Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:538/17.0BECTB
Secção:CA
Data do Acordão:04/19/2018
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:PRESSUPOSTOS DE FACTO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
RESERVA DE JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Sumário:I - O ato administrativo (cf. os artigos 148º do CPA e 51º/1 do CPTA), onde se inclui a respetiva fundamentação de facto, nunca é um documento autêntico. É um documento, um simples suporte que contém uma decisão administrativa que está integralmente subordinada - sempre - ao controlo jurisdicional, por via da reserva de jurisdição administrativa consagrada nos artigos 212º/3, 268º/4 e 111º da CRP, isto é, por via do princípio constitucional da tutela jurisdicional plena e efetiva.
II - Os respetivos pressupostos de facto (cf. artigos 151º/1-d)-e), 152º e 153º do CPA) não cabem na previsão de “factos praticados pela autoridade ou oficial público” ou na previsão de “factos atestados com base nas perceções da entidade documentadora”. Tais pressupostos de facto da decisão administrativa, no âmbito da função de administração pública, são “apenas” isso e, como tal, sindicáveis pelo tribunal sem as amarras previstas para os meios de prova com força probatória tabelada.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
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Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO
M… DO A…., Entidade Requerida nos autos do PROCESSO CAUTELAR intentado por C… -…., S.A, requereu, nos termos do disposto no artigo 131º, n.º 6 do CPTA, o levantamento da providência cautelar provisoriamente decretada nos presentes autos.
Discutido o incidente, o TAC decidiu o seguinte:
- Indefiro o levantamento da suspensão da eficácia dos despachos proferidos pela Entidade Requerida nos dias 20-11-2017 e 21-11-2017, provisoriamente decretada.
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Inconformado com tal decisão, a entidade requerida interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
A. A Requerente intentou no tribunal «a quo» providência cautelar tendente à suspensão da eficácia de dois atos administrativos distintos, a saber:
Despacho do Senhor Inspetor F…. da Inspeção-Geral da ..do …), de 20.11.2017, que determinou à Requerente a cessação de atividade de secagem de bagaço de azeitona; e,
Despacho do Senhor Subinspetor da …, de 21.11.2017, que aplicou várias medidas preventivas à Centroliva, nomeadamente, a cessação de toda e qualquer receção de bagaço de azeitona na lagoa de armazenamento localizada junto à unidade de secagem de bagaço de azeitona;
E ainda,
o decretamento provisório da referida providência.
B. A Requerente obteve provimento no que ao decretamento provisório da providência diz respeito, por despacho de 28/11/2018,
C. Tendo a Requerida reagido nos termos do nº 6 do artigo 131º do CPTA, solicitando o levantamento daquela decisão provisória, pretensão essa que o Mm. juiz “a quo” veio a indeferir por decisão de 11/01/2018.
D. A apontada decisão afigura-se, porém, inquinada por erro de interpretação dos pressupostos de facto, a saber: que a “prova aduzida … quanto ao escorrimento de águas ruças ficou muito aquém do que seria a adequada e suficiente, pois baseou-se em três fotografias..
E. Essa premissa não é, porém, verdadeira; verdade sendo antes, como consta dos autos, que a prova assenta no verificado presencialmente pelos Inspetores da …. e vertido de modo fundamentado nos atos que fundamentaram o mandado/medida cautelar que é objeto desta providência (Doc. nº 2 do ri da providência).
F. Á luz do prescrito nos arts. 363º, 371º e 372º do CC «ex vi» 607º nº 5 do CPC, os documentos emanados de autoridade pública, no exercício de competências legais e próprias, só podem ser impugnados com base na sua falsidade;
G. Não o tendo sido, haveriam tais atos da… de haver-se como prova plena do facto que atestam - a escorrência de águas ruças provenientes da lagoa de armazenamento de bagaço de azeitona.
H. Tendo a decisão em crise sido em sentido contrário, enferma de erro de apreciação da prova;
I. E, por via daquela, na errónea conclusão de que “os perigos para o ambiente e para a saúde pública …são diminutos”;
J. O que revela que, no que tange à ponderação dos interesses em presença (o ambiente e a saúde publica de um lado, e o interesse económico do outro), o aresto em apreço erra completamente o alvo, havendo por isso de ser revogado.
K. Termos em que, errou a douta decisão recorrida, pois ignorou por completo o conteúdo do despacho do Subinspetor da…., de 21.11.2017, documento autêntico, que demonstra de forma clara e inequívoca que da lagoa de armazenamento de bagaço de azeitona, em 21/11/2017, escorriam águas ruças, em violação do disposto nas normas do Artigo 607º, nº 5, do CPC, «ex vi» artigos 363º, nº 2, 371º e 372º todos do CC. Mas mais:
L. Salvo o respeito devido, afigura-se-nos que na apreciação e valoração da prova o juízo e o percurso lógico seguido pelo Tribunal à quo não respeitou os valores da prudência e da equidistância em relação a todos os meios de prova, não foi isento nem imparcial, nem se fundou em juízos equitativos, pois em igualdade de circunstâncias, deu sempre credibilidade ao alegado pela Requerente, em detrimento do alegado pelo ora recorrente, valorando assim, convicções puramente subjetivas sem suporte nos autos, como se conclui da seguinte passagem do decisório em recurso:
«… facto concreto em que se basearam para decretar as medidas impostas foi a não cobertura tanto da lagoa de armazenamento do bagaço de azeitona, como do depósito circular de estrutura metálica, assim como da lagoa quadrada, o que, em caso de pluviosidade, poderia implicar o vazamento do bagaço de azeitona e das águas ruças contidos nas mesmas, com todos os efeitos nefastos daí advenientes.
… não parece crível, que uma empresa que desde 1991 – ou seja, há 26 anos - se dedica à extração de azeite a partir do bagaço de azeitona, mediante um ciclo que se repete todos os anos, não tenha os conhecimentos técnicos necessários para dimensionar adequadamente as suas instalações, de modo a fazer face às eventualidades que possam surgir, mormente as relacionadas com as condições climatéricas.».
M. Questão essencial nos autos, não é saber se «é crível… [ou não] que a requerente não tenha os conhecimentos técnicos necessários para…»; mas antes saber se esses conhecimentos foram aplicados às instalações dos autos, especialmente quando está documentado nos autos inspeção de autoridade pública com competência específica na matéria e no exercício de poderes legais e próprios, que atesta precisamente o contrário do que o tribunal “a quo” teve por «crível».
N. Termos em que, também aqui errou a douta decisão recorrida estribada que foi em premissas não provadas e sem adesão na realidade, não valorando todos os meios de prova de forma idêntica em violação do disposto no artigo 607º, nº 5, do CPC.
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A recorrida contra-alegou, concluindo assim:
A. Contrariamente ao alegado pelo Recorrente, o Despacho do Senhor Subinspetor de 21.11.2017 constitui um ato administrativo nos termos e para os efeitos previstos no artigo 148.º do CPA e no artigo 51/1 do CPTA, de natureza decisória e que não está coberto por qualquer tipo de força probatória especial nos termos previstos naqueles diplomas legais.
B. A tese defendida pelo Recorrente é totalmente contrária ao princípio da tutela jurisdicional efetiva e à reserva de jurisdição administrativa consagrados nos artigos 268º/4 e 212.º/3 da Constituição, respetivamente, dos quais resulta que os atos administrativos lesivos, independentemente da sua forma, podem ser impugnados pelos particulares lesados nos Tribunais Administrativos e através dos mecanismos próprios previstos no CPTA.
C. Ainda que se entendesse que o Despacho de 21.11.2017 tem uma natureza parcialmente narrativa ou certificativa de factos alegadamente verificados na ação inspetiva de 21.11.2017, esse ato sempre seria nulo por força do disposto no artigo 161.º/2 j) do CPA, uma vez que são inverídicos ou inexistentes os factos narrados no que se refere às alegadas escorrências de águas ruças.
D. O Despacho de 21.11.2017 nunca faria prova plena de qualquer escorrência de águas ruças, uma vez que os documentos autênticos apenas fazem prova plena quanto aos factos praticados pelo seu autor e não quanto aos factos por ele relatados e de que teve conhecimento indireto, como sucede no caso em apreço e resulta do disposto no artigo 371º/1 do Código Civil.
E. O teor do Despacho de 21.11.2017 nunca permitiria provar a escorrência de águas ruças para o domínio hídrico ou para os terrenos, porquanto no mesmo apenas é referida a escorrência de águas ruças "para dois depósitos", pelo que bem andou a Decisão recorrida ao considerar não provado que da lagoa de armazenamento de bagaço de azeitona escorressem águas ruças.
F. A Decisão recorrida também não merece reparo quanto à valoração que o Tribunal a quo fez das fotografias que foram juntas aos autos pelo próprio Recorrente, na medida em que estas fazem prova plena quanto aos factos que representam (inexistência de "escorrências") (cfr. fotografias nºs 4, 5 e 6 do documento n.º 006515579 do …juntas aos Autos com o Requerimento da Recorrente de 30.11.2017).
G. Ainda que se considerasse existir dúvida ou contradição entre provas do mesmo valor (despacho e, fotografias), sempre teria o Tribunal a quo o dever e a faculdade de apreciar livremente as duas provas e de formar a sua convicção com base no elemento de prova que maior credibilidade lhe merecesse.
H. Pelo exposto, a Decisão recorrida não enferma de qualquer dos erros que lhe são imputados neste! recurso, pelo que deve ser mantida e devem ser julgadas improcedentes as conclusões A) a N} das! alegações de recurso do Recorrente.
I. Contrariamente ao defendido pelo Recorrente, a Decisão recorrida não merece qualquer reparo ou crítica na parte em que decidiu que "Não se provou, com interesse para a decisão a proferir, que da lagoa de armazenamento de bagaço de azeitona, em 21-11-2107, escorriam águas ruças." (pág. 9 da Decisão   recorrida).
J. A Decisão recorrida não merece igualmente qualquer reparo ou crítica, nem enferma de qualquer dos erros de julgamento que lhe são imputados pelo Recorrente na parte em que decidiu indeferir o pedido de levantamento da suspensão de eficácia dos Despachos da …de 20.11.2017 e de 21.11.2017, em  virtude  de o Tribunal  a quo ter  considerado,  e  bem, que  "com base na prova
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apresentada pela Entidade Requerida, (...) os perigos para o ambiente e para a saúde pública que representa a receção do bagaço de azeitona e a contenção das águas ruças, nos moldes efetuados pela Requerente, são diminutos" (pág. 21 da Decisão recorrida).
K.  A Decisão do Tribunal a quo encontra-se corretamente suportada nos elementos de prova juntos aos autos e observa o preceituado quanto ao seu valor probatório.
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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.
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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:
Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito[1] que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas. Sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo (cf. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa – Lições, 15ª ed., pp. 411 ss; artigos 73º/4, 141º/2/3, 143º e 146º/1/3 do CPTA).
Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule (isto no sentido muito amplo utilizado no CPC), deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e condições legalmente exigidos para o efeito.
Assim, as questões a resolver neste recurso - contra a decisão recorrida – são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – FACTOS PROVADOS
A) A Requerente adquiriu, em 16-04-1991, diversos edifícios para armazém e atividade industrial, sitos em Monte da Ordem, no concelho e freguesia de…, no distrito de…;
B) Nesse lugar, instalou um estabelecimento industrial com uma unidade de secagem e extração de azeite a partir de bagaço de azeitona e uma unidade de produção de energia elétrica utilizando biomassa proveniente do bagaço de azeitona como combustível, após a última extração do azeite;
C) A unidade de produção de energia elétrica situa-se a 500 metros da unidade de secagem e extração de azeite;
D) O bagaço de azeitona é armazenado numa lagoa, não coberta, cujos taludes confinam com a linha de água da Ribeira do …, a qual, no dia 20-11-2017, não se encontrava com a capacidade máxima de preenchimento;
E) Em redor da lagoa, existe um sistema de tubagens que encaminha águas ruças para dois depósitos;
F) Em outubro de 2017 a Requerente substituiu a tela de PVC da lagoa de armazenamento de bagaço de azeitona;
G) As águas ruças são armazenadas num depósito circular de estrutura metálica, assim como numa lagoa quadrada, as quais não são cobertas e, no dia 20-11-2017, não se encontravam com a capacidade máxima de preenchimento;
H) Tanto a lagoa de armazenamento de bagaço de azeitona, como o depósito circular de armazenamento de águas ruças estão situadas ao lado da unidade de secagem e extração de azeite;
I) No seguimento de uma ação de inspeção às instalações da Requerente em 03-02- 2016, o …determinou, em 05-02-2017, que a mesma: removesse umas tubagens existentes nas margens da Ribeira de…; removesse e encaminhasse os solos contaminados no local para destino autorizado, fazendo prova do mesmo; executasse obras de separação e contenção das águas contaminadas na área exterior ao edifício afeto ao processo de secagem e repasse e refizesse a caleira circulante ao depósito de águas ruças; evidenciasse nas peças desenhadas e legendadas das respetivas instalações todos os circuitos de águas e identificasse os pontos de captação e rejeição existentes, assim como apresentar a metodologia utilizada para a trasfega e bombagem de águas contaminadas (águas ruças);
J) Em 07-03-2016 a Requerente remeteu ao …a cronologia dos trabalhos realizados e fotografias dos mesmos, os quais consistiram, designadamente, na abertura de canal para meter tubo de dreno e respetivo revestimento e limpeza e remoção de terras contaminadas existentes junto do tanque de águas ruças;
K) Em 31-05-2017 a Requerente prometeu ceder e a sociedade…, SA. prometeu utilizar a balsa existente na unidade industrial da primeira, a fim da segunda armazenar o bagaço de azeitona que detém, procedendo a primeira ainda à secagem e extração de azeite do referido bagaço;
L) Em 24-07-2017 a Requerente apresentou, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 165/2014, de 05-11, um pedido de regularização do estabelecimento industrial mencionado na alínea B) ao Presidente da Câmara Municipal de….;
M) Entre 02-10-2017 e 21-11-2017 deram entrada na unidade industrial da Requerente 20.629,40 litros de bagaço de azeitona;
N) Em 20-11-2017 a Inspeção-geral da …doravante …– comunicou à Requerente que devia cessar de imediato a atividade de secagem de bagaço de azeitona, na medida em que a mesma se encontrava a laborar em parte sem ter apresentado qualquer alvará de licença, autorização ou qualquer título válido para o efeito;
O) Em 21-11-2017 o Subinspetor-geral do ….determinou que a Requerente: cessasse de imediato toda e qualquer receção de bagaço de azeitona na lagoa utilizada para o armazenamento da mesma; que no prazo de 5 dias úteis enviasse um plano de calendarização de remoção e encaminhamento dos produtos contidos na lagoa mencionada, bem com das águas ruças contidas no tanque circular e na lagoa quadrada, para destinatários autorizados; e que no prazo de 20 dias úteis implementasse as medidas propostas no plano referido e comprovasse as mesmas, tendo dispensado a audiência prévia dos interessados, em virtude da urgência da decisão face ao perigo para o ambiente e a saúde pública;
P) Em 24-11-2017 deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco o requerimento inicial da presente providência;
Q) Em 28-11-2017 foi admitida a providência cautelar instaurada e decretada provisoriamente a suspensão da eficácia dos despachos proferidos pela Entidade Requerida;
R) Em 30-11-2017 a Entidade Requerida requereu o levantamento da providência cautelar provisoriamente decretada;
S) Em 11-12-2017 a Requerente respondeu ao pedido de levantamento provisório;
T) Em 14-12-2017 a Entidade Requerida apresentou oposição à providência cautelar;
U) Em 15-12-2017 realizou-se uma reunião no Tribunal com os Mandatários das partes;
V) Em 01-12-2017 foi levantado pela Guarda Nacional Republicana um auto de notícia por contraordenação à Requerente, pelo tipo de descarga de efluentes para o domínio hídrico sem a respetiva licença;
W) Em 07-12-2017 foi elaborado um aditamento ao auto de notícia, em virtude de uma nova deslocação às instalações da Requerente pela Guarda Nacional Republicana no dia 05-12-2017;
X) No âmbito dessa deslocação foram recolhidas amostras de água da Ribeira da …que posteriormente foram entregues à Agência Portuguesa do Ambiente – Divisão de Castelo Branco, para análise;
Y) Tanto o auto de notícia como o aditamento ao mesmo, tiveram por objeto uma inspeção à unidade de produção de energia elétrica da Requerente;
Z) Nos dias 20 e 21 de dezembro de 2017 as águas da Ribeira da …junto à zona da unidade de secagem e lagoa de armazenamento do bagaço de azeitona apresentava uma cor transparente, não se denotando vestígios de espuma à superfície.
Mais disse:
Não se provou, com interesse para a decisão a proferir, que da lagoa de armazenamento e bagaço de azeitona, em 21-11-2017, escorriam águas ruças.
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II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO
É a seguinte a questão a resolver contra a decisão recorrida:
- Erro de julgamento da matéria de facto dada como não provada (da lagoa de armazenamento e bagaço de azeitona, em 21-11-2017, escorriam águas ruças.).
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O TAC entendeu o seguinte:
“No caso concreto, encontram-se em causa dois despachos proferidos pela Inspeção Geral da ….(doravante, I…), serviço integrado no…., ora Entidade Requerida.
O primeiro foi proferido em 20-11-2017 e decretou a cessação imediata da atividade de secagem de bagaço de azeitona, com fundamento em que a Requerente se encontrava a laborar em parte e não apresentou alvará de licença, autorização ou qualquer outro título válido para o efeito.
Ou seja, a Entidade Requerida não invocou qualquer interesse público concreto e específico que estivesse a ser posto em causa pela atividade que a Requerente se encontrava a desenvolver.
Baseou a sua decisão unicamente no interesse público genérico do cumprimento da legalidade.
Ora, a Requerente, em 24-07-2017, apresentou, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 165/2014, de 05-11, um pedido de regularização do seu estabelecimento industrial ao Presidente da Câmara Municipal de …, pelo que esta questão relevará na aferição do requisito do fumus bonis iuris a fim de aferir da concessão ou não da providência cautelar requerida, não imediatamente nesta sede, de ponderação de interesses.
Sendo assim, o Tribunal não descortina razões para efetuar qualquer ponderação de interesses neste âmbito, não sendo assim, em consequência, de levantar a suspensão da eficácia desse ato - de cessação da atividade de secagem do bagaço de azeitona - provisoriamente decretada.
O segundo despacho proferido pelo…, em 21-11-2017, impôs duas obrigações à Requerente: em primeiro lugar, a cessação da receção do bagaço de azeitona na lagoa onde o mesmo é armazenado e, em segundo, a respetiva remoção e encaminhamento para destinatários autorizados, assim como das águas ruças que se encontram contidas num depósito circular de estrutura metálica e numa lagoa quadrada.
Tenha-se em mente que esta decisão foi tomada sem audiência prévia da Requerente, com fundamento na respetiva urgência da mesma, face à alegada gravidade ambiental detetada.
Assim, no despacho de fundamentação das medidas adotadas, além de ter sido explanado detalhadamente os perigos para o ambiente e para a saúde pública do bagaço de azeitona e das águas ruças, sustentaram-se juridicamente as mesmas com base nos princípios da prevenção e da precaução, aplicáveis em matéria do Direito do Ambiente.
Em sede de ponderação de interesses, releva, porém, analisar os factos concretos que a Entidade Requerida constatou nas instalações da Requerente a fim de adotar as medidas referidas.
Assim, em primeiro lugar, afirmou ter constatado que “… da lagoa de armazenamento de bagaço de azeitona, cujos taludes confinam com a linha de água da Ribeira do Lucriz, escorriam águas ruças decorrentes de decantação, que eram encaminhadas através de tubagens para dois depósitos, o que indicia falhas estruturais e de impermeabilização”.
Face à descrição dos perigos para o ambiente e para a saúde pública que o bagaço de azeitona representa – e que explanou, como salientamos – seria, de facto, um atentado bastante grave contra esses bens públicos, caso essa situação se comprovasse.
Só que a prova aduzida pela Entidade Requerida ficou muito aquém da que – na perspetiva do Tribunal – seria a adequada e suficiente.
Senão, vejamos.
A prova quanto ao escorrimento das águas ruças baseou-se em três fotografias, em nada conclusivas quanto à evidência de águas a escorrer: daí, o Tribunal ter dado como não provado – indiciariamente – esse facto.
Além de que, outros elementos trazidos ao processo pela Requerente, são suscetíveis – como o foram, na convicção do Tribunal - de pôr seriamente em dúvida tal ocorrência.
Em primeiro lugar, em outubro de 2017 a Requerente substituiu a tela de PVC da lagoa de armazenamento de bagaço de azeitona, ou seja, cerca de um mês antes da ação de inspeção, o que indicia o bom estado da mesma, em termos de poder cumprir com as funções de impermeabilização que lhe estão associadas.
Em segundo lugar, não se pode olvidar que em 03-02-2016, o …já havia efetuado outra ação de inspeção às instalações da Requerente, tendo-lhe imposto diversas medidas que garantissem o bom funcionamento das suas instalações, e que a Requerente – aparentemente – cumpriu na totalidade: de facto, remeteu ao …uma cronologia dos trabalhos realizados e fotografias dos mesmos, não tendo sido junto ao presente processo qualquer documentação que pusesse em causa esse cumprimento.
Em terceiro lugar, afigura-se ao Tribunal, que o sistema de tubagens que existe em redor da lagoa e que encaminha as águas ruças para dois depósitos, será mais um mecanismo de salvaguarda e de segurança, do que propriamente uma maneira de, subrepticiamente, fazer escoar águas contaminadas para o leito de uma ribeira.
Daí que, o Tribunal – face aos elementos específicos que lhe foram apresentados pela Entidade Requerida e com base na apreciação sumária que se lhe exige nesta fase processual –  propende a considerar que uma real concretização dos perigos para o ambiente e para a saúde pública derivados de alegadas escorrências da lagoa de armazenamento do bagaço de azeitona, afigura-se de fraca probabilidade de ocorrência.
Debrucemo-nos, então, sobre a segunda constatação que os serviços inspetivos do … afirmaram no despacho mencionado.
Assim, o segundo facto concreto em que se basearam para decretar as medidas impostas foi a não cobertura tanto da lagoa de armazenamento do bagaço de azeitona, como do depósito circular de estrutura metálica, assim como da lagoa quadrada, o que, em caso de pluviosidade, poderia implicar o vazamento do bagaço de azeitona e das águas ruças contidos nas mesmas, com todos os efeitos nefastos daí advenientes.
Ora, não parece crível, que uma empresa que desde 1991 – ou seja, há 26 anos - se dedica à extração de azeite a partir do bagaço de azeitona, mediante um ciclo que se repete todos os anos, não tenha os conhecimentos técnicos necessários para dimensionar adequadamente as suas instalações, de modo a fazer face às eventualidades que possam surgir, mormente as relacionadas com as condições climatéricas.
Note-se que, só entre 02-10-2017 e 21-11-2017 deram entrada na unidade industrial da Requerente 20.629,40 litros de bagaço de azeitona, o que implica um know how bastante profundo e sedimentado relativamente à atividade exercida.
Por outro lado, e apesar de ainda não devidamente comprovados, denote-se nas explicações técnicas avançadas pela Requerente a fim de refutar essa constatação.
Assim, quanto à lagoa de armazenamento do bagaço de azeitona, referiu que o bagaço na mesma existente é encaminhado para a unidade de secagem, pelo que nunca se atinge a capacidade máxima de armazenamento, além de que, em 21-11-2017 ainda tinha disponíveis 20.000 metros cúbicos (o que é corroborado pela análise das fotografias junto aos autos pela Entidade  Requerida,  tiradas  duranta  a  ação  de  inspeção  efetuada  no  dia  20 -11-2017); quanto às águas ruças, sustentou que as mesmas são incorporadas no processo de compactar o bagaço, utilizando 15 toneladas por dia, garantindo o secador a evaporação de 80 toneladas por dia, o que permite controlar o nível das mesmas, não havendo perigo de transbordo; finalmente, referiu que a lagoa quadrada não é coberta exatamente porque é uma lagoa de evaporação e para, dessa forma, maximizar-se a taxa de evaporação.
E foram estas duas constatações que serviram de base factual para a Entidade Requerida decretar as medidas impostas.
Diga-se, em todo o caso, que posteriormente juntou igualmente aos autos um auto de notícia por contraordenação e respetivo aditamento levantado pela Guarda Nacional Republicana, pelo tipo de descarga de efluentes para o domínio hídrico sem a respetiva licença.
Ora, analisando o mesmo, verifica-se que os factos neles descritos têm a ver com a unidade de produção de energia elétrica, que se situa a 500 metros da unidade de secagem e extração de azeite, que é a que para o presente processo nos interessa.
Daí que se deva ter bem presente que, caso sejam detetadas outras ilegalidades que eventualmente se encontrem a ser cometidas noutras unidades de produção da Requerente, este Tribunal, sobre as mesmas, não se encontra habilitado a pronunciar-se, delimitando a sua intervenção ao objeto dos presentes autos, qual seja, os despachos proferidos nos dias 20 e 21 de novembro de 2017 pelo …
Assim – e voltando ao caso dos autos - em concreto, nada mais foi apresentado ao Tribunal que não as duas constatações acima analisadas: é certo que a Mandatária da Entidade Requerida referiu na reunião ocorrida em 15-12-2017 no Tribunal que, nas ações de fiscalização realizadas nos dias 20 e 21 de novembro de 2017 foram recolhidas amostras das águas da Ribeira da…, mas, até ao momento, os resultados das mesmas não foram apresentados ao Tribunal.
Ora, com base na prova apresentada pela Entidade Requerida, o Tribunal considera que os perigos para o ambiente e para a saúde pública que representa a receção do bagaço de azeitona e a contenção das águas ruças, nos moldes efetuados pela Requerente, são diminutos.
Acresce que, a Requerente apresentou diversos vídeos (que não foram impugnados pela Entidade Requerida), dos dias 20 e 21 de dezembro de 2017, onde se podem ver as águas da Ribeira da …junto da lagoa de armazenamento do bagaço de azeitona, as quais – pelas imagens apresentadas - apresentavam uma cor transparente, não se denotando vestígios de espuma à superfície.
Ora, contrapondo aos interesses públicos em presença no caso concreto – nos moldes em que foram delimitados – os interesses privados que se encontram subjacentes à atividade da Requerente, denota-se uma clara desproporção na respetiva ponderação, em favor destes últimos.
O cumprimento, desde já, das medidas impostas – ou seja, a cessação da receção do bagaço de azeitona na lagoa onde o mesmo é armazenado e a respetiva remoção e encaminhamento para destinatários autorizados, assim como das águas ruças que se encontram contidas num depósito circular de estrutura metálica e numa lagoa quadrada – poriam em causa, inelutavelmente, toda a atividade da Requerente.
De facto, a cessação da receção e a consequente remoção do bagaço de azeitona implicaria a paragem tanto da unidade de secagem e extração de azeite (cuja matéria prima é, precisamente, o bagaço de azeitona) como da unidade de produção de energia elétrica (a qual utiliza biomassa proveniente do bagaço de azeitona como combustível, após a última extração do azeite).
Além de que, os custos que acarretaria uma operação dessa natureza – ou seja, o armazenamento do bagaço de azeitona em contentores provisórios e estanques e o esvaziamento dos depósitos das águas ruças, com recurso a meios que permitam o transporte das mesmas para local adequado ao seu tratamento (tal como  sugerido  pela Entidade Requerida) – apesar de não terem sido quantificados, ascenderiam - com certeza - a montantes bastante elevados (dadas as quantidades em causa: recorde-se que, até  21-11-2017,  já tinham sido armazenados  20.629,40 litros  de bagaço de  azeitona,  sendo que – segundo alega a Requerente
–  a Cálculo Vanguarda já tem contratos para adquirir mais 30.000 litros até o final da temporada, que deve terminar justamente neste mês de janeiro).
Daí que, tendo em conta os interesses em presença, o Tribunal dá preferência aos interesses económicos da Requerente, face à pouca probabilidade – de acordo com a prova produzida até ao momento – de ocorrência dos danos propugnados pela Entidade Requerida.”.
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Como se vê, está apenas em causa saber se a valoração da prova produzida quanto ao cit. facto dado como não provado (nos termos impostos pelo artigo 607º/5 do CPC) violou o artigo 371º/1 (Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador) e o artigo 372º do CC.
Com efeito, o recorrente considera que os pressupostos de facto dos próprios atos administrativos impugnados e aqui suspendendos constam de documentos autênticos (os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública), isto é, desses mesmos atos administrativos.
Como tal gozariam da força probatória – vinculativa – plena prevista no artigo 371º cit. Exigiriam, assim, prova de o contrário para o juiz poder decidir contra eles.
Mas, o ato administrativo (cf. os artigos 148º do CPA e 51º/1 do CPTA), onde se inclui a respetiva fundamentação de facto, nunca é um documento autêntico. É um documento, um simples suporte que contém uma decisão administrativa que está integralmente subordinada - sempre - ao controlo jurisdicional, por via da reserva de jurisdição administrativa consagrada nos artigos 212º/3, 268º/4 e 111º da CRP, isto é, à tutela jurisdicional plena e efetiva.
Por isso, os respetivos pressupostos de facto (cf. artigos 151º/1-d)-e), 152º e 153º do CPA) não cabem na previsão de “factos praticados pela autoridade ou oficial público” ou na previsão de “factos atestados com base nas perceções da entidade documentadora”. Tais pressupostos de facto da decisão administrativa, no âmbito da função de administração pública, são “apenas” isso e, como tal, sindicáveis pelo tribunal sem as amarras previstas para os meios de prova com força probatória tabelada.
O recorrente confunde “meios de prova em juízo” com “pressupostos de facto dos atos administrativos”.
Portanto, os tribunais, como é óbvio, podem e devem fiscalizar integralmente a verificação ou realidade dos pressupostos de facto das decisões administrativas, sem prejuízo de, visando todo o ato administrativo, se poderem utilizar (outros) documentos (particulares ou autênticos) para a atividade probatória em juízo.
Mas, o próprio ato administrativo é que não é ele próprio um meio de prova com força probatória plena do que nele se incluiu. Entender o contrário seria quase um absurdo jurídico-administrativo, porque seria um entendimento ainda mais intenso do que a velha e ultrapassada teoria da presunção da legalidade dos atos administrativos, teoria violadora do princípio constitucional da tutela jurisdicional plena e efetiva dos administrados.
Portanto, o TAC, na aplicação ao caso do cit. artigo 607º/5 do CPC e do artigo 94º/4 do CPTA, não violou o artigo 371º/1 e o artigo 372º do CC, cits.
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III - DECISÃO
Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso a cargo do recorrente.
Registe-se e notifique-se.
Lisboa, 19-04-2018




Paulo H. Pereira Gouveia – Relator


Catarina Jarmela



Conceição Silvestre



[1] Tendo sempre presente que o Direito é uma ciência social especialmente condicionada pela linguagem. Aliás, o jurista pode ter presente que a retórica é uma das artes práticas mais nobres, porque o seu exercício é uma parte essencial da mais básica de todas as funções humanas.