Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:318/19.9BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:11/07/2019
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:DESIGNAÇÃO DE INSTRUTOR EM PROCESSO DISCIPLINAR; PROVA DA INEXISTÊNCIA DE INSTRUTOR NO MUNICÍPIO.
Sumário:I. Sendo o ato de designação do instrutor do processo disciplinar praticado pelo Presidente da Câmara Municipal, para efeitos de determinação dos ditames previstos no artigo 208.º da LGTFP, importa atender quer ao pessoal que integra o quadro da respetiva Câmara Municipal, quer ao restante pessoal que integra o Município em questão, por ser este, o Município, a pessoa coletiva de direito público demandada na presente ação.

II. Na determinação dos funcionários que preencham os requisitos previstos no artigo 208.º da LGTFP importa considerar não apenas os funcionários da Câmara Municipal, mas também da respetiva Assembleia Municipal, segundo o disposto nos artigos 239.º e 250.º, ambos da CRP, por todos eles serem órgãos do Município.

Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
DECISÃO SUMÁRIA


Sob a epígrafe “Função do relator”, estatui o artigo 652.º, n.º 1, c) do CPC que o cabe ao relator, enquanto juiz a quem foi distribuído o processo, “Julgar sumariamente o objeto do recurso, nos termos previstos no artigo 656.º;”.

Em consonância, o artigo 656.º do CPC, sob titulado “Decisão liminar do objeto do recurso” dispõe que “Quando o relator entender que a questão decidir é simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, ou que o recurso manifestamente infundado, profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para as precedentes decisões de que se juntará cópia”.

Este preceito assume caráter inovatório, encontrando já no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329A/95 a seguinte justificação:

No que se reporta ao julgamento do recurso amplia-se muito significativamente o elenco das competências atribuídas ao relator, permitindo-lhe inclusivamente julgar singular e liminarmente o objecto do recurso nos casos de manifesta improcedência ou de o mesmo versar sobre questão simples e já repetidamente apreciada na jurisprudência. Pretende-se com tal faculdade dispensar a intervenção - na prática em muitos casos, puramente formal - da conferência na resolução de questões que podem perfeitamente ser decididas singularmente pelo relator, ficando os direitos das partes acautelados pela possibilidade de reclamarem para a conferência da decisão proferida pelo relator do processo.”.

A decisão liminar de mérito terá lugar sempre que:

(i) a questão a decidir seja “simples”, designadamente por o processo versar sobre questões já apreciadas, de modo uniforme e reiterado pela jurisprudência, sem que as partes aduzam argumentação inovadora e suscetível de abalar a corrente jurisprudencial já formada;

(ii) quando se trate de pretensão manifestamente infundada, ou seja, quando uma análise meramente liminar da argumentação aduzida pelas partes nas alegações apresentadas permita concluir, com segurança, que as questões suscitadas são manifestamente improcedentes.

É, por isso, lícito ao relator, na sua qualidade de juiz do processo, por evidentes razões de celeridade na apreciação do recurso, julgar, singular e liminarmente, o objeto do recurso, dispensando a intervenção da conferência na resolução de questões que podem perfeitamente ser decididas pelo relator.

Afigura-se ser o presente caso, por a decisão a proferir ser simples e sem controvérsia que justifique a sua submissão à conferência deste Tribunal Central Administrativo Sul.

Apreciando e decidindo:

I – RELATÓRIO

O Município de Pedrógão Grande, devidamente identificado nos autos, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, datada de 02/08/2019, que no âmbito do processo cautelar de suspensão de eficácia de ato administrativo requerido por J…….., decidiu antecipar o juízo sobre a causa principal, nos termos do artigo 121.º do CPTA e julgou procedente a ação, declarando a nulidade do ato de nomeação do instrutor, do ato de designação de advogado para colaboração técnica e ainda de todo o processado subsequente ao ato de nomeação de instrutor.


*

Formula o aqui Recorrente, nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“1. A sentença recorrida fez incorrectas interpretação e aplicação do nº 2 do art. 208.º da LGTFP.

2. O nº 2 art. 208.º da LGTFP prevê expressamente a existência de casos justificados, em que pode ter lugar a nomeação de instrutor de outro órgão ou serviço.

3. A sentença recorrida entendeu que a referência a diferente órgão e serviço se aplica á mesma pessoa colectiva e não a outra pessoa colectiva.

4. Todavia, essa referência normativa aplica-se á administração central.

5. No caso das autarquias locais a referência a diferente órgão ou serviço deve entender-se como referindo-se a outra autarquia local.

6. O que se compreende, pois nas autarquias não existem “órgãos” administrativos nem “serviços”, mas sim departamentos e divisões.

7. A argumentação na qual a sentença recorrida se louva para concluir pela obrigatoriedade de o instrutor ser funcionário da mesma autarquia serve precisamente para fundamentar essa possibilidade.

8. As razões subjacentes à citada estipulação normativa prendem-se com a natureza do vínculo e dos interesses que no âmbito da função pública cumpre prosseguir.

9. As autarquias integram o poder local, previsto na Constituição, pelo que os interesses públicos decorrentes da instauração do procedimento disciplinar são assegurados pela nomeação de instrutor de outra autarquia, nos casos especiais revistos na norma em apreço.

10. Aliás, só este entendimento (defendido pela entidade demandada) é que está em consonância com a referida norma.

11. Não se compreenderia a referência da norma à solicitação ao dirigente máximo, uma vez que nas autarquias o dirigente máximo para instauração de processo disciplinar é o presidente da câmara municipal.

12. Então, o outro dirigente máximo só poderá ser o presidente da câmara municipal de outra autarquia!!!

13. É um facto público e notório para todos os funcionários da autarquia: consta do mapa de pessoal, aprovado pelos órgãos autárquicos, publicado no Diário da República.

14. Por outro lado, o despacho de nomeação concretiza a previsão a com a contestação, estando invocado que na autarquia não existe outro Chefe de Divisão nem funcionário de categoria superior que possa desempenhar as funções de instrutor do processo disciplinar.

15. Além disso, a natureza das infracções, o melindre das questões e o facto de a autarquia ter poucos funcionários no seu quadro aconselham, e mesmo, impõem, que seja nomeado instrutor funcionário de outra autarquia.

16. Mas a verdade é que o chefe de divisão era o único chefe de divisão da autarquia e era o funcionário mais categorizado da mesma: não há outro chefe de divisão, como consta do mapa de pessoa, bem como consta dos documentos juntos com a contestação e como o próprio Autor o reconhece na sua petição inicial.

17. O Município de Pedrógão Grande não tem no seu mapa de pessoal um trabalhador em regime de funções públicas titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador.

18. Deste modo, não poderia ser dado cumprimento ao artigo 208.º da LGTFP n.º 1 na parte em que determina que na nomeação do instrutor deve ser escolhido de entre trabalhadores do mesmo órgão ou serviço, titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica.

19. O lugar de chefe de divisão é o lugar de maior relevo na hierarquia do mapa de pessoal da autarquia.

20. A nomeação do instrutor foi justificada no despacho.

21. Não tendo sido suscitada no processo disciplinar a suspeição do instrutor, mas tão só invocada a ilegalidade da sua nomeação, tal como no requerimento inicial se refere, , inexiste qualquer ilegalidade que se possa imputar a essa nomeação já que, para além da exigência da maior classificação ou antiguidade na categoria, a lei deixa ao livre critério da entidade que decidiu a abertura do processo disciplinar a escolha do instrutor, e o “dever” de escolher um funcionário pertencente ao serviço ou o “poder” de se escolher um funcionário de outro serviço, tem mais a ver com a economia de meios que isso traduz.

22. Mas a verdade é que estariam os sempre perante uma mera irregularidade processual e nunca uma nulidade.

23. A sentença recorrida violou o nº 2 do artº 208º da LGTFP.

24. Neste contexto, não existe ilegalidade, designadamente, in existindo violação do art. 208.º da LTFP.

25. A sentença recorrida também decretou a nulidade do processo disciplinar pelo facto de ter sido efectuada pelo instrutor a requisição de colaboração técnica, o que faz decorrer da violação do n.º 4 do citado art. 208.º da LGTFP, de desvio de poder e da violação do princípio da imparcialidade.

26. A designação de colaborador técnico (advogado) ocorreu por despacho proferido pelo Presidente da Câmara Municipal, ao abrigo da previsão ínsita no artº 208º nº 3 da LTFP, que permite que o instrutor do processo disciplinar possa ser assessorado por colaboradores técnicos.

27. Tendo em conta o facto de as diligências instrutórias de inquirição de testemunhas serem bastante numerosas (cerca de 20 testemunhas indicadas por três arguidos), o colaborador técnico designado apenas auxilia o instrutor em alguns actos de instrução (designadamente e no caso, inquirição de testemunhas) e de opinião jurídica.

28. O processo está por tramitar, tendo em conta a notificação e despacho recebido, no âmbito do presente processo disciplinar, sendo certo que os requerimentos que o requerente apresentou arguido nulidades só poderão ser apreciados após a presente providência cautelar terminar.

29. Pelo que deve a sentença violou o nº 3 do artº 208º da LGTFP ser revogada e anulada.”.

Pede que seja concedido provimento ao recurso e revogada a sentença recorrida.


*

O ora Recorrido, notificado, apresentou contra-alegações, em que concluiu do seguinte modo:

“1) Quanto à nomeação do assessor técnico a sentença julgou (fls. 26) dever “(…) concluir-se pela nulidade de todo o processado subsequente à nomeação do instrutor” em virtude de, e bem, ter entendido que, tendo o recurso da nomeação de instrutor sido objecto de recurso hierárquico, o processo teria de ficar suspenso nos termos da lei aplicável.

2) Como se vê das conclusões, a douta decisão recorrida não foi, quanto a esta dimensão, atacada, pelo que, naturalmente, o despacho de nomeação do assessor técnico (posterior no tempo) tem de se manter na ordem jurídica.

3) Quanto ao outro acto impugnado, nomeação de instrutor, a douta sentença, sabiamente, veio dizer que o despacho não referiu, na justificação relativa à nomeação de Director de Departamento de outra autarquia como instrutor, que na autarquia em causa, Pedrógrão Grande, não existisse um funcionário com maior antiguidade - cfr. o art. 208.º, n.º 2 da LGTFP e sentença a fls. 18.

4) A mais disto, refere a douta sentença (fls 18 e 19) que a restante fundamentação do despacho que vimos de mencionar é vaga e genérica, mais dizendo ainda que as razões de “melindre” e as relativas à “natureza “das infracções, bem como as que se prendem com a inconcretizada “escassez de funcionários”, não chegam para evidenciar estar-se perante um “caso justificado, a demandar a excepção consagrada na norma”.

5) Ou seja, uma das razões de anulação traduziu-se neste decidir, que não só pela impossibilidade de nomear como instrutor no processo disciplinar um funcionário de outra autarquia (cfr. parágrafo que se inicia por “E, neste sentido, (…)” a fls. 19), pelo que, não tendo tal fundamento sido objecto de imputação de erro de julgamento ou ilegalidade, como se vê das conclusões de recurso do Município, a sentença tem de se manter na ordem jurídica.

6) Temos pois, em resumo, quanto aos dois actos impugnados (nomeação de instrutor e assessor), que o recurso deve ser rejeitado.

7) Passando ao largo - e como vimos, não se pode - pelo facto de nada se dizer (em recurso) sobre a existência de outros funcionários com antiguidade superior nos quadros do município e sobre a ilegalidade daqui emergente, temos que não se afigura, ao contrário do que é sustentado recursivamente, legalmente possível (lícito) nomear funcionário de outra autarquia para exercer funções de instrutor em processo disciplinar, atenta, para além das razões que comparadamente até sustentam e explicam a exigência legal de que cuidamos, a evidente e ostensiva distinção de personalidades jurídicas das autarquias entre si (evidência não peregrina) e, obviamente, na inexistência de relação hierárquica entre um funcionário de uma autarquia e o Presidente de Câmara de outra - duplo fundamento.

8) Com efeito, tudo como sucedeu, existem recursos hierárquicos do instrutor para o presidente de câmara, que não poderiam ser, sem inusitadas distorções, levados a efeito, atenta a inexistência de relação hierárquica entre um funcionário de uma autarquia e um presidente de outra autarquia - cfr. o art. 225.º da LGTFP.

9) Questão diferente é o Sr. Presidente de Câmara, hipoteticamente, ter dificuldades em resolver do ponto de vista jurídico a questão como a coloca (inexistência de funcionário com os predicados legalmente suficientes na autarquia), mas a verdade é que a sua solução desta aparente aporia resolve-se em “três penadas” - não nos competindo a nós dar a solução.

10) A sentença fez assim correcta aplicação da lei, sendo justa e equilibrada, até, como foi, ao ter antecipado o julgamento da questão, como pedimos, e no sentido de conferir a máxima eficiência ao cumprimento do interesse público e privado que clamam por uma decisão rápida do processo - interesse público e privado que assim saem lesados com este recurso.

11) Note-se a terminar que, se existisse relação hierárquica entre instrutor e presidente de câmara, por certo não se teria atrevido aquele a ter dito, no que concerne à nomeação de um assessor que chegou ao ponto de indeferir, expressis verbis, um requerimento do arguido (é extraordinário...) que tinha muitos outros afazeres para além das funções que exerceu…”.

Conclui pela manutenção da decisão recorrida.


*

O Ministério Público junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto no art.º 146.º do CPTA, não emitiu parecer.

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O processo vai, sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento, por se tratar de um processo urgente.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente no recurso jurisdicional, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

São as seguintes as questões invocadas pelo Recorrente como fundamento do recurso:

1. Erro de julgamento de direito quanto à interpretação e aplicação do artigo 208.º, n.º 2 da LGTFP, quanto à nomeação de instrutor;

2. Erro de julgamento de direito quanto à interpretação e aplicação do artigo 208.º, n.º 3 da LGTFP, quanto à requisição pelo instrutor de colaboração técnica.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

A De facto

1. O autor exerce as funções de Chefe da Divisão Administrativa e Financeira do Município de Pedrógão Grande – cf. doc. 3 junto com a oposição e certidão de fls. 155 e ss. do processo administrativo junto aos autos (PA), cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2. Em 20.03.2018, foi proferido pelo Presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande despacho pelo qual se determinou a instauração de “processo disciplinar comum” ao autor [que veio a seguir termos sob o n.º …/2018], dele constando ainda, além do mais, o seguinte:

(…)

O artigo 208.º da LGTFP nº1 determina que na nomeação do instrutor deve ser escolhido de entre trabalhadores do mesmo órgão ou serviço, titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica.

Constata-se que nesta autarquia não existe outro Chefe de Divisão nem funcionário de categoria superior que possa desempenhar as funções de instrutor do processo disciplinar.

Além disso, a natureza das infracções, o melindre das questões e o facto de a autarquia ter poucos funcionários no seu quadro aconselham, e mesmo, impõem, que seja nomeado instrutor funcionário de outra autarquia.

O nº. 2 do citado art.º 208º permite que, em casos justificados, nomeação de instrutor possa recair em funcionário de outtro órgão ou serviço.

Neste contexto, designo para instrutor do processo disciplinar o Sr. Dr. A……., trabalhador em funções públicas na Câmara Municipal de Ansião com a categoria de Director do Departamento Administrativo e Financeiro. (…) – cf. doc. 1 junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá por itnegralmente reproduzido.

3. Por requerimento apresentado por correio electrónico em 03.01.2019, dirigido aos serviços do réu, o autor arguiu a nulidade do processo disciplinar identificado no ponto antecedente, com fundamento na ilegalidade do acto de nomeação de instrutor – cf. fls. 380 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

4. Por requerimento expedido por fax em 07.01.2019, dirigido ao “Exm.º Sr. Instrutor A……..”, o autor apresentou defesa no âmbito do processo disciplinar identificado em “2” – cf. fls. 404 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

5. Através do ofício com a referência S/0…/2019, o instrutor do processo disciplinar expôs e requereu ao Presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande o seguinte:

“1) No identificado processo disciplinar, exercendo o seu direito de defesa, os arguidos J.............. e I............., apresentaram extenso rol de testemunhas cuja audição se impõe.

2) Como é do conhecimento de V. Exa., o signatário e instrutor do processo desempenha actualmente as funções de Director do Departamento Administrativo e Financeiro da Câmara de Ansião.

3) Funções estas que lhe não deixam disponibilidade para, dentro dos prazos legalmente estabelecidos, proceder à produção da prova oferecida pelos arguidos e elaboração do respectivo relatório final.

Pelo exposto e tendo em vista a conclusão do processo sem falhas nem incidentes, requer V. Exa. que, nos termos do disposto no art. 208º, nº3, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei nº35/2014, de 20 de Janeiro), seja requisitada a colaboração de técnico para o efeito, permitindo-se sugerir que a escolha recaia, preferencialmente, em pessoa de advogado. (…)” – cf. doc. 2 junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6. Em 04.02.2019 foi proferido pelo Presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande despacho com o seguinte teor:

Por ter sido fundamentadamente requerido pelo Sr. Instrutor do processo, no uso dos poderes que me são conferidos pelo art.208º, nº3, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º35/2014, de 20 de Janeiro), para prestar a requerida colaboração técnica. Na fase de produção da prova oferecida pelos arguidos e respectivo relatório final, designo o Sr. Dr. R..........., advogado (…).” – cf. doc. 2 junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

7. Por requerimento expedido por fax em 13.02.2019, dirigido ao “Exm.º Sr. Presidente da Câmara Municipal de Ansião”, o autor interpôs “recurso hierárquico”, relativamente à omissão de decisão do requerimento referido em “3” – cf. fls. 580 e ss. do PA, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

8. Por requerimento expedido por fax em 13.02.2019, dirigido ao “Exm.º Sr. Instrutor A...........”, o autor informou acerca da interposição do recurso hierárquico referido no ponto antecedente e requereu, invocando impedimento do mandatário, o adiamento de diligência de inquirição de testemunhas agendada para dia 22.02.2019 – cf. fls. 582 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

9. Em 22.02.2019 teve lugar a inquirição de testemunhas arroladas pelo autor, no âmbito do processo disciplinar identificado em “1”, diligência a que presidiu “R..........., advogado”, na qualidade de “colaborador técnico designado” – cf. autos de inquirição de testemunhas constantes de fls. 611 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

10. Na diligência referida no ponto antecedente, destinada à inquirição da testemunha I..........., e em momento antecedente à inquirição propriamente dita, o mandatário do autor arguiu nulidades relativas à omissão de decisão do recurso hierárquico referido em “7”, à omissão de notificação do despacho “que legitime o (…) Dr. R........... para, por si só, ouvir as testemunhas arroladas” e ainda à violação do princípio da mediação, “uma vez que quem irá fazer o relatório final não assistiu às [diligências de produção de prova]” – cf. auto de inquirição de testemunha constante de fls. 611 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

11. Na diligência referida nos pontos antecedentes, o “colaborador técnico designado” determinou o prosseguimento das diligências programadas – cf. auto de inquirição de testemunha constante de fls. 611 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

12. Ainda no âmbito da mesma diligência, e na sequência da determinação referida no ponto antecedente, o mandatário do autor expos e requereu o seguinte:

O nosso ilustre colega, assessor técnico no presente processo, não tem atribuições ou competências para deferir ou indeferir o que quer que seja nos presentes autos, pelo que se verifica nova nulidade que expressamente se argúi. (…)” – cf. auto de inquirição de testemunha constante de fls. 611 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

13. Ao autor foi diagnosticada doença depressiva major, com predominância de insónia, pensamentos ruminativos sobre a sua situação socio- profissional e o seu futuro próximo, com dificuldades cognitivas e intelectuais, apatia, indiferença ideoafectiva e lentificação psicomotora – cf. informação clínica junta aos autos por ofício de 26.06.2019, a fls. 186 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

14. O autor teve um episódio de reagudização do quadro clínico em Fevereiro de 2019, com agravamento da sintomatologia depressiva, do desinteresse, apatia e anedonia – cf. informação clínica junta aos autos por ofício de 26.06.2019, a fls. 186 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

15. No início do presente mês de Julho, e pelo menos entre 05 e 12 deste mês, o autor encontrava-se internado no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, em virtude de quadro depressivo – cf. informações clínicas juntas aos autos por ofícios de 08.07.2019 e 15.07.2019, constantes de fls. 195 e ss. e 200 e ss. dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

16. O autor era uma pessoa conhecida e bem reputada em Pedrógão Grande.

17. Os factos que subjazem à instauração do processo disciplinar e do processo-crime que contra o autor se encontram a correr estão na base ou contribuem para o agravamento do estado de saúde mental do autor.

18. Os presentes cautelares deram entrada em juízo em 08.03.2019 – cf. registo constante de fls. 1 dos autos.

19. A acção principal a que estes autos cautelares se encontram apensos, que corre termos sob o n.º 329/19.4BELRA, deu entrada em juízo em 11.03.2019 – cf. registo constante de fls. 1 desses autos.


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Os factos elencados foram dados como provados com base no acordo das partes, apurado mediante a posição por si assumida nos respectivos articulados, bem como com base no teor dos documentos juntos aos autos, indicados por referência a cada concreto ponto da matéria.

No que concerne à prova testemunhal produzida nos autos, esta teve essencialmente o alcance de confirmar a factualidade relativa às circunstâncias em que decorreu a inquirição de testemunhas, no âmbito do processo disciplinar instaurado contra o autor, e ao seu estado de saúde, reiterando as testemunhas I........... e P...........a realidade que se deixou apurada para os números 9-12 e 13-15, respectivamente. Decisivamente, depuseram as testemunhas referidas de forma segura e coerente sobre a factualidade que se deixou vertida sob os números 16 e 17 do probatório.

Nada mais se provou com relevo para a solução jurídica da causa.”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa agora entrar na análise das questões colocadas para decisão.

1. Erro de julgamento de direito quanto à interpretação e aplicação do artigo 208.º, n.º 2 da LGTFP, quanto à nomeação de instrutor

Insurge-se o Recorrente contra a sentença recorrida no respeitante à interpretação e aplicação do artigo 208.º, n.º 2 da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20/06, na redação em vigor à data da prática dos factos, in casu, o despacho do Presidente da Câmara Municipal de Pedrogão Grande, datado de 20/03/2018.

Assim sendo, ao contrário do decidido na sentença recorrida, não tem aplicação a LGTFP na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 6/2019, de 14/01, por não se encontrar em vigor à data dos factos, mas antes a redação dessa lei que foi aprovada pela Lei n.º 73/2017, de 16/08, de acordo com o principio tempus regit actum.

Discorda o Recorrente da sentença recorrida, assacando-lhe o erro de julgamento porquanto o artigo 208.º, n.º 2 da LGTFP admite a existência de casos justificados, em que pode ter lugar a nomeação de instrutor de outro órgão ou serviço, o qual só se refere à mesma pessoa coletiva no caso de se tratar da administração central, pois no caso das autarquias locais outro órgão ou serviço tem de referir-se a outra autarquia local, por nestas não existirem outros órgãos ou serviços, mas antes departamentos e divisões.

Invoca que nas autarquias locais, outro dirigente máximo do serviço só pode ser o presidente da Câmara Municipal de outra autarquia, por o presidente da Câmara Municipal ser o dirigente máximo e não haver outro.

Mais alega que o despacho de nomeação do instrutor concretiza que na autarquia não existe outro Chefe de Divisão, nem funcionário de categoria superior que possa desempenhar as funções de instrutor do processo disciplinar, que o Chefe de Divisão visado no processo disciplinar é o único chefe de divisão da autarquia e é o funcionário mais categorizado da mesma, o que decorre do mapa de pessoal da autarquia e dos documentos juntos com a contestação e que o próprio Autor reconhece na petição inicial.

Segundo o Recorrente, o Município de Pedrógão Grande não tem no seu mapa de pessoal um trabalhador em regime de funções públicas titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador, pelo que, não pode ser dado cumprimento ao artigo 208.º, n.ºs 1 e 2 da LGTFP, quando determina que na nomeação do instrutor deve ser escolhido de entre trabalhadores do mesmo órgão ou serviço, titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica, sendo o lugar de chefe de divisão o lugar de maior relevo na hierarquia do mapa de pessoal da autarquia.

Vejamos.

Compulsando o julgamento de facto nada resulta provado e não provado a respeito do mapa de pessoal do Município de Pedrogão Grande, nem sobre a existência ou não de trabalhadores da autarquia local que possam ser designados instrutores do processo disciplinar em causa nos autos.

Assim, no que respeita aos factos apurados em juízo, nada se pode extrair que sustente a posição assumida na sentença, de que pode existir funcionário com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas.

A sentença recorrida justifica este entendimento com base no teor do despacho de designação de instrutor, do Presidente da Câmara de Pedrogão Grande.

Reproduzindo o segmento da sentença pertinente, “Analisando os argumentos esgrimidos, constata-se, desde logo, que se refere a inexistência de “outro Chefe de Divisão” ou “funcionário de categoria superior”; mas não se menciona a inexistência de funcionário com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas. Donde se infere, legitimamente, não estar vedada a hipótese de nomeação de um funcionário que se encontrasse numa destas circunstâncias.”.

A sentença ora recorrida não pode conhecer perfunctoriamente de facto ou de direito, como se de uma providência cautelar se tratasse, antes conhece do mérito da causa, no seguimento do despacho exarado de antecipação do juízo sobre a causa principal, nos termos do disposto no artigo 121.º do CPTA.

Nesse sentido, impõe-se o integral esclarecimento dos factos e do direito aplicável.

No presente caso, considerando a sentença recorrida ter sido proferida nos autos de processo cautelar, desconhece-se quer o teor da petição inicial, quer o da contestação, quer ainda a prova documental que nesse processo foi produzida, nos termos em que são referidos pelo Recorrente na sua alegação de recurso e na conclusão 16 do recurso.

Por outro lado, nos termos em que o requerimento inicial do processo cautelar nos dá a revelar, o Requerente sustenta a impossibilidade de ser designado instrutor pertencente a outra câmara municipal pelas razões de direito que desenvolve, mas sem se pronunciar sobre os factos, nem alegar quaisquer factos pertinentes.

No que se refere a existir ou não funcionário do quadro de pessoal da Câmara Municipal de Pedrogão Grande que assegure as prescrições legais constantes do artigo 208.º da LGTFP, o Requerente limita-se alegar no ponto 9 do requerimento inicial que “no Município existiam até funcionários que poderiam ter sido nomeados instrutores e que não o foram”.

Nada mais.

Em nenhum momento o Requerente chega a sustentar que existisse funcionário que permitisse assegurar o cumprimento do disposto no artigo 208.º da LGTFP, nem qual, por se limitar a invocar que existem outros funcionários.

Está em causa matéria de facto que não resulta do julgamento de facto, o qual é totalmente omisso quanto à prova ou não prova da existência de outros funcionários do Recorrente que possam assegurar a função de instrutor do processo disciplinar que foi instaurado contra o ora Recorrido.

O que se afigura determinante para a solução de direito a dar ao caso.

Assim, impõe-se o cabal esclarecimento dos factos atinentes à existência ou não de funcionário do Município de Pedrogão Grande que possa dar cumprimento ao ditame do artigo 208.º da LGTFP.

Neste contexto importa considerar que, estando em causa a prática de um ato praticado pelo Presidente da Câmara Municipal de Pedrogão Grande, importa atender quer ao pessoal que integra o quadro da respetiva Câmara Municipal, quer ao restante pessoal que integre o Município de Pedrogão Grande, por ser este, o Município, a pessoa coletiva de direito público demandada na presente ação.

Por conseguinte, na determinação dos funcionários que preencham os requisitos previstos no artigo 208.º da LGTFP importa considerar não apenas os funcionários da Câmara Municipal, mas também da respetiva Assembleia Municipal, segundo o disposto nos artigos 239.º e 250.º, ambos da CRP, por todos eles serem órgãos do Município de Pedrogão Grande.

Assim, considerando a total ausência de factos constante do probatório da sentença recorrida sobre a questão invocada na providência e na ação, assim como no presente recurso, relativa à existência de outro funcionário da autarquia que possa ser designado instrutor do processo disciplinar instaurado contra o ora Recorrido, e a essencialidade do esclarecimento desses factos para a resolução do objeto do litígio, no uso dos poderes previstos no artigo 662.º, n.º 2, c) do CPC, será de ordenar oficiosamente a anulação da decisão recorrida, para o aditamento da matéria de facto pertinente para a decisão a proferir.

Sem o integral apuramento dos factos pertinentes da causa não é possível decidir o presente pleito, pelo que, em consequência, será de anular a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos para o seu cabal esclarecimento.


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Em consequência, fica prejudicado o conhecimento e decisão sobre o invocado erro de julgamento de direito quanto à interpretação e aplicação do disposto no artigo 208.º, n.º 3 da LGTFP, quanto à requisição pelo instrutor nomeado, de colaboração técnica, por essa questão estar dependente da decisão a proferir sobre a legalidade da decisão proferida sobre a designação do instrutor.

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Termos em que, procede o recurso jurisdicional interposto pelo Recorrente, importando a anulação da sentença recorrida.
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Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Sendo o ato de designação do instrutor do processo disciplinar praticado pelo Presidente da Câmara Municipal, para efeitos de determinação dos ditames previstos no artigo 208.º da LGTFP, importa atender quer ao pessoal que integra o quadro da respetiva Câmara Municipal, quer ao restante pessoal que integra o Município em questão, por ser este, o Município, a pessoa coletiva de direito público demandada na presente ação.

II. Na determinação dos funcionários que preencham os requisitos previstos no artigo 208.º da LGTFP importa considerar não apenas os funcionários da Câmara Municipal, mas também da respetiva Assembleia Municipal, segundo o disposto nos artigos 239.º e 250.º, ambos da CRP, por todos eles serem órgãos do Município.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, decide-se conceder provimento ao recurso interposto pelo Recorrente, Município de Pedrogão Grande, em anular a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos para o integral esclarecimento dos factos necessários à decisão sobre o mérito da causa.

Sem custas nesta instância de recurso – artigo 534.º do CPC.

Registe e Notifique.


(Ana Celeste Carvalho)