Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:476/11.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:07/08/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO
INEXISTÊNCIA DE FACTO TRIBUTÁRIO
IVA
Sumário:I. Para que não ocorra caducidade do direito à liquidação, é necessário que esta seja notificada dentro do prazo previsto para o efeito, implicando a falta de notificação, nestes casos, ineficácia invalidante do ato emitido.
II. Não tendo havido qualquer atividade da sociedade durante o período a que respeita a liquidação oficiosa de IVA, inexiste facto tributário.
III. A circunstância de ainda não ter ocorrido o encerramento da liquidação de uma sociedade não impede que haja uma situação de inexistência de facto tributário.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 28.03.2017, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por A..... (tendo vindo ulteriormente a ser habilitados, em virtude da morte deste, G....., V..... e I....., doravante Recorridos ou Impugnantes), relativa à liquidação oficiosa de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) atinente ao ano de 2004 e à sociedade J....., Lda.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Neste seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

A - Pelo elenco de razões supra arroladas, ressalve-se melhor entendimento, infere-se que a sentença proferida pelo tribunal “a quo" enferma de erro de julgamento, porquanto não faz, salvo o devido respeito, uma correcta apreciação da matéria de facto relevante e, bem assim, total e acertada interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis ao caso "sub judice"\

B - A fundamentação da Sentença recorrida assenta, em síntese, na caducidade do direito à liquidação e, por ter sido demonstrada a inexistência do facto tributário de IVA para o ano de 2004;;

C - Consultados os autos verifica-se que o responsável subsidiário ora Recorrido, foi o próprio a reconhecer que foi gerente da devedora originária;

D - Pelo que, tendo a declaração de falência ocorrido em 15.SET.2004, é licito que a prossecução da execução fiscal contra o responsável subsidiário por reversão realizada nos termos do disposto no artigo 24.° da LGT, prossiga;

E - A execução fiscal foi instaurada por falta de entrega das declarações periódicas de IVA dos 1.° (200403T), 2.° (200406T) e 3.° (200409T) trimestres do ano de 2004;

F - A cobrança coerciva da dívida é legalmente viável a prossecução da execução fiscal contra o responsável subsidiário, por reversão realizada ao abrigo do artigo 24 ° da LGT, antes ou depois da declaração de insolvência da sociedade devedora, com a penhora de bens do revertido, independentemente da data da sua aquisição, na medida em que só relativamente à entidade insolvente fica a possibilidade de penhora limitada a bens ulteriormente adquiridos;

G - Pelo que a reversão da dívida em crise não merece qualquer censura, devendo, por esse facto, manter-se na ordem jurídica do ora Recorrido;

H - Já no que concerne ao defendido pelo tribunal “a quo", mormente que se encontra demonstrado cabalmente nos autos pela matéria de facto dada como assente, na medida em que ficou devidamente comprovado que no final de 2003, todos os trabalhadores da empresa deixaram de aí laborar, tendo a mesma encerrado portas, a que culminou com a apresentação de falência logo no dia 02.MAR.2004, uma vez que, consultados os autos não se verifica que tenha ocorrido o encerramento e a liquidação da devedora originária;

I - Importa, contudo, referir o que prescreve o artigo 152, n.° 3, alínea b) do Código das Sociedades Comerciais “incumbe ao Administrador de Insolvência o cumprimento das obrigações da massa falida";

J - Outrossim, as imposições legais que lhe são avocadas têm a sua razão de ser, nomeadamente as referidas nos artigos 36.° alínea g) e 150.° do CIRE, dado que os referidos normativos impõem que a sentença que declare a insolvência decrete a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor;

K - Atento o supra exposto, e tendo presente o depoimento da testemunha L....., na qualidade de empregada de escritório da devedora originária, referiu que não só trabalhou lá até ao seu encerramento, como afirmou que, ficou com a guarda as chaves e das pastas, tendo, reencaminhado a correspondência para casa do ora Recorrido;

L - E não diga o tribunal “a quo" que ocorreu a caducidade do direito à liquidação, uma vez que, a devedora originária foi citada em 17.JUL.2006 e, o quadro fiscal normativo legal vigente, prevê que a não apresentação das declarações fiscais, constitui incumprimento dessa concreta obrigação e, viola os deveres imputáveis ao administrador de insolvência;

M - Certo é que, nos termos do artigo 29.° do CIVA e, neste caso em particular as obrigações previstas nos artigos 31.° a 33° do mesmo normativo legal, foram desconsideradas;

N - Sublinhe-se pois que, como resulta dos normativos legais também as obrigações declarativas em falta que ocorram posteriormente à dissolução, são da responsabilidade dos administradores de insolvência;

O - Assim sendo, as obrigações de pagamento e liquidação do IVA, nos termos do art 0 78.° desse diploma, caso a sociedade não se encontre cessada, serão da obrigação do administrador de insolvência, isto porque as sociedades agem através dos seus representantes legais, uma vez que a sua personalidade jurídica é ficcionada;

P - Contudo, tendo presente o depoimento da testemunha R...., ouvido na qualidade liquidatário judicial da devedora originária, referiu que desconhecia se havia indícios de prática de actividade durante o ano de 2004;

Q - Alegou, também, a mesma testemunha, quanto à matéria controvertida, que desconhecia se os sócios da devedora originária tinham cessado a actividade, ou encetado, qualquer diligência, nesse sentido, junto da AT;

R - Como é consabido, determina o artigo 230.°, n.° 1, alínea b) do CIRE que após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, a decisão de encerramento do processo é notificada aos credores e, ainda, objecto de publicidade e de registo previstos nos artigos 37.° e 38,°, com indicação da razão determinante da mesma;

S - Pelo que, até esse momento, perduram todas as obrigações declarativas legalmente previstas”.

Os Recorridos apresentaram contra-alegações, nas quais formularam as seguintes conclusões:

“a) A douta sentença recorrida não merece qualquer censura, tendo feito correcta apreciação dos factos e preceitos legais e encontra-se devidamente fundamentada;

b) As provas testemunhal e documental constantes dos autos provam que a sociedade não teve actividade no ano de 2004, não tendo praticado qualquer operação tributável;

c) Provada a inexistência de actividade da sociedade devedora originária a partir de 31-12-2003, não houve obtenção de rendimentos no período em causa e a correspondente liquidação do imposto, não podendo subsistir a liquidação oficiosa efectuada pela AT;

d) Inexistindo facto tributário subjacente à liquidação oficiosa do IVA do ano 2004 a mesma é ilegal, sendo procedente a impugnação apresentada;

e) Sobre a AT recaía o ónus da prova da notificação da liquidação oficiosa do IVA de 2004 pelos meios legalmente previstos, na pessoa do Liquidatário Judicial e dentro do prazo legal de caducidade previsto no artigo 45° n° 1 da LGT;

f) A Administração Tributária, apesar de diversas vezes notificada para o efeito, não logrou provar a notificação da liquidação do IVA de acordo com a lei, pelo se verifica a caducidade do direito à liquidação;

g) Como tal, deverá julgar-se procedente a Impugnação deduzida como fez, e muito bem, a douta sentença recorrida”.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:
a) Verifica-se erro de julgamento, na medida em que a sociedade devedora originária foi citada em sede de execução fiscal e havia obrigação de apresentação das declarações fiscais?
b) Verifica-se erro de julgamento, dado que ainda não tinha decorrido o encerramento da liquidação da sociedade devedora originária?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) A sociedade “J....., Lda” deu início de atividade junto da A.T. em 15.05.1975 (cfr. doc. de fls. 83 a 86 do PA);

B) Fruto da crise na área da construção, no final do ano de 2003 a sociedade mencionada na alínea antecedente não possuía trabalho que justificasse a continuação da sua atividade.

C) Na sequência do referido em B), os sócios gerentes da sociedade decidiram que a mesma não podia continuar a laborar, por não ter condições para tal, tendo sido rescindidos todos os contratos de trabalho que a ligavam aos seus trabalhadores até ao dia 31.12.2003.

D) No seguimento do referido em C), a sociedade mencionada em A) deixou de exercer qualquer atividade a partir do final de 2003.

E) A sociedade mencionada na alínea antecedente apresentou-se à falência em 02.03.2004 (cfr. fls. 34 dos autos).

F) Em 15.09.2004, no âmbito do processo nº 241/04.1TYLSB que correu termos no 3º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, foi proferida sentença declarando a falência da sociedade identificada em A), sendo nomeado como Liquidatário Judicial R..... (cfr. fls. 27 a 32 dos autos

G) O Liquidatário Judicial mencionado na alínea antecedente, apresentou em 28.09.2004, junto do Serviço de Finanças de Salvaterra de Magos, Declaração de Alterações para efeitos de IVA e IRC, na qual passou a constar como Representante Legal da sociedade identificada em A) (cfr. fls. 91 a 94 do PA).

H) Em 24.06.2006 foi emitida em nome de “J....., Lda, em Liquidação”, a liquidação oficiosa de IVA respeitante ao ano de 2004, no montante de 16.637,91€, por falta de apresentação das declarações periódicas desse período (cfr. fls. 71 do PA).

I) O Impugnante foi citado por ofício de 10.01.2011, na qualidade de revertido, no processo de execução fiscal nº ..... e apensos, do qual fazia parte o processo de execução nº ..... instaurado para cobrança do valor mencionado na alínea antecedente (cfr. fls. 16 a 23 dos autos).

J) Em 24.02.2011 foi apresentada a presente impugnação judicial (cfr. fls. 3 dos autos)”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Com interesse para a decisão, considera-se não provado o seguinte facto:

1) Foi enviada à devedora originária e por esta recebida, diretamente ou através de terceiros, ou não reclamada a notificação relativa à liquidação mencionada em H).

Não existem outros factos não provados, em face das possíveis soluções de direito, com interesse para a decisão da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A convicção do tribunal, no que respeita aos factos provados, assentou, desde logo, na prova documental junta aos autos, conforme indicado em cada um desses factos.

No tocante aos factos B) a D), a convicção do tribunal fundou-se no depoimento das testemunhas L....., sobrinha de A....., e que, até 2003, e durante cerca de 27 anos, prestou funções na sociedade devedora originária, como escriturária, e I....., que durante 30 anos, exerceu funções enquanto empregada de escritório junto da devedora originária até novembro de 2003 e cujo marido também ali trabalhava, tendo ambas, de forma coerente e convincente e demonstrando conhecimento direto dos factos, confirmado que a devedora originária começou a ressentir-se, com falta de clientes e de trabalho, o que levou a que os seus sócios-gerentes (A..... e seu irmão), decidissem encerrar a sociedade, o que se verificou no final de 2003, e requerer a sua falência, o que ocorreu no início de 2004.

Estes depoimentos encontram-se em consonância com o de R....., advogado e que foi o primeiro liquidatário nomeado, no âmbito do processo de falência da devedora originária, e que confirmou que, quando se deslocou à sede/armazéns onde a devedora originária laborava, já depois de nomeado pelo tribunal de comércio, verificou que a mesma já estava encerrada, sem laborar, e que pelo aspeto que transmitia, essa falta de elaboração já tinha alguns meses. Aliás, trata-se de factualidade em consonância com a factualidade constante da sentença proferida nos autos de falência constante dos autos.

Quanto ao facto não provado, e não obstante ter havido expressa notificação da AT para juntar os elementos em causa, apenas constam dos autos impressões do sistema informático da administração tributária, sendo um deles respeitante a “consulta de registo privativo” com o número de registo inicial de ..... e final de ....., num total de 498782 registos, e um documento de “guia de expedição de registos” emitida pelos CTT, referente à emissão de 49.956 registos postais em 12.07.2006.

As impressões do sistema informático, sendo da própria A.T., não constituem prova bastante da efetividade da notificação (e não identificando, sequer, o destinatário da alegada notificação), provando meramente um registo feito em tal sistema, não sendo possível, por outro lado, retirar qualquer outra conclusão relevante do documento dos CTT junto aos autos, a não ser de que no dia 12.07.2006 a DGCI procedeu à entrega de 49.956 registos postais junto dos CTT, sem que sejam sequer identificados os números de registos em causa”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Antes de mais, refira-se que, ao longo das suas alegações, a Recorrente vai invocando verificarem-se fundamentos que legitimaram a reversão contra o primitivo Impugnante.

Ora, estamos no âmbito de impugnação judicial e não de oposição à execução fiscal, não sendo nem oportuna nem pertinente a discussão em torno da legalidade ou não legalidade do despacho de reversão, matéria completamente arredada da discussão dos presentes autos (e que, aliás, já foi analisada em sede própria).

Como tal, nada será apreciado quanto a essa matéria, dada a sua irrelevância no caso dos autos.

Por outro lado, verifica-se que, ao longo das suas alegações, a Recorrente faz menção ao depoimento de testemunhas.

Não obstante, tal menção será desconsiderada, na medida em que não foi impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Com efeito, considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão[1].

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Especificamente quanto à prova testemunhal, dispõe o n.º 2 do art.º 640.º do CPC:

“2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­‑se-lhe os ónus já mencionados[2].

Ora, in casu, nada disso sucedeu, na medida em que, como referimos, apenas é mencionado o que as testemunhas terão dito, mas nada é cumprido em termos das exigências do regime impugnatório mencionado. Ou seja, em bom rigor, não foi impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Como tal, pelos motivos referidos, nada igualmente será apreciado a este propósito.

III.A. Do erro de julgamento quanto à caducidade do direito à liquidação

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, quanto à caducidade do direito à liquidação, uma vez que a devedora originária foi citada a 17.07.2006 e o regime legal prevê a obrigação de apresentação das declarações fiscais, ainda que pelo administrador de insolvência.

Antes de mais, sistematizemos o quadro factual pertinente, in casu, considerando, como já referido, que não foi impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos consignados no art.º 640.º do CPC.

Assim, in casu, o primitivo impugnante era sócio gerente da sociedade J....., Lda, e, em 2003, juntamente com o outro sócio gerente, decidiu que a mencionada sociedade já não tinha condições para continuar a laborar, tendo tal sociedade, ainda em 2003, rescindido todos os contratos com os trabalhadores e tendo também deixado de exercer qualquer atividade desde o fim do mesmo ano de 2003.

No ano seguinte, a própria sociedade apresentou-se à falência, tendo em 15.09.2004 sido declarada essa mesma falência e nomeado liquidatário judicial, o que foi oportunamente comunicado aos serviços da administração tributária (AT).

Cerca de dois anos mais tarde, em 24.06.2006, foi emitida, em nome de “J....., Lda, em Liquidação”, a liquidação oficiosa de IVA respeitante ao ano de 2004, no montante de 16.637,91 Eur., ora em causa.

No entanto, não ficou provado que esta liquidação tenha sido notificada à mencionada sociedade em liquidação, como resulta da factualidade não provada.

Atento este quadro factual, vejamos então.

Nos termos do art.º 45.º, n.º 1, da LGT, o direito à liquidação caduca se aquela não for notificada ao contribuinte no prazo de 4 anos, prazo aplicável in casu, contado nos termos previstos no n.º 4 do mesmo art.º 45.º.

Assim, sendo certo que, regra geral, ao nível do direito administrativo, a notificação afeta não a validade do ato notificado, mas apenas a respetiva eficácia, atendendo ao teor deste art.º 45.º, n.º 1, da LGT, subsiste uma exceção neste domínio, ao regime regra dos atos administrativos, dado que, nas palavras de Jorge Lopes de Sousa, esta disposição legal “… atribui à falta de notificação tempestiva eficácia invalidante” (cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Vol. III, 6.ª Ed., Áreas Editora, Lisboa, 2011, pp. 488 e 489).

Ou seja, só se considera que o direito à liquidação não caducou se a notificação do ato em causa ocorrer antes de decorrido o prazo legalmente previsto.

Ora, in casu, não resultou provado que a liquidação oficiosa emitida pela AT, na sequência da omissão declarativa ocorrida, tenha sido notificada à J....., Lda, em Liquidação [cfr. facto não provado].

Com efeito, a AT (e a FP, em sua representação), apesar de ser seu o ónus, não veio trazer aos autos quaisquer elementos no sentido da prova da efetivação de tal notificação (cfr., v.g., os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 25.02.2010 – Processo: 00054/07.9BEBRG – e de 22.01.2009 – Processo: 00497/07.8BEPNF – e os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 07.05.2002 – Processo: 5839/01 – e de 08.01.2015 – Processo: 08118/14).

Assim, não consta dos autos qualquer elemento que demonstre a efetiva expedição da notificação por parte da AT, como decorre da factualidade não provada e respetiva motivação.

Ou seja, não foi demonstrada pela FP, a quem cabia tal ónus, a ocorrência da notificação.

Não altera esta circunstância o facto de alegadamente ter havido citação dessa mesma sociedade. Desde logo, refira-se que tal não decorre da factualidade assente nem sequer resulta dos elementos documentais constantes dos autos.

No entanto, e acima de tudo, uma e outra situação não se confundem – caso contrário, a falta de notificação da liquidação não seria fundamento de oposição.

Com efeito, a citação é o chamamento à execução; já a notificação da liquidação é o ato através do qual se leva, ao conhecimento do seu destinatário, a existência de um ato administrativo ou tributário que lhe respeita, desde logo para que o mesmo possa reagir, querendo, desse mesmo ato.

A obrigação de notificação dos atos tributários decorre, aliás, do desiderato constitucionalmente consagrado no art.º 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual “[o]s atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei”. Trata-se, pois, de um direito e garantia do administrado.

Portanto, não tendo ficado provada a notificação da devedora originária, verifica-se caducidade do direito à liquidação, nos termos referidos pelo Tribunal a quo.

Refira-se, para finalizar, que carece de qualquer pertinência o alegado em torno da existência de obrigações declarativas, fosse por quem fosse (designadamente pelo administrador de insolvência).

Essa omissão declarativa ocorreu, o que não é posto em causa, e foi emitida uma liquidação oficiosa nessa sequência, atento o disposto no art.º 83.º do Código do IVA (CIVA).

Tendo sido emitida tal liquidação oficiosa por parte da AT, a mesma tinha de ser notificada. Essa notificação deveria ser feita através de carta registada com aviso de receção, atento o disposto no mesmo art.º 83.º, n.º 2, do CIVA, nos termos do qual “[o] imposto liquidado nos termos do número anterior deve ser pago na Tesouraria da Fazenda Pública competente, no prazo mencionado na notificação, efetuada por carta registada com aviso de receção, o qual não poderá ser inferior a 90 dias contados desde o seu envio” [cfr., a esse propósito, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 30.09.2020 (Processo: 547/10.0BESNT]).

Ora, como já referimos, não resultou provada a sua notificação. Logo, não estando provada a notificação e considerando que o art.º 45.º, n.º 1, da LGT a exige, verifica-se que ocorreu caducidade do direito à liquidação.

Como tal, não assiste razão à Recorrente nesta parte.

III.B. Do erro de julgamento, quanto à falta de atividade da devedora originária

Considera, por outro lado, a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu também em erro de julgamento, ao concluir pela inexistência de facto tributário, uma vez que não se verifica que tenha ocorrido o encerramento e a liquidação da devedora originária.

Vejamos.

O então art.º 28.º do CIVA determinava que:

“1 - Para além da obrigação do pagamento do imposto, os sujeitos passivos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º são obrigados, sem prejuízo do previsto em disposições especiais, a:

(…) c) Enviar mensalmente uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade no decurso do segundo mês precedente, com a indicação do imposto devido ou do crédito existente e dos elementos que serviram de base ao respetivo cálculo (…)

2 - A obrigação de declaração periódica prevista no número anterior subsiste mesmo que não haja, no período correspondente, operações tributáveis”.

Por seu turno, dispunha o art.º 40.º do mesmo código que:

“1 - Para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 28.º, a declaração periódica deve ser enviada por via postal ao Serviço de Administração do IVA, por forma que dê entrada nos seguintes prazos:

a) Até ao dia 10 do 2.º mês seguinte àquele a que respeitam as operações, no caso de sujeitos passivos com um volume de negócios igual ou superior a 100000000$00 no ano civil anterior;

b) Até ao dia 15 do 2.º mês seguinte ao trimestre do ano civil a que respeitam as operações, no caso de sujeitos passivos com um volume de negócios inferior a 100000000$00 no ano civil anterior”.

Finalmente há que atentar no disposto no já mencionado art.º 83.º do CIVA, nos termos do qual:

“1 - Se a declaração periódica prevista no artigo 40.º não for apresentada, a Direção de Serviços de Cobrança do IVA procederá à liquidação oficiosa do imposto, com base nos elementos de que disponha.

(…) 4 - A liquidação referida no n.º 1 ficará sem efeito nos seguintes casos:

a) Se o sujeito passivo, dentro do prazo referido no n.º 2, apresentar a declaração em falta, sem prejuízo da penalidade que ao caso couber;

b) Se a liquidação vier a ser corrigida pela repartição de finanças competente, nos termos do artigo 83.º-A”.

In casu, foi justamente uma liquidação oficiosa que foi emitida, face à ausência de apresentação de declaração periódica, como já referimos supra.

No entanto, a circunstância de ser emitida uma liquidação oficiosa de imposto, na sequência da inércia declarativa do administrado, não impede que este demonstre que os valores apurados não correspondem à realidade.

Com efeito, inerente à tributação em sede de IVA está a efetiva realização de operações tributáveis.

Ora, como é referido pelo Tribunal a quo, “o legislador nunca pretendeu criar uma coleta mínima para os casos de falta de apresentação de declaração, pelo contrário, visou pressionar o sujeito passivo à apresentação das declarações em falta, sem demonstrar prescindir do conhecimento da realidade tributária do sujeito passivo a nível de imposto”.

Posto este enquadramento, a liquidação em crise seria sempre sindicável, por inexistência de facto tributário, que não se confunde com o facto de a sociedade ainda não ter sido extinta no momento a que se refere a liquidação.

Ou seja, o facto de ainda não ter ocorrido o encerramento da liquidação de uma sociedade não impede que se esteja perante uma situação de inexistência de facto tributário.

Cabe, nestes casos, ao contribuinte alegar e provar a inexistência de facto tributário.

Ora, in casu, tal situação ficou demonstrada. Com efeito, como decorre da factualidade provada, em 2003 os sócios gerentes da devedora originária decidiram pelo fim da laboração da mesma, tendo desde logo rescindido todos os contratos de trabalho e deixado de realizar qualquer atividade. Ato contínuo, em inícios de 2004 a sociedade apresentou-se à falência, tendo esta sido decretada em setembro do mesmo ano.

Como tal, considera-se que, tal como referido pelo Tribunal a quo, está cabalmente demonstrada a inexistência de atividade da sociedade devedora originária a partir de 2003, abrangendo, pois, o período em análise, o que implica que inexistam operações tributáveis, dado estarmos perante IVA, motivo pelo qual inexiste facto tributário.

Logo, também por esta via carece de razão a Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Custas pela Recorrente;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 08 de julho de 2021


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha

________________
[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
[2] V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.