Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13617/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:10/06/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:PERICULUM IN MORA
Sumário:I - O requisito básico para um tribunal adotar ou decretar uma providência cautelar, a alma da tutela cautelar, é o periculum in mora, ou seja, o fundado receio (i) da constituição de uma situação de facto consumado ou (ii) da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal.

II – Tal perigo na demora do processo principal assenta sempre em matéria de facto concreta a alegar pelo requerente, cabendo-lhe o ónus da prova.

III – Estando em causa a suspensão da eficácia de um ato administrativo que determina o pagamento ou devolução de certa quantia em dinheiro, não basta ao requerente invocar e provar os rendimentos mensais que tem, se não está invocado que o requerente não tem dinheiro para fazer aquele pagamento ou devolução.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

LEONEL ………………., NIF …………….., com residência na ……………, n.º 26, ………….. ……………, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo do FUNCHAL processo cautelar contra REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA – Assembleia Legislativa.

Pediu o seguinte:

- Ser provisoriamente ordenada a suspensão de qualquer operação executória relativamente ao pagamento efetuado pela CGA, no montante de € 25.605,54 ou qualquer outro que venha a ser fixado por este Tribunal.

Por despacho de 12-7-2016, o referido tribunal decidiu rejeitar liminarmente o r.i.

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Inconformado com tal decisão, o requerente interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1. Segundo a decisão recorrida, nos presentes autos achar-se-á apenas em causa a consideração dos rendimentos do recorrente face à quantia cujo pagamento imediato lhe foi exigido.

2. Porém, a apreciação do peticionado, para alem desse fator, não pode abstrair totalmente da existência ou inexistência do "fumus boni iuris".

3. Assim como não pode ignorar os impactos da providência, caso seja decretada.

4. Estando em causa, sobretudo, juízos de oportunidade, todos estes fatores deverão ser vistos conjugadamente e não em total e completa separação, como sucede com a decisão recorrida.

5. Faz até parte do senso comum que dificilmente disporá de vinte cinco mil euros quem viva exclusivamente do seu normal salário.

6. No presente momento, o recorrente aufere duas reformas, no total de €1.895,73 mensais, mas, só por si, tal não pode levar à conclusão de que lhe seja possível pagar imediatamente os aludidos €25.605,04.

7. Estando sujeito a que lhe seja instaurada execução fiscal e subsequente penhora.

8. Situação que lhe provocaria danos por demais óbvios, podendo até chegar à perda da sua casa de habitação.

9. Não sendo um dano desse tipo substituível por qualquer compensação monetária, também não o são todas as preocupações de quem se sente numa situação financeira sem saída.

10. E se sente injustiçado por uma situação a que não deu causa e que se afigura como sendo flagrantemente ilegal, numa substancial parte do seu montante.

11. Tendo a decisão recorrida feito errada interpretação do disposto no art. 120 do atual CPTA.

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O M.P., através do seu digno representante junto deste tribunal, foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

Para decidir, este tribunal (1) superior tem omnipresente a nossa Constituição como síntese da ideia-valor de Direito vigente, cujo modelo político é de natureza ético-humanista e cujo modelo económico é o da economia social de mercado, amparado no Direito.

Consideramos as três dimensões do Direito como ciência do conhecimento prático (por referência à ação humana e ao dever-ser inspirador das leis), quais sejam, (i) a dimensão factual social (que influencia muito e continuamente o direito legislado através das janelas de um sistema jurídico uno e real), (ii) a dimensão ética e seus princípios práticos (que influenciam continuamente o direito também através das janelas do sistema jurídico) e, a jusante, (iii) a dimensão normativa e seus princípios prático-jurídicos.

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Cabe, ainda introdutoriamente, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões (de facto (2) e ou de direito) que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

As QUESTÕES A RESOLVER neste recurso são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

Remete-se para a factualidade provada constante do despacho recorrido (cfr. artigo 663º/6 do Código de Processo Civil).

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Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO: O DIREITO

Tudo visto, cumpre decidir.

Com efeito, aqui chegados, há condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional do agir da administração pública), ter presentes, inter alia, os seguintes princípios jurídicos fundamentais decorrentes do superprincípio geral da justiça: (i) juridicidade e legalidade administrativa, ao serviço do bem comum; (ii) igualdade de tratamento material axiológico de todas as pessoas humanas; (iii) certeza e segurança jurídicas (3) (que obrigam à obediência rigorosa ao imposto ao juiz pelo artigo 9º do Código Civil); e (iv) tutela jurisdicional efetiva.

DO ERRO DE JULGAMENTO QUANTO A NÃO ESTAR INVOCADO DEVIDAMENTE O PERICULUM IN MORA

O tribunal a quo aplicou a al. d) do nº 2 do artigo 116º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Considerou que o r.i. é meramente conclusivo e que não contém factos concretos que, se provados, alicercem o periculum in mora a que se refere o artigo 120º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos/2015.

O recorrente discorda do despacho pelos motivos constantes das conclusões atrás transcritas.

O recorrente não invoca a violação do artigo 114º/3/5 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Vejamos.

O que consta do r.i., a este propósito, é em síntese o seguinte:

-A AL/RAM determinou que o requerente lhe devolvesse cerca de 25000 euros, que lhe havia pago (ilegalmente, segundo aquela); é uma alegação de um facto;

-O requerente, viúvo, aufere cerca de 1890 euros por mês, não tendo outras fontes de rendimento (vd., inter alia, o artigo 12º do r.i.); é uma alegação de dois factos;

-Pode vir a ser objeto de execução fiscal; trata-se de uma correta conclusão jurídica.

Nada mais de concreto invocou o requerente.

Como se sabe, o 1º requisito para um tribunal adotar ou decretar uma providência cautelar é o periculum in mora, ou seja, o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal (cfr. os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 15-9-2011, Processo nº 7774/11, e de 10-11-2011, Processo nº 8123/11).

É ele o fundamento nuclear, a “alma”, da urgência dos processos cautelares.

Ora, embora o Tribunal Administrativo de Círculo tenha seguido outro caminho argumentativo, a verdade é que aquela factualidade concreta alegada não é suficiente para fundar o periculum in mora.

Com efeito, não está invocado que o requerente não tem dinheiro para fazer aquele pagamento ou devolução. O que seria facto muito relevante.

Embora o Tribunal Administrativo de Círculo tenha ignorado que o requerente alegou que não tem outras fontes de rendimento além das atuais (que lhe dão 1890 euros mensais), a ausência de invocação de que o requerente não tem dinheiro para fazer a devolução, acompanhada da mera conclusão de que os 1890 euros são essenciais para a subsistência do requerente, implica aquilo que o Tribunal Administrativo de Círculo concluiu: não existe no r.i. factualidade concreta que, se provada, permita considerar preenchida uma das seguintes situações:

- Fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado

- Fundado receio da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal.

Concluindo: não é pelo facto de o requerente auferir 1890 euros mensais atualmente que ele ficará na miséria se tiver de devolver os cits. 25000 euros, ou se for objeto da eventual (!) execução fiscal respetiva (a qual também tem garantias a favor dos cidadãos); basta pensar que o requerente pode ter poupanças no valor de 25000 euros, por exemplo.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os Juizes Desembargadores da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, julgando-o improcedente.

Custas a cargo do recorrente.

Lisboa, 6-10-2016

(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(J. Gomes Correia)