGIT, a qual terá como único efeito autorizar a aplicação de sanções acessórias (cfr. art. 28.º, n.º 1, do RGIT).”

“O juízo sobre a gravidade da infracção para esses efeitos deverá ser feito casuisticamente, circunstâncias concretas do comportamento ilícito, e não em função da qualificação abstracta da gravidade da infracção” [Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 31.10.2019 (Processo: 1774/15.0BEALM)].

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.10.2018 (Processo: 0800/14.4BEVIS 0560/18):

“Acresce que o critério do art. 23.º do RGIT, exclusivamente determinado em função do montante da coima, não se nos afigura ajustado quando erigido em único critério para medir a antijuricidade do comportamento e, assim, aferir da “gravidade da infracção” prevista no n.º 1 do art. 51.º do RGCO”.

Quanto ao diminuto grau de culpa, remete-nos para o comportamento do agente, cuja atuação reflita, desde logo, que a aplicação de uma coima se afigura como desproporcional ou excessiva.

Ora, consideramos, in casu, não estarem reunidos os pressupostos para aplicação de uma admoestação.

Com efeito, da factualidade alegada e assente não decorre que a conduta de não entrega do IVA liquidado tenha tido implícito um contexto que funde um juízo de censurabilidade diminuto.

Desde logo, estamos perante IVA, imposto repercutido em terceiros e não entregue nos cofres do Estado no prazo legal, situação que reflete uma especial censurabilidade justamente pela mecânica deste imposto, que faz com que caiba a quem o liquida a terceiros a obrigação de o fazer chegar aos cofres do Estado.

Nas palavras de Saldanha Sanches[3]:

“[N]um imposto como o IVA (…) a liquidação e a cobrança [são] (…) confiadas ao particular [, o que] implica sempre um fluxo financeiro na empresa (…).

[A] existência desse fluxo financeiro cria um forte indício de comportamento censurável que só em casos muito particulares pode ser objecto de uma demonstração de ausência de culpa por parte dos particulares. É uma demonstração difícil, mas não impossível, uma vez que a empresa não é o fiel depositário da quantia cobrada. Embora tenha o dever de entregar as quantias cobradas na aplicação do IVA no prazo previsto pela lei, a empresa pode considerá-las como uma receita normal, cabendo-lhe a devida diligência para que o pagamento seja feito. Pode haver justificação, pela verificação de um facto imprevisto e razoavelmente imprevisível, para que a entrega se não tenha verificado”.

Ora, nada é dito pela Recorrente que afaste o juízo de censurabilidade inerente à entrega de uma receita em que a mesma se configura como mera “intermediária” entre o Estado e quem suporta efetivamente o imposto.

Por outro lado, como se verifica pela decisão de aplicação de coima, a prática desta infração tem-se revelado reiterada.

Ademais, a verdade é que o IVA em causa não foi entregue nos cofres do Estado, estando a ser exigido coercivamente, como resulta da factualidade assente (cfr. facto 7.).

Chama-se a este propósito à colação o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 17.01.2019 (Processo: 00557/12.3BEAVR), cuja doutrina, não obstante respeitar a contraordenação atinente a retenções na fonte de IRS, é perfeitamente transponível in casu. Aí se refere:

“Da fundamentação da decisão administrativa consta que é frequente a Recorrente praticar este tipo de infracções, logo, não estamos perante uma infracção com carácter acidental, que nunca antes sucedeu, mas confrontados com repetidas infracções ao longo dos anos.

Acentua a Recorrente que a sua culpa é manifestamente diminuta, tendo a infracção em causa sido praticada, conforme resulta da decisão de aplicação da coima, com mera “negligência simples”. No entanto, no caso especial dos impostos retidos na fonte (artigo 98.º do Código de IRS), a falta da sua entrega ou a entrega fora do prazo ganha particular gravidade, na medida em que se trata de impostos que traduzem um fluxo monetário na empresa que, ao não serem entregues nos cofres do Estado, estão a ser «desviados» do seu destino legal único, em proveito de «objectivos» alheios à sua finalidade. Nestes termos, para que este tribunal pudesse avaliar, em concreto, se realmente a culpa da Recorrente foi diminuta como alega, deveria ter invocado factos demonstrativos da mesma (e provado), uma vez que lhe cabe a devida diligência para que o pagamento seja feito atempadamente. Pode haver justificação, pela verificação de um facto imprevisto e razoavelmente imprevisível, para que a entrega se não tenha verificado. Mas tal razão para o atraso de um mês, que efectivamente se verificou, não foi alegada nem provada, impossibilitando a sindicância plena por parte deste tribunal”.

É certo que ficou provado que a Recorrente tem dívidas e tem créditos por pagar. No entanto, tal não é suficiente para se concluir pela diminuta censurabilidade da sua conduta, nos termos já explanados, nada tendo sido alegado nem provado que permita concluir nos termos pretendidos e que justifique que o IVA nunca tenha sido voluntariamente pago e esteja em cobrança coerciva.

Logo, não se reúnem os requisitos para a aplicação de admoestação.

Como tal, considerando a presente fundamentação, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;
b) Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 16 de dezembro de 2020


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha

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[1] Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias, 4.ª Ed., Vislis, Lisboa, 2010, pp. 517 a 519.
[2] Cfr. exemplificativamente o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.10.2015 (Processo: 01175/15) e o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20.04.2016 (Processo: 0156/16). V. ainda, a este respeito, para uma análise dos dois regimes, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 28.01.2010 – Processo: 01163/06.7BEPRT.
[3] Manual de Direito Fiscal, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 274.