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Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1217/16.1BELSB-A
Secção:CA
Data do Acordão:05/19/2022
Relator:ALDA NUNES
Descritores:RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE REVISÃO
ART 696º, AL C) DO CPC
Sumário:I – Uma sentença transitada em julgado pode ser objeto de revisão quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento ou de que não pudesse ter feito uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.
II – Não reúne tal requisito a apresentação de uma sentença proferida por outro tribunal que tão só demonstra a interpretação e aplicação da lei ao caso nela julgado, que nada tem a ver com os factos alegados e julgados pela sentença a rever.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

Relatório
J… veio interpor recurso da decisão proferida a 16.9.2019, que indeferiu liminarmente o recurso extraordinário de revisão interposto pelo recorrente da sentença proferida a 30.6.2017, por não se verificarem os pressupostos previstos no art 696º, al c) do CPC.
O recorrente apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões:
A) A Sentença de que se recorre pura e simplesmente faz uma interpretação restritiva do conceito de documento para efeitos do art. 696º, alínea c) do CPC;
B) Ignorando que, de facto, o documento junto não existia à data da prolação da sentença (novidade) e a sua simples leitura sempre implicaria uma decisão distinta (suficiência);
C) Cientes que a existência do erro judiciário tem de ter sido reconhecida em recurso por um Tribunal hierárquica ou funcionalmente superior, em termos de ter determinado a revogação dessa decisão;
D) Algo que não sucedeu na sentença recorrida, pelo que não poderia reconduzir-se a causa de pedir a um erro judiciário;
E) Expressão que aliás não foi utilizada pelo Apelante, e mesmo que assim não fosse, sempre a decisão recorrida deveria julgar por não verificado;
F) Sendo bom de ver que o documento junto se encontra nos antípodas da decisão recorrida no que toca à aferição do que é erro judiciário.
G) Sendo por isso bom de concluir que o recurso de revisão deveria ter sido admitido.
H) Devendo os autos prosseguir os seus ulteriores tramites.
Deste modo a, apesar de tudo, Douta Sentença deverá ser revogada e substituída por despacho que admitindo o recurso de revisão ordene a prossecução dos autos com os seus ulteriores tramites.

O recorrido Estado Português contra-alegou o recurso e concluiu:
I - O presente recurso vem interposto da decisão de 16.09.2019, que indeferiu liminarmente o recurso extraordinário de revisão da sentença proferida em 30.06.2017.
II - Pretende o recorrente modificar a decisão proferida pelo Tribunal a quo transitada em julgado, com base na interpretação e aplicação do direito constante numa decisão judicial posterior, que não tem qualquer relação com os factos alegados e provados na sentença a rever.
III – Atenta a sua natureza de meio de prova – arts. 342º e 362º do CC -, o documento novo, suscetível de relevar nos termos e para os efeitos da alínea c), do artigo 696º, do CPC, tem de respeitar a factos, em que a decisão de mérito se tenha fundado.
IV – Pelo que o documento novo invocado como fundamento da revisão terá de respeitar à matéria de facto alegada na ação, pois que só levará à procedência do recurso se, por si só, for suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável ao recorrente.
V – A sentença apresentada como documento novo, embora seja posterior, não respeita à factualidade alegada e demonstrada nos autos, em que foi proferida a decisão a rever e que, por isso mesmo, lhe serviu de fundamento.
VI – Não podendo, por isso, de modo algum revelar a existência de qualquer erro de julgamento dos factos, que importe superar e que leve a nova decisão de mérito.
VII - A certidão da sentença apresentada pelo recorrente, que qualifica como documento e reconduz à previsão da alínea c), do artigo 696º, do CPC, não visa demonstrar quaisquer factos alegados nos autos, que possam conduzir a uma decisão diversa.
VIII – Mas demonstrar a interpretação e aplicação do direito efetuada por outro Tribunal.
IX – Pelo que, bem andou o Tribunal a quo, ao decidir que o documento a que a al. c), do art.º 696º do CPC se refere, é um documento relativo à relação material controvertida em causa na sentença cuja revisão é peticionada, não constituindo a prolação de uma sentença posterior, manifestamente, um documento para efeitos dessa norma.
X - Improcedem, assim, a nosso ver, todos os argumentos invocados pelo recorrente.
XI – Pelo exposto, não merece qualquer censura a decisão recorrida, devendo ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a mesma, nos seus precisos termos.
Termos em que requer seja negado provimento ao presente recurso e mantida na íntegra a decisão recorrida.

Cumpre decidir, dispensando vistos.


Objeto do recurso:
Atentas as conclusões das alegações de recurso, que delimitam o seu objeto, nos termos dos arts 635º, nº 3 a 5 e 639º, nº 1 do CPC, ex vi art 140º, nº 3 do CPTA, dado inexistir questão de apreciação oficiosa, a questão decidenda, tal como a identifica o recorrente consiste em saber se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento de direito ao concluir pela não verificação dos pressupostos para a revisão da sentença proferida, previstos no art 696º, al c) do CPC ex vi art 154º do CPTA.

Fundamentação
De facto
Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
A) Nesta ação administrativa comum, intentada pelo ora recorrente contra o Estado Português, foi proferida sentença, em 30.6.2017, que julgou a jurisdição administrativa absolutamente incompetente para conhecer do pedido indemnizatório fundado em erro judiciário ocorrido na ação nº 4006/09.6T3SNT, que correu termos pela Comarca da Grande Lisboa Noroeste – Sintra – Instância Central da Secção Criminal – J2, tendo, em consequência, absolvido o réu da instância (cfr sentença inserida no sitaf).
B) Em 9.7.2019 o recorrente intentou recurso de revisão de sentença, com fundamento na al c) do art 696º do CPC, juntando para o efeito uma sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Alcobaça – J1 Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, no âmbito da ação de processo comum nº 601/14.0TBACB, de 15.2.2019 (cfr requerimento de interposição de recurso e documento junto).
C) A sentença que instruiu o recurso de revisão, proferida na ação nº 601/14 em que foi autor o ora recorrente, apreciou a seguinte questão: «condenação do réu «Estado Português» a pagar ao autor a quantia de €: 43.137,15, a título de indemnização por erro judiciário ocorrido no âmbito do processo de embargos de terceiro que correu termos sob o nº 3029/03.3TBACB-A, no (extinto) 2º juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, e decidindo: julgou a ação totalmente improcedente e absolveu o réu do pedido, porque o erro judiciário não foi reconhecido em recurso por Tribunal hierarquicamente superior, falha a verificação do pressuposto de ilicitude relevante para efeitos da ação de responsabilidade, tal como configurado pelo n.º 2 do artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado previsto na Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.
D) Por decisão de 16.9.2019 do TAF de Sintra o recurso de revisão foi indeferido liminarmente, porque a sentença junta não tem qualquer relação com a sentença proferida no processo nº 1217/16.1BELSB, não pondo de forma alguma em causa a decisão de incompetência absoluta proferida. Aliás até vem reforça-la, porquanto, perante um alegado erro judiciário da jurisdição comum, essa mesma jurisdição julgou-se competente para apreciar a respetiva ação de responsabilidade civil por erro judiciário, ainda que julgando improcedente o pedido (cfr decisão inserida no sitaf).


De direito
O recurso extraordinário de revisão interposto pelo ora recorrente tem por objeto a sentença proferida pelo TAF de Sintra, a 30.6.2017, transitada em julgado, que julgou os tribunais administrativos absolutamente incompetentes para conhecer do pedido de condenação no pagamento de indemnização fundado em erro judiciário cometido na ação nº 4006/09.6T3SNT, que correu termos pela Comarca da Grande Lisboa Noroeste – Sintra – Instância Central da Secção Criminal – J2.
O presente recurso de apelação tem por objeto a decisão proferida a 16.9.2019, que indeferiu liminarmente aquele recurso de revisão.
A decisão recorrida apreciou o fundamento do recurso de revisão invocado, previsto no art 696º, al c) do CPC ex vi art 154º do CPTA, e indeferiu-o por o documento em que se funda o pedido de revisão – sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Alcobaça – J1 Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, no âmbito da ação de processo comum nº 601/14.0TBACB, de 15.2.2019 – não respeitar à factualidade alegada e demonstrada na ação administrativa nº 1217/16 em que foi proferida a decisão a rever.
Afigura-se correto este juízo do caso.
Vejamos.
O recurso extraordinário [visto não se destinar a evitar o trânsito em julgado da decisão recorrida (como sucede com os recursos ordinários - art 676º do CPC) mas, diversamente, visa impugnar uma decisão já transitada e obter a prolação de uma nova decisão de sentido diferente] de revisão é interposto no tribunal que proferiu a decisão a rever – art 154º, nº 1 do CPTA e art 697º, nº 1 do CPC.
Apesar de aceite pela generalidade das legislações europeias, o recurso de revisão apresenta, à primeira vista, como diz o Prof. Alberto dos Reis, o aspeto de uma aberração judicial, por atentar contra a autoridade do caso julgado (cfr Código de Processo Civil Anotado, volume VI, página 335).
Mal se compreende, na verdade, que, decidida uma ação, com todas as garantias que a lei processual prevê, mormente a observância do contraditório em todas as suas fases e o regime de recursos legalmente instituído, se possa, ainda assim, relançar a discussão da questão, pondo em causa a certeza do direito e abrindo, de algum modo, a porta à própria instabilidade social.
No entanto, a derrogação do princípio da inviolabilidade do caso julgado justifica-se, pela constatação de que a realidade vai, por vezes, muito para além daquilo que a previsão consente.
Na vida da sociedade surgem situações em que a lei permite que a decisão proferida, embora com trânsito em julgado, possa ser revista, com vista a proibir a consolidação definitiva de resultados injustos.
No meio do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade de segurança, há que dar, em determinadas circunstâncias, prevalência à justiça, porque a sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que o mal só possa ser atalhado por via da revisão; dito de outro modo, a sentença pode ter sido consequência de circunstâncias tão estranhas e anómalas, que os inconvenientes e as perturbações resultantes da quebra do caso julgado sejam muito inferiores aos que derivariam da intangibilidade da sentença (cfr Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume VI, página 336 e 337)
Neste meio termo entre a certeza das decisões e a realidade/contingências da vida, os fundamentos da revisão são taxativos e vêm enumerados no artigo 696º do CPC ex vi art 154º do CPTA, que estipula o seguinte:
A decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando:
a) Outra sentença transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções;
b) Se verifique a falsidade de documento ou ato judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objeto de discussão no processo em que foi proferida;
c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;
d) Se verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transação em que a decisão se fundou;
e) Tendo corrido a ação e a execução à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que faltou a citação ou que é nula a citação feita;
f) Seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português;
g) O litígio assente sobre ato simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude.
Conforme os arts 698º e 699º, nº 1 do CPC, os fundamentos para a admissibilidade do requerimento de recurso de revisão são alegados e demonstrados no requerimento de interposição do recurso e aferidos no despacho liminar.
Nos autos, foi invocado o fundamento previsto no art 696º, al c) do CPC
Neste particular, a procedência do pedido de revisão depende de três requisitos: (1) que se apresente documento novo; (2) que a parte não dispusesse nem tivesse conhecimento dele; (3) que, por si só, o documento seja suficiente para modificar a decisão em sentido para si mais favorável.
Atenta a definição que consta do art 362º do Código Civil, diz-se documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto.
Importa assim saber se a sentença junta com o requerimento de interposição do recurso se encontra nas condições exigidas na al c) do art 696º do CPC, para poder servir de fundamento para a revisão da sentença proferida na ação principal.
A este propósito veja-se o que afirma Rodrigues Bastos – nas suas «Notas ao CPC», Vol. III, 3ª ed, pág 319 - que «não preenche este fundamento a apresentação de documento com interesse para a causa que, relacionado com outros elementos probatórios produzidos em juízo, fosse suscetível de determinar uma decisão mais favorável para o vencido; para servir de fundamento à revisão, é necessário que o documento, além do carácter de superveniência, faça prova de um facto inconciliável com a decisão a rever, isto é, que só por ele se verifique ter esta assentado numa errada averiguação de facto relevante para o julgamento de direito».
No mesmo sentido se pronuncia Alberto dos Reis – em «CPC anotado», vol VI, pág 357, citando «Salvatore La Rosa»: «O magistrado, para julgar se o documento seja decisivo, deverá pô-lo em relação com o mérito da causa, deverá proceder ao exame do mérito e indagar qual teria sido o êxito da causa se o documento houvesse sido apresentado. Feito este exame, ou o magistrado se convence de que, se o documento estivesse no processo, a sentença teria sido diversa – e neste caso deve admitir a revogação; ou se convence de que, não obstante a produção do documento, a sentença teria sido a mesma, porque assenta sobre outras bases e está apoiada em razões independentes do documento – e neste caso deve repelir a revogação».
Novamente, citando o mesmo professor, mesma obra e págs. 357 e 358, «o documento há-de ser tal que crie um estado de facto diverso daquele sobre que assentou a sentença; se o documento tem de destruir a prova em que a sentença se fundou, é claro que desaparece o estado de facto, base da sentença, substituindo-se-lhe outro estado diferente».
Quer dizer, o novo documento deve ser de conteúdo tal que o juiz se persuada de que, nessa base, a solução justa teria sido outra, tendo, pois, subjacente a ideia de necessidade de um nexo de causalidade entre o documento novo e a injustiça da decisão.
E, em nosso entender, como no do Sr. Juiz da 1ª instância, a sentença junta pelo recorrente não tem esse potencial.
A sentença junta, apesar da data em que foi proferida ser posterior à decisão que pôs termo ao processo, adere à jurisprudência firmada e ao disposto no art 13º, nº 2 da Lei nº 67/2007, de 31.12, sobre a necessidade do pedido de indemnização por erro judiciário ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente. O que desde logo afasta a virtualidade para alterar a decisão a rever.
O documento trazido a juízo no recurso de revisão, como bem conclui o recorrido, não visa demonstrar quaisquer factos alegados, nem o seu objeto tem nada a ver com os factos que foram alegados e julgados no processo nº 1217/16.1BELSB e que, como tal, serviram de sustentáculo factual à decisão revidenda, pelo que o mesmo nunca poderia revelar a existência de um erro de julgamento dos factos.
Na verdade, a certidão da sentença apresentada pelo recorrente, …, não visa demonstrar quaisquer factos alegados nos autos, que possam conduzir a uma decisão diversa, mas apenas a interpretação e aplicação do art 13º, nº 2 da lei nº 67/2007, de 31.12 efetuada por outro Tribunal, sendo de todo estranha aos factos alegados e demonstrados nos autos.
A sentença junta evidencia ainda que as ações de responsabilidade civil por crasso erro, por erro grosseiro (cfr als H) e K) das conclusões do recurso) praticado em processo cível tramitado nos tribunais comuns cumpre serem conhecidas nessa mesma jurisdição comum e não na jurisdição administrativa, de onde estão excluídas (cfr art 4º, nº 3, al a) do ETAF).
Concluindo – como fez a decisão sob recurso – o documento não é suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável para o recorrente.
Portanto, a decisão sob recurso não errou quando indeferiu/ rejeitou o recurso de revisão, por não se verificar o fundamento para a revisão da sentença proferida previsto no art 696º, al c) do CPC ex vi art 154º, nº 1 do CPTA.
Em suma, improcedem as conclusões do recurso.

Decisão
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário caso ainda lhe permaneça atribuído.
Registe e notifique.
*
Lisboa, 2022-05-19,
(Alda Nunes)
(Lina Costa)
(Catarina Vasconcelos).