Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:188/22.0 BEFUN-A
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:10/03/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:INCIDENTE DE ESCUSA DE JUIZ
FUNDAMENTOS
Sumário:I- Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 119.º do CPC (pedido de escusa por parte do juiz), “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.

II- A anterior existência de uma relação profissional e de confiança política com o titular da entidade do Governo Regional com competência para realizar o procedimento relativo ao “Projecto do ………………..”, pode legitimar dúvidas, aos olhos de terceiros, particularmente da comunidade local, sobre a total isenção do Senhor Juiz para julgar do mérito da causa.

Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:DECISÃO

1. Do objecto do incidente:

O Senhor Juiz de Direito a exercer funções na área administrativa do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, Dr. ………………, veio, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, n.ºs 1 a 3, do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, pedir que lhe fosse concedida dispensa de intervir na acção cautelar que com o n.º……/22.0BEFUN lhe foi distribuída e em que é Requerente a Associação Cívica para a Defesa da Floresta Laurissilva e Requeridos a Secretária Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural e o Governo Regional da Madeira.

Para fundamentar a sua pretensão, o Juiz escusante começa por informar que no âmbito do processo cautelar, de que este incidente é apenso, vem requerida a suspensão de eficácia da Resolução do Conselho do Governo Regional nº 186/2022, de 30 de março que delega a competência para praticar todos os actos a realizar no âmbito projecto de construção do Caminho das Ginjas, no Secretário Regional da Agricultura e Desenvolvimento Rural, José Humberto de Sousa Vasconcelos, bem como o concurso (anúncio de procedimento n.º 7333/20229) relativo à empreitada para a construção daquele Caminho, em que a entidade adjudicante é a SRADR do Governo da Região Autónoma da Madeira. E depois esclarece que o actual Secretário do Regional da Agricultura e Desenvolvimento Rural foi Presidente da Câmara Municipal de São Vicente no mandato de 2005-2009, tendo sido por aquele nomeado Chefe de Gabinete de Apoio Pessoal à Presidência. Afirma ainda que nos dias de hoje não tem qualquer relação pessoal de inimizade ou grande intimidade com o Senhor José ……………., mas o facto de ter sido escolhido para seu Chefe de Gabinete Pessoal, facto que que é do conhecimento público, pode criar em terceiros dúvidas sobre a sua imparcialidade.

Com o pedido de escusa junta cópia dos avisos publicitados no Diário da República, a aquando da sua contratação para exercer funções na CM de ……….. na carreira técnica superior de jurista, bem como da sua nomeação como Chefe de Gabinete de Apoio Pessoal à Presidência.

2. Apreciando:

Nos termos do artigo 119.º, n.º 1 do CPC o juiz pode pedir ao tribunal competente que o escuse de” intervir na causa quando se verifiquem alguma dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso quando, por circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade”.

A lei não apresenta expressamente a definição de circunstâncias ponderosas, pelo que será a partir do senso e das regras da experiência comum que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas, tendo sempre presente que o regime dos impedimentos/suspeições não se contenta com um qualquer motivo; ao invés exige que o motivo seja “sério, e grave” e “adequado a geral a sua desconfiança sobre a sua imparcialidade” (cfr. art. 120.º, n.º 1, do CPC).

Aos juízes na sua missão de julgar é exigido estatutariamente, como garantia do seu exercício, que o façam com o dever de independência e imparcialidade, nos artigos 4.º e 7.º do EMJ, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30-7, sucessivamente alterado e republicado pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto.

Julgar com independência é fazê-lo sem sujeição a pressões, venham elas de onde vierem, deixando fluir o juízo-valorativo com sujeição apenas à lei, à consciência e às decisões dos tribunais superiores. E ser imparcial é posicionar-se numa posição acima e além das partes, dizendo o direito aplicável na justa composição de interesses cuja resolução lhe é pedida.

Pode dizer-se, de um modo geral, que a causa de recusa do juiz, ou pedido de escusa do juiz, há-de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com algum dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o objecto da sua decisão (cfr. Alberto do Reis, Comentário, vol. I, p. 439 e ss.).

Esses especiais contactos e/ou relação(ões) deverão ser de molde a criarem uma predisposição favorável ou desfavorável no julgamento e deverão ser aferidos tendo em conta o juízo que um cidadão médio, representativo da comunidade, possa, fundadamente, fazer sobre a imparcialidade e independência do juiz.

Como já repetidamente afirmámos, a imparcialidade é um atributo fundamental dos juízes e da função judicial que visa garantir o direito de todos os cidadãos a um julgamento justo e equitativo. Recai sobre os julgadores o dever de adoptar uma conduta pessoal, social e profissional que, aos olhos de uma pessoa razoável, bem informada e de boa fé, seja entendida como íntegra, leal e correcta.

É “a confiança pública nos juízes (que) garante o respeito pelas suas decisões e o prestígio e boa imagem da Administração da Justiça e do próprio Estado de direito democrático. Essa percepção social da incorruptibilidade, probidade e honestidade dos juízes não pode ser minimamente beliscada por qualquer atitude do juiz que a ponha em causa” , estando constantemente, sujeito a escrutínio público, ao juiz exige-se que evite “comportamentos que ponham em causa a confiança nas suas qualidades para administrar a Justiça, tendo sempre presente que o seu exemplo pessoal quotidiano é relevante (…)” (Compromisso Ético dos Juízes Portugueses - Princípios para a Qualidade e Responsabilidade, documento aprovado no oitavo congresso dos juízes portugueses, editado pelo ASJP).

Como se afirma no acórdão do STJ de 14.06.2006, proc. n.º 1286/06-5: “No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade. (2) – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança. (3) – A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição -art.32.º, n.º9-, só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita.

A escusa do juiz tem, portanto, como um único objectivo ou finalidade, a de garantir a imparcialidade do juiz, a qual se presume. E só em situações limite, por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal, deve levar o mesmo a ser escusado de intervir num processo.

Por seu turno, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem vindo a entender que a imparcialidade e a objectividade exigidas no exercício da função jurisdicional, deve ser apreciada num duplo sentido: “numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.» que é tanto a subjectiva como a objectiva.” (cfr. notas para um processo equitativo, análise do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à luz da jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Documentação e Direito Comparado, nºs. 49/50, pp. 114 e 115).

No caso concreto a gravidade e a seriedade do motivo devem ser apreciadas e valoradas nos termos em que a situação ou factos que a definem são colocados pelo Sr. Juiz requerente, sendo que temos por seguro que neste incidente não se discute a imparcialidade subjectiva do juiz escusante (que, aliás, se presume até prova em contrário), nem se põe em causa que, se porventura viesse a julgar esta acção, o faria seguramente de modo independente e imparcial.

Na verdade, o que aqui se somos chamados a aferir é, outrossim, se os motivos de dispensa apresentados pelo Sr. Juiz do TAF do Funchal são de molde a fazer perigar objectivamente, por forma séria e grave a confiança que o cidadão médio deposita na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. E são.

O Senhor Juiz escusante invoca a susceptibilidade de ser posta em causa a sua imparcialidade baseando-se na prévia relação profissional e de confiança política com o actual Secretário Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural, que é a entidade, por via da Resolução do Conselho do Governo Regional nº 186/2022, de 30 de março, com competência para realizar todo o procedimento relativo ao “Projecto do Caminho da …………”. Procedimento esse que fica localizado em área do concelho e freguesia de ………, concelho onde o peticionante reside bem como o seu pai.

Perante os factos invocados como fundamento de escusa é de admitir a susceptibilidade, do ponto de vista do cidadão médio da comunidade onde de insere o julgador - uma comunidade de média dimensão em que essas relações são “percepcionadas pela generalidade das pessoas” e, em especial pela Requerente -, de poder ocorrer desconfiança sobre a imparcialidade do tribunal.

E, não estando em causa – repete-se – qualquer prevenção quanto à garantia de imparcialidade subjectiva, o certo é que pode estar criado um quadro de aparências capaz de sustentar, no juízo do público conhecedor daquela situação de relacionamento, dúvidas, desconfianças, suspeitas sobre a indispensável imparcialidade do julgador e sobre o modo de funcionamento da Justiça, tal como se antevê do teor da resposta dada pela Autora, quando instada a pronunciar-se sobre o pedido de dispensa.

Assim sendo, e perante o exposto, afigura-se-nos que as razões invocadas pelo Senhor Juiz escusante têm a virtualidade, de acordo com o nosso entendimento, de constituir “motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

3. Decidindo:

Pelo exposto, defere-se o pedido de escusa apresentado pelo Senhor Juiz de Direito, Dr. Eurico Sérgio de Assunção Gomes para intervir nos autos.

Sem tributação.

Notifique.

3 de Outubro de 2022

O Juiz Presidente do TCA Sul

PEDRO MARCHÃO MARQUES