Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:984/11.3BELRA-S1
Secção:CA
Data do Acordão:01/30/2020
Relator:ALDA NUNES
Descritores:PROVA PERICIAL
VALOR EXTRAPROCESSUAL DAS PROVAS – ART 421º DO CPC.
PRINCÍPIO DA AUDIÊNCIA CONTRADITÓRIA – ART 415º DO CPC
Sumário:I – O art 421º do CPC ex vi art 1º do CPTA consagra o princípio da eficácia extraprocessual das provas, princípio esse do qual decorre que o valor das provas não fica confinado ao processo em que foram produzidas, projetando-se para além dele a ponto de poderem as provas produzidas num processo ser invocadas noutro.
II - Contudo, este princípio apenas vale para a prova constituenda por depoimentos e perícias, abrangendo-se, assim, tão-só a prova por depoimento e declarações de parte, a prova testemunhal, a prova por exame pericial. De fora ficam a prova documental e a prova por inspeção judicial, a denominada prova pré-constituída que, admitida em determinado processo, pode também ser proposta em outro processo.
III - A possibilidade de invocação noutro processo judicial da prova produzida e obtida num processo judicial resultante de depoimentos e de perícias está sujeita, por determinação do legislador, à exigência da mesma ter sido produzida com audiência contraditória da parte à qual se pretendem opor ou contra a qual se querem fazer valer, audiência contraditória essa nos termos que se mostram disciplinados no art 415º do CPC e do qual resulta que salvo … disposição em contrário, as provas não serão admitidas nem produzidas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas … (nº 1) e quanto … às provas constituendas, a parte será notificada, quando não for revel, para todos os atos de preparação e produção da prova, e será admitida a intervir nesses atos nos termos da lei; relativamente às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respetiva admissão como da sua força probatória … (nº 2).
IV - Assim, no que à admissibilidade da prova pericial respeita, a parte contra a qual a prova pericial tenha sido requerida é previamente ouvida sobre a nomeação do perito – art 467º, nº 2 do CPC – e notificada depois da nomeação para arguir impedimentos e suspeições (art 471º, nº 1 do CPC). No entanto, nos termos do art 467º, nº 3 do CPC, as perícias médico-legais são obrigatoriamente realizadas por médicos do Instituto de Medicina Legal ou por peritos médicos por estes contratados ou por docentes ou investigadores do ensino superior (art 27º, nº 1 e nº 2 da Lei nº 45/2004, de 19.8).
Também, a parte contrária ao requerente da perícia é ouvida sobre o seu objeto, que pode propor que seja restringido ou ampliado (art 476º, nº 1 do CPC).
Ambas as partes podem pedir esclarecimentos aos peritos (art 485º, nº 2 do CPC).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


S........., SA, interveniente na ação administrativa comum em que é autor J........., tendo sido notificada do despacho de 16.5.2019, que determinou a sustação da produção de meio de prova – perícia médico legal, e com o mesmo não se conformando, dele interpôs recurso jurisdicional.

As alegações de recurso da recorrente terminam com as conclusões seguintes:

I) «Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido pelo Meritíssimo Tribunal "a quo", datado de 16/05/2019, que considerou inútil a realização da perícia médico legal ao A. anteriormente designada nos autos, e determinou a sustação da produção de tal meio de prova, bem como a devolução pelo IML do processo físico ao tribunal.

II) Salvo o devido respeito, a ora apelante não pode concordar com os fundamentos que sustentam a douta decisão proferida, considerando que a mesma é ilegal, por atentar contra o princípio do contraditório e da audiência contraditória, plasmado no disposto nos arts. 3º a 5º e 415º do Cód. Proc. Civil, aplicáveis ex vi art. 1º do CPTA.

III) Fundam-se os presentes autos na responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente protagonizado pelo Autor na via pública, cuja responsabilidade o mesmo imputa ao Município R.

IV) Entre o demais, e para o que releva na presente apelação, veio o Autor, aqui recorrido, alegar que como consequência direta e necessária do evento em causa resultaram, para si, lesões corporais e sequelas no âmbito de diversas especialidades clinicas, nomeadamente, de dermatologia, urologia, psiquiatria

V) E pugnando pelo ressarcimento de tais danos mediante arbitramento de indemnização em sede de danos patrimoniais e não patrimoniais.

VI) Na contestação, a Interveniente, ora Apelante, requereu a realização de perícia médico-legal, na modalidade de avaliação corporal do dano, para apuramento e quantificação desses danos alegados pelo Autor/recorrido.

VII) Tal diligência probatória foi deferida, pese embora não nos moldes colegiais como requerido pela aqui Seguradora Apelante, mas mediante perícia singular a realização pelo INML.

VIII) Posteriormente, e tendo sido carreado aos autos o relatório de uma perícia médico-legal a que se submeteu o A/recorrido no âmbito do Processo nº 79/14 .8TVLSB, que correu termos pela 8ª Vara Cível do Tribunal Judicial de Lisboa, e realizada em 2015, foi proferido o douto despacho aqui posto em crise, e que se passa a recordar:

"Atentos a data e o objeto do exame pericial efetuado no processo nº 79/14 .8TVLSB, ação de processo comum, bem como a posição assumida pelo Autor no seu requerimento de 27 de fevereiro, mostra-se inútil o que mais não seria do que uma repetição de perícia médico-legal ao mesmo Autor.

Como assim, determino a sustação da produção desse meio de prova e que se solicite ao IML a devolução do processo físico a este tribunal».

IX) Não se conforma a Seguradora Apelante com tal entendimento e decisão pois o relatório da perícia médico-legal realizada no indicado Processo nº 79/14.8TVLSB não constitui prova pericial nos presentes autos.

X) E, nessa medida, não é pelo mero efeito da junção aos autos de tal documento — porque, em sede de meio probatório é, efetivamente, de prova documental que se trata — que se torna inútil a realização da prova pericial devida e tempestivamente requerida e deferida no presente processo (e ainda que tenha um objeto similar à produzida no outro supra identificado processo cível):

(…) Prova pericial é aquela que é realizada no processo, sendo requisitada pelo tribunal a estabelecimento, laboratório ou serviço oficinal apropriado ou, quando tal não seja possível ou conveniente, realizada por um único perito nomeado pelo juiz de entre pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa ou por perito que as partes, por acordo, indiquem, podendo ser colegial.

Os peritos prestam compromisso de honra e estão sujeitos ao regime e impedimentos e suspeições que vigora para os juízes.

E uma prova sujeita a contraditório (art. 415º do CPC), podendo as partes formular quesitos, pedir esclarecimentos e estar presentes durante a recolha de indícios ou exame que não contenda com a reserva da intimidade das pessoas. Efetivamente o art. 415º do CPC (Princípio da audiência contraditória) estabelece:

1 — Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas.

2- Quanto às provas constituendas, a parte é notificada, quando não for revel, para todos os atos de preparação e produção da prova, e é admitida a intervir nesses atos nos termos da lei; relativamente às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respetiva admissão como da sua força probatória.

À exceção da prova documental, todas as restantes provas são constituendas, isto é, são produzidas no processe e não fora dele. (...).

(Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 31/05/2019, proferido no Processo nº 1822/17.9T8BRG.G1)

XI) No caso sub judice o relatório da perícia médico-legal em causa foi elaborado noutro processo judicial, porventura a requerimento das partes nele intervenientes, e de entre as quais não figurou a aqui apelante.

XII) Tal elemento probatório foi, assim, elaborado sem qualquer controlo possível ou contraditório da Apelante, que não teve qualquer hipótese de se pronunciar sobre a oportunidade da realização de tal exame pericial ou sobre a modalidade ou o objeto da perícia, não teve oportunidade de elaborar quesitos ou formular questões ou esclarecimentos junto dos peritos, ou sequer exercer o contraditório sobre eventuais questões que tenham sido colocadas pelas partes ali intervenientes.

XIII) A admitir-se que tal relatório tenha o valor de prova pericial nos presentes autos, está-se a subverter por completo o princípio basilar do nosso ordenamento jurídico, concretamente, o princípio do contraditório e da audiência contraditória, consagrado no art. 415º, nº 1 e 2 do Cód. Proc. Civil.

XIV) Acresce que, no presente caso, nem sequer se pode chamar à colação o disposto no art 421º, nº 1 do Cód. Proc. Civil quanto ao valor extra processual da prova e como eventual suporte da decisão proferida.

XV) Sendo certo que tal disposição admite que, verificados os pressupostos nela vertidos, a perícia produzida num processo possa ser invocada noutro processo contra a mesma parte.

XVI) Não menos correto é afirmar-se que, para que tal valor extra processual da prova ocorra, é mister que:

- as partes num processo e no outro sejam coincidentes

- que tenha tido lugar a audiência contraditória da parte contra a qual se pretende invocar o elemento probatório em causa

XVII) Não tendo a Seguradora Apelante sido parte no processo onde tal prova pericial foi produzida, não há lugar à aplicação deste preceito legal.

XVIII) Assim, e tal como se referiu supra, o relatório pericial em apreço apenas pode figurar nos presentes autos com o valor de prova documental e, portanto, sujeito ao regime aplicável a esta prova, nomeadamente para efeitos de impugnação pelas contrapartes, confronto com os demais meios de prova e formação da convicção probatória do julgador.

XIX) Jamais pode ter valor de prova pericial, por não estarem minimamente observados os requisitos legais aplicáveis à realização de uma perícia no âmbito de um processo judicial civil.

XX) Não pode, consequentemente, constituir fundamento da não realização da prova pericial oportunamente requerida pela Seguradora Apelante, e sua apodada inutilidade, a mera existência de tal documento nos autos.

XXI) Por efeito da decisão proferida, não pode ver a Seguradora Apelante ser-lhe cerceada a possibilidade da realização da prova pericial por si requerida, esta sim, sujeita à sua audiência contraditória, e em plena observância do disposto nos artigos 415º e 467º e segs do Cód. Proc. Civil.

XXII) Sendo certo que a realização de tal diligência probatória — perícia - não é inusitada nem despicienda, atenta a matéria de facto controvertida nos autos e aquela que tal meio probatório tende a instruir (ou seja, os danos corporais invocados pelo Autor como consequência direta e necessária do evento danoso).

XXIII) Face ao supra expendido, e sempre com o máximo respeito por entendimento diverso, temos que o douto despacho recorrido viola, de forma flagrante, o disposto nos artigos 3º a 5º, 410º a 417º, todos do Cód. Proc. Civil.

XXIV) Motivo pelo qual deverá ser revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento da realização da prova pericial, por perícia médico legal para avaliação corporal do dano em direito civil».

XXV) O que se deixa expressamente alegado, para todos os devidos efeitos legais».

As demais partes não contra-alegaram o recurso.

Neste Tribunal Central Administrativo, o Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do art 146º nº 1 do CPTA, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumpre decidir, dispensando vistos.

Objeto do recurso:

As questões suscitadas pela recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, traduzem-se em saber se o despacho recorrido [que determinou a sustação da produção de prova pericial, por o autor ter sido submetido a perícia médico-legal noutro processo] incorreu em erro de julgamento, por atentar contra o princípio do contraditório e da audiência contraditória, plasmado nos arts 3º a 5º e 415º do CPC, ex vi art 1º do CPTA.

Fundamentação de facto:

Da tramitação da ação, com relevo para decidir, resultam provados os factos seguintes:

A) O autor J......... instaurou ação administrativa comum, na forma ordinária, contra Município de Rio Maior e contra «T…… – S……, SA», que corre termos sob o nº 984/11.3BELRA, no TAF de Leiria, na qual foram chamadas «Companhia de S........., SA» (atualmente: «S........., SA»), «A......... - P........., Lda», «E…… – D……, SA», «M…… – C……., Lda», «F……, SA», pedindo a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 2 159 881,28, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, em sede de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, na sequência de acidente ocorrido a 15.10.2007, com queda do autor em caixa de coletor não fechada convenientemente nem sinalizada no âmbito de empreitada de obras públicas – cfr cópia da ata de audiência prévia inserta na certidão deste apenso.

B) Na contestação, a ora recorrente e chamada «S........., SA» requereu a realização de perícia médico-legal na modalidade de avaliação corporal do dano, para apuramento e quantificação de danos no autor – cfr contestação por consulta no sitaf.

C) Na audiência prévia de 5.6.2017, o tribunal decidiu: nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 467.º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, e 3.º e 21.º, ambos da Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto, prefigura-se a necessidade em ordenar a realização de perícia por perito designado pelos serviços competentes do Instituto de Medicina Legal.

Objeto da perícia: a perícia deverá versar sobre os 6º a 9º dos temas de prova enunciados (…) – cfr cópia da ata de audiência prévia inserta na certidão deste apenso.

D) Os temas de prova objeto da perícia na ação têm o teor seguinte:

6º) Que danos sofreu o autor na sequência do referido acidente?

7º) Quais as repercussões do acidente referido no 5.º) tema de prova na vida quotidiana do autor?

8º) Como era o autor antes da queda referida no 5.º) tema de prova:

a) na sua perspetiva e vida familiares?

b) na saúde física?

c) na sua autoestima?

d) no domínio profissional?

e) na sua vida gregária?

f) na sua saúde emocional e psíquica?

g) na sua via afetiva e sexual?

9º) Que repercussões teve queda referida no 5.º) tema de prova no autor:

a) na sua perspetiva e vida familiares?

b) na saúde física?

c) na sua autoestima?

d) no domínio profissional?

e) na sua vida gregária?

f) na sua saúde emocional e psíquica?

g) na sua via afetiva e sexual? – cfr cópia da ata de audiência prévia inserta na certidão deste apenso.

E) A 20.2.2019 o IML remeteu a este processo ofício com o teor seguinte: tendo sido constatado que o autor J......... foi já submetido neste G……-Oeste a exame pericial para avaliação do dano corporal no âmbito do Direito Civil, que correu termos na 8ª Vara Cível de Lisboa – havendo já transitado a 18.4.2016, somos em remeter anexas ao presente cópias extraídas do nosso processado a fim de, se tal for o entendimento desse tribunal, ponderar da manutenção da necessidade de novo exame pericial. Aguardamos, pois, a vossa pronúncia, após o que de imediato devolveremos os três volumes dos autos ou, se for o caso, agendaremos o novo exame – cfr ofício do IML inserto na certidão deste apenso.

F) O relatório do IML anexo ao ofício tem data de 4.2.2015 – cfr ofício do IML inserto na certidão deste apenso.

G) A 21.2.2019 a comunicação do IML foi notificada às partes – por consulta de fls 1257 a 1264 da ação no sitaf.

H) A 27.2.2019 o autor pronunciou-se sobre o ofício do IML [nada tem a opor ou a requerer] e juntou à ação um atestado médico de incapacidade multiuso, datado de 6.12.2017, emitido pela presidente da Junta Médica do Ministério da Saúde, que lhe conferiu uma incapacidade permanente global definitiva de 67% – cfr por consulta de fls 1265 da ação no sitaf.

I) A 7.3.2019 a ora recorrente informou manter o requerimento no sentido de ver realizada a perícia colegial em conformidade com a sua contestação do dia 14-03-2016 e reiterado no requerimento do dia 05-02-2018 - cfr por consulta de fls 1275 da ação no sitaf.

J) Por despacho de 15.3.2019, o tribunal indeferiu o pedido de realização de perícia colegial - cfr por consulta de fls 1289 da ação no sitaf.

K) A 2.4.2019 a recorrente requer a retificação do despacho de 15.3.2019, no sentido de ser admitida a perícia colegial requerida em sede de contestação, e, subsidiariamente, requer a realização de perícia singular para apreciação do dano corporal do autor, designadamente, por constar dos autos apenas documentação junta pelo autor e um relatório pericial do INML, datado de 2015, e, portanto, previsivelmente, desatualizado – cfr requerimento inserto na certidão deste apenso.

L) A 16.5.2019 o tribunal proferiu o despacho recorrido, que tem o teor seguinte:

Atentos a data e o objeto do Exame pericial efetuado no processo nº 79/14 .8TVLSB, ação de processo Comum, bem como a posição assumida pelo Autor no seu requerimento de 27 de fevereiro, mostra-se inútil o que mais não seria do que uma repetição de perícia médico-legal ao mesmo Autor.

Como assim, determino a sustação da produção desse meio de prova e que se solicite ao IML a devolução do processo físico a este tribunal – cfr despacho recorrido inserto na certidão deste apenso.

M) J......... instaurou ação de processo comum, que correu termos com o nº 79/14.8TVLSB, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 2, contra M......... - S........., no âmbito de seguro de acidentes pessoais – cfr por consulta de fls 1329 da ação no sitaf.

N) Na ação nº /14 o tribunal determinou a realização de perícia no IML, tendo como objeto a matéria seguinte:

4) em consequência do acidente ocorrido em 15.7.2007, o autor sofreu traumatismo ventral da uretra peno/ bulbal com lesão da mucosa e pontos sangrantes e desvio dos maxilares esquerdo e direito que resultaram em desvio do septo nasal e na deslocação do osso do ouvido esquerdo, originando a sua obstrução;

5) em consequência do acidente, o autor veio a desenvolver um quadro de perturbação de stress pós-traumático e de depressão;

6) em consequência do acidente, o autor veio a sofrer de uma exacerbação grave da psoríase e artrite;

7) em consequência do acidente, o autor veio a padecer de disfunção erétil, com disfunção vascular pós-traumática, necessitando de aperto de substancias vasoativas para conseguir uma ereção suficiente à penetração, não sendo, ainda assim, total;

8) em consequência do acidente, o autor padece atualmente de uma incapacidade permanente global de 72%;

9) em consequência do acidente, a incapacidade permanente do autor poderá ainda sofrer variações/ agravamento – cfr ofício do IML inserto na certidão.


O Direito.
Do erro de julgamento de direito.
A recorrente e chamada «S........., SA» (seguradora da ré T......... ) não se conforma com a «sustação» da produção de prova pericial por si requerida nos autos, em que vem pedida a condenação dos réus no pagamento de quantia monetária, em sede de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, na sequência de acidente na via pública que molestou o autor. Pois entende que o relatório da perícia médico-legal realizada no processo nº 79/14.8TVLSB não constitui prova pericial na presente ação administrativa nº 984/11.3BELRA, mas o valor de prova documental. Assim diz nas alegações e reproduz nas conclusões de recurso o seguinte:
No caso sub judice o relatório da perícia médico-legal em causa foi elaborado noutro processo judicial, porventura a requerimento das partes nele intervenientes, e de entre as quais não figurou a aqui apelante.
Tal elemento probatório foi, assim, elaborado sem qualquer controlo possível ou contraditório da apelante, que não teve qualquer hipótese de se pronunciar sobre a oportunidade da realização de tal exame pericial ou sobre a modalidade ou o objeto da perícia, não teve oportunidade de elaborar quesitos ou formular questões ou esclarecimentos junto dos peritos, ou sequer exercer o contraditório sobre eventuais questões que tenham sido colocadas pelas partes ali intervenientes.
Vejamos.

Dispõe o artigo 421º do CPC ex vi art 1º do CPTA o seguinte:
Artigo 421º
Valor extraprocessual das provas

1 — Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.

2 — O disposto no número anterior não tem aplicação quando o primeiro processo tiver sido anulado, na parte relativa à produção da prova que se pretende invocar.”

Neste preceito consagra-se o princípio da eficácia extraprocessual das provas, princípio esse do qual decorre que o valor das provas não fica confinado ao processo em que foram produzidas, projetando-se para além dele a ponto de poderem as provas produzidas num processo ser invocadas noutro.
Contudo, tal como decorre da leitura do preceito legal transcrito, este princípio não se acha formulado e consagrado em termos genéricos, pois, apenas vale para a prova constituenda por depoimentos e perícias, abrangendo-se, assim, tão-só a prova por depoimento e declarações de parte, a prova testemunhal, a prova por exame pericial. De fora ficam a prova documental e a prova por inspeção judicial, a denominada prova pré-constituída que, admitida em determinado processo, pode também ser proposta em outro processo.
Ocorre, porém, que a possibilidade de invocação noutro processo judicial da prova produzida e obtida num processo judicial resultante de depoimentos e de perícias está sujeita, por determinação do legislador, à exigência da mesma ter sido produzida com audiência contraditória da parte à qual se pretendem opor ou contra a qual se querem fazer valer, audiência contraditória essa nos termos que se mostram disciplinados no art 415º do CPC e do qual resulta que salvo … disposição em contrário, as provas não serão admitidas nem produzidas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas … (nº 1) e quanto … às provas constituendas, a parte será notificada, quando não for revel, para todos os atos de preparação e produção da prova, e será admitida a intervir nesses atos nos termos da lei; relativamente às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respetiva admissão como da sua força probatória … (nº 2).
Com efeito, a prova requerida pelas partes não é admitida nem produzida sem a audiência contraditória da parte a quem seja oposta (art 415º, nº 1 do CPC).
Assim, no que à admissibilidade da prova pericial respeita, a parte contra a qual a prova pericial tenha sido requerida é previamente ouvida sobre a nomeação do perito – art 467º, nº 2 do CPC – e notificada depois da nomeação para arguir impedimentos e suspeições (art 471º, nº 1 do CPC).
No entanto, nos termos do art 467º, nº 3 do CPC, as perícias médico-legais são obrigatoriamente realizadas por médicos do Instituto de Medicina Legal ou por peritos médicos por estes contratados ou por docentes ou investigadores do ensino superior (art 27º, nº 1 e nº 2 da Lei nº 45/2004, de 19.8). Em regra, as perícias médico-legais são efetuadas por um único perito. Serão efetuadas colegialmente, quando o julgador o determinar de forma fundamentada (art 468º, nº 1, al b) do CPC). Quando realizadas com a intervenção de três peritos, não são efetuadas por peritos indicados ou nomeados nos termos do artº 468º do CPC, mas sim por peritos médicos do quadro do IML ou contratados e, ainda, por docentes e investigadores do ensino superior no âmbito de protocolos para o efeito celebrados (art 21º da Lei nº 45/2004).
Também, a parte contrária ao requerente da perícia é ouvida sobre o seu objeto, que pode propor que seja restringido ou ampliado (art 476º, nº 1 do CPC).
Ambas as partes podem pedir esclarecimentos aos peritos (art 485º, nº 2 do CPC).
Em suma, nos termos do art 415º, nº 1 e do art 3º, nº 1 e nº 3 do CPC, as provas não são admitidas, nem produzidas sem a audiência contraditória da parte a quem sejam opostas. Essa contraditoriedade concretiza-se de modo diferente consoante se esteja perante meio de prova pré-constituído (pré-existente à apresentação no processo, como o documento – art 415º, nº 2, 2ª parte) ou meio de prova constituendo (que se forma no processo, como o depoimento de parte e testemunhal e a prova pericial – art 415º, nº 2, 1ª parte do CPC).

No caso, cumpre efetivamente relembrar que, na sequência do acidente que sofreu em 15.10.2007, previamente à presente ação, que foi instaurada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, o autor havia instaurado ação de processo comum, que correu termos com o nº 79/14.8TVLSB, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 2, contra M......... - S..........

No processo 79/14, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 2, determinou a realização de perícia-médico legal no IML, tendo por objeto os temas de prova nº 4 a 9 do despacho saneador (cfr facto provado na al N). O autor foi submetido a exame pericial para avaliação do dano corporal e o relatório pericial tem data de 4.2.2015.

Nesta ação, nº 984/11, a chamada e recorrente requereu a realização de perícia médico-legal na modalidade de avaliação corporal do dano, para apuramento e quantificação de danos no autor, por causa do mesmo acidente. O tribunal admitiu a produção de prova pericial, em 5.6.2017, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 467.º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, e 3.º e 21.º, ambos da Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto. No entanto, posteriormente, a 20.2.2019, o IML remeteu a este processo ofício com o teor seguinte: tendo sido constatado que o autor J......... foi já submetido neste G......... a exame pericial para avaliação do dano corporal no âmbito do Direito Civil, que correu termos na 8ª Vara Cível de Lisboa – havendo já transitado a 18.4.2016, somos em remeter anexas ao presente cópias extraídas do nosso processado a fim de, se tal for o entendimento desse tribunal, ponderar da manutenção da necessidade de novo exame pericial. Aguardamos, pois, a vossa pronúncia, após o que de imediato devolveremos os três volumes dos autos ou, se for o caso, agendaremos o novo exame.

A 21.2.2019 o tribunal levou ao conhecimento das partes o teor da comunicação do IML.

E, nesta sequência, a 27.2.2019 o autor pronunciou-se sobre o ofício do IML, com a indicação que nada tem a opor ou a requerer.

O mesmo não sucedendo com a ora recorrente que, a 7.3.2019, informou manter o requerimento no sentido de ver realizada a perícia colegial em conformidade com a sua contestação do dia 14-03-2016 e reiterado no requerimento do dia 05-02-2018.

Decidiu então o tribunal recorrido sustar a produção da prova pericial para avaliação do dano corporal do autor, por ser inútil uma repetição de perícia médico-legal ao mesmo Autor, considerando:

i) a data e o objeto do exame pericial efetuado no processo cível nº 79/14 e a

ii) a posição assumida pelo Autor no seu requerimento de 27.2.2019.

Esta decisão mostra-se conforme com o disposto nos arts 3º, 415º e 421º do CPC.

Porque o art 421º, nº 1 do CPC, ao contrário do entendimento da recorrente (vertido nas conclusões XV a XVII), não exige a identidade de partes no processo em que a prova é produzida e naquele em que é invocada.

O art 421º, nº 1 do CPC exige sim que a parte contra quem a prova é invocada, isto é, a parte contrária àquela que haja requerido a prova pericial, tenha sido parte no primeiro processo e que nele tenha sido respeitado o princípio do contraditório, consignado no art 415º, nº 1 do CPC.

O que sucedeu, o autor não requereu a produção de prova pericial na ação nº 79/14 nem na ação nº 98…/11.

Na 1ª ação, nº 79/14, a prova foi determinada pelo tribunal.

Na presente ação a prova foi requerida pela chamada e recorrente e admitida pelo tribunal.

E em ambas as ações o autor foi ouvido sobre o objeto da perícia médico legal para avaliação do respetivo dano corporal em virtude do acidente que sofreu em 15.10.2017.

A recorrente não foi parte na ação nº 79/14 e foi quem requereu a produção de prova pericial nesta ação nº 984/11, sobre os temas de prova que o tribunal fixou serem o 6º a 9º.

O motivo pelo qual o despacho recorrido sustou a perícia médico-legal ordenada nesta ação, por despacho de 5.6.2017, prende-se com o facto do IML, após lhe ter sido requerida a nova perícia, ter noticiado ter já submetido o autor a exame pericial para avaliação do dano corporal no âmbito da ação nº 79/14. O tribunal recorrido muniu-se então dos elementos documentais da ação nº 79/14, concedeu o contraditório sobre a comunicação do IML e sobre as peças do processo nº 79/14 e, porque existe identidade da parte contra a qual a prova pericial é invocada – o autor – e sobre o objeto pericial da primitiva perícia (com relatório de 4.2.2015) e da nova perícia, concluiu pela inutilidade de uma repetição de perícia médico-legal ao mesmo autor. Acionando assim a extensão de efeitos da perícia médico legal, de avaliação do dano corporal (presencial) do autor, de 4.2.2015, a esta ação.

O mesmo é dizer que o despacho recorrido, por estar observado o princípio da audiência contraditória da parte contrária ao requerente da realização da perícia nesta ação e no processo nº 79/14, ou seja, do autor, lançou mão do mecanismo do art 421º, nº 1 do CPC. E, assim, atribuiu eficácia extraprocessual ao exame pericial na pessoa do autor com data de 15.10.2014 e ao consequente relatório pericial de 4.2.2015, uma vez que o autor é nesta ação e no processo nº 79/14 a mesma parte contra quem a prova pericial é invocada.

A recorrente não foi e nos termos da lei não tinha de ser ouvida na ação nº 79/14, pois não era parte naquela ação. A recorrente foi a requerente da nova perícia médico-legal ao autor, na modalidade de avaliação corporal do dano, para apuramento e quantificação dos danos alegados pelo autor e recorrido, indicou o objeto da perícia. Como em causa está uma perícia médico legal ao autor, a mesma foi realizada obrigatoriamente pelo Instituto de Medicina Legal e por um perito médico, nos termos do art 467º, nº 3 do CPC e art 21º, nº 1 da Lei nº 45/2004, de 19.8. O contraditório que o tribunal recorrido carecia de conceder à recorrente, nos termos e para efeitos do disposto no art 3º, nº 3 do CPC, foi cumprido (sobre a comunicação do IML e sobre as peças do processo nº 79/14).

Note-se que a recorrente não questiona a identidade de objeto entre a perícia realizada em 2015 e a por si requerida, nem coloca em causa a identidade da parte contra a qual invoca a prova pericial, nem ter sido preterida a audiência contraditória do autor requerido, ou seja, os requisitos verificados no processo para ser atribuída eficácia extraprocessual à prova pericial ou «prova emprestada» da ação nº 79/14 à ação nº 984/11 (cfr A. Abrantes Geraldes e outros, em «Código Processual Civil, anotado, vol. I, pág. 496).

A recorrente aponta a falta de identidade de partes no processo em que a prova pericial foi produzida e nesta ação e, por não ter sido interveniente naquele não pode ser ouvida sobre a admissibilidade da perícia, sobre a nomeação do perito, sobre o objeto da prova, ou seja, considera ter sido preterido o seu direito de audiência contraditória. Mas, como deixamos explicado, não lhe assiste razão, a interpretação da recorrente sobre o sentido do disposto nos arts 415º, nº 1 e 2, 421º, nº 1, 467º do CPC ex vi art 1º do CPTA não se nos afigura correta.

O tribunal recorrido não desconsiderou a alegação feita pela chamada na sua contestação, nem ignorou a pretensão expressamente manifestada pela chamada e recorrente no sentido da produção de prova, mormente da prova pericial pretendida. Nem mesmo a extensão dos efeitos da prova pericial produzida na ação nº 79/14 a este processo a transfiguram em prova documental, como advoga a recorrente. Trata-se, na verdade, de trazer para a presente ação nº 984/11 os efeitos da prova pericial produzida na ação nº 79/14. O relatório pericial de 4.2.2015 é o resultado da perícia de avaliação do dano corporal no autor em virtude do acidente que sofreu em 15.10.2007 e é tratado nesta ação como prova pericial, de acordo com o art 421º, nº 1 do CPC. Este preceito dispõe sobre a eficácia extraprocessual da prova e não sobre a eficácia extraprocessual dos factos tidos como provados. Razão pela qual a recorrente pode pedir, nesta ação nº 984/11, esclarecimentos sobre o relatório pericial do IML e pode pedir ainda para o perito ser ouvido em audiência de discussão (por teleconferência a partir do seu local de trabalho), nos termos dos arts 485º, nº 2 e 486º, nº 1 e nº 2 do CPC. Sendo assim efetivamente assegurada, nesta ação, a garantia de contraditório da ora recorrente quanto ao resultado da perícia médico-legal realizada no âmbito da ação nº 79/14, mas que produz efeitos também nesta.

Mantem-se, pois, com a presente fundamentação, o despacho recorrido.

Decisão
Atento o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em negar provimento ao recurso, e, com a fundamentação vertida neste aresto, confirmam o despacho recorrido.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
*
Lisboa, 2020-01-30,

(Alda Nunes).


(Lina Costa),


(Carlos Araújo).