Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1740/18.3BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:02/21/2019
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:ASILO
RETOMA A CARGO
EXCEÇÕES
Sumário:
I - Aceite a responsabilidade pela apreciação do pedido de proteção internacional do cidadão estrangeiro pelas autoridades de Itália, à Entidade portuguesa demandada apenas compete, proferir decisão de inadmissibilidade do pedido e, após notificação, assegurar a execução da transferência para esse país [cfr. o disposto nos artigos 37º, nº 2 e 38º da Lei do Asilo].
II - Só não seria assim se, tal como resulta do §2º do nº 2 do artigo 3º do Regulamento nº 604/2013, existissem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes no Estado-Membro, inicialmente designado responsável, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
III - O Tribunal de Justiça da U.E. tem reconhecido a possibilidade de análise dos pedidos por outros Estados-Membros, em conformidade com regras de solidariedade [cf. art. 80º do Tratado], mas o exercício de tal opção inscreve-se numa área de “discricionariedade” administrativa, ou mesmo de opção política, que, por natureza da separação de poderes, escapa ao controlo jurisdicional.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

K....., m.i. nos autos, intentou ação administrativa impugnatória urgente contra MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

A pretensão formulada ao Tribunal Administrativo de Círculo foi a seguinte:

- Anulação da decisão do Sr. Diretor Nacional do SEF que transferiu a apreciação do seu pedido de asilo para o Estado Italiano e negou-lhe a oportunidade de o mesmo ser apreciado em Portugal e, em consequência, que seja apreciado o seu pedido em território nacional.

Após a discussão da causa, o Tribunal Administrativo de Círculo decidiu absolver o Réu dos pedidos.

*

Inconformado com tal decisão, o autor interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1) A 13 de Agosto de 2018 o ora recorrente apresentou um pedido de proteção internacional ao abrigo do art. 13 n 1 da Lei 27/2008, de 30 de junho, atualizada pela Lei 26/2014, de 5 de maio, ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

2) A Lei de Asilo determina, no seu artigo 13, n 1, que o estrangeiro ou apátrida que entre em território nacional a fim de obter proteção internacional deve apresentar sem demora o seu pedido ao SEF ou a qualquer outra autoridade policial, podendo fazê-lo por escrito ou oralmente, sendo neste caso lavrado auto.

3) O Regulamento (UE) 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013 (Regulamento Dublim III) é reflexo da SECA (Sistema Europeu Comum de Asilo) e assegura que ninguém será enviado para onde possa ser novamente perseguido, segundo o princípio da não repulsão.

4) Ora, embora a Itália não persiga o recorrente se ele for enviado para lá, vão enviá-lo de volta para o seu país de origem onde ele corre sério risco de vida.

5) Consideramos que, com base nesse risco de vida, o Estado português pode, e deve decidir analisar o pedido de proteção internacional, nos termos do art. 17º do Regulamento 604/2013, que derroga o art. 3º nº 1 do mesmo regulamento, transpondo que: ..." cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento. "

6) Isto é, poderá e deverá, no presente caso, o Estado Português decidir analisar o pedido de proteção internacional, mesmo que essa análise não seja da sua competência.

7) É, portanto, incompreensível para o recorrente como todas as portas lhe são fechadas e como o Estado português se nega a apreciar os fundamentos do seu pedido de proteção.

8) No espírito do Regulamento suprarreferido subjaz uma política comum de direito de asilo, que pretende estabelecer progressivamente um espaço de liberdade, de segurança e de justiça aberto às pessoas que, forçadas pelas circunstâncias, procuram legitimamente proteção na União.

9) O Tribunal a quo limitou-se a validar o procedimento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e isentou-se de fazer uma análise da situação concreta do recorrente.

10) O recorrente foi entrevistado pelo Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF no dia 12 de setembro do ano corrente quanto aos fundamentos do seu pedido de asilo, tendo desta entrevista resultado a informação de não admissão do mesmo por se enquadrar na alínea e) do artigo 19 da Lei 27/2008, de 30 de junho com as alterações introduzidas pela Lei 26/2014 de 5 de maio, o que muito se estranha.

11) A Guiné Conacri tem sido palco ao longo dos anos de casos de justiça com desfechos totalmente inaceitáveis para a comunidade internacional que defende o Princípio da Liberdade e que deveria ter na Justiça o seu garante máximo.

12) O recorrente reafirma que se por um lado voltar à Guiné Conacri a sua vida será curta, se voltar a Itália nunca terá meios para beneficiar de uma apreciação justa do seu pedido de asilo e poder contar a verdade dos factos.

13) E discorda o requerente que "Nada alegando o A., em concreto, que permita concluir pela existência desses motivos válidos para afastar o regime legal da retoma da apreciação do pedido de proteção internacional por outro Estado-membro, é de manter a decisão impugnada.

14) O Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras na sua fundamentação parece considerar que o pedido do recorrente assenta num receio subjetivo, parecendo que desconhecem completamente os princípios que regem a justiça em países como a Guiné Conacri, sem sequer ser ponderada a aplicação do princípio do benefício da dúvida, corolário do Direito de Asilo.

15) Até porque existe uma insuficiência de meios humanos para acompanhar, com o rigor exigível à Administração Pública, estes processos.

16) E discorda, o recorrente que "o pedido de proteção internacional seja inadmissível considerando que é legalmente enquadrável, ao abrigo do artigo 17.2 do Regulamento 604/2013, como já referido e explanado anteriormente.

17) Assim, o Estado português deve pautar a sua atuação pela seriedade não podendo, ou melhor não devendo transferir a responsabilidade da vida do recorrente para outro país sem aferir demoradamente a razão pela qual o mesmo não permaneceu lá.

18) O Tribunal recorrido demitiu-se de qualquer responsabilidade ou fundamentação da decisão como se a Vida do recorrente pudesse ou devesse estar sujeita a um procedimento automático.

19) Sendo que não se compreende a fundamentação da decisão de transferência do pedido de proteção internacional do ora recorrente pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e muito menos a sua confirmação na Sentença proferida que ora se recorre.

20) O procedimento de concessão de proteção internacional exige a análise de cada caso em concreto, com cariz humanitário, mas também deve ser aferido por uma Administração Pública responsável a coerência e as consequências de uma decisão de transferência.

21) Ao confirmar esta espécie de presunção de não apreciação - cuja possibilidade de ilisão é vedada ao recorrente - sem qualquer base legal, criada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o Tribunal a quo andou muito mal,

22) Pois dá força a uma decisão de um caso particular de pré-conceitos, ignorando a realidade vivida pelo recorrente.

23) Foi feita uma análise abstrata do pedido de proteção internacional do recorrente, desconsiderando por completo o caso em concreto.

24) Como configura um tratamento fundamentadamente desigual de cidadãos guiné na mesma situação.

25) O procedimento que tem sido adotado, e bem, pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras tem sido o de só decidir enquadrar ou não cada caso em concreto no âmbito da Lei de Asilo, após a análise das circunstâncias pessoais do requerente.

26) O Recorrente não consegue perceber por que razão, esse procedimento, que tem sido adotado e é o correto por se basear numa análise concreta de cada caso, não foi adotado no seu caso.

27) Tendo sido adotado, in casu, um procedimento que, salvo melhor opinião, incorreto, configura um tratamento in fundamentadamente desigual de cidadãos requerentes de proteção internacional na mesma situação, deveria o Tribunal recorrido apreciar esse mesmo procedimento.

28) Facto esse que não pode ser considerado despiciendo, nem ser deixado passar em branco, não obstante inserir-se no poder discricionário que é conferido à Administração na prossecução do interesse público.

29) Tal poder, enquanto tal, não deixa de ser sindicável nos seus aspetos vinculados, designadamente os relativos à forma, à competência, aos pressupostos de facto, à adequação ao fim prosseguido e aos limites internos ao exercício do poder discricionário,

30) Incluindo-se nestes últimos o respeito pelos princípios constitucionalmente previstos, como o da legalidade, da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da igualdade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, tal como decorre do preceituado no n 2 do artigo 266 da Constituição da República Portuguesa, bem como nos artigos 3 n 1, 4, 62 e 62A do Código de Procedimento Administrativo.

31) Atendendo ao facto de o princípio da igualdade, na sua vertente positiva, obrigar a Administração a tratar de modo igual situações iguais, apontando assim para o princípio da auto vinculação, «estritamente associado ao princípio da imparcialidade querendo-se significar com isso a exigência de as normas jurídicas dadoras de poderes discricionários à Administração serem concretizadas consistentemente segundo os mesmos critérios, as mesmas medidas e as mesmas condições a todos os particulares a quem venham a ser aplicadas e se encontrem em situação idêntica, ou seja, a exigência de «igualdade de tratamento dos interesses dos cidadãos através de um critério uniforme de prossecução de interesse público»,

32) E atendendo ainda ao facto de o desrespeito pelo princípio da igualdade configurar a violação do princípio da justiça, segundo o qual a Administração deve «pautar a sua atividade por certos critérios materiais ou de valor, constitucionalmente plasmados, como por exemplo (...) o princípio da igualdade (...)»,

33) Bem como ao facto de a observância do princípio da boa fé impedir que a Administração adote procedimentos divergentes dos usualmente adotados em situações idênticas, defraudando a confiança criada na contraparte pela sua atuação,

34) Não se pode deixar de concluir que, neste caso em concreto, os princípios da igualdade, da imparcialidade, da justiça e da boa fé não foram observados.

35) E, como tal caberia ao Tribunal a quo uma apreciação detalhada do caso em concreto e não uma decisão/transcrição dos procedimentos e despachos dos Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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Delimitação do objeto do recurso:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas; sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo. Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule - isto no sentido muito amplo utilizado no CPC - deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e as condições legalmente exigidos para o efeito.

Assim, as questões a resolver neste recurso - contra a decisão recorrida – são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido decidiu estar provada a seguinte factualidade:

1. K....., ora A., é natural da Guiné Conacri (cfr. doc. 1 junto à p.i.);

2. Em 13.8.2018, o ora A. formulou pedido de proteção internacional junto do Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF (cfr. doc. 3 junto à p.i. e de fls. 1 a 13 do p.a.);

3. Detetado um hit positivo no sistema EURODAC, com o “C…. ID IT….”, em 31.8.2018 o SEF efetuou um pedido de retoma a cargo do aqui A. às autoridades da Itália (cfr. de fls. 17 a 19 do p.a.);

4. Em 12.9.2018 o ora A. foi entrevistado pelo SEF no âmbito do processo de asilo nº.../2018 e do procedimento especial de admissibilidade com vista a determinar o Estado-membro responsável pela análise do seu pedido de proteção internacional, resultando da entrevista efetuada, designadamente, que:

-dos registos Eurodac verifica-se que passou por vários países europeus;

-saiu do seu país de origem em 22.11.2015;

-“(…) fui de carro para o Mali onde fiquei mais ou menos um mês e qualquer coisa.

-Depois fui para a Argélia de carro e fiquei lá cerca de um mês.

-Fui depois para a Líbia de carro e fiquei mais ou menos um mês e em seguida fui de barco com cerca de 80 pessoas para Itália.

-Fiquei três meses em Itália e depois fui para França, Nice de autocarro.

-Vim depois de autocarro para Portugal.”;

-onde chegou em 12.8.2018;

-não é titular de título de residência na União Europeia;

-“Em Itália obrigaram-me a dar impressões digitais e pedi asilo em França”;

-esse pedido foi recusado e não foi afastado para o seu país de origem;

-deram-lhe 7 dias para sair voluntariamente;

-precisa de proteção por razões religiosas, porque cresceu numa família muçulmana e mudou para a religião católica, após o que foi ameaçado de morte por um tio;

-foi bem acolhido pelo Estado português;

-quer ficar aqui, estudar para ter uma formação e ter uma nova vida (cfr. (cfr. doc. 4 junto à p.i. e de fls 22 a 30 do p.a.);

5. As autoridades italianas não responderam ao pedido de retoma do SEF, referido em 3.

6. Em 18.9.2018 foi proferida decisão pela Sra. Diretora Nacional Adjunta do SEF, “[d]e acordo com o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 19º-A e no nº 2 do artigo 37º, ambos da Lei nº 27/08, de 30 de Junho, alterada pela Lei nº 26/2014, de 05 de Maio, com base na Informação nº ....GAR/2018 do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, considero o pedido de proteção internacional apresentado pelo cidadão que se identificou como K........, nacional da Guiné, inadmissível. // Proceda-se à notificação do cidadão nos termos do artigo 37º nº 3 da Lei nº 27/08, de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei nº 26/2014, de 05 de Maio, e à sua transferência, nos termos do artigo 38º do mesmo diploma, para Itália, Estado membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional nos termos do Regulamento (EU) 604/2013 do Conselho, de 26 de Julho” (cfr. doc. 5 junto à p.i. e de fls. 39 do p.a.);

7. Da Informação referida na decisão que antecede extrai-se o seguinte: «(…) // Dos motivos invocados no pedido de transferência //. Aos 31-08-2018, o GAR apresentou um pedido de retoma a cargo às autoridades italianas, ao abrigo do artigo 18º, N 1 b), do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho. // Consultado o sistema EURODAC, foi detetado um Hit positivo com o “C… ID IT…”, inserido pela Itália. // Aos 17-09-2018, Portugal informou as autoridades italianas que ao abrigo do artigo 25º, N 1, do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho, tinha duas (2) semanas para se pronunciar sobre o nosso pedido. // As autoridades italianas não se pronunciaram dentro do prazo estabelecido no art.º 25º, nº 1, do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho, por isso, de acordo com o artigo 25º nº 2 do mesmo Regulamento, a falta de uma decisão equivale à aceitação do pedido. // Pelo exposto, propõe-se que Itália seja considerada o Estado responsável pela retoma a cargo, ao abrigo do artigo 25º, N 2 do Regulamento (CE) N. 604/2013 do Conselho de 26 de junho.” (cfr. o mesmo doc. 5 junto à p.i. e de fls. 37 a 38 do p.a.);

8. Em 20.9.2018 o aqui A. assinou a notificação da decisão referida no ponto 6. (cfr. doc. 5 junto à p.i. e de fls. 41 do p.a.)

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II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

São as seguintes as questões a resolver contra a decisão jurisdicional ora impugnada:

- Erro de julgamento de direito, (i) uma vez que o MAI poderia analisar o pedido do autor, apesar de não ser o Estado legalmente competente e (ii) uma vez que o TAC violou, tal como o SEF, os princípios gerais de direito da Administração Pública [da igualdade, da imparcialidade, da justiça e da boa-fé].

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Temos presente tudo o que já expusemos, bem como que existe uma correta, objetiva e verificável metodologia jurídica para decidir processos jurisdicionais [cf. os essenciais artigos 9º a 11º do CC; e Miguel Nogueira de Brito, Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., AAFDL Editora, Lisboa, 2018, capítulo I, nº 3, e capítulo III], no âmbito de um Direito positivado em consequência de opções político-legislativas e de opções político-valorativas, ambas sem natureza objetiva ou absoluta.

Passemos, agora, à análise do recurso de apelação.

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A)

Nos termos do nº 1 do artigo 37º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, a Lei do Asilo, “Quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, o SEF solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo”.

Os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro constam do Regulamento (CE) nº 604/2013, do Conselho de 24 de julho – Regulamento de Dublim III, na esteira do anteriormente previsto no Regulamento nº 343/2003, do Conselho, de 18 de fevereiro – Regulamento de Dublim II.

O referido Regulamento estabelece como princípio que só um Estado-Membro é responsável pela análise de um pedido de asilo, o que tem como objetivo (i) evitar que os requerentes de asilo sejam enviados de um país para outro, bem como (ii) evitar o abuso do sistema através da apresentação de vários pedidos de asilo por uma única pessoa em vários Estados-Membros [cfr. o previsto no artigo 3º].

Para atingir tal desiderato, são definidos critérios objetivos hierarquizados que permitem determinar, para cada pedido de asilo, o Estado responsável.

Assim, o regime da tomada e retomada a cargo consta do Capítulo III do referido Regulamento.

No que ao presente caso interessa, dispõe a alínea b) do nº 1 do artigo 18º que o Estado-membro responsável é obrigado a “retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23º, 24º, 25º e 29º, o requerente cujo pedido esteja a ser analisado e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro, ou que se encontre no território de outro Estado-Membro sem possuir um título de residência.”

Nos termos do artigo 25º do referido Regulamento a ausência de resposta, no prazo de duas semanas, a um pedido de retoma equivale à sua aceitação e “(…) tem como consequência a obrigação de retomar a pessoa em causa a cargo, incluindo a obrigação de tomar providências adequadas para a sua chegada.”

Aceite a responsabilidade pela apreciação do pedido de proteção internacional do aqui A. pelas autoridades da Itália, à Entidade demandada apenas competia, como fez, proferir decisão de inadmissibilidade do pedido e após notificação, assegurar a execução da sua transferência para esse país [cfr. o disposto nos artigos 37º, nº 2 e 38º da Lei do Asilo].

Só não seria assim se, tal como resulta do §2º do nº 2 do artigo 3º do Regulamento nº 604/2013, existissem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes no Estado-Membro, inicialmente designado responsável, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Ora, tais falhas não estão demonstradas nos autos, sendo que não vem sequer questionado no recurso que o tribunal a quo tenha omitido os seus poderes de instrução da causa.

Aliás, o Tribunal de Justiça da U.E. tem reconhecido a possibilidade de análise dos pedidos por outros Estados-Membros, em conformidade com regras de solidariedade [cf. art. 80º do Tratado], mas o exercício de tal opção inscreve-se numa área [discricionariedade administrativa ou mesmo de opção política] que escapa ao controlo jurisdicional.

Por outro lado, e sendo possível que o recorrente se baseie na atual situação política italiana sobre migrações, sempre se diria que uma coisa são declarações políticas ou governamentais num Estado democrático de Direito como Itália, eventualmente contra a imigração, outra coisa é o cumprimento por esse país do princípio da legalidade interna e europeia relativo ao asilo.

Pelo que não existem motivos sérios para Portugal excecionar o que resulta das citadas normas gerais imperativas.

Note-se que o objeto do recurso, na parte em que pretende que seja Portugal a analisar o pedido por aplicação do art. 17º-1 do Regulamento de Dublin cit., não se fundamenta na existência de condições desumanas ou degradantes e que tal venha a ocorrer com a transferência; antes se funda na eventual ofensa do princípio da não repulsão, mas sem a mínima justificação real.

B)

Quanto à alegada violação dos principios jurídico-administrativos da igualdade, da imparcialidade, da justiça e da boa-fé por parte do MAI, é notório que a factualidade provada atrás descrita indica o oposto.

Com efeito, não se descortinam nos cits. factos quaisquer elementos que indiciem que, aqui, o ocorrido cumprimento do princípio da legalidade pelo SEF implicou negativamente com os cits. princípios gerais; até porque, logicamente, havendo como há no caso presente legalidade e vinculatividade da A.P., tais outros princípios administrativos irrelevam; a A.P. não tem margem de livre decisão administrativa.

*

III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, os juizes do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em negar provimento ao recurso.

Sem custas.

Lisboa, 21-02-2019


Paulo H. Pereira Gouveia [Relator]

Pedro Marchão Marques

Alda Nunes



(1) Sendo que as fontes imediatas do Direito português atual são as que decorrem dos artigos 8º e 112º da CRP, isto é, as leis no sentido do artigo 1º-2 do CC [todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais ou supraestaduais competentes, onde se incluem os regulamentos de administração pública]. E, nem as decisões dos juizes, nem a “opinio iuris” ou dogmática jurídica, nem o costume “contra-legem”, são fontes internas de Direito na ordem jurídica portuguesa atual.

(2) Isto, porém, num contexto (i) de uma pluralidade não harmonizada de preceitos normativos sobre a mesma matéria, cada vez mais frequente, e (ii) de uma CRP doutrinária e politicamente desfigurada para uma constituição “light” ou flexível, em Isto, porém, num contexto (i) de uma pluralidade não harmonizada de preceitos normativos sobre a mesma matéria, cada vez mais frequente, e (ii) de uma CRP doutrinária e politicamente desfigurada para uma constituição “light” ou flexível, em da detrimento segurança jurídica e de uma liberdade confiável. E em que a Administração Pública é, talvez paradoxalmente, cada vez mais uma gestora de interesses diferentes, privados e ou públicos, para prosseguir o interesse coletivo.