Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:06381/13
Secção:CT-2º JUÍZO
Data do Acordão:05/21/2015
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:INSOLVÊNCIA FORTUITA/INSOLVÊNCIA DOLOSA/ÓNUS DA PROVA/REVERSÃO
Sumário: I – Constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.
II – Assim, se a falta de fundamentação do despacho de reversão ou a contradição dos fundamentos que o suportam não foram questões suscitadas na petição inicial, tais questões, novas e que não são de conhecimento oficioso, não devem ser apreciadas e decididas por este Tribunal de recurso.
III – A qualidade de gerente de uma sociedade ou as funções que do ponto de vista da legislação comercial lhe estão cometidas por força da sua nomeação nessa qualidade, não se confundem com a qualidade de administrador de insolvência nem com as funções a este atribuídas nos termos do Código de Insolvências e Recuperação de Empresas (cfr., em especial, artigos 252.º e 259.º do Código das Sociedades Comerciais e artigo 55.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
IV – Tendo o Tribunal a quo dado como provado que o Oponente foi o único gerente nomeado até à data da insolvência e não constando da certidão em causa, e que suportou a fixação dessa factualidade, a nomeação de qualquer outro gerente, não se verifica a existência de qualquer erro no julgamento de facto realizado.
IV – Também se não verifica qualquer erro de julgamento se o “facto” cuja integração no probatório vem requerida, e alegadamente omitido, se mostra suportado em documento que no probatório se mostra integralmente reproduzido
V – Mostrando-se comprovado nos autos que o Oponente exerceu a gerência da devedora originária nos dois momentos temporais a que se referem as alíneas a) e b) do n.º 1, do art. 24.º, da Lei Geral Tributária, era sobre este que incidia, à luz ainda da própria imputação ou fundamentação jurídica do despacho de reversão, o ónus da prova de que a falta de pagamento dessas dívidas não lhe era imputável.
VI - O incidente de qualificação da insolvência só é aberto na sentença que declara a insolvência se o juiz dispuser de elementos que justifiquem a abertura do incidente e desde que não tenha sido aprovado um plano de pagamentos nem se trate da hipótese do artigo 187º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa [cfr., conjugadamente, artigos 9.º n.º 1, 36.º, n.º1, al. i),, 132.º, (“ex vi” artigo 188º, nº 7)].
VII - Embora existam dois tipos de incidente, o incidente pleno e o incidente limitado, e apesar de apenas o âmbito daquele último se encontrar regulado expressamente na lei (casos de insuficiência da massa para a satisfação das custas processuais e das dívidas da massa – cfr., em especial, artigos 39º, nº1, 232º, nº5, e 191.º, n.º1 do CIRE) destinam-se, um e outro, a um mesmo fim: a qualificar a insolvência como culposa ou como fortuita (artigo 185.º do CIRE).
VIII – A insolvência deverá ser presumida como fortuita sempre que não seja qualificada/judicialmente reconhecida como culposa (artigos 185.º e 186.º do CIRE) e é culposa quando resulte apurado ou se deva presumir (cfr. presunções iuris et de iure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular e iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito ou de facto e do próprio insolvente pessoa singular - artigo 186.º n.ºs 1, 2 e 3 do CIRE) que a situação de insolvência foi criada ou agra­vada pela actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores (de direito ou de facto) decorrente de actos por aqueles praticados nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (cfr. artigo 186º, nº1 do CIRE).
IX – Distintamente do que ocorre com a qualificação de uma insolvência como culposa, a qualificação daquela como fortuita não traduz qualquer juízo de mérito da conduta (culposa ou não) do gerente (Oponente) mas, tão só, um juízo de que não foram apurados factos que determinassem que nesse sentido (culposo) fosse averiguada a conduta do responsável pela actividade comercial da insolvente.
X – Seja porque a qualificação de uma insolvência como fortuita não tem efeitos externos ao processo de insolvência, seja porquanto a averiguação ali feita tem pressupostos e enquadramento processual e temporal diversos do processo de Oposição Judicial, a qualificação de insolvência como fortuita não equivale à demonstração de inexistência de culpa em processo de Oposição Judicial.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I - Relatório

João …………………….., inconformado com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou improcedente a Oposição Judicial por si deduzida à execução fiscal nº ………………. e apensos, que contra si reverteu depois de originariamente instaurada contra a empresa …………………., Lda., para cobrança coerciva de dívidas de IVA relativas ao exercício de 2004 a 2006 e IRS de 2004 a 2007, dela veio interpor o presente recurso.

Tendo alegado, aí concluiu nos seguintes termos:

«I - A sentença em crise como provado na alínea D) do probatório que: ”O oponente da sociedade, referida em A), foi o único gerente até à data do trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência da mesma, em 13/5/2009, nos termos constantes de fls. 15, dos autos em suporte de papel, cujo teor se dá por integralmente reproduzido”.

II - Contudo trata-se de um ponto de facto incorrectamente julgado.

III - A consideração do documento (certidão de registo comercial da devedora) a fls. 21 a 25 dos autos devia conduzir a conclusão diferente.

IV - Ou seja, que o trânsito em julgado da declaração de insolvência ocorreria em 10/03/2008 e que desde 24/01/2008 foi nomeado administrador judicial de insolvência.

V - De igual modo, a sentença recorrida dá como provado em F) do probatório que a insolvência da devedora originária foi fortuita dando por integralmente reproduzido o teor da certidão de fls. 101 a 103.

VI - Ainda assim, dando-se como provado tal documento, devia ter-se dado como assente que:

- a insolvente iniciou a sua actividade no sector da construção civil no final do ano de 2001 e tinha um grande conhecimento de pequenas obras mas ao evoluir para as grandes obras teve necessidade de equipamento e autonomia financeira para poder suportar os prazos de pagamentos e recebimentos;

- para isso recorreu ao financiamento bancário, tendo para o efeito hipotecado a sua habitação pessoal em prol do financiamento para a empresa;

- da conduta do gerente não emergem factos de que justifiquem a imputação da culpa.

VII - O que significa que, estamos na presença de outro ponto de facto incorrectamente julgado, considerando-se o teor integral do documento a fls.101 a 103.

VII - De outro lado, o erro de julgamento estende-se à matéria de direito, desde logo, o Tribunal a quo deveria ter declarado a falta de fundamentação da decisão de reversão.

IX - Pois a mesma não contém os pressupostos de facto ou a extensão da reversão.

X - Aliás aquela até se afigura contraditória ao referir-se a “Inexistência e insuficiência “ dos bens penhoráveis do devedor principal, pelo que, viola o artº24º nº1, al. b) da LGT e o art.º125° do CPA.

XI - E assim deve ser revogada a sentença recorrida com todas as legais consequências .

XII - Por outro lado, conclui a sentença em crise que " Tal como decorre da matéria de facto provada o prazo legal de pagamento ou das dívidas terminou no período de exercício do seu cargo, pelo que é subsumível à alínea b), do citado artigo 24º, da LGT”.

XIII - Ora, salvo o devido respeito, de forma incorrecta, atentos os requisitos do artº24º, nº1, al. a) da LGT,

XIV - Ou seja, tal normativo é aplicável quando o "facto constitutivo” da dívida acontece no período do exercício do cargo ou quando o prazo legal de pagamento ou entrega (da divida emergente do facto constitutivo) tenha terminado depois desse exercício “e” (em cumulação) tiver sido por culpa sua, que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tomou insuficiente, a situação só pode subsumir-se na alínea a) do supra referenciado normativo.

XV - Nesta conformidade, a situação só pode subsumir-se à alínea a) do artº24, nº1 da LGT, razão pela qual, a decisão em crise viola o artº24º nº1, alínea a) da LGT.

XVI - E perante a falta de qualquer prova quanto à culpa do oponente, no despacho de reversão, na diminuição do património da sociedade há que imputar erro de julgamento à decisão recorrida.

XVII - De igual modo conclui a sentença recorrida, a propósito da qualificação da insolvência como fortuita que: ”Estamos diante de regimes distintos e com âmbito de aplicação distintos, pelo que a declaração de insolvência fortuita não poderá aproveitar nos presentes autos".

XVIII - Ora, salvo o devido respeito, entende o recorrente que assim não o é.

XIX- O objectivo do incidente de qualificação é precisamente a apreciação da conduta do devedor e/ou dos seus administradores e tem como finalidade a responsabilização dos mesmos quando há culpa pela insolvência.

XX - Sendo um pressuposto da declaração da insolvência aquelas hipóteses em que, nomeadamente, os administradores de facto ou de direito tenham: ”Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor" cfr. artº186º, nº2, al.a) do CIRE ou disposto dos bens do devedor em proveito pessoal, cfr. artº186º, nº2, al.c) do CIRE.

XXI - Pelo que, salvo o devido respeito, não é possível concluir que os institutos nenhum ponto de contacto têm.

XXII - Quando a causa da reversão e da declaração da insolvência culposa está precisamente no juízo de censura jurídica que é possível imputar ao administrador/gerente de direito ou de facto.

XXIII - Ora, é precisamente a existência de culpa que legitima a reversão das dívidas tributárias e a declaração de insolvência culposa.

XXIV - Ou seja, ainda que se qualifique a situação sub judice no artº24º, nº1, al.b) da LGT, provada a ausência de culpa não é possível reverter a execução contra o recorrente.

XXV - Em tal conformidade, a sentença recorrida viola o artº24º, nº1, b) da LGT e o artigo 185º e 186º, ambos da CIRE.

XXVI – Termina-se, imputando à decisão recorrida erro de julgamento».

Admitido o recurso e notificada a Fazenda Pública, não foram apresentadas contra-alegações.

Neste Tribunal Central, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no qual se pronunciou, a final, no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os «Vistos» dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

II – Objecto do recurso

Como é sabido, sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 690.º n° 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito da sua intervenção.

Assim, e pese embora na falta de especificação no requerimento de interposição se deva entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (artigo 684.° n.º 2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n°3 do mesmo artigo 684.°), pelo que, as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.

Acresce que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

É precisamente este enquadramento que realizámos, que nos conduz de imediato à exclusão do âmbito das questões a conhecer neste recurso da questão relativa à falta de fundamentação do despacho de reversão.

Efectivamente, como limpidamente resulta da análise da petição inicial, a questão da falta de fundamentação do despacho de reversão e a eventual contradição dos fundamentos invocados não foi matéria suscitada naquela peça processual. Isto é, o vício de falta de fundamentação não integra a causa de pedir da presente Oposição, constituindo questão absolutamente nova, porque apenas suscitada em recurso, a qual, porque não é de conhecimento oficioso, nos está vedado apreciar.

Donde, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto conclui-se serem as seguintes questões a apreciar e decidir:

- Errou o Tribunal a quo no julgamento de facto ao dar como provada a matéria constante da alínea D) dos factos apurados [por do documento em que o Tribunal suportou a sua convicção resultar factualidade distinta] e ao não dar como provado que (i) a insolvente iniciou a sua actividade no sector da construção civil no final do ano de 2001 e tinha um grande conhecimento de pequenas obras mas ao evoluir para as grandes obras teve necessidade de equipamento e autonomia financeira para poder suportar os prazos de pagamentos e recebimentos; (ii) para isso recorreu ao financiamento bancário, tendo para o efeito hipotecado a sua habitação pessoal em prol do financiamento para a empresa e (iii) da conduta do gerente não emergem factos que justifiquem a imputação da culpa [por tais factos resultarem comprovados pelo documento de fls. 101 a 103 dos autos]?

- Na sentença recorrida foi cometido erro de julgamento de direito ao subsumir a situação dos autos ao preceituado na alínea b) do artigo 24.º da LGT (quando o deveria ter sido na alínea a) do mesmo preceito com a consequente imputação à Fazenda Pública do ónus da prova quanto à culpa pela insuficiência do património)? E ao julgar como não preenchido pelos factos apurados o pressuposto de inexistência de culpa plasmado no mesmo preceito e alínea?

Ill – Fundamentação de Facto

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria julgou como provada e com relevo para a apreciação do mérito dos autos a seguinte factualidade:

A) Foi constituída a sociedade comercial ……………………………. Lda., nos termos descritos na Conservatória do Registo Comercial de Santarém cfr. fls. 14 a 16, dos autos em suporte de papel, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

B) O oponente, único sócio, foi designado gerente, em 23/3/2001, da sociedade, referida em A), nos termos constantes de fls. 14 e 15, dos autos em suporte de papel, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

C) Em 23/03/2001, o oponente apresentou declaração de início de actividade, relativamente à sociedade referida em A), nos termos constantes de fls. 12 e 13, dos autos era suporte de papel, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

D) O oponente da sociedade, referida em A), foi o único gerente até à data do trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência da mesma, em 13/5/2009, nos termos constantes de fls. 15, dos autos em suporte de papel, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

E) Contra a sociedade, referida em A), foi instaurada a execução fiscal n°……………………….. e apensos, por dívidas de IVA, referentes ao período de 2004 a 2006, e IRS, referentes aos anos de 2004 a 2007, com a última data limite do pagamento a ocorrer em 20/07/2007, nos termos constantes de fls. 20 a 21 e 36 a 70, dos autos em suporte de papel, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

F) Em 5/5/2008, foi proferida decisão no processo n° 3122/07.3 TBSTR, que correu termos no 1° Juízo Cível, do Tribunal Judicial de Santarém, que qualificou a insolvência da empresa …………………….., Lda., como fortuita, nos termos constantes de fls. 101 a 103, dos autos em suporte de papel, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

G) Em 3/05/2011, foi proferido o despacho de reversão contra o oponente, nos termos constantes de fls. 27 e 28, dos autos em suporte de papel, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e onde se refere designadamente o seguinte:

"FUNDAMENTOS DA REVERSÃO

Dos administradores, directores, ou gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entidades fiscalmente equiparadas, por não terem provado não lhes ser imputável a falta de pagamento da dívida, quando o prazo legal de pagamento/entrega da mesma terminou no período de exercício do cargo (art. 24°n°1/b) LGT)".

H) Em 13/05/2011, foi o oponente citado de que é executado por reversão, como responsável subsidiário, nos termos constantes de fls. 31a 35, dos autos em suporte de papel, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e onde se refere designadamente o seguinte:

"FUNDAMENTOS DA REVERSÃO

Inexistência ou insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e responsáveis solidários, sem prejuízo do beneficio da excussão (art° 23 °/n°2 da LGT):

Dos administradores, directores, ou gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entidades fiscalmente equiparadas, por não terem provado não lhes ser imputável a falta de pagamento da dívida, quando o prazo legal de pagamento/entrega da mesma terminou no período de exercício do cargo (art. 24°n°1/b) LGT)."».

3.2. Mais ficou consignado que não se provaram quaisquer outros factos, com relevância para a decisão da causa e que a convicção do Tribunal assentou no teor dos documentos, não impugnados, referidos em cada uma das alíneas do probatório.

IV – Fundamentação de Direito

Consubstanciando-se o presente recurso jurisdicional em erros de julgamento de facto e de direito (cfr. ponto II supra) e considerando a precedência lógica do primeiro em relação ao segundo, é, naturalmente, pela apreciação das questões suscitadas naquele que se iniciará a nossa apreciação, tanto mais que o teor das conclusões não suscita a mínima dúvida quanto a o recorrente ter escrupulosamente cumprido as exigências de forma e substantivas fixadas pelo legislador no artigo 685.º B als. a) e b) do Código de Processo Civil (normativo com a redacção que o mesmo possuía na data de interposição de recurso, por ser o aplicável atento o preceituado no artigo 12.º do código Civil).

4.1. Do erro de julgamento de facto

Para a Recorrente o probatório evidencia um incorrecto julgamento de facto quer quando dá como provado que o Oponente foi o único gerente da …………………………. Lda. até à data do trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência da mesma em 13/5/2009 [alínea D) do probatório], quer ao não dar como apurado que a insolvente iniciou a sua actividade no sector da construção civil no final do ano de 2001 e tinha um grande conhecimento de pequenas obras, mas que ao evoluir para as grandes obras teve necessidade de equipamento e autonomia financeira para poder suportar os prazos de pagamentos e recebimentos e que para isso recorreu ao financiamento bancário, tendo para o efeito hipotecado a sua habitação pessoal em prol do financiamento para a empresa e que da conduta do gerente não emergem factos de que justifiquem a imputação da culpa.

O primeiro dos apontados erros resulta, em seu entender, do próprio documento em que o Tribunal a quo alicerçou a sua convicção, por do mesmo constar que o trânsito em julgado da declaração de insolvência ocorreria em 10/03/2008 e que desde 24/01/2008 foi nomeado administrador judicial de insolvência.

O segundo, porque tais factos resultam da sentença de insolvência junta aos autos.

Adiantamos, desde já, que é manifesto carecerem de qualquer fundamento as críticas tecidas, como aliás, resulta claramente das próprias alegações formuladas e do confronto destas com o probatório e com os documentos que lhe serviram de suporte.

Na verdade, tendo o Tribunal a quo dado como provado na alínea D) que o Oponente fora a único gerente nomeado até à data da insolvência e não constando da certidão em causa, e que suportou a fixação dessa factualidade, a nomeação de qualquer outro gerente, não vemos porque deva ser censurado o julgamento feito.

A qualidade de gerente de uma sociedade ou as funções que do ponto de vista da legislação comercial lhe estão cometidas por força da sua nomeação nessa qualidade, não se confundem, contrariamente ao que parece ser entendimento do Recorrente, com a qualidade de administrador de insolvência e com as funções a este atribuídas nos termos do Código de Insolvências e Recuperação de Empresas (cfr., em especial, artigos 252.º e 259.º do Código das Sociedades Comerciais e artigo 55.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa).

Para efeitos de apreciação da matéria que nos autos se impunha decidir (responsabilidade do gerente enquanto responsável subsidiário pela falta de pagamento de dívidas tributárias de uma sociedade) o que se mostrava relevante apurar era se o Oponente é ou foi gerente de facto e direito da sociedade e em que período de tempo exerceu tais funções, matéria que, insiste-se, foi apurada, na parte que esta impugnação ora questiona, com base em documento que indiscutivelmente a comprova (certidão do registo comercial constante dos autos).

Aliás, o Recorrente nem sequer refuta a veracidade do facto mas, impertinentemente, que a partir de certa data houve a nomeação de um administrador judicial (na sequencia da instauração, instrução e julgamento de um processo de insolvência) que não é, de todo, o que está em questão, nem afecta a correcção do facto apurado.

No que concerne ao alegado erro de julgamento por o Tribunal ter omitido factos no probatório que se mostram comprovados pela sentença de insolvência, é até incompreensível a impugnação do julgamento de facto que vem realizada.

Desde logo porque, como o próprio Recorrente começa por afirmar, o documento alegadamente apto a que tais factos sejam dados como provados foi dado integralmente por reproduzido na alínea F) do probatório pelo que, os factos no mesmo narrados ou comprovados estão inquestionavelmente dados como provados através dessa remissão e reprodução. Depois, porque os factos cuja integração no probatório é peticionada não assumem em rigor essa qualificação constituindo, grosso modo, conclusões de facto e de direito que o Recorrente extrai do mesmo documento as quais, como é sabido, não devem fazer parte da matéria de facto mas apenas desta extraídos e valorados para efeitos de aplicação do direito.

Improcede, pois, com os fundamentos expostos, o recurso jurisdicional na parte relativa ao julgamento de facto.

4.2. Estabilizada a matéria de facto, enfrentemos agora a segunda questão colocada em recurso: padece a sentença recorrida de erro de direito ao ter enquadrado a responsabilidade do Oponente, enquanto responsável subsidiário, no artigo 24.º al. b) da LGT e que se comprovaram os requisitos exigíveis para que o Oponente seja, na qualidade de responsável subsidiário, reconhecido como estando obrigado ao pagamento da dívida exequenda.

Vejamos o que se nos oferece dizer, começando por deixar assente que, se bem interpretamos as alegações e conclusões do presente recurso (com a delimitação efectuada), a censura que o Recorrente dirige ao julgamento realizado pela sentença recorrida assenta, fulcralmente, no seguinte raciocínio: por força do despacho de reversão vem imputada ao Recorrente, enquanto gerente de facto e direito da devedora originária, a responsabilidade pelo não pagamento de uma dívida exequenda relativa a IVA de 2004 a 2006 e IRS dos anos de 2004 a 2007 com fundamento jurídico no preceituado no artigo 24.º n.º 1 al. b) da Lei Geral Tributária. Porém, considerando que o Oponente era gerente quer durante o período da dívida quer aquando do terminus do pagamento dos tributos, a sua responsabilidade pelo pagamento da dívida só pode emergir do preceituado no artigo 24.º n.º 1 al. a) competindo, assim, à Fazenda Pública o ónus de provar que foi por conduta culposa sua que a devedora originária não possui bens suficientes para garantir ou solver a dívida tributária.

Não o tendo feito, porque da matéria de facto nada resulta positivamente nesse sentido, deveria a Oposição ter sido julgada procedente e reconhecida a sua ilegitimidade para os termos da execução fiscal.

Cumulativamente, e para o caso de assim não se entender, sempre o Tribunal a quo teria errado ao julgar improcedente a Oposição por não verificação do pressuposto de inexistência de culpa pela insuficiência de bens da devedora originária capazes de garantir ou prover ao pagamento da dívida, porque essa prova foi feita já que está dado como provado que a devedora foi julgada insolvente e essa insolvência foi qualificada como fortuita (não culposa).

Carece, mais uma vez, de razão o Recorrente.

Relativamente à questão do enquadramento jurídico realizado no despacho de reversão e secundado pelo Tribunal a quo que, com base nele, extraiu as conclusões jurídicas que na sentença sedimentou, designadamente ao nível do preenchimento dos seus pressupostos importa antes de mais atentar que o artigo 24.º n.º 1 da Lei Geral Tributária, que tem como epígrafe «Responsabilidade dos membros de corpos sociais e responsáveis Técnicos» dispõe o seguinte:

«1 - Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.»

Resulta, assim, do normativo transcrito, como pacifica e reiteradamente vem afirmando a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, uma distinção fundamental: “enquanto na al. a) não se prevê qualquer presunção de culpa do gerente da sociedade, ficando, por isso, a cargo da Fazenda Pública, o ónus de provar que tenha sido por culpa daquele que o património social se tornou insuficiente para satisfação das dívidas tributárias, já na al. b) se onera o responsável subsidiário com a prova de que não lhe foi imputável a falta de pagamento [(Esta diferença no regime do ónus da prova compreende-se porque o gerente não pode ser responsabilizado pela falta de pagamento, dado que enquanto exerceu o cargo a dívida não fora posta a pagamento; assim, só poderá ser responsabilizado caso a exequente prove que ele teve culpa na insuficiência do património societário [alínea a) do n.º 1 do art. 24.º da LGT]. Já no caso da alínea b) da mesma norma legal, porque o pagamento da prestação tributária constitui uma obrigação do gerente, tem de ser este a provar que não lhe é imputável a falta de pagamento das dívidas vencidas durante o período do exercício do cargo, designadamente pela demonstração de que não tem culpa pela insuficiência do património da originária devedora para pagamento dessas dívidas.)].».(1)

No caso que ora nos ocupamos, não subsistem quaisquer dúvidas face ao probatório [e à própria posição do Oponente que não discute neste recurso o não exercício do cargo em ambos os períodos de tempo mencionados nas alíneas a) e b) mas tão só a integração da materialidade provada a uma ou outra das referidas alíneas] que o Oponente exerceu a gerência da devedora originária (e executada) nos dois momentos temporais a que se referem as alíneas a) e b) do n.º 1, do art. 24.º, da LGT, pelo que, terminando o prazo legal de pagamento ou entrega das dívidas em exigência no período do exercício da gerência do Recorrente, era sobre este que incidia, como bem foi julgado na sentença recorrida à luz ainda da própria imputação ou fundamentação jurídica do despacho de reversão, o ónus da prova de que a falta de pagamento dessas dívidas não lhe era imputável.

Questão distinta, também colocada pelo Recorrente como vimos, é a de saber se o Tribunal a quo esteve bem quando não acolheu a argumentação aduzida pelo Recorrente, retomada neste recurso, de que tal ónus se mostrava cumprido, ou se preferirmos, que essa inexistência de culpa se mostra comprovada por a insolvência relativa à devedora originária e executada ter sido qualificada como fortuita.

Diga-se, desde já, que esteve bem.

O incidente de qualificação da insolvência (regulado, nos seus aspectos fundamentais do ponto de vista processual e substantivo, no Título VIII do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante simplesmente designado por CIRE), que corre por apenso ao processo principal e assume natureza urgente, só é aberto na sentença que declara a insolvência se o juiz dispuser de elementos que justifiquem a abertura do incidente e desde que não tenha sido aprovado um plano de pagamentos nem se trate da hipótese do artigo 187º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa [cfr., conjugadamente, artigos 9.º n.º 1, 36.º, n.º1, al. i),, 132.º, (“ex vi” artigo 188º, nº 7)].
Ora, como é sabido, embora existam dois tipos de incidente, o incidente pleno e o incidente limitado, e apesar de apenas o âmbito daquele último se encontrar regulado expressamente na lei (casos de insuficiência da massa para a satisfação das custas processuais e das dívidas da massa – cfr., em especial, artigos 39º, nº1, 232º, nº5, e 191.º, n.º1 do CIRE) destinam-se, um e outro, a um mesmo fim: a qualificar a insolvência como culposa ou como fortuita (artigo 185.º do CIRE).
Para o que ora nos importa, a insolvência deverá ser presumida como fortuita sempre que não seja qualificada/judicialmente reconhecida como culposa. (artigos 185.º e 186.º do CIRE) e é culposa quando resulte apurado ou se deva presumir (cfr. presunções iuris et de iure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular e iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito ou de facto e do próprio insolvente pessoa singular - artigo 186.º n.ºs 1, 2 e 3 do CIRE) que a situação de insolvência da empresa foi criada ou agra­vada pela actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, decorrente de actos que afectem, ainda que apenas em parte (se considerável) o património do devedor ou que prejudicando a situação patrimonial da empresa simultaneamente produzam benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros ou decorrente do incumprimento de certas obrigações legais, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (cfr. artigo 186º, nº1 do CIRE).
Saliente-se, ainda, que a qualificação da insolvência não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais nem para efeitos das acções de responsabilidade civil previstas no art. 82º e que a qualificação de uma insolvência como fortuita não assume sequer relevância para efeitos de processo de insolvência, contrariamente ao que ocorre com a sua qualificação como culposa que impõe um conjunto de sanções temporárias relacionadas com o próprio exercício do comércio a obrigações de pagamento de indemnizações e preclusões relativas a exoneração do passivo e de administração da massa falida (cfr. artigos 189.º, 228.º n.º 1 al. c), 238.º n.º 1 als. b) e f), 243º, nº1, al. c) e 246º, nº1 do CIRE).
E que no plano jurídico-tributário a declaração de insolvência não extingue a responsabilização do devedor que pode ver contra ele prosseguida a execução (sustada desde a prolação do despacho judicial de prosseguimento da acção de recuperação de empresa ou de declaração de insolvência), a qual poderá e deverá prosseguir contra a empresa, insolvente ou responsável subsidiário, conhecida a aquisição de bens, sem prejuízo das obrigações contraídas pela Fazenda Pública no âmbito do processo de recuperação ou da prescrição (artigo 180.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário).

Do que vimos expondo resulta, assim, em nosso entender linearmente, que diferentemente do que acontece com a qualificação de uma insolvência como culposa, a qualificação daquela como fortuita não traduz qualquer juízo de mérito da conduta (culposa ou não) do gerente (o ora Oponente) mas, tão só, um juízo de que não foram apurados factos que determinem que nesse sentido (culposo) seja sequer averiguada a conduta do responsável pela actividade comercial da insolvente.

E tanto assim é que, caso o incidente não chegue a ser aberto e nenhuma averiguação seja efectuada, a insolvência não pode deixar de ser tida como fortuita (cfr. art. 233º nº 6 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa). (2)

Note-se, aliás, que, a própria qualificação como culposa de uma insolvência está limitada, em termos de factos ou actos de que possa decorrer, a um período limitado de tempo, como referimos, os três últimos anos que antecedem o início do processo de insolvência, enquanto que no processo de Oposição a culpa que está a ser aferida está directamente relacionada (conexionada) com uma falta de pagamento que bem pode ser muito anterior ao período temporal considerado ou pressuposto no incidente.

Ou seja, tudo quanto pode ser extraído do facto de uma insolvência ser qualificada como fortuita, é que naquele processo não foram registados e relevados factos capazes de justificar a abertura de um incidente tendo em vista outro tipo de qualificação (culposa). E não que o responsável dessa empresa, o gerente e ora Oponente, não seja efectivamente responsável pelo não pagamento ou insuficiência de bens capazes de assegurar aquele pagamento.

Em conclusão, seja porque a qualificação de uma insolvência como fortuita não tem efeitos externos ao processo de insolvência, seja porquanto a averiguação ali feita tem pressupostos e enquadramento processual e temporal diversos do processo de Oposição Judicial, a qualificação de insolvência como fortuita não equivale à demonstração de inexistência de culpa em processo de Oposição Judicial.

Demonstração e afastamento desse juízo de culpa que se impunha que o ora Recorrente tivesse efectuado, alegando e provando factos dos quais pudesse ser extraído, atenta a presunção estabelecida no artigo 24.º n.º 1 al. b) da LGT, e que, como revela o probatório (e até a insubsistência do único fundamento em que suportou esse afastamento – qualificação da insolvência como fortuita) não logrou realizar.

E, assim, sendo manifesto que não estão efectivamente verificados os pressupostos de que a Lei faz depender a não responsabilização do devedor subsidiário forçoso é concluir, com os fundamentos expostos, que a sentença que julgou improcedente a presente Oposição Judicial não merece censura.

V- Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso do Tribunal Central Administrativo Sul, negando provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública, em confirmar integralmente a sentença recorrida

Custas pelo Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 21 de Maio de 2015

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[Anabela Russo]

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[Lurdes Toscano]

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[Ana Pinhol]

(1) Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 8 de Abril de 2015, integralmente disponível em www.dgsi.pt . Vide, ainda, a demais jurisprudência e doutrina aí citada, toda, uniformemente, no mesmo sentido.

(2) Neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda inCódigo da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado”, 2ª edição, Quid Juris, 2013, pg. 716.