Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:397/17.3BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/23/2019
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores: JUSTA REPARAÇÃO DO DANO LABORAL
IGUALDADE
CONTROLOS EPISTÉMICOS DOS JUÍZOS DE CONSTITUCIONALIDADE
Sumário:I – O artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP consagra a justa reparação do dano laboral, que reveste natureza compensatória: todos os trabalhadores têm direito a assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional.
II – Saber qual o conteúdo do direito dos trabalhadores a justa reparação consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP não pode ser respondido com recurso a argumentos sistemáticos retirados do Direito infraconstitucional. O Direito ordinário não pode ser usado, simultaneamente, como instrumento de interpretação do Direito constitucional e como resultado dessa interpretação, pois este raciocínio há de necessariamente implicar a decisão final de conformidade do direito infraconstitucional à Constituição.
III - À luz da Constituição, o âmbito do conceito de dano laboral está relacionado com a dignidade da pessoa humana e com a tutela constitucional dos seus direitos fundamentais – os direitos ao livre desenvolvimento da personalidade, à integridade física, psíquica e moral, o direito à saúde, o direito ao trabalho – e não apenas com um mínimo de sobrevivência dos trabalhadores e das suas famílias, numa visão neoliberal anglo-americana, impraticável num Estado social de Direito.
IV - Para justificar o conteúdo do dano laboral sofrido pelos servidores da coisa pública (pelo facto de continuarem a receber a totalidade da remuneração, nos termos do artigo 23.º, n.º 4, do RAS), não são evidentes asserções habitualmente retiradas de uma comparação simplista e muito incompleta entre o regime jurídico da função pública e o do setor privado, que estão longe de ser óbvias, revelando, pelo contrário, o Direito positivo vigente que as distinções conceituais entre carreira no setor público e categoria no setor privado e entre dano laboral e dano civil não são rigorosas de um ponto de vista jurídico.
V - Os argumentos do suposto privilégio dos trabalhadores atingidos relativamente aos não atingidos por acidentes de trabalho e do efeito de «moral hazard», que alegadamente seria potenciado pelo regime de acumulação, assentam numa ideia pré-concebida, sem qualquer fundamento empírico nas sociedades em geral e nas de Estado social de Direito em especial. Há, pois, que estar atento aos limites e aos controlos epistémicos dos juízos de constitucionalidade na Europa continental, alvitrados por Alexy.
VI - Não são, por isso, válidas considerações jurídico-constitucionais comparativas de teor vago ou factualmente incompleto e não comprovadas.
VII - A norma constitucional paramétrica, que consagra o direito dos trabalhadores a uma justa reparação, não pode deixar de ter por pressuposto uma noção de pessoa humana que abrange a vida do trabalhador no seu todo e na sua complexidade ou modo singular e único de ser, e que, portanto, impõe o direito dos trabalhadores à indemnização da totalidade dos danos por si sofridos, em caso de doença profissional ou de acidente de trabalho, de acordo com o paradigma da responsabilidade civil.
VIII - O acidente de trabalho ou doença laboral, no caso dos trabalhadores da Administração Pública, produz, mercê das características próprias do emprego público, dano laboral, independentemente de estar ou não garantida a intangibilidade da remuneração. Não só o dano laboral existe, como está subjacente à sua reparação o risco derivado do trabalho prestado.
Votação:MAIORIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:**

Acordam no T.C.A. Sul

I – RELATÓRIO

SINDICATO NACIONAL DOS TRABALHADORES DA ADMINISTRAÇÃO LOCAL E REGIONAL, em representação do seu associado C…………, intentou no T.A.C. de Lisboa, ao abrigo do disposto no artigo 338º, n. 2, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas aprovada pela Lei n. 35/2014,

ação administrativa contra

CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES, I.P.

A pretensão formulada ao T.A.C. foi a seguinte:

- Anulação do ato da Direção da Caixa Geral de Aposentações, de 13/4/2016, que lhe fixou uma pensão anual vitalícia de 684,54€ a que correspondia uma pensão mensal de 46,32€.

Na sentença recorrida, o TAC decidiu:

- “julgo procedente o pedido impugnatório na parte em que a decisão impugnada suspendeu o pagamento da pensão atribuída.”.

*

Inconformada, a ré interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

A - Salvo o devido respeito, não pode a ora Recorrente conformar-se com o entendimento do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa de que “…as normas em causa violam o princípio da igualdade consagrado nos artigos 13.º e 59.º, n.º 1 al. f) da CRP”.

B - O objetivo do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro é a reparação na capacidade de trabalho ou de ganho.

C - A Lei n.º 11/2014, de 6 de março, veio estabelecer mecanismos de convergência do regime de proteção social da função pública com o regime geral da segurança social conferindo ao artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, alterações no regime de acumulação de prestações por incapacidade permanente resultante de acidente ou doença profissional com remunerações ou pensões.

D - Em virtude da solução normativa vertida na alínea b), do n.º 1 do artigo 41.º, em caso de incapacidade permanente parcial resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, tendo em conta a natureza indemnizatória da prestação periódica a que o trabalhador sinistrado tem direito, tal prestação não é acumulável com a parcela da remuneração que corresponde à percentagem da redução permanente da capacidade geral de ganho do trabalhador.

E - Nos casos em que, tendo sido reconhecido o direito a uma prestação periódica por incapacidade permanente, os trabalhadores, não obstante essa incapacidade, continuam a exercer as mesmas funções e a auferir a mesma remuneração, dificilmente se pode falar em dano merecedor de reparação.

F - Sobre a violação do direito dos trabalhadores a justa reparação quando vítimas de acidente de trabalho ou doença profissional, como do princípio da igualdade, consagrados, na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º e no artigo 13.º da CRP, veja-se a apreciação efetuada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 786/2017, de 2017-11-21 (publicamente disponível na base de dados do Tribunal Constitucional em www.dgsi.pt), cujo excerto se deixou supra transcrito em Alegações.

*

Importa agora apreciar e decidir em conferência.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS

1 – O sócio do Autor foi vítima de um acidente em serviço, cf. doc. 3 junto à p.i.;

2 - A Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações deliberou que das lesões sofridas pelo A., decorrentes do referido acidente em serviço, resultou uma incapacidade permanente parcial de 9,45%, cf. doc. 3 junto à p.i.;

3 - Através de ofício de 13/4/2016, foi comunicado ao sócio do Autor que por decisão da Caixa Geral de Aposentações, com a mesma data, lhe fora fixada uma pensão anual vitalícia de 684,54€ a que correspondia uma pensão mensal de 46,32€, cf. doc. 3 junto à p.i.;

4 – A R. para o cálculo da retribuição anual considerou a retribuição base do sócio do Autor, no montante de 700,29€ correspondente a posição remuneratória intermédia, entre a 5.ª e 6.ª posições remuneratórias, níveis remuneratórios 5 e 6, da categoria de assistente operacional, da carreira de assistente operacional, da tabela remuneratória única aprovada pelo Decreto Regulamentar no 14/2008, de 31/7.

5 - Multiplicando 700,29 por 14, o resultado é 9.804,06, tendo sido esta a retribuição anual com base na qual foi fixada a pensão anual de 648,54€, resultante da operação seguinte: 9.804,06 x 70% x 9,45%, cf. doc. 3 junto à p.i.;

6 – No mesmo ato impugnado comunicado através do doc. 3 junto à p.i. foi afirmado que termos do artigo 75.º da Lei nº 98/2009 de 4 de setembro, são obrigatoriamente remidas as pensões por acidente em serviço de incapacidade permanente parcial inferior a 30% e de valor anual não superior a 6 vezes o indexante dos apoios sociais (AS) à data da sua fixação;

7 - Mais constando que:Atendendo a que o subscritor nasceu em 3/12/1959, o coeficiente para determinar o capital de remição na data da alta 30/1/2015, é o correspondente a 55 anos de idade, ou seja, 12,469, de acordo com as bases técnicas e tabelas práticas aprovadas pela Portaria n.º 11/2000, de 13 de janeiro. (…) Assim, deverá ser pago, a título de reparação total do acidente, o capital de remição de € 8 104,16;

8 - Todavia, o sócio do Autor até à data não recebeu qualquer prestação (acordo);

9 – Isto porque a R. decidiu que Nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na redação dada pelo art.º 6.º da Lei n.º 11/2014, de 6 de março, as prestações periódicas por incapacidade permanente não são acumuláveis com a parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução da capacidade geral de ganho do trabalhador, em caso de incapacidade permanente parcial resultante de acidente ou doença profissional, pelo que o abono da pensão por acidente em serviço/doença profissional agora fixada ficará suspenso.

*

APRECIAÇÃO DO RECURSO

Delimitação do objeto do recurso:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso - cf. artigos 144º-2 e 146º-4 do CPTA, artigos 5º, 608º-2, 635º-4-5 e 639º do CPC-2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA -, alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas; sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo - cf. artigos 73º-4, 141º-2-3, 143º e 146º-1-3 do CPTA[1].

Ora, tudo visto, as questões a resolver contra a decisão ora recorrida são as seguintes:

- erro de julgamento, por incorreta aplicação do artigo 41.º do Decreto-Lei nº 503/99 à luz do art. 59º/1-f) da CRP.

*

O T.A.C. decidiu assim:

“…

Esta questão não é nova, tendo sido decidida no recente acórdão do TCA-Sul de 4.10.2017, proc. 51/17.6BEBJA, cujo excerto se transcreve:

“A Lei nº 11/2014, de 6 de março, veio estatuir mecanismos de convergência do regime social da função pública com o regime geral da segurança social em diversos domínios. Através da nova redação conferida ao artigo 41.º, do Decreto-Lei nº 503/99, a referida lei introduziu alterações no regime de acumulação de prestações por incapacidade permanente resultante de acidente ou doença profissional com remunerações ou pensões. Assim, a possibilidade de acumular as prestações periódicas por incapacidade permanente resultante de acidente de trabalho na Administração Pública com remuneração e pensão passou a ficar mais restringida.

Com efeito, por força da citada disposição legal, a partir de 7 de Março de 2014, a pensão por incapacidade permanente resultante de acidente de trabalho não é acumulável com: a) A remuneração correspondente ao exercício da mesma atividade em caso de incapacidade permanente absoluta resultante de acidente ou doença profissional; b) A parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente da capacidade geral de ganho do trabalhador, em caso de incapacidade permanente parcial resultante de acidente ou doença profissional; c) A remuneração correspondente à atividade exercida em condições de exposição ao mesmo risco, sempre que esta possa contribuir para o aumento de incapacidade já adquirida. Como resulta do preâmbulo da Lei nº 11/2014, pretendeu-se, com esta alteração legislativa, aperfeiçoar o regime de acumulação das pensões e capitais de remição de natureza indemnizatória atribuídos em consequência de acidentes de trabalho ou doenças profissionais sem qualquer impacto real na capacidade geral de ganho e nos rendimentos com remunerações do trabalho e pensões de aposentação ou reforma.

O Senhor Provedor de Justiça, comparando o regime previsto na Lei dos Acidentes de Trabalho (doravante designada LAT) com o regime previsto no Decreto-Lei nº 503/99, atualizado pela Lei nº 11/2014, afirmou, tal como o Tribunal a quo, existir uma iníqua diferenciação de regimes de reparação do infortúnio laboral na medida em que a LAT, aprovada pela Lei nº 98/2009, de 6 de Setembro, prevê expressamente que a pensão por incapacidade permanente seja cumulável com qualquer outra (nº 2 do artigo 51º da referida Lei) e que a pensão por incapacidade permanente por doença profissional seja acumulável com a pensão atribuída por invalidez ou velhice no âmbito de regimes de proteção social obrigatória, sem prejuízo das regras próprias destes regimes (artigo 137.º da LAT). E, assim sendo, concluiu que a al. b) do nº 1, bem como os nºs 3 e 4, na parte em que remetem para aquela norma do artigo 41.º do Decreto-Lei nº 503/99, na redação conferida pela Lei nº 11/2014, de 6 de março, violam o princípio da igualdade expressamente consagrado no artigo 13.º da CRP. Ora, se o princípio da igualdade impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e se trate diferentemente o que for essencialmente diferente, já que, enquanto princípio vinculativo da lei, se traduz na ideia geral da proibição do livre arbítrio (cfr. a propósito Acórdão do Tribunal Constitucional nº 409/99, in DR, II série, de 10 de Março de 2000), afigura-se-nos, ao contrário do sustentado pela Recorrente, que tais normas – al. b) do nº 1, bem como os n.º 3 e 4 na parte em que remetem para aquela norma do artigo 41º do Decreto-Lei nº 503/99 - não respeitam o referido princípio da igualdade, tendo o legislador ultrapassado a margem de conformação que lhe cabe. Na verdade, a existência de um regime específico de trabalho das doenças profissionais no âmbito das entidades empregadoras públicas não justifica a dissintonia com as regras vertidas na LAT, situação “tanto mais paradoxal quanto é certa a intenção explicitamente afirmada pelo legislador governamental, ao emanar aquele diploma, de assumir por referente o “regime geral “ em matéria de reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e de doenças profissionais” – cfr. pedido de fiscalização abstrata de constitucionalidade formulado em 23/12/2016 pelo Provedor de Justiça, disponível em www.provedor-jus-pt. Ora, o critério reparatório vertido na lei, nas prestações periódicas por incapacidade permanente parcial, por referência à redução na capacidade de ganho da vítima, exige que, na efetivação do correspondente direito fundamental do trabalho - direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias (cfr. neste sentido GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in CRP Anotada, Vol. 1º, 4ª Edição Revista, pag. 770) – a reparação do dano não fique tolhida em uma compreensão estreita segundo a qual, subsistindo a remuneração do trabalhador vítima, se esvanece, na prática e na parcela correspondente, qualquer dano indemnizável – cfr. o suprarreferido pedido do Provedor de Justiça. Por conseguinte, inexistindo motivo suficiente e fundado racionalmente para a diferenciação de disciplina jurídica dos distintos universos dos trabalhadores em causa, com ablação, em dado universo subjetivo, do direito à justa reparação por acidente de trabalho, concluímos, tal como na sentença recorrida que se estribou na apreciação feita pelo Senhor Provedor da Justiça, “ pela desrazoabilidade das opções do legislador vertidas nas normas constantes do nº 1, al. b), bem como dos nºs 3 e 4, quanto a este último na parte em que remete para aquelas normas, todos do artigo 41º do Decreto-Lei nº 503/99. “

Por tais razões, entendemos que as normas em causa violam o princípio da igualdade consagrado nos artigos 13.º e 59.º, nº 1 al. f) da CRP.”

Adere-se inteiramente a este entendimento…”.

Concordamos com o TAC, com base no que foi entendido em alguns dos vários votos de vencido no ac. do TC invocado pela recorrente.

Ora, o artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP consagra a justa reparação do dano laboral, que reveste natureza compensatória.

Assim, no caso em apreço, aplicando o Direito de acordo com o artigo 9º do CC e com os artigos 1º, 2º, 13º e 18º da CRP, há inconstitucionalidade nas normas constantes da alínea b) do n.º 1 e dos n.ºs 3 e 4 – quanto a este último, no segmento que remete para aquelas – do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro (Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no Âmbito da Função Pública)[2], por violação do princípio da justa indemnização constante da alínea f) do n.º 1, do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece o direito de todos os trabalhadores a assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional.

Notemos, com a Cons.ª Maria Clara Sottomayor no cit. ac., que a questão central é a de saber qual o conteúdo do direito dos trabalhadores a justa reparação consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP.

Esta questão, como problema jurídico-constitucional, não pode ser resolvida com recurso a argumentos sistemáticos retirados do Direito infraconstitucional, pois, precisamente, o que se questiona, é saber se o Direito infraconstitucional viola, ou não, a Constituição. As deduções lógico-conceituais efetuadas pelo cit. ac. do TC, para justificar o juízo de não inconstitucionalidade, padecem do vício de inversão metodológica, na medida em que é o Direito infraconstitucional que é usado como instrumento para interpretar a norma constitucional e não a norma constitucional, como lei fundamental paramétrica, que é utilizada para aferir da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do Direito ordinário. Ou seja, usando-se o Direito ordinário e a sua «ressonância histórica», para determinar o conteúdo da norma constitucional e o âmbito de proteção do direito fundamental nela consagrado, vicia-se, a priori, o resultado do processo decisório: tudo se passa, na tese da recorrente, como se fosse o Direito infraconstitucional, usado para interpretar o conteúdo do direito fundamental que lhe vai servir de parâmetro de apreciação, a determinar a constitucionalidade de si mesmo.

Estamos assim perante um raciocínio circular, nos termos do qual o Direito ordinário é usado, simultaneamente, como instrumento de interpretação do Direito constitucional e como resultado dessa interpretação, pois este raciocínio há de necessariamente implicar a decisão final de conformidade do direito infraconstitucional à Constituição.

Ao tempo do aditamento do direito dos trabalhadores a uma justa reparação ao n.º 1 do artigo 59.º da CRP – Revisão Constitucional de 1997 – já o instituto da responsabilidade civil e o conceito de dano tinham evoluído para o alargamento crescente dos casos de responsabilidade civil objetiva e para a densificação e abertura do conceito de dano, considerado o centro do instituto da responsabilidade civil e um reflexo das várias dimensões – física e psíquica, corporal e mental, afetiva e existencial – da pessoa humana, que eram ignoradas pelo citada «ressonância histórica» da legislação dos acidentes de trabalho, a qual, partindo de uma conceção de pessoa humana muito distinta da conceção subjacente à Constituição de 1976, construiu o conceito de dano laboral de uma forma meramente assistencialista incompatível com o direito a uma reparação justa previsto na Constituição (artigo 59.º, n.º 1, al. f), da CRP).

À luz da Constituição, o âmbito do conceito de dano laboral está relacionado com a dignidade da pessoa humana e com a tutela constitucional dos seus direitos fundamentais – os direitos ao livre desenvolvimento da personalidade, à integridade física, psíquica e moral, o direito à saúde, o direito ao trabalho – e não apenas com um mínimo de sobrevivência dos trabalhadores e das suas famílias, numa visão neoliberal anglo-americana, impraticável num Estado social de Direito.

A esse propósito, veja-se como o conceito de acidente de trabalho, definido pela referida legislação, é obsoleto, por incluir apenas a lesão física e não a lesão psíquica, restrição que veio a ser corrigida pela doutrina e pela jurisprudência (cf. JÚLIO GOMES, O Acidente de trabalho, Coimbra, 2013, pp. 33-34).

A sobrevivência, no essencial, do regime de acidentes de trabalho anterior à Revolução de 25 de abril de 1974 explica-se não pela sua perfeição ou adequação, mas por uma inércia histórica, com a qual a Revisão Constitucional do 1997, consagrando o direito dos trabalhadores a uma justa reparação, quis romper.

Continuando a citar a Cons.ª Maria Clara Sottomayor, note-se que, dada a teleologia e o espírito que presidiu à Constituição – baseados na dignidade da pessoa humana, na solidariedade e na igualdade material – não se pode considerar que o legislador da revisão constitucional de 97, quando consagrou o direito à justa reparação dos trabalhadores, no artigo 59.º, n.º 1, al. f) da CRP, tinha apenas por objetivo garantir o patamar de proteção dos trabalhadores que era já conferido pela legislação ordinária.

Pelo contrário, o legislador constitucional visou, com a tipificação do direito, alargar o seu conteúdo, remetendo, como indicia a expressão «justa reparação», para o princípio da reparação integral do dano presente no direito civil, na múltipla dimensão que lhe é reconhecida e que a jurisprudência dos tribunais comuns tem desenvolvido. Dano, como se tem defendido na doutrina civilista, é toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica e é apenas em função do dano que a responsabilidade civil realiza a sua finalidade essencialmente reparadora ou reintegrativa.

A atribuição de uma indemnização ao lesado tem na sua génese a eliminação ou atenuação de uma situação desfavorável que se verificou pela violação de direitos, bens jurídicos ou vantagens protegidas pelo direito, destinando-se a proporcionar ao lesado a situação de que este usufruiria se o facto que originou os danos não se tivesse verificado.

À medida que, com o progresso económico e social, se diversificam os riscos de lesão, os tribunais tendem a interpretar extensivamente as normas que tutelam os direitos de personalidade, evolução que deve também verificar-se no domínio dos acidentes de trabalho e que a Constituição quis refletir no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP.

Deve ainda sublinhar-se, a propósito do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na redação dada pelo artigo 6.º da Lei n.º 11/2014, de 3 de março, que a ratio do novo regime da proibição de acumulação das prestações por incapacidade permanente parcial com a parcela da remuneração correspondente à redução permanente da capacidade de trabalho, no âmbito da Administração Pública, tal como decorre da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 171/XII/2.ª, terá sido apenas a sustentabilidade financeira da Caixa Geral de Aposentações, uma vez que o legislador não procede, na citada Exposição de Motivos, a qualquer justificação jurídica para a alteração legislativa introduzida e esta não se enquadra na pretendida convergência de regimes, até porque os trabalhadores do setor privado beneficiam da possibilidade de acumulação (cf. artigo 51.º, n.º 1, da LAT, que afirma o princípio de que a pensão por incapacidade permanente não pode ser suspensa ou reduzida mesmo que o sinistrado venha a auferir retribuição superior à que tinha antes do acidente, salvo em consequência de revisão da pensão», agora vedada no emprego público).

Para justificar o conteúdo do dano laboral sofrido pelos servidores da coisa pública (pelo facto de continuarem a receber a totalidade da remuneração, nos termos do artigo 23.º, n.º 4, do RAS), consideramos como nada evidentes asserções habitualmente retiradas de uma comparação simplista e muito incompleta entre o regime jurídico da função pública e o do setor privado, que estão longe de ser óbvias, revelando, pelo contrário, o Direito positivo vigente que as distinções conceituais – entre carreira no setor público e categoria no setor privado e entre dano laboral e dano civil –, com que se fundamentou a constitucionalidade da norma questionada, não são rigorosas de um ponto de vista jurídico.

Para além de a distinção entre trabalhadores privados e trabalhadores públicos – estes cuja entidade patronal pode legislar em causa própria - se ter esbatido com a disseminação da contratação laboral pelo Estado e demais pessoas coletivas públicas, não se pode afirmar que o trabalhador que exerce funções públicas não sofra perdas do ganho potencial.

É que há profissões em que o trabalhador recebe uma parte da remuneração em subsídios e em horas extraordinárias. Se, por razões de saúde ou em virtude de um acidente, deixar de poder fazer trabalho noturno ou por turnos, ou horas extraordinárias, o seu rendimento global (apesar da manutenção da remuneração base) pode baixar drasticamente.

Em relação às carreiras especiais da função pública, em que a prestação do trabalhador está circunscrita a determinadas funções e em que os trabalhadores não são promovidos automaticamente, pelo decurso dos anos, mas apenas mediante avaliações de resultados ou desempenho, há que equacionar que o trabalhador acidentado ou com doença profissional, que padece de uma incapacidade parcial, pode não conseguir atingir os resultados exigidos na avaliação do desempenho, sendo ultrapassado por outros trabalhadores no acesso a determinadas posições ou funções, ficando, portanto, diminuída a sua capacidade de ganho mesmo que mantenha a remuneração vigente à data do acidente.

Por outro lado, em mais uma diferença frequentemente ignorada, os trabalhadores do regime laboral privado ou comum, que estão autorizados legalmente a acumular a pensão por incapacidade permanente parcial com a totalidade da retribuição, ainda que esta seja superior à auferida à data do acidente, podem não sofrer qualquer perda de retribuição efetiva, por estar proibida na lei ou em convenções coletivas, nem perdem, na prática, o posto de trabalho, por não ser possível ao empregador extingui-lo, devido à proteção que os trabalhadores encontram nas convenções coletivas e na prática judiciária.

Por último, os argumentos do suposto privilégio dos trabalhadores atingidos relativamente aos não atingidos por acidentes de trabalho e do efeito de «moral hazard», que alegadamente seria potenciado pelo regime de acumulação, assentam numa ideia pré-concebida, sem qualquer fundamento empírico nas sociedades em geral e nas de Estado social de Direito em especial, que esquece que a maioria dos trabalhadores que sofrem acidentes de trabalho não conhecem a lei, antes de sofrerem o acidente, de forma a poderem moldar o seu comportamento por ela, e que, conforme ilustram as estatísticas oficiais, é na indústria e na construção civil que acontecem os acidentes mais graves e o maior número de mortes de trabalhadores, sendo as causas desses infortúnios, com frequência, as deficientes condições em que o trabalho é exercido e a falta de segurança, por culpa dos empregadores que não cumprem as suas obrigações.

Há, pois, que estar atento aos limites e aos controlos epistémicos dos juízos de constitucionalidade na Europa continental, alvitrados por Alexy.

Tal como se enfatiza na declaração de voto da Cons.ª Catarina Sarmento e Castro que vimos seguindo, não podemos fazer, como foi pelo Tribunal Constitucional no cit. ac., sem mais demonstração, afirmações meramente conclusivas que a seguir se transcrevem: “De tal regime resultava que os trabalhadores em funções públicas viam a sua capacidade de ganho normalmente ampliada na eventualidade de sofrerem um acidente de trabalho ou doença profissional, situação que: (i) desvirtuava a função do instituto da reparação por infortúnio laboral, que é a de compensar a perda de capacidade de ganho do sinistrado; (ii) tendia a privilegiar, do ponto de vista patrimonial, os trabalhadores atingidos relativamente aos não atingidos por infortúnio; (iii) abria caminho a uma exposição imprudente ao perigo profissional, por força do efeito de «moral hazard» gerado por essa vantagem; e, em consequência, (iv) punha em causa a sustentabilidade financeira do sistema.”

Os tribunais, todos, têm limitações lógicas e, sobretudo, de base epistémica.

Por outro lado, devemos referir, com a cit. declaração de voto, que a interpretação das normas constitucionais deve fazer-se de acordo com os critérios hermenêuticos gerais (elemento gramatical, teleológico e sistemático), indicando-nos aqui, desde logo, o elemento literal, através da expressão «justa reparação», que há uma remissão (i) para o instituto da responsabilidade civil e (ii) para o princípio da reparação integral do dano.

É incontornável.

Os argumentos teleológico e sistemático de interpretação exigem que o intérprete proceda a uma leitura unitária da Constituição, que tenha em conta todas as suas normas e princípios, nomeadamente, a dignidade da pessoa humana, o princípio-base do Estado social de Direito (artigo 1.º da CRP) e que serve de critério de interpretação/delimitação do conteúdo dos direitos fundamentais (cf. Jorge Reis Novais, A Dignidade da Pessoa Humana, vol. II, pp. 27 e ss; Benedita Mac Crorie, «O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição da República Portuguesa de 1976», in Jornadas nos Quarenta Anos da Constituição da República Portuguesa, Universidade Católica, Porto, 2017, pp.105-112, e Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 144/2004 e 101/2009).

Sendo assim, a norma constitucional paramétrica, que consagra o direito dos trabalhadores a uma justa reparação, não pode deixar de ter por pressuposto uma noção de pessoa humana que abrange a vida do trabalhador no seu todo e na sua complexidade ou modo singular e único de ser, e que, portanto, impõe o direito dos trabalhadores à indemnização da totalidade dos danos por si sofridos, em caso de doença profissional ou de acidente de trabalho, de acordo com o paradigma da responsabilidade civil.

A expressão «capacidade de ganho», como escreveu a Cons.ª Maria Clara Sottomayor, encontra a sua origem no Direito civil e não pode deixar de ter o mesmo significado, quer em relação ao dano causado por acidente de trabalho ou doença profissional sofrido pelos trabalhadores da Administração Pública, quer em relação aos trabalhadores do setor privado.

Da jurisprudência civilística colhe-se a tradição de a perda de capacidade de ganho ser classificada como um dano patrimonial futuro, que abrange, de acordo com um juízo de probabilidade, a perda de oportunidades profissionais, como promoções, compensação por horas extraordinárias, a valorização profissional, a mudança de profissão, a subida de escalão, etc.

Não pode, portanto, afirmar-se que a perda da capacidade de ganho do trabalhador em funções públicas fique reparada com o princípio da manutenção da remuneração auferida no momento do infortúnio e que a norma constitucional convocada apenas exige que o legislador assegure a sua subsistência, não assumindo uma função indemnizatória ou de tornar indemne o trabalhador lesado.

A perda de capacidade de ganho não pode analisar-se apenas na diminuição imediata e atual da retribuição, mas repercute-se no património do lesado, para o futuro, durante o período laboral ativo e durante toda a sua vida.

É que o facto de o trabalhador continuar a prestar serviço e a receber a remuneração, por inteiro, não elimina o dano.

Tem que se ter em conta que a incapacidade permanente parcial vai refletir-se no esforço maior que será necessário despender para fazer a mesma tarefa, o que implicará menos disponibilidade de tempo para dedicar ao trabalho (por exemplo, em horas extraordinárias ou num segundo emprego ou outras prestações de serviço) e um esgotamento das suas reservas biológicas, que se repercutirá necessariamente no seu património e nas consequências económicas da lesão.

Ainda que não seja possível determinar com exatidão a extensão desses danos e ainda que sejam diferentes consoante a profissão em causa, sempre terão estes de ser reparados de acordo com a equidade, por força do direito fundamental constitucionalmente consagrado a uma justa reparação, pelo que a revogação da norma que permitia a acumulação da pensão por incapacidade permanente com a totalidade da remuneração põe em causa este direito dos trabalhadores da função pública, de uma forma que viola o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

E a jurisprudência constitucional já tem admitido que o conteúdo do direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, al. f), da CRP abrange os danos futuros e não pode estar condicionado a um critério de contenção de custos (cf. Acórdão n.º 147/2006).

Compreende-se, não em sede de “ciência” jurídica mas sim de Política Jurídica, que o sistema carecesse de reforma, mas a proibição de acumulação da retribuição com a pensão, por razões de sustentabilidade do sistema, sem a construção legal de uma solução alternativa que reparasse a perda de capacidade de ganho potencial (ou a perda do rendimento virtual), ultrapassa os limites do constitucionalmente admissível à liberdade de conformação do legislador, por estar em causa um direito fundamental análogo a um direito, liberdade e garantia (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 34/2008, 612/2008, 16/12); na doutrina: Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra, 2007, p. 770; Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, p. 1161), intimamente relacionado com a dignidade e a qualidade de vida dos trabalhadores, bem como com a sua integridade corporal, psíquica e moral.

Em relação à aplicação do parâmetro do princípio da igualdade, o grupo populacional afetado pelas leis dos acidentes de trabalho e pela lei dos acidentes de serviço é o das pessoas que sofrem doenças profissionais e ou são vítimas de um acidente de trabalho, que lhes provoca uma incapacidade permanente parcial, sendo juridicamente irrelevante se o empregador é uma entidade pública ou um empregador privado, e em concreto, qual o regime do contrato de trabalho (retribuição, modos e consequências de cessação do contrato, etc.) de cada pessoa vitimada por acidente de trabalho, portadora de incapacidade permanente parcial.

Por imposição do princípio da igualdade, todos os trabalhadores devem beneficiar de um regime idêntico no que diz respeito à reparação por acidentes de trabalho.

Por isso, como refere a Cons.ª Maria Clara Sottomayor na sua ponderada declaração de voto, não são pertinentes considerações comparativas de teor vago ou factualmente incompleto e não comprovadas.

Considera-se, pois, tal como a Cons.ª cit., que as normas em apreciação violam o direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias previsto no mencionado preceito constitucional, já que, ainda que se admita uma margem de liberdade de conformação por parte do legislador relativamente à reparação por acidente de trabalho ou doença profissional, esta não pode ultrapassar as limitações decorrentes das normas constitucionais, anulando ou inviabilizando o ressarcimento efetivo e justo-igualitário do dano sofrido em virtude de acidente de trabalho ou doença profissional, que o artigo 59.º, n.º 1, alínea f), estabelece.

Com efeito, as normas visadas impedem a acumulação de pensões pagas em consequência de um acidente profissional ou de uma doença profissional, com a “parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente da capacidade geral de ganho do trabalhador” (alínea b) do n.º 1), ou com a “com a pensão de aposentação ou de reforma (...) na parte em que estas excedam aquela” (n.º 3), assim como a acumulação da pensão por morte com a pensão de sobrevivência.

Assim, o seu conteúdo, ao obstar sempre a esta acumulação, afasta a reparação específica e autónoma do dano laboral, que é consumida por via do seu abatimento na remuneração ou pensão conservada.

Esta neutralização elimina a restauração per se do dano que tal pensão visava, razão pela qual é violadora da garantia constitucional de justa reparação.

Resulta do que se diz que o acidente de trabalho ou doença laboral, no caso dos trabalhadores da Administração Pública, produz, mercê das características próprias do emprego público, dano laboral, independentemente de estar ou não garantida a intangibilidade da remuneração.

Não só o dano laboral existe, como está subjacente à sua reparação o risco derivado do trabalho prestado. O ressarcimento do dano laboral implica mais do que a mera garantia de uma retribuição, sendo esta a contrapartida económica da prestação de trabalho, já que aquela compensação pretende cobrir, para além da perda de salário, outras vertentes que vão além dele, designadamente, a perda de capacidade de ganho potencial, ou de oportunidade profissional, como, por exemplo, a diminuição da capacidade de progressão na carreira, ou impedimentos à transição para algumas carreiras especiais incompatíveis com a capacidade de trabalho residual resultante do infortúnio laboral ou, em geral, a capacidade de evoluir profissionalmente; ou a maior dificuldade no exercício das suas funções, nomeadamente, em virtude da menor adaptação ergonómica, dela resultando, por exemplo, maior penosidade no cumprimento de funções; ou a impossibilidade de auferir alguns suplementos remuneratórios, por incapacidade para o exercício de tarefas de modo a aceder-lhes; ou a diminuição da satisfação profissional, nomeadamente, por sujeitar o sinistrado a mudança no trabalho habitual.

Sublinhamos, de novo, que o direito fundamental constitucionalmente consagrado é que define as balizas dentro de cujos limites se dará a conformação legal possível, e que, na alínea f) do n.º 1, do artigo 59.º, a Constituição atribui, de modo inequívoco, um cariz inegavelmente indemnizatório a este direito fundamental do trabalhador, que visa reparar os efeitos da lesão, o que deixa de ser efetiva e suficientemente assegurado pela solução da aqui recorrente e do ac. do TC que invoca em seu favor.

Não basta, assim, que exista uma qualquer proteção legal de modo a satisfazer a prescrição constitucional, e, seguramente, não o satisfaz uma visão garantística ou meramente assistencialista do direito em causa, que fizesse com que, neste caso, como sucede noutras pensões que não estas, a pensão fosse apenas ditada pela “situação de necessidade económica”, presumida “a partir do facto — postulado pelo Direito laboral — de que aquele que trabalha por conta de outrem carece da retribuição da prestação de trabalho subordinado para assegurar a sua subsistência e dos seus dependentes”.

Em síntese, as normas infraconstitucionais que fundaram a decisão administrativa da ré violam

(1) o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa, por não assegurarem plenamente o direito fundamental à justa reparação do dano laboral, bem como

(2) o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, na medida em que introduziram uma diferenciação injustificada entre servidores da Administração Pública e trabalhadores do setor privado.

Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso.

*

III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acorda-se em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 23-05-2019


Paulo H. Pereira Gouveia (relator)

Pedro Marchão Marques [Vencido por remissão para o acórdão deste TCAS de 7.02.2019, Proc. nº 2951/16.1BELSB, por mim relatado]

Alda Nunes


(1) Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule - isto no sentido muito amplo utilizado no CPC - deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e as condições legalmente exigidos para o efeito.

(2) Na redação da Lei nº 11/2014:

Artigo 41º

1 - As prestações periódicas por incapacidade permanente não são acumuláveis:

a) Com remuneração correspondente ao exercício da mesma atividade, em caso de incapacidade permanente absoluta resultante de acidente ou doença profissional;

b) Com a parcela da remuneração correspondente à percentagem de redução permanente da capacidade geral de ganho do trabalhador, em caso de incapacidade permanente parcial resultante de acidente ou doença profissional;

c) Com remuneração correspondente a atividade exercida em condições de exposição ao mesmo risco, sempre que esta possa contribuir para o aumento de incapacidade já adquirida.

2 - O incumprimento do disposto no número anterior determina a perda das prestações periódicas correspondentes ao período do exercício da atividade, sem prejuízo de revisão do grau de incapacidade nos termos do presente diploma.

3 - São acumuláveis, sem prejuízo das regras de acumulação próprias dos respetivos regimes de proteção social obrigatórios, as prestações periódicas por incapacidade permanente com a pensão de aposentação ou de reforma e a pensão por morte com a pensão de sobrevivência, na parte em que estas excedam aquelas.

4 - O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, às indemnizações em capital, cujo valor fica limitado à parcela da prestação periódica a remir que houvesse de ser paga de acordo com as regras de acumulação do presente artigo.