Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12784/03
Secção:CA- 2.ª Sub.
Data do Acordão:10/23/2003
Relator:António de Almeida Coelho da Cunha
Descritores:SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DO ACTO
PROCURADORIA ILÍCITA
GRAVE LESÃO DO INTERESSE PÚBLICO
Sumário:I - A noção de interesse público não implica, necessariamente, o interesse directamente prosseguido pela autoridade administrativa, podendo considerar-se como tal interesses particulares de conjuntos de pessoas.
II - O exercício de procuradoria ilícita (prática por parte de pessoas não habilitadas de actos próprios de advogados), lesa gravemente o interesse público, não só pela concorrência desleal que implica, mas também, e sobretudo, pelos danos de ordem patrimonial e moral que é susceptível de causar à generalidade dos cidadãos que recorrem a tal tipo de serviços.
III - A elaboração de contratos-promessa, a apresentação de actos de registo predial, a marcação de escrituras de compra e venda, as consultas jurídicas, o pagamento de sisa e actos similares, geralmente de complexidade técnica e pressupondo conhecimentos jurídicos são, em princípio, actos próprios da profissão de advogado ou solicitador.
IV- Verificada a prática de tais actos (actos de procuradoria ilícitas) por parte de uma imobiliária, não deve ser decretada a suspensão da eficácia da deliberação do Conselho Superior da Ordem dos Advogados que ordenou o encerramento do estabelecimento em causa.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1ª Secção (2ª Subsecção) do T.C.A.

1. Relatório.
Ag..., Agência de Documentação, Lda, e outras, requereram no T.A.C. de Lisboa, contra a Ordem dos Advogados, a suspensão da eficácia da deliberação de encerramento do estabelecimento da primeira requerente, sito em Ponte de Sôr.
Remetidos os autos ao T.A.C. de Coimbra, por ser o competente, o Mmo. Juiz indeferiu o pedido, por considerar inverificados os requisitos das als. a) e b) do nº 1 da L.P.T.A.
É dessa sentença que vem interposto o presente recurso, no qual as ora recorrentes formulam as seguintes conclusões:
1ª) Em função da matéria dos autos e do caso concreto em apreço, a sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente o disposto no art. 76º da L.P.T.A.
2ª) Verificam-se os requisitos exigidos pelo art. 76º da L.P.T.A. para ser decretada a suspensão.
3ª) A sentença recorrida enferma da nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art. 668º do Cód. Processo Civil.
A entidade recorrida contra-alegou pugnando pela manutenção do julgado.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, vieram os autos à conferência para julgamento.
x x
2. Matéria de Facto
A sentença recorrida considerou provada a seguinte factualidade relevante:
a) Em 20.05.2000, o Conselho Distrital de Évora da Ordem dos Advogados deliberou encerrar o estabelecimento Ag..., Lda, por exercício de procuradoria ilícita;
b) Foi interposto recurso desta decisão;
c) Por deliberação de 7.02.2003, o Conselho Superior da Ordem dos Advogados decidiu negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
d) A primeira recorrente é sócia gerente do estabelecimento e a segunda é funcionária
x x
3. Direito Aplicável.
Como se disse, a sentença recorrida considerou inverificados os requisitos das alíneas a) e b) do nº 1 do art. 76º da L.P.T.A., pelo que indeferiu o pedido de suspensão de eficácia da deliberação do Conselho Superior da Ordem dos Advogados que ordenou o encerramento do estabelecimento Ag..., Lda, sito em Ponte de Sôr.
Para tanto, o Mmo. Juiz “a quo” expendeu, nomeadamente, o seguinte:
“O prejuízo é de difícil reparação quando uma eventual indemnização surgida com a anulação do acto não se mostre suficiente para a reintegração do património afectado, isto é, não seja de molde a reconstituir a situação actual do património do requerente como se o acto não tivesse sido praticado – Ac. STA de 17.1.1987, Rec. 24 457-A.
A existência de prejuízos, não se exigindo a sua efectiva prova, por razões óbvias, terá que surgir como verosímil e em resultado do acto cuja suspensão se requer.
Neste particular as requerentes alegam que a decisão determinará o encerramento do estabelecimento, a perda da clientela, a perda de rendimentos da segunda requerente e a perda de emprego da terceira. Não há dúvida de que a decisão de encerramento determina o encerramento.
Mas, e tal como a autoridade requerida refere, aquilo que se pretenderá é a cessação da actividade ilícita desenvolvida.
Naturalmente que uma qualquer outra actividade lícita poderá ser desenvolvida.
Assim, o encerramento definitivo não se configurará como o destino final.
Quanto à perda de rendimentos, parece-me que as requerentes foram demasiado parcas na tentativa de demonstração de que o encerramento determinará esta perda, uma vez que não se sabe se existem outros estabelecimentos e/ou as requerentes têm outros rendimentos.
“A demonstração do requisito do art. 76º nº 1, al. a) da L.P.T.A. tem que ser feita através de factos explícitos, específicos e concretos de onde se possa extrair um nexo de causa e efeito entre a execução do acto e o prejuízo invocado” Ac. T.C.A de 15.9.2000, ficha 513/2000.
Portanto, não está suficientemente configurada a existência de tais prejuízos que possibilitariam o decretamento da providência pretendida.
Mas há que dizer uma palavra quanto ao interesse público, que normalmente é secundarizado, porque entendemos que como as violações são tantas, tão sistemáticas e inevitáveis, aquele interesse deverá continuar a ceder.
É por todos conhecido que existe exercício ilegal da advocacia.
Este exercício é absolutamente intolerável por todas as razões óbvias: exercício de uma actividade por quem não tem qualificação para tal; concorrência desleal; desrespeito pelos cidadãos e pelos seus direitos de serem tratados com honestidade e probidade.
Não obstante ser entendimento geral que estes bens estão caducos é imperioso defendê-los aqui e aqui defender-se-ão com o indeferimento do pedido.
Pelo exposto, indefiro o pedido de suspensão da decisão do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, de 7.02.2003”.
As recorrentes insurgem-se contra este entendimento, alegando que, tendo a sociedade Âg..., Agencia de Documentação, Lda, por objecto a prestação de serviços de contabilidade, agência de documentação, projectos de arquitectura e venda de imóveis, e não se provando em que qualidade actua, não se pode concluir que os factos indiciados nos autos possam ser considerados actos próprios da profissão de advogado e/ou solicitador.
Quanto ao encerramento da actividade comercial, alegam os recorrentes tratar-se de um dos casos paradigmáticos do preenchimento do conceito de prejuízo de difícil reparação, por se tratar de uma situação geradora de lucros cessantes indetermináveis com rigor e que envolvem perda de clientela, também não quantificável.
É esta a questão a analisar.
O decretamento da suspensão da eficácia do acto exige a verificação cumulativa dos requisitos previstos nas als. a), b) e c) do nº 1 do artº 76º da L.P.T.A., bastando a inverificação de um deles para que tal decretamento não possa ser efectuado pelo Tribunal.
No caso concreto começaremos pela análise do requisito da alínea b), verificando se a suspensão do acto determinaria ou não grave lesão para o interesse público, por nos parecer configurar o aspecto nuclear da questão, determinante da ordem de encerramento a que procedeu o Conselho Distrital de Évora da Ordem dos Advogados e que foi confirmada por acórdão do Conselho Superior da Ordem dos Advogados de 7 de Fevereiro de 2003, proferido no processo nº 5/130/02.
Como é sabido, “A grave lesão para o interesse público deve ser apreciada nas circunstâncias do caso concreto (“tendo em conta os fundamentos do acto e as razões invocadas pelo requerente e requerido”), não devendo presumir-se, nem confundir-se com qualquer lesão do interesse público (que teria sempre de dar-se por existente, salvo porventura se o acto fosse evidentemente ilegítimo).
E a noção de interesse público não implica necessariamente o interesse directamente prosseguido pela autoridade administrativa, podendo considerar-se como tal interesses particulares de conjuntos de pessoas que sejam relevantes, como os interesses de segurança, privacidade e saúde dos moradores” (cfr. Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, Almedina, 3ª Edição, p. 177).
No caso concreto está em causa o exercício de procuradoria ilícita, ou seja, o exercício de actos próprios de advogado por pessoas não qualificadas para tal, com o inerente prejuízo para o cidadão consumidor, ao qual sem dúvida, nesta matéria, assiste o direito a poder contar com um corpo profissional devidamente habilitado e sujeito a regras éticas e deontológicas exigentes, com especiais deveres perante a comunidade e os seus clientes e responsável perante a Ordem dos Advogados.
Na verdade, seria impensável que o exercício da advocacia pudesse ser confiado a pessoas sem a necessária preparação académica e estágio profissional, havendo, aliás, que ser particularmente rigoroso nesta matéria, dada a crescente proliferação do conhecido fenómeno da “procuradoria ilícita”.
Fenómeno esse que não podemos, portanto, deixar de qualificar como fortemente lesivo do interesse público, não só pela concorrência desleal, mas, sobretudo, pelos graves danos de ordem patrimonial e moral que é susceptível de causar à generalidade dos cidadãos que recorrem a tal tipo de serviços, muitas vezes oferecidos por imobiliárias que extravasam as suas funções de mediação.
Vejamos, então, o que sucede no caso concreto.
A nosso ver, o exercício de procuradoria ilícita encontra-se, suficientemente, indiciado nos autos, como o documenta, extensamente, a deliberação de 7.02.2003, do Conselho Superior da Ordem dos Advogados.
Os principais actos ali descritos como integrantes de tal exercício por parte das recorrentes são os seguintes:
Marcação de escrituras de compra e venda, doação, habilitação de herdeiros e partilhas e de justificação notarial de propriedades, com a respectiva preparação dos documentos atinentes aos contratos, que formalizam negócios jurídicos, alguns de complexidade técnica e todos pressupondo conhecimentos de Direito e aconselhamento do consumidor;
Pagamentos de Sisa, o que obriga a conhecimentos de Direito Fiscal (taxas, isenções e aconselhamento para obtenção de ganhos fiscais);
Apresentação de actos de registo predial, com a organização do processo registral de aquisição, que envolve conhecimento das regras do registro.
Elaboração de contratos-promessa, que envolve, necessariamente, conhecimentos jurídicos, sendo em nosso entender um acto da profissão de Advogado.
Como diz o aludido Acórdão, “o que o objecto social da Recorrente Ag..., Lda permite a esta fazer é encontrar o terreno, a casa, qualquer imóvel que esteja à venda e, encontrado o interessado para o comprar, mostrar o objecto do negócio e esclarecer as condições do mesmo”, e não a elaboração propriamente dita do contrato, a qual pressupõe conhecimentos técnico jurídicos.
Convém recordar que o processo de encerramento teve por origem uma participação subscrita pela Sra. Dra. Maria João Adegas, advogada delegada da Ordem dos Advogados na comarca de Ponte de Sôr, na sequência de uma deliberação tomada pelos Advogados inscritos por aquela Comarca, em reunião da Assembleia Geral de 30 de Março de 1998, e que a prova produzida nos autos de encerramento é de natureza documental e testemunhal inequívoca, inclusive baseada em depoimentos de Notários e Conservadores da zona, constituindo uma evidência constatável no dia a dia daqueles profissionais.
Resulta, a nosso ver, suficientemente demonstrada a existência de um conjunto de práticas de procuradoria ilícita, proibidas pelos arts. 53º nº 1 e 56º do Estatuto da Ordem dos Advogados e justificativas da decisão de encerramento da Recorrente Ag..., Lda.
Pelas razões expostas, o decretamento da suspensão da eficácia do acto, com a consequente continuação de tais actividades, constituiria grave lesão do interesse público.
Não se verifica, portanto, o requisito da al. b) do nº 1 do artº 76º da L.P.T.A., o que só por si implica o indeferimento da providência.
E, no tocante ao requisito da al. a) do mesmo preceito, é de notar que o encerramento do estabelecimento da recorrente não determina a cessação da actividade social da mesma, mas tão somente se dirige ao exercício da actividade de procuradoria ilícita, pelo que, como afirma a entidade recorrida, nada impede as requerentes de prosseguir o objecto social da Ag.., Lda, nos seus precisos termos e sem extravasar os respectivos limites, através da abertura de novo estabelecimento comercial para o efeito.
Não se verifica, portanto, a presunção de existência de um prejuízo de difícil reparação que a jurisprudência considera existir nos casos de encerramento ou inibição de actividade comercial, industrial ou de prestação de serviços.
Ademais, e como nota a decisão recorrida, foi insuficiente a alegação das requerentes da providência no tocante à demonstração do requisito da al. a) do nº 1 do art. 76º da L.P.T.A., uma vez que nem sequer foi referido se existem ou não outros estabelecimentos congéneres ou se as requerentes têm outros rendimentos, o que impossibilita o Tribunal de aferir sobre a existência de um nexo de causalidade entre a execução do acto e o prejuízo invocado (cfr. Ac. STA de 24.01.2002, Rec. 08/02; Ac. STA de 31.05.94, Rec. 35.444-A; Ac. STA 44.249-A, de 12.11.98; Ac. T.C.A de 15.9.2000, Rec. 513/2000).
Não se verifica, portanto, a invocada violação do artº 76º da L.P.T.A., assim como se não detecta qualquer omissão de pronúncia (al. d) do nº 1 do art. 668º do Cod. Proc. Civil) por parte da decisão “a quo”, à qual nada há a censurar.
x x
4. Decisão.
Em face do exposto, acordam em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelas recorrentes, fixando a taxa de justiça a procuradoria, respectivamente, em 250 Euros e em 120 Euros.
Lisboa 23.10.03
as.) António de Almeida Coelho da Cunha (Relator)
João Beato Oliveira de Sousa
Maria Cristina Gallego dos Santos