Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:10190/13
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:06/25/2015
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:AUTORIZAÇÃO DE INTRODUÇÃO NO MERCADO – PATENTE – MEDICAMENTO GENÉRICO
Sumário:I - Já antes da Lei 62/2011, de 12 de Dezembro, devia entender-se, em face das atribuições do Infarmed e do tipo legal das AIMs de medicamentos, a inviabilidade da acção em que se impugnasse uma autorização para introdução no mercado com base na ideia de que ela desconsiderava um direito de propriedade industrial.

II - Essa solução tornou-se mais clara com a emergência daquela Lei 62/2011, cujo art. 9º n.º 1 atribuiu, expressamente, efeito interpretativo a preceitos que deveras o são, por natureza.

III - Nem as AIMs privam os titulares das patentes dos seus direitos de propriedade industrial, nem a dita lei enferma de inconstitucionalidade por suposta retroactividade ofensiva de direitos relacionados com aquelas patentes.

IV - Assim, é de confirmar decisão que julgou improcedente acção em que se impugna a AIM de medicamentos, por desconsideração de patente.
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
*
I – RELATÓRIO
Laboratórios ……….., Lda., intentou no TAF de Sintra acção administrativa especial contra o INFARMED-Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, IP (Infarmed), indicando como contra-interessada T………. P…….. - Produtos ………., Lda., na qual peticionou a declaração de nulidade, ou a anulação, da deliberação do Conselho Directivo do Infarmed, de 5.4.2010, nos termos da qual foi concedida à contra-interessada autorização de introdução no mercado do medicamento genérico Linezolida T.......... (600 mg).

Por acórdão de 11 de Junho de 2012 do referido tribunal a acção foi julgada totalmente improcedente.

Inconformada, a autora interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:

1.ª Encontram-se provados, entre outros, os factos com relevância para a decisão da causa identificados nas alíneas A) a G) da sentença que ora se recorre.

2.ª A Lei 62/2011, que introduz uma nova redacção ao EM, nomeadamente aos artigos 19.°, 25.°, 179.° e 188.°, entrou em vigor já na pendência dos autos. Em consequência deve ser aplicado ao caso dos autos o EM em vigor à data da prática dos actos em crise (isto é, na versão anterior à resultante da nova Lei), de acordo com o princípio de que a legalidade dos actos administrativos se afere pela lei em vigor à data da sua prática - Tempus Regict Actus. E deve ser aplicado, interpretando-se o disposto nos artigos 19.°, 25.° e 179.° do EM, na redacção anterior, com o sentido defendido pela Recorrente na sua PI e sufragado por Jurisprudência uniforme do TCA Sul.

3.ª A Lei n.° 62/2011, visa confessadamente regular de modo directo a relação jurídico-administrativa que a ora Recorrente trouxe a Tribunal, tendo esta lei a pretensão de lhe ser imediatamente aplicável - daí o seu carácter retroactivo disfarçado na alegada natureza interpretativa das principais alterações que introduz.

4.ª Os actos de AIM para os medicamentos Linezolida T.......... são manifestamente ilegais, uma vez que foram praticados em violação das regras legais aplicáveis e ofendem os direitos de propriedade industrial da Recorrente, devendo ser declarados nulos ou anulados.

5.ª Os medicamentos genéricos (no caso, os medicamentos genéricos de Linezolida da Contra-lnteressada) definem-se por confronto com o respectivo medicamento de referência (no caso, o medicamento Zyvoxid da Recorrente).

6.ª A observância dos direitos de propriedade industrial no procedimento administrativo de AIMs é pressuposto da atribuição da AIM, como resulta, expressamente, dos artigos 18.°, n.° 4 e 19.°, n.° 1 do Estatuto do Medicamento na versão que deveria ser aplicada.

7.ª Diferente interpretação desses artigos determina a sua inconstitucionalidade, por implicar uma restrição inadmissível da liberdade de criação científica (artigo 42.° da CRP) e do direito de propriedade privada (artigo 62.° da CRP).

8.ª Os requerimentos de AIM apresentados pelas Contra-lnteressadas deviam ter sido indeferidos pelo INFARMED por ofenderem os direitos de propriedade industrial da Recorrente, como resulta do artigo 25.°, n.° 1. alínea a) do Estatuto do Medicamento, bem como da vinculação directa do INFARMED aos direitos, liberdades e garantias e ao bloco de legalidade (artigo 3.° do CPA).

9.ª A norma do artigo 25.° do Estatuto do Medicamento é inconstitucional, por falta de protecção mínima adequada de um direito fundamental, se interpretada como fixação taxativa dos fundamentos de indeferimento, obrigando o INFARMED a deferir o requerimento e proibindo-o de tomar conhecimento da existência de violação de patente procedimentalmente comprovada.

10.ª Os actos ora impugnados de AIM de medicamentos genéricos susceptíveis de ofender os direitos de propriedade industrial da Recorrente violam os artigos 15.°, 18.°, 19.° e 25,° do Estatuto do Medicamento, bem como o artigo 3.° do CPA.

11.ª Os direitos de propriedade industrial da Recorrente constituem direitos fundamentais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias constitucionais.

12.ª O INFARMED não pode conferir o direito de comercializar medicamentos contra a patente detida por terceiros quando implementa a AIM, na medida em que a comercialização não é uma consequência meramente provável da AIM, mas o único efeito com ela pretendido.

13.ª A concessão de AIM relativa ao medicamento genérico é susceptível de lesar os direitos protegidos pela patente do medicamento de referência, na medida em que configura a decisão central no procedimento administrativo de comercialização de medicamentos, sendo condição do desencadeamento dos restantes actos conducentes à comercialização, e integra a fase do procedimento em que se mostra adequado a consideração do exclusivo de terceiro que se refere a determinado produto.

14.ª Os actos administrativos em crise não são apenas condição necessária, mas também suficiente para que as Contra-lnteressadas fiquem habilitadas a introduzir os seus medicamentos no mercado, uma vez que a venda de medicamentos aos hospitais não carece da aprovação de preços pela Direcção-Geral das Actividades Económicas.

15.ª A AIM sem condicionamento expresso (quando há patentes em vigor) leva à conclusão de que um mesmo ordenamento jurídico qualificaria uma certa actividade (comercialização de medicamentos) ao mesmo tempo como legal e ilegal - legal, porque autorizada pelo órgão competente, o INFARMED, e ilegal (e ilícita), porque em violação de direitos exclusivos -, o que conduz a uma inadmissível quebra da unidade do ordenamento jurídico.

16.ª Ao conceder os actos de AIM em causa, o Réu demite-se de cumprir o dever de protecção dos direitos fundamentais (cfr. o artigo 9.° da CRP).

17.ª Os actos impugnados, ao terem sido praticados ao arrepio dos direitos de propriedade industrial da Recorrente, ofendem o conteúdo essencial de direitos fundamentais, sendo nulos, nos termos da alínea d) do n.° 2 do artigo 133.° do CPA.

18.ª O artigo 10.°, n.° 1 da Directiva n.° 2001/83/CE concretiza um princípio geral de direito da União Europeia de reconhecimento e protecção dos direitos de propriedade intelectual enquanto direitos fundamentais e reconhece a competência para a respectiva regulamentação às "leis" nacionais.

19.ª Não só o direito de propriedade é um direito fundamental consagrado na Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e na generalidade das Constituições dos Estados-Membros, como já foi reconhecido, de forma expressa, pelo Tribunal de Justiça como princípio geral de direito da União Europeia.

20.ª O respeito pelo conteúdo essencial dos direitos de propriedade industrial, enquanto direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica europeia, deve orientar toda a actividade interpretativa de direito derivado (incluindo o direito contido nas directivas).

21.ª O regime nacional de imposição da tutela dos direitos de propriedade industrial no procedimento administrativo de concessão de AIMs é perfeitamente compatível com o direito europeu e o princípio da livre circulação de mercadorias, por força do disposto no artigo 36.° do novo Tratado de Funcionamento da União Europeia, que permite a existência de normas nacionais de carácter restritivo justificadas por razões de "protecção da propriedade industrial e comercial".

22.ª Também pela via do direito da União Europeia padecem os actos impugnados do vício resultante da violação do conteúdo essencial do direito fundamental da Recorrente.

23.ª Com o devido respeito, nas páginas 17 e seguintes o Tribunal a quo utiliza alguns argumentos políticos e não jurídicos para graduar direitos fundamentais, o que desde logo não poderá ser aceite conforme já exposto em local próprio.

24.ª De quanto exposto resulta que o EM, mesmo na redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 62/2011 - o que por mera hipótese de raciocínio se admite -, não pode ser interpretado e aplicado como permitindo a concessão de uma AIM imediatamente eficaz e incondicionada ainda que exista um direito de patente de um terceiro em vigor e conflituante, sob pena de violação das normas constitucionais que protegem o direito de propriedade como direito fundamental análogo aos direitos, liberdades e garantias (nomeadamente os arts. 17.°, 18.° e 62.° da CRP), bem como as normas legais que estabelecem o âmbito do exclusivo atribuído ao titular da patente (nomeadamente as constantes dos arts. 97.°, 98.°, 101.° e 102.°, al. c), do CPI).

25.ª O Réu violou a obrigação de recolher todo o material relevante para as decisões de concessão das AIMs da Contra-lnteressada e de proceder às averiguações e diligências complementares, nomeadamente, junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, assim violando os princípios da legalidade e do inquisitório (artigo 16.° do Estatuto do Medicamento e artigos 3.°, 6.°, 56.°, 83.°, 87.°, n.° 1, e 92.° do CPA), o que gera a anulabilidade dos actos de AIM.

26.ª Por outro lado, não tendo declarado a suspensão desse procedimento para que a questão fosse apreciada noutra sede, o Réu violou o artigo 31° do CPA, o que determina a anulabilidade dos seus actos. Para além disso, competia ao Réu fundamentar a sua decisão de não suspender o procedimento, uma vez que essa decisão afectou os direitos legalmente protegidos da Recorrente (cfr. alínea a) do n.° 1 do artigo 124.° do CPA).

27.ª Por não ter comunicado à Recorrente o início dos procedimentos que culminaram nos actos em crise, o INFARMED violou os artigos 19.° do Estatuto do Medicamento e 55.° do CPA.

28.ª A relação jurídica material subjacente à AIM não pode ser reduzida à relação entre o requerente e a Administração, incluindo, ainda, necessariamente, os contra-interessados cujo direito seja violado pela comercialização daquele produto que a autorização visa permitir.

29.ª A Recorrente deveria ter sido ouvida no procedimento antes da decisão final, o que não aconteceu, assim se violando o artigo 100.° do CPA e os artigos 267.°, n.° 5 e 268.°, n.° 1 da CRP, o que determina a nulidade dos actos ora impugnados, por ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental (cfr. alínea d) do n.° 2 do artigo 133.° do CPA), ou - caso assim não se entenda, o que não se concede, mas por mera cautela de patrocínio se pondera - a sua anulabilidade.

30.ª Incorreu, ainda, o Recorrido em violação do princípio da imparcialidade, previsto no artigo 6.° do CPA, que o obrigava à ponderação de todas as circunstâncias relevantes para a sua decisão.

31.ª Assim, e por último, sublinha-se que os actos em crise estão viciados por erro sobre os pressupostos e deverão, por conseguinte, nos termos do artigo 135.° do CPA, ser anulado.

NESTES TERMOS, e nos demais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, com todas as consequências legais.”.




O recorrido Infarmed apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:

1.ª O pleno da secção de administrativo do Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se pela primeira vez, em sede de ação administrativa especial, sobre estes processos de impugnação/suspensão de AIMs por alegada violação de direitos de propriedade industrial, tendo concluído que o INFARMED não tem de ter em consideração eventuais direitos de propriedade industrial no âmbito dos procedimentos de concessão de AIMs, e que não há qualquer inconstitucionalidade nas normas da Lei 62/2011.

2.ª Não compete ao INFARMED aferir quaisquer direitos de propriedade industrial de terceiros, bem como a eventual violação daqueles direitos não resultará da AIM, mas antes da efetiva comercialização, traduzindo-se num conflito de direitos privados, que não compete à Entidade Administrativa dirimir.

3.ª Isto mesmo resulta claro do artigo 25.°/2 do Estatuto do Medicamento, na redação dada peia Lei 62/2011, norma esta que, nos termos do artigo 9.°/1 da Lei 62/2011, consiste numa norma interpretativa, e portanto, nos termos do artigo 13.°/1 CC tem eficácia retroativa à data da publicação do Estatuto do Medicamento.

4.ª Os direitos de propriedade industrial não configurarem um direito fundamental, e muito menos um direito fundamental de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, para efeitos do artigo 133.° do CPA.

5.ª No entanto, ainda que se entenda que os direitos de propriedade industrial gozam da aplicação do artigo 62° da CRP, a verdade é que, sempre seria ilegítimo por esta via impedir atos de futura comercialização, porque o conteúdo da patente consiste no exclusivo temporário de comercialização e não inclui nenhum poder de vedar procedimentos preparatórios de futura entrada no mercado.

6.ª Além disso, não se pode considerar o direito de propriedade industrial como um direito absoluto em sede de procedimento de concessão de AIM, desde logo porque existe, acima de tudo, um interesse público a defender, que consiste em assegurar a qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos a serem colocados no mercado, e em garantir a sustentabilidade do SNS.

7.ª Além disso, também os laboratórios produtores de genéricos têm interesses legítimos a defender, como é o interesse de poderem comercializar os seus medicamentos logo que as patentes caduquem ou assim que sejam declaradas inválidas.

8.ª Assim, e tendo em conta que nomeadamente nos termos do artigo 2.° da Lei 62/2011, os laboratórios titulares de patentes têm forma de reagir à eventual violação dos seus direitos de propriedade industrial, sublinhe-se que num procedimento de concessão de AIM não há apenas estes interesses a ser considerados.

9.ª Pelo que, não se justifica que exista uma proteção especial dos interesses dos laboratórios titulares de patentes, principalmente face ao interesse público, mas também face aos legítimos interesses dos laboratórios produtores de genéricos.

10.ª Por outro lado, também a retroatividade da Lei 62/2011 conferida pela referida norma interpretativa, não é inconstitucional na medida em que: i) não é violadora da tutela da confiança; ii) não lesa qualquer faculdade do titular de direitos de propriedade industrial; iii) amplia o direito fundamental à proteção da saúde; e iv) satisfaz interesses públicos objeto de expressa proteção constitucional.

11.ª Face ao exposto, para além de resultar inequívoco que os direitos de propriedade industrial não são direitos fundamentais, resulta também que, ao contrário do defendido pela Recorrente, não há qualquer inconstitucionalidade da norma constante no artigo 9.°/1 da Lei 62/2011, que conferiu carácter interpretativo à nova redação dada aos artigos 19.°, 25.° e 179.° do Estatuto do Medicamento, por violação do artigo 18.°/3 da CRP.

NESTES TERMOS,

Deve ser negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente, mantendo-se a douta Sentença recorrida, com as legais consequências.”.

O Ministério Público junto deste Tribunal notificado para os efeitos do disposto no art. 146º n.º 1, do CPTA, não emitiu parecer.



II - FUNDAMENTAÇÃO
Na decisão recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:
A) A Autora é uma sociedade comercial por quotas cujo objeto consiste, na fabricação, montagem, venda, importação e exportação ou comercialização de produtos químicos, farmacêuticos e cirúrgicos, de produtos relativos a cuidados de saúde, de cosméticos e de produtos de perfumaria e de higiene pessoal de todos os tipos — cfr. doc. l junto com a petição inicial.
B) A Autora é titular de uma AIM do medicamento Zyvoxid sob a forma farmacêutica de comprimido revestido por película, com a dosagem de 600 mg, fabricado com base na substância ativa Linezolida - cfr. doc. 2 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido.
C) A patente referente a essa substância ativa - Patente de Invenção Europeia n.° ……….("EP …….") e o certificado complementar de proteção n.° ……….. ("CCP") - pertencem à sociedade P………& U…… …. LLC ("P……… & U."), anteriormente, P……. & U……Company - cfr. docs. n°s 3 e 4 juntos com a petição inicial, que se dão por reproduzidos.
D) Em 06.05.2010, a Autora e a citada P………& U…….. formalizaram os termos do sublicenciamento em vigor desde l de julho de 2001 relativo à patente da P………& U…….. em Portugal referente à substância ativa Linezolida: EP 717738 válida até 16.08.2014 com CCP n.° 117, válido até 16.08.2016 - cfr. doc. 5 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido.
E) Com base na titularidade pela P………& U…….. da patente referente à substância ativa Linezolida, foi concedida em Portugal à P……….. Laboratórios uma AIM do medicamento Zyvoxid (na dosagem de 600 mg), sob o número de processo UK/H/439/03, por despacho de 18.07.2001 do Conselho de Administração do Infarmed — cfr. doc. n° 14 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido.
F) A AIM concedida à P……. Laboratórios foi transferida para a ora Autora, em 27 de julho de 2003 — cfr. doc. n° 15 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido.
G) A referida AIM foi depois renovada até 04.01.2011, por despacho de 12.03.2007 do Diretor da Direção de Medicamentos e Produtos de Saúde, no âmbito de competência subdelegada - cfr. doc. n° 16 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido.
H) Ato Impugnado: Em 05.04.2010 foi concedida à T……. P…..- Produtos …………….., Lda., a AIM relativa ao medicamento Linezolida T…, 600 mg., fabricado com base na substância ativa Linezolida - cfr. doc. n° 18 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido.
I) A presente ação deu entrada neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra em 06.07.2010 - cfr. SITAF.
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Presente a factualidade antecedente, cumpre analisar a questão suscitada, a qual se resume, em suma, em saber se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento ao julgar a presente acção totalmente improcedente.


No acórdão recorrido procedeu-se à análise dos vícios alegados nos seguintes termos:
Fixados os factos relevantes para a apreciação da causa, de acordo com as várias soluções de direito plausíveis, impõe-se, agora proceder à sua subsunção ao direito aplicável, tendo em consideração, designadamente, a Lei n° 62/2011, de 12.12, conforme requerido pela Entidade Demandada, que entrou em vigor já na pendência dos presentes autos, mas que, atento o disposto no seu artigo 9°, n° l, que lhe confere a natureza de lei interpretativa, não pode deixar de ser chamada à colação.
Nos presentes autos vem impugnada a decisão de autorização de introdução no mercado (AIM) relativa ao medicamento genérico denominado Linezolida T.........., 600 mg, fabricado com base na substância ativa Linezolida, mesma substância ativa do medicamento "Zyvoxid", de cuja AIM é titular a Autora [cfr. ai. F) e G) do probatório], que considera que aquela AIM foi concedida em violação do procedimento previsto no Decreto-Lei n° 176/2006, de 30 de agosto (Estatuto do Medicamento - EM), uma vez que a entidade decisora, ora Demandada, não cuidou de aferir sobre a existência de direitos de propriedade industrial em vigor relativamente à substância em causa.
Assim, a questão decidenda, longe de ser nova na jurisdição administrativa, consiste em saber se um pedido de autorização de introdução no mercado de um medicamento genérico depende, para o seu deferimento, da caducidade das patentes em vigor para o medicamento de referência correspondente. Ou, por outras palavras, se num procedimento administrativo de autorização da introdução no mercado de um medicamento genérico a autorização requerida pode ser recusada com fundamento na vigência de uma patente do respetivo medicamento de referência.
É entendimento da Autora que, na verdade, assim é por força do disposto art. 18°, n° 4 do Estatuto do Medicamento. Mais considera que, entendimento diverso contende com o direito de propriedade privada industrial que é um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias constitucionais, tal como contende com o ordenamento jurídico comunitário - Diretiva 2001/83/CE, art 1° da CEDH, art 17°, n° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
A tese da Autora centra-se no facto de que, estando em causa um medicamento genérico de um medicamento de referência que tenha sido autorizado num dos Estados membros ou na Comunidade, há pelo menos oito anos, o artigo 18°, n° 4 do EM determinar que é permitida a aprovação de um resumo das características do medicamento idêntico ao do medicamento de referência, sem prejuízo de não ser permitida a divulgação, por qualquer forma, das partes do resumo das características do medicamento que se refiram às indicações ou à dosagem que ainda se encontrem protegidas por direitos de propriedade industrial na altura da comercialização do medicamento genérico, o que implica, necessariamente, que constem do procedimento de AIM do medicamento genérico, diligências no sentido de aferir sobre a existência de tais direitos.
Já a Entidade Demandada, tal como a Contra Interessada, entendem que importa diferenciar os diversos momentos de introdução de um medicamento no mercado, sendo que a fase de AIM é prévia à da sua efetiva comercialização, e que o ato de conceder a AIM visa, apenas, garantir a qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos, não estando previsto nas normas que regulam as concessões de AIM o requisito legal de caducidade de direitos de propriedade industrial, aspeto que os medicamentos terão de respeitar apenas no momento da comercialização, sendo que caso isso aconteça é expressamente prevista a responsabilização, a vários níveis, do titular da AIM infrator, mas não do INFARMED,
Como se começou por dizer, a questão tem vindo a ser amplamente debatida na jurisdição administrativa.
Na primeira instância formou-se uma corrente jurisprudencial majoritária no sentido de considerar, tal como alega o INFARMED, que através da emissão de uma AIM apenas cabe controlar, no essencial, a qualidade e a segurança do medicamento, como resulta do disposto no artigo 25° do EM, não estando previsto nas normas sobre a concessão de AIM o requisito de aferição dos direitos de propriedade industrial.
Tal posição assenta na diferenciação entre a concessão da AIM e a efetiva comercialização do medicamento. Enquanto a concessão autorização de introdução no mercado é praticada pela Administração, a comercialização do medicamento, que ocorre em momento posterior, é realizada pelos requerentes das AIM.
À justificação avançada acresce uma outra - a do interesse público subjacente ao reconhecimento legal da necessidade da introdução de medicamentos genéricos em Portugal, bem como a conformidade com o Direito Comunitário, atentas as posições assumidas pela Comissão Europeia que entende (conforme comunicou ao Mutual Recognition Facilitation Group, em 2001) que, os pedidos de AIM só podem ser indeferidos com os fundamentos expressamente previstos na Diretiva, dos quais não constam a extinção dos direitos de propriedade industrial.
O argumento inerente ao interesse público subjacente à comercialização dos medicamentos genéricos foi, também, aquele que se opôs à alegada violação do direito de propriedade industrial, enquanto direito constitucionalmente protegido com regime próprio dos Direitos, Liberdades e Garantias, previsto nos artigos 17° e 18° da CRP, tendo-se entendido que, ainda que tal direito goze da proteção constitucional conferida ao direito de propriedade enquanto direito análogo aos DLG's, o mesmo não é absoluto, sendo passível de restrição na medida do necessário à proteção de outros de natureza social, como é o caso do direito à saúde.
Este foi este, também, o sentido dos Acórdãos proferidos pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 04.08.2011, 28.01.2010, 06.05.2010 e 31.08.2010, nos processos n°s 07591/11, 05790/09, 06476/10 e 06154/10, respectivamente, e aquele que este Tribunal considera como correcto.
No entanto, a jurisprudência superior maioritária foi, claramente, no sentido de considerar que a AIM é a decisão administrativa principal no que respeita à comercialização do medicamento e integra a fase do procedimento em que se mostra adequada a consideração do exclusivo de terceiro, que se refere a esse determinado produto, pelo que, perante a existência de uma patente em vigor sobre a substância ativa em causa, o Infarmed não pode deixar de indeferir o pedido de AIM, sob pena de desrespeito pelo princípio da legalidade previsto no art. 3° do CPA, face ao disposto nos art. 101° e 316°, ambos do Código de Propriedade Industrial (CPI), aprovado pelo DL n° 36/2003, de 5 de Março.
A mesma jurisprudência entende que, no art. 18°, n° 4 do Estatuto do Medicamento, é estabelecida uma dupla fiscalização na comercialização de medicamentos, visto que a tutela do direito de patente subjacente a um pedido de AIM será, igualmente, da responsabilidade da entidade competente para a aprovação do Resumo de Características do Medicamento - o Infarmed, e não apenas do seu titular -cfr., por todos, o Acórdão proferido em 14.07.2011, no processo n° 06800/10.
Passadas em revista as duas correntes jurisprudenciais que se formaram em torno da questão que cumpre decidir, impõe-se, agora, enquadrar os factos à luz da Lei n° 62/2011, de 12.12, que entrou em vigor já na pendência dos presentes autos e cuja aplicação o INFARMED vem invocar no requerimento apresentado em 22.12.2011.
A Lei n° 62/2011 procedeu a uma nova redação dos artigos 19°, 25°, 179° e 188° do EM, através do seu artigo 4° e, pelo seu artigo 5°, acrescentou um novo preceito a este diploma - o artigo 23°-A.
Assim, e no que ao caso releva, o artigo 19°, relativo a ensaios, no seu n° 8, passou a dispor que "A realização dos estudos e ensaios necessários à aplicação dos n.°s l a 6 e as exigências práticas daí decorrentes, incluindo a correspondente concessão de autorização prevista no artigo 14.°, não são contrárias aos direitos relativos a patentes ou a certificados complementares de proteção de medicamentos".
No artigo 25°, com epígrafe "Indeferimento", foi aletrado o n° 2, cuja redação passou a se a seguinte: "O pedido de autorização de introdução no mercado não pode ser indeferido com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial, sem prejuízo do disposto no n.°4 do artigo 18.º”
Por sua vez, o novo artigo 23°-A, no n° l, vem estabelecer que "A concessão pelo INFARMED, I. P., de uma autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento de uso humano, bem como o procedimento administrativo que àquela conduz, têm exclusivamente por objeto a apreciação da qualidade, segurança e eficácia do medicamento".
Contudo, a Lei n° 62/2011 não se ficou pela mera alteração e aditamento dos preceitos acima indicados. O artigo 9°, n° l, veio dispor que "a redação dada pela presente lei aos artigos 19°, 25° e 179° do Decreto-Lei n° 176/2006, de 30 de agosto, bem como o aditamento introduzido ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos e o disposto no artigo anterior, têm natureza interpretativa".
Ora, como é sabido, o regime de aplicação no tempo da lei interpretativa vem previsto no artigo 13° do Código Civil, prevendo o n° l que "a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada ou por atos de análoga natureza", ou seja, a lei interpretativa produz efeitos desde a entrada em vigor da lei interpretada.
Contudo, vem a Autora invocar, em resposta ao requerimento do INFARMED de 22.12.2011, que a lei em causa tem caráter inovador com efeito retroativo, "disfarçado na alegada natureza interpretativa", violando de forma intolerável o princípio da confiança, destruindo a jurisprudência uniforme do TCA Sul, devendo ser desaplicado o art. 9°, n° l por manifesta inconstitucional idade, sendo de aplicar a lei em vigor à prática do ato.
Subsidiariamente considera, ainda, que as normas constantes dos arts. 25° e 179° do EM, na redação conferida pela nova lei, não devem ser aplicadas ao caso por serem, elas próprias, inconstitucionais "por falta de proteção mínima adequada a um direito fundamental, se for interpretada como fixação taxativa dos fundamentos do indeferimentos, obrigando o INFARMED a deferir o requerimento e proibindo-o de tomar conhecimento da existência de violação de patente", como se refere no já mencionado acórdão do TCA Sul proferido no processo 06800/10, de 14.07.2010. E, por fim, que a norma resultante das disposições conjugadas dos n°s l e 3 do art. 9° é inconstitucional por redundar na inexistência de qualquer meio processual de defesa dos seus direitos quando os mesmos são violados por uma AIM ou por um ato de fixação do preço, ou autorização de comparticipação, praticados em momento anterior ao da sua entrada em vigor.
O Tribunal, desde já adianta, em conformidade, aliás, com a jurisprudência uniforme que tem sido proferida pelo Tribunal Central Administrativo Sul relativamente à natureza interpretativa da Lei n° 62/2011, que a lei tem, efetivamente, natureza interpretativa.
Para que uma lei assuma a natureza de lei interpretativa é necessário que o legislador a qualifique expressamente como tal ou que, pelo menos, essa intenção resulte em termos suficientemente inequívocos, e isto porque nem toda a decisão legal de uma controvérsia gizada em torno do significado de certo preceito legal se deve tomar como interpretação autêntica.
Quando se publica uma lei que suscita dúvidas formam-se em torno delas duas ou mais correntes. O legislador intervém, então, em ordem a pôr termo à incerteza gerada. No entanto, isto não quer dizer, necessariamente, que estejamos perante uma lei interpretativa. Pode acontecer que o legislador tenha pretendido afastar as dúvidas apenas para o futuro, não o movendo a intenção de considerar a nova lei como o conteúdo ou a expressão da antiga. "Tal intenção só existirá se se tiver querido realmente explicar a lei anterior e impor como obrigatória essa explicação" - cfr. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, em Introdução ao Estudo do Direito, Volume I, 11." Edição, Coimbra Editora, 1999, págs. 241/242.
"Na grande maioria dos casos, porém, o legislador não se preocupa com a classificação como interpretativas das normas que edita" - cfr. J. BAPTISTA MACHADO, em Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 11.ª Reimpressão, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 246. Segundo o Ilustre Professor, "a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da LA [Lei Antiga] com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas". E prossegue: "Poderemos consequentemente dizer que são de sua natureza interpretativas aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu conteúdo controvertido, vêm consagrar uma solução a que os tribunais poderiam ter consagrado".
E conclui: "Para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face dos textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora" - cfr. ob. cit., págs. 246/247,
No caso da lei que temos em mãos a tarefa hermenêutica é facilitada pelo facto de o legislador determinar, expressamente, o caráter interpretativo das alterações operadas no Estatuto do Medicamento. E não espanta que o faça. Mesmo que não o fizesse, temos por certo que tal conclusão seria, de qualquer modo, a correta.
Em face de quanto se veio dizendo, temos que, até à data da publicação da Lei n° 62/2011, existia jurisprudência em dois sentidos: a primeira instância, maioritariamente, e alguma jurisprudência do TCA Sul, entendia que não se impunha ao INFARMED, para efeitos de concessão de uma AIM, aferir da existência e validade de patentes que protegessem o princípio ativo do medicamento genérico, utilizado no medicamento de referência; o TCA Sul, numa corrente jurisprudencial maioritária, defendia, como se viu, supra, que se impunha ao INFARMED essa aferição, devendo a AIM ser indeferida sempre que se concluísse pela existência e validade das referidas patentes.
Assim, quer uma interpretação das normas procedimentais do EM, quer a outra, foram amplamente utilizadas em inúmeras decisões jurisprudenciais das diversas instâncias, sendo legítimo afirmar que, o julgador ou o intérprete, poderiam chegar à solução consagrada na nova lei (como chegaram) sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.
Consequentemente, quer pela verificação dos pressupostos do que deva considerar-se uma lei interpretativa, quer pela afirmação expressa do legislador nesse sentido, o Tribunal não pode conceber que a mesma se possa considerar como inovadora.
Mais, para além da jurisprudência que sufragava uma interpretação consentânea com o sentido que o legislador veio dar ao EM através da Lei n° 62/2011, temos ainda outros argumentos que apontam no sentido da plausibilidade e legitimidade da interpretação autêntica ora fixada. É o que decorre, designadamente, da comparação que se pode fazer entre a redação do artigo 25° em vigor à data dos factos (Decreto-Lei n° 176/2008, de 30.08, novo EM) e aquela que decorria do Decreto-Lei n° 72/91, de 8.02, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n° 242/2000, de 26.09.
Assim, o antigo Estatuto do Medicamento, no seu artigo 19° estipulava que: «l - São considerados medicamentos genéricos aqueles que reúnam cumulativamente as seguintes condições: (...) b) Terem caducado os direitos de propriedade industrial relativos às respetivas substâncias ativas ou processo de fabrico». Em consonância com este normativo, o n° l, do art. 20° do mesmo diploma dizia que, "a autorização de introdução no mercado de medicamentos genéricos está sujeita ao disposto na secção I deste capítulo, com as alterações decorrentes do estabelecido no artigo anterior", o que significava que a requerente teria que instruir o seu pedido de AIM com documento que comprovasse "terem caducado os direitos de propriedade industrial relativos às respetivas substâncias ativas ou processo de fabrico".
Ora, com o DL n° 176/2006, tal exigência deixou de existir, referindo o seu art. 25°, n° l, taxativamente que "o requerimento de AIM é indeferido sempre que um dos seguintes casos se verifique: a) O requerimento, apesar da validade, não foi apresentado em conformidade com o art. 15°.; b) O processo não está instruído de acordo com as disposições do presente decreto-lei ou contém informações incorrectas ou desactualizadas; c) O medicamento é nocivo em condições normais de utilização; d) O efeito terapêutico do medicamento não existe ou foi insuficientemente comprovado pelo requerente; J) A relação benefício-risco é considerada desfavorável, nas condições de utilização propostas; g) O medicamento é susceptível, por qualquer outra razão relevante, de apresentar risco para a saúde pública''.
Por sua vez, o art. 15°, citado na alínea a) do dispositivo legal transcrito, não previa, nem prevê, qualquer prova da caducidade da patente como requisito da AIM de um medicamento genérico, nem mesmo se interpretado conjuntamente com o disposto no art. 19°, n° l do mesmo diploma. Isto porque, como tem vindo a entender a jurisprudência produzida no sentido em que o legislador veio proceder à interpretação autêntica, a expressão "sem prejuízo dos direitos da propriedade industrial" visa acautelar e proteger aqueles direitos num momento posterior ao da concessão da AIM -aquando da comercialização, atenta a inerente responsabilidade civil e criminal que pode advir da violação dos direitos da propriedade industrial.
Conforme ressalta do art. 14°, n° 4, é aos particulares ou empresas requerentes da AIM que compete o não exercício de direitos de que não são titulares, sob pena de serem responsabilizados por isso, e não ao INFARMED o dever de fiscalização nessa matéria. O mesmo é dizer que a eventual ilicitude de condutas tanto a nível do direito comercial como do direito criminal, incluindo a validade da patente, terá que ser discutida entre as partes da relação jurídica donde emanou a conduta indevida e no foro próprio, que não é o Administrativo.
Considerando que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. o art. 9°, n° 3 do CC), conclui-se, de acordo com a interpretação que se alcança como possível à luz das regras previstas no art. 9° do CC, que, para um medicamento ser considerado genérico, não é necessário que tenham caducado os direitos de propriedade industrial relativos às respetivas substâncias ativas ou processo de fabrico, pelo que o INFARMED, atentos os citados arts. 25° (este com a redação dada aos seus n°s 2 e 3 pela Lei n° 62/2011) e 15° do EM, não pode recusar a AIM com base na existência duma patente ainda em vigor.
E, nem se diga, como faz crer a Autora, que o artigo 25°, na redação da Lei n° 62/2011, é inconstitucional por falta de proteção mínima adequada a um direito fundamental.
Entendemos que a defesa do que considera serem os direitos de propriedade industrial, e admitindo a sua proteção constitucional como variante do direito de propriedade, não pode ser feita como se estes fossem os únicos direitos a considerar na problemática que aqui nos ocupa e tem ocupado os Tribunais Administrativos nos últimos tempos, da relevância que assume um princípio ativo patenteado, para a introdução no mercado de medicamentos genéricos com o mesmo princípio ativo.
Está em jogo, não apenas o direito à propriedade industrial - sem assento constitucional específico —, mas também outros direitos, com expresso assento constitucional, como o direito à saúde a que se reporta o art. 64° da CRP, de que se ressalta o direito consignado na alínea e), do n° 3 deste dispositivo constitucional -«[d]isciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico», cuja intenção não pode deixar de abranger a regulação do mercado de modo a que os interesses puramente económicos das farmacêuticas titulares de patentes não se sobreponham, in totum, aos valores sociais, designadamente no que se refere à saúde. Por outro lado, não pode deixar de ser considerado, também como direito "conflituante" do da propriedade industrial, o direito dos consumidores à proteção do Estado estatuído na alínea e) do art. 99° da CRP.
É em face dos interesses sociais em presença que a introdução dos genéricos obedece a legislação própria e específica com vista à prossecução duma política integrada de defesa da saúde, com repercussões inevitáveis, e de grande relevância, na economia do Estado, atenta a natureza Social do Estado Português, fator que não pode ser desprezado e que merece ser devidamente ponderado sob pena de colapso do tão almejado e propalado "Estado Social".
De facto, a posição assumida pela Autora, de que a introdução no mercado dum medicamento genérico com as mesmas caraterísticas e propriedades de um medicamento de referência só pode ser autorizada quando não existam patentes válidas eficazes relativas ao medicamento de referência, para além de, no nosso entender, não merecer apoio legal, é uma violação não só dos interesses privados que também existem na comercialização dos genéricos, idênticos aos da proprietária da patente, mas também e sobretudo dos direitos dos cidadãos, quer diretamente dos seus direitos no âmbito da saúde, quer indiretamente dos direitos que lhes advêm do benefício que o Estado retira da comercialização dos genéricos em termos económicos.
E é assim porque os direitos de propriedade — onde se poderá incluir o direito de propriedade industrial — por mais relevantes que sejam, não são direitos absolutos, sofrendo as restrições prevista na lei e na Constituição, na medida em que sejam suscetíveis de colidir com outros direitos de igual ou superior importância, como nos parece ser o caso dos autos (cfr., sobre esta problemática, V. MOREIRA E J. J. GOMES CANOTILHO, Constituição da República Portuguesa Anotada, I volume, bem como o acórdão do STA de 08.09.2011, proferido no processo 0508/11).
Ora, uma das restrições ao direito de propriedade duma patente protetora dum princípio ativo é efetuada quando a lei prevê, expressamente, a concessão de autorização de introdução no mercado de medicamentos genéricos pelo INFARMED e a consequente e necessária fixação dos preços de mercado pela DGAE, sem que tais medidas possam ser recusadas com base na existência duma patente, como decorre da alteração legislativa levada a cabo quer pelo Decreto-Lei n° 176/2006, de 30.08 que revogou anterior legislação que o permitia, bem como, atualmente, e de modo expressamente declarado, pela Lei n° 62/2011.
As medidas políticas e legislativas tomadas para introdução no mercado dos medicamentos genéricos, com vista à proteção de direitos sociais e económicos, ficariam despidas de sentido se, na prática, se desse relevo apenas a um direito de propriedade da patente estritamente privado, e de forma alguma absoluto, para justificar um total impedimento da concessão de uma AIM e de fixação de PVP do medicamento genérico, obstando, ou retardando de modo significativo a sua comercialização, concedendo, por essa via, um exclusivo de comercialização que iria muito além do consagrado na patente.
É indiscutível que os direitos de propriedade não são absolutos sofrendo as restrições que a lei lhes impõe, desde que não ofendam o conteúdo essencial do mesmo, o que, claramente, não sucede com a mera concessão de uma AIM, primeiro ato de um procedimento administrativo que se compõem de várias fases até que ocorra a efetiva comercialização que, como vimos, fica já na responsabilidade da entidade requerente da AIM.
Tal como não são de acolher os argumentos no sentido da inconstitucionalidade do art. 25° do EM, com a redação da Lei 62/2011, também não merecem provimento aqueles que a Autora aponta no sentido de obter a declaração incidental da inconstitucionalidade da norma que resulta da aplicação combinada do disposto no art. 9°, n°s l, 2 e 3 da referida lei.
Na verdade, o regime agora esclarecido por via de lei interpretativa não procede a qualquer restrição do direito de propriedade industrial, contrária ao disposto no art. 18° da CRP. Apenas se clarifica o procedimento administrativo para obtenção da AIM, esclarecendo que a mesma não pode ser recusada com fundamento na existência de patente em vigor. Relativamente a eventuais vícios dos atos administrativos praticados no âmbito do referido procedimento, a Autora poderá usar os meios processuais legalmente previstos, não tendo sido restringido o direito à tutela jurisdicional efetiva. Não foi eliminado do ordenamento jurídico qualquer meio processual.
Porquanto fica dito, é de modo perentório que se afirma que a Lei n° 62/2011 é uma lei interpretativa, aplicando-se, consequentemente, o já mencionado regime próprio para a sua categoria em temos de vigência temporal, previsto no artigo 13°, n° l do Código Civil, não resultando, daí, qualquer das inconstitucionalidades invocadas pela Autora.
Neste sentido, como já tivemos oportunidade de referir, vem decidindo de modo absolutamente uniforme o TCA Sul - cfr. v.g., os acórdãos de 19.04.2012, 22.03.2012, 02.02.2012, dois de 19.01.2012, proferidos, respetivamente, nos processos n°s 08630/12, 05196/09, 08311/11, 08355/11 e 08350/11.
Em jeito de resumo de toda a fundamentação até aqui expendida transcreve-se, no que mais releva para o caso dos autos, o sumário do mencionado aresto de 22.03.2012, onde se conclui que:
«I- As alterações legislativas impostas pela Lei n° 62/2011, de 12/12, tiveram por escopo pôr termo à indefinição que resultava da interpretação que era dada aos artigos 25° e 179°, entre outros, do Estatuto do Medicamento, nomeadamente expressa em dois arestas deste TCA Sul que divergiam do entendimento maioritário constante dos acórdãos sobre a matéria da concessão de AIM's de medicamentos genéricos.
II—Face ao que resulta da Lei n° 62/2011, nomeadamente no tocante ao sentido a dar aos artigos 25° e 179° do Estatuto do Medicamento, o que o legislador pretendeu [sempre, por força do efeito retroactivo da lei interpretativa] foi que "o pedido de autorização de introdução no mercado não pode ser indeferido com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial, sem prejuízo do disposto no n° 4 do artigo 18º" [artigo 25º, n°2 do Estatuto do Medicamento] (...)
IV- Mesmo que se entenda que a Lei n° 62/2011 tem carácter inovatório, nestes casos só a existência duma lei de valor hierarquicamente superior ao da lei interpretativa, proibindo a retroactividade, poderia levar o intérprete a fazer o controlo substancial da nova lei para verificar se, não obstante a qualificação como interpretativa, aquela não seria substancialmente inovadora.
V — Nos demais casos — como é o caso presente —, o intérprete não pode opor-se, já que o legislador também poderia comandar directamente a retroactividade da lei, pois a nova lei que compõe agora o título [a Lei n° 62/2011, de 12/12] tem a mesma imperatividade da primeira lei [o DL n° 176/2006, de 30/8].
VI - E, finalmente, também não colhe o argumento de que o artigo 9° da Lei n° 62/2011 viola o disposto no artigo 18° da CRP, uma vez que a norma em causa não visou introduzir qualquer restrição ou limitação aos direitos de propriedade industrial das recorridas, mas apenas e tão só esclarecer que no âmbito do pedido de autorização de introdução no mercado de medicamento genérico, este não pode ser indeferido com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial [artigo 25°, n° 2 do Estatuto do Medicamento] e que a autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial [artigo 179°, n° 2 do Estatuto do Medicamento].
VII- Nos termos do disposto no n° l do artigo 13° do Cód. Civil, só ficam a salvo da retroactividade os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza, e não quaisquer outras situações pretensamente criadas ao abrigo de leis pré-existentes,»
Impõe-se, agora, retirar as devidas consequências da conclusão a que se chegou, em face da matéria de facto provada, dos vícios que vêm imputados ao ato de concessão da AIM em causa e, por fim, do pedido formulado.
Deste modo, não obstante a Autora ser titular de patente relativa à substância ativa Linezolida, e respetivo certificado complementar de proteção, válido até 16.08.2016, bem como da AIM do medicamento Zyvoxid, cujo princípio ativo é o Linezolida [cfr. as als. B) e D) do probatório], tal facto não contende com a concessão de AIM concedida à Contra Interessada T.......... P…….- Produtos ………, Lda., relativa ao medicamento denominado Linezolida T.........., 600 mg, fabricado com base na mesma substância ativa.
E é assim porque, conforme decorre do disposto no artigo 25°, n° 2 do Estatuto do Medicamento, com epígrafe "Indeferimento", na redação que lhe foi conferida pela Lei n° 62/2012, o pedido de autorização de introdução no mercado não pode ser indeferido com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial.
Consequentemente, e porque ao INFARMED cabia apenas a apreciação da qualidade, segurança e eficácia do medicamento para uso humano - cfr. o novo artigo 23°-A, n° l do EM, introduzido pela mencionada lei - não resulta violado o princípio do inquisitório nos termos alegados pela Autora. A lei interpretativa do procedimento de concessão da AIM veio esclarecer que não cabe ao INFARMED aferir, no âmbito deste procedimento, da existência, ou não, de patente válida. Logo, não tinha que diligenciar no sentido de obter tais informações, nem que proceder à suspensão do procedimento de AIM, até que aferisse da existência, ou não, de patente em vigor.
A competência do INFARMED, no procedimento de concessão da AIM cinge-se, como resulta claramente da letra do novo artigo 23°-A, n° l do EM, à apreciação da qualidade, segurança e eficácia do medicamento.
Deste modo, e atento o encadeamento dos vícios imputados ao ato de concessão da AIM à Contra Interessada, não tinha a Autora de ser chamada ao procedimento a fim de se pronunciar sobre o mesmo em sede de audição prévia, não tendo sido, por isso, violado o princípio da participação na formação da decisão, como não foi violado o princípio da imparcialidade, uma vez que os interesses económicos da Autora, decorrentes da existência da patente válida à data da concessão da AIM, eram irrelevantes para a decisão que se impunha ao INFARMED, a quem cabia, tão só, decidir pela conformidade ou não daquele medicamento para uso humano, indeferindo o pedido de AIM, apenas e só, caso se verificasse alguma das situações taxativamente elencadas no n° l do art. 25° do EM, onde não se encontra a existência de direitos de propriedade industrial, os quais, como resulta expressamente do n° 2 do mesmo preceito legal (com a nova redacção da Lei n° 62/2011) não podem ser fundamento de indeferimento da AIM.
Do mesmo modo, porque a existência de tais direitos de propriedade industrial, relativos ao medicamento de referência Zyvoxid, fabricado com base na substância ativa Linezolida, não tinham de ser considerados na tomada de decisão sobre a AIM do medicamento genérico Linezolida T.........., 600 mg, fabricado com base na mesma substância ativa, falece a argumentação expendida no sentido de imputar ao ato impugnado o vício de erro nos pressupostos de facto, que o inquinaria conduzindo-o à anulabilidade. O "facto" relativamente ao qual a Autora entende que a Entidade Demandada laborou em erro na tomada de decisão, irreleva para a mesma, como resulta do disposto no novo artigo 23°-A, n° l do EM.
Termos em que se conclui que, o ato praticado pelo INFARMED em 05.04.2010, de concessão à T.......... P……….. - Produtos …………., Lda., de autorização de introdução no mercado do medicamento denominado Linezolida T.........., 600 mg, fabricado com base na substância ativa Linezolida, não padece de qualquer dos vícios que lhe vêm apontados pela Autora, razão pela qual improcede totalmente a presente acção administrativa especial.”.

Cumpre, desde já, adiantar que a decisão recorrida é para confirmar.

Com efeito, e conforme se sumariou no Ac. do Pleno do STA de 9.1.2013, proc. n.º 771/12 – publicado no DR, 1ª Série de 29.1.2013, sob o n.º 2/2013:
I - Já antes da Lei nº 62/2011, de 12 de Dezembro, devia entender-se, em face das atribuições do INFARMED e do tipo legal das AIM’s de medicamentos, a inviabilidade da acção em que se impugnasse uma autorização para introdução no mercado com base na ideia de que ela desconsiderava um direito de propriedade industrial.
II - Essa inviabilidade era transponível, mutatis mutandis, para a impugnação do estabelecimento de PVP dos medicamentos, da competência da Direcção Geral das Actividades Económicas.
III - Essa solução tornou-se mais clara com a emergência daquela Lei 62/2011, cujo artigo 9, número 1 atribuiu, expressamente, efeito interpretativo a preceitos que deveras o são, por natureza.
IV - Nem as AIM’s privam os titulares das patentes dos seus direitos de propriedade industrial, nem a dita lei enferma de inconstitucionalidade por suposta retroactividade ofensiva de direitos relacionados com aquelas patentes.
V - Assim, é de confirmar acórdão que julgou improcedente acção em que se impugna a AIM e a fixação de PVP de medicamentos, por desconsideração de patente”.

Para o efeito argumentou-se neste Ac. do STA o seguinte:
4.1. Como se relatou, o acórdão ora sob impugnação conheceu de recurso interposto da decisão do TAF de Sintra que, julgando procedente acção administrativa especial ali proposta pelas ora recorrentes, declarou a nulidade de actos do INFARMED, de AIM de determinados medicamentos genéricos, e, por consequência, condenou a DGAE, na pessoa do MEI, a abster-se de fixar PVP, relativamente aos mesmos medicamentos.
Tal decisão do TAF baseou-se no entendimento segundo o qual as impugnadas AIM’s impõem aos respectivos beneficiários a comercialização dos medicamentos genéricos em causa, violando os direitos de propriedade industrial das Autoras/Recorrentes, emergentes da patente e dos correspondentes certificados complementares de protecção (CCP’s), de que são titulares.
No acórdão recorrido, o TCAS contrariou essa decisão, julgando improcedente a proposta acção administrativa especial. Para tanto, baseou-se nas alterações legislativas impostas pela Lei 62/2011, de 12.12, cujo objectivo – referiu o mesmo acórdão – foi o de superar a indefinição resultante da divergência interpretativa, afirmada na jurisprudência do mesmo TCAS, relativamente a disposições do Estatuto do Medicamento (aprovado pelo DL 176/2006, de 30.8), designadamente os arts 25 e 179 deste diploma, e pôr termo, assim, à incerteza sobre a natureza e alcance dos actos de concessão de AIM de medicamentos genéricos e de fixação de PVV para os mesmos medicamentos.
Dessa Lei 62/2011 e das alterações que introduziu, designadamente àqueles indicados preceitos do EM, resulta inequívoco – concluiu o mesmo acórdão recorrido – que é lícita a prática desses actos, por parte do INFARMED e da DGAE, respectivamente, sem a consideração por estas entidades da eventual existência de direitos de propriedade industrial respeitantes aos medicamentos em causa.
Para além disso, considerou ainda o acórdão recorrido que, não existindo lei de valor superior que a tal obstasse, não cabe questionar a retroactividade dessa Lei 62/2011, estabelecida no respectivo art. 9, norma essa que não viola o disposto no art. 18 da CRP, pois que – entendeu o mesmo acórdão – não visou introduzir qualquer restrição a direitos de propriedade industrial como os invocados pelas recorrentes.
Contra o assim decidido, as recorrentes alegam, em síntese, que as impugnadas AIM’s consubstanciam actos administrativos que têm como «finalidade última e efeito útil» viabilizar e mesmo impor àqueles a quem foram concedidas a comercialização dos medicamentos a que respeitam. O que corresponde ao exercício de uma actividade criminosa, nos termos do art. 321 do Código da Propriedade Industrial (CPI), aprovado pelo DL 36/2003, de 5.3, por violadora de direitos de propriedade industrial das mesmas recorrentes, de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente garantidos e cuja existência, por isso, não poderia deixar de ser considerada no âmbito do procedimento administrativo em que foram praticados esses actos, os quais, assim, enfermam de invalidade determinante da respectiva nulidade ou anulação, nos termos dos arts. 100, 132 e 135, do Código de Procedimento Administrativo (CPA). E, não tendo revogado estes preceitos, a Lei 62/2011 carecia de relevância para a decisão sobre a pedida invalidação dos impugnados actos de AIM, sendo que – defendem a mesmas recorrentes – as alterações que introduziu ao EM, designadamente a nova norma do art. 23-A, somente respeitam aos pressupostos de facto da emissão desses actos, relativas à saúde pública, e já não «à teleologia dessas mesmas AIM’s», não obstando, assim, à apreciação jurisdicional, à luz daqueles preceitos do CPA, da validade desses actos do INFARMED «tendentes à violação» dos invocados direitos de propriedade industrial.
Todavia – alegam ainda as recorrentes – se as referidas normas do EM, na redacção daquela Lei 62/2011, forem entendidas como impeditivas de o INFARMED e a DGAE apreciarem, no âmbito do procedimento administrativo para concessão de AIM e PVP, a eventual existência de direitos de propriedade industrial, serão tais normas materialmente inconstitucionais, por violação «dos direitos/liberdade fundamentais de criação cultural e de propriedade privada, concebidos como alicerces constitucionais dos direitos fundamentais de propriedade industrial e por falta de uma proteção mínima adequada de um direito fundamental devida pela Administração Pública».
Por fim, as recorrentes defendem ainda que também a norma do art. 9 da referida Lei 62/2011 é inconstitucional, por contrariar a disposição do art. 18, nº 3 da Constituição da República, que proíbe a atribuição de efeito retroactivo a normas restritivas de direitos, liberdades e garantias, e por violar o princípio da separação de poderes e do Estado de Direito, ao visar interferir e condicionar o exercício da função jurisdicional, no âmbito «de acções em curso».
Vejamos.
(…)
4.3. As recorrentes impugnam o acórdão recorrido, começando por alegar que, ao contrário do que nele se decidiu, os invocados direitos de propriedade industrial tinham necessariamente de ser considerados, pela Administração, no âmbito dos procedimentos administrativos tendentes à prática das autorizações administrativas impugnadas. Pois que – defendem as recorrentes – essas autorizações, designadamente os questionados actos de AIM de medicamentos genéricos têm como objecto a viabilização jurídica da actividade de comercialização desses medicamento no território nacional. O que se traduz – alegam, ainda, as recorrentes – na viabilização de uma prática criminosa, nos termos do art. 321 do CPI, por violadora dos direitos de propriedade industrial protegidos por patente de que são titulares as mesmas recorrentes. Daí que, segundo estas, lhes assiste o direito de audiência prévia, nos termos do art. 100, do CPA.
Vejamos se procede essa alegação.
O regime jurídico a que obedece a AIM dos medicamentos para uso humano é estabelecido no já referido EM (art. 1/1), aprovado pelo DL 176/2006, de 30.8, que procedeu à transposição para o direito interno, designadamente da Directiva nº 2001/83/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (nº 2).
Como decorre do regime jurídico estabelecido nessa Directiva nº 2001/83/CE, designadamente os arts 10 (Artigo 10. 1.: «Em derrogação da alínea e) do nº 3 do artigo 8º e sem prejuízo das leis relativas à protecção da propriedade industrial e comercial, o requerente não é obrigado a fornecer os resultados dos ensaios pré-clínicos e clínicos se puder demonstrar que o medicamento é um genérico de um medicamento de referência que seja ou tenha sido autorizado nos termos do artigo 6º há, pelo menos, oito anos num Estado-Membro ou na Comunidade.
Os medicamentos genéricos autorizados nos presentes termos só podem ser comercializados 10 anos após a autorização inicial do medicamento de referência.…».), nº 1 e 10-A (Artigo 10-A: «Em derrogação da alínea i do nº 3 do artigo 8 e sem prejuízo das leis relativas à protecção da propriedade industrial e comercial, o requerente não é obrigado a fornecer os resultados dos ensaios pré-clínicos ou clínicos se puder demonstrar que as substâncias activas do medicamento têm tido um uso médico bem estabelecido na Comunidade desde há, pelo menos, 10 anos, com eficácia reconhecida e um nível de segurança aceitável nos termos das condições previstas no Anexo I. Neste caso, os resultados desses ensaios são substituídos por bibliografia científica adequada».) (red. da Diretiva 2004/27/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março), o legislador comunitário não fez depender a concessão de AIM da caducidade dos direitos de propriedade industrial. Antes se limitou a ressalvar que a regulamentação, que estabeleceu – com o objectivo principal de protecção da saúde pública, conforme refere um dos considerandos (nº 4 (Considerando nº 4: «Toda a regulamentação em matéria de fabrico e distribuição de medicamentos para uso humano deve ter como objectivo principal a saúde pública. Todavia, este objectivo deve ser atingido por meios que não prejudiquem o desenvolvimento da indústria e o comércio de medicamentos na Comunidade.».)) da referida Directiva nº 2004/27/CE – não prejudica o disposto nas leis relativas à protecção da propriedade industrial e comercial.
E, em conformidade com esse regime, também o EM se limita a consagrar a ressalva de que a comercialização do medicamento genérico autorizado será feita «no respeito pela lei» [arts. 29/1/a), 77/1 e 14/4], sem exigir, como condição de concessão de autorização, a caducidade dos direitos de propriedade industrial incidentes sobre medicamentos. Veja-se o que, na transposição dos citados arts 10 e 10-A da indicada Directiva nº 2001/83/CE, dispõem os arts 19 (Artigo 19º (Ensaios):
1 – Sem prejuízo dos direitos da propriedade industrial, o requerente fica dispensado de apresentar os ensaios pré-clínicos e clínicos previstos na alínea i do nº 2 do artigo 15º se puder demonstrar que o medicamento é um genérico de um medicamento de referência que tenha sido autorizado num dos Estados membros ou na Comunidade, há pelo menos oito anos.
2 – …) e 20 (Artigo 20º (Uso clínico bem estabelecido):
1 – Sem prejuízo dos direitos de propriedade industrial, o requerente fica dispensado de apresentar os ensaios pré-clínicos e clínicos previstos na línea i do nº 2 do artigo 15º se puder demonstrar que as substâncias activas do medicamento têm tido um uso clínico bem estabelecido na Comunidade Europeia há, pelo menos, dez anos, com eficácia reconhecida e um nível de segurança aceitável, nos termos das condições previstas no anexo I.
2 – …) do mesmo EM.
Do mesmo modo, tanto o art. 15, que indica os elementos que devem acompanhar o requerimento de concessão de AIM, como o art. 25 do mesmo EM, que indica os casos em que tal requerimento será indeferido, não fazem qualquer menção a eventuais direitos de propriedade industrial.
O que tudo conduz à conclusão de que, diferentemente do que pretendem as recorrentes, tais direitos não têm que ser considerados no âmbito do procedimento tendente à decisão sobre pedido de AIM de medicamento genérico.
Neste sentido, aliás, é decisiva a consideração de que nas atribuições do INFARMED, descritas no art. 3, nº 2, do DL 269/2007, de 26.7, não se inclui a apreciação da eventual existência de direitos de propriedade industrial relativos aos medicamentos a introduzir no mercado. As preocupações aí legalmente deferidas a esse instituto público respeitam às garantias de qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos.
A promoção e protecção da propriedade industrial estão, pois, fora das atribuições do INFARMED. Tais tarefas integram, aliás, as atribuições do Instituto da Propriedade Industrial (INPI), que «tem por missão assegurar a promoção e a proteção da propriedade industrial a nível nacional e internacional, de acordo com a política de modernização e fortalecimento da estrutura empresarial do País, nomeadamente em colaboração com as organizações internacionais especializadas na matéria, de que Portugal seja membro» (art. 3/1, do DL 132/2007, de 27.4).
Sendo ambos dotados de autonomia administrativa e financeira, estes dois institutos públicos, integrados na administração indirecta do Estado (art. 1/1, do DL 269/2007, e art. 1/1, do DL 132/2007), têm missões distintas e, por isso, enquanto um (INFARMED) «prossegue as atribuições do Ministério da Saúde, sob a superintendência do respectivo ministro» (art. 1/2, do DL 269/2007), o outro (INPI) «prossegue atribuições do Ministério da Justiça (MJ), sob superintendência e tutela do respectivo ministro» (art. 1/2, do DL 132/2007).
E, assim, tal como ao INPI não cabe «regular e supervisionar os sectores dos medicamentos», da competência do INFARMED (art. 3/1, do DL 269/2007), a este último não cabe promover e proteger a propriedade industrial.
Com efeito, nos termos do art. 101 do CPI, a patente confere o direito exclusivo de exploração da invenção (nº 1) e o direito de o seu titular impedir a terceiros, sem o seu consentimento, o fabrico, a oferta, a armazenagem, a introdução no comércio ou a utilização de um produto objeto de patente, ou a importação ou posse do mesmo, para algum dos fins mencionados (nº 2). Todavia, o direito de exclusivo não abrange, entre outros, os actos realizados exclusivamente para fins de ensaio ou experimentais, neles se incluindo experiências para preparação dos processos administrativos necessários à aprovação de produtos pelos organismos oficiais competentes, de acordo com o disposto nos termos do art. 102, al. c) do mesmo código. Por isso – e como bem salienta, no seu transcrito parecer o Exmo Magistrado do Ministério Público – a prática destes actos, sendo livre, não integra a previsão do ilícito de violação do exclusivo da patente, previsto no art. 321 do CPI.
Assim, ao titular da patente apenas assiste o direito de impedir o início da comercialização do medicamento, enquanto a sua patente não caducar. Mas já não pode impedir terceiros de iniciar o procedimento tendente à obtenção de AIM nem impedir que a mesma seja concedida ou que seja fixado PVP do medicamento em causa. Pois, como as próprias recorrentes admitem, tais actos não configuram, designadamente a introdução no comércio de um produto protegido por patente.
De resto, no referenciado DL 176/2006 (EM), é clara a distinção entre a concessão de AIM, da competência do INFARMED (Cap. I – arts. 14 a 54) e a comercialização de medicamentos (Cap. IV – arts 77 a 103), da exclusiva responsabilidade do titular da AIM, que «assume todas as responsabilidades legais pela introdução no mercado, no respeito pela lei» [art. 29/1/a)]. No mesmo sentido é a disposição do art. 14 do mesmo EM, com que se inicia a Secção I do referido Capítulo II, relativa ao «Procedimento de autorização», onde logo se estabelece que a respectiva concessão «não prejudica a responsabilidade, civil ou criminal, do titular da autorização de introdução no mercado ou do fabricante».
Assim, a eventual existência de patente, em favor de terceiro, legalmente impeditiva da comercialização do medicamento autorizado, que o titular da AIM se propusesse iniciar, originaria um dissídio, que o titular dessa AIM e o terceiro eventualmente dirimiriam no foro próprio, sem interferência do INFARMED.
Tenha-se presente que, nos termos do CPI, a violação do exclusivo de patente configura ilícito criminal (art. 321 (Artigo 321º (Violação do exclusivo da patente, do modelo de utilidade ou da topografia de produtos semicondutores):
É punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias, quem, sem consentimento do titular do direito:
a) Fabricar os artefactos ou produtos que forem objecto da patente, do modelo de utilidade ou da topografia de produtos semicondutores;
b) …)), podendo o titular da patente impedir essa violação através de adequadas providências cautelares, conforme prevê o mesmo CPI (art. 339 (Artigo 339º (Providências cautelares não especificadas):
Nos casos em que se verifique qualquer dos ilícitos previstos neste Código e sempre que finalidade não seja, exclusivamente, a apreensão prevista no artigo seguinte, podem ser decretadas providências cautelares, nos termos em que o Código de Processo Civil o estabelece para o procedimento cautelar comum.)).
Em suma: de acordo com um princípio de especialidade de competências, cabe ao INPI a protecção e promoção da propriedade intelectual, cabendo ao INFARMED o controlo da qualidade, eficácia e segurança dos medicamentos. Daí que esta entidade, no processo tendente à concessão das impugnadas AIM’s, não tivesse de considerar a existência de direitos de propriedade industrial, designadamente os invocados pelas ora recorrentes. As quais, por isso, não tinham, relativamente àquele procedimento e às decisões de AIM, nele tomadas, a qualidade de interessado nem, por consequência, o direito de audiência, nos termos do citado art. 100 CPA.
Em sentido contrário ao deste entendimento, as recorrentes alegam que os invocados direitos de propriedade industrial são direitos fundamentais de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias e, como tal, com protecção acrescida ao nível da própria Constituição, a cujas normas está directamente vinculada a Administração Pública que, por isso, não poderia deixar de considerar, no âmbito daquele procedimento de concessão de AIM’s, tais invocados direitos, prevenindo e reprimindo a respectiva violação.
Mas, não colhe essa alegação.
Desde logo, e como já se referiu, a AIM, sendo pressuposto jurídico essencial para a entrada do medicamento no mercado, não consubstancia um acto de comercialização desse mesmo medicamento, não se traduzindo, por isso, em qualquer violação do exclusivo conferido pela patente. Nem dele resulta – acrescente-se, agora – a obrigação, para o respectivo titular, de iniciar tal comercialização. Pois que, como bem nota o Exmo Magistrado do Ministério Público, a não comercialização, na vigência de patente, é imposta por lei e não relevará, por isso, para efeito da sanção de caducidade da autorização, prevista no art. 77 (Artigo 77º (Regime de comercialização):

3 – A não comercialização efectiva do medicamento durante três anos consecutivos, por qualquer motivo, desde que não imposto por lei ou por decisão judicial imputável ao INFARMED ou por este considerado como justificado, implica a caducidade da respectiva autorização ou registo, após a notificação prevista no nº 3 do artigo seguinte.), nº 3 do EM.
Depois, e como refere um Autor (Prof. J. J. Gomes Canotilho, in parecer jurídico junto ao processo nº 888/12, desta 1 ª Secção.) – para concluir também que, na vigência do EM com a redacção anterior às alterações introduzidas pela Lei 62/2011, de 12.12, não pertencia ao INFARMED o controlo dos direitos de propriedade intelectual, mas apenas o controlo relativo às qualidades médico-terapêuticas dos medicamentos – «o simples facto de o INFARMED não poder violar direitos fundamentais de propriedade intelectual não constitui, só por si, uma forma atributiva de competências concorrentes com as do INPI no controlo do respeito pelos direitos exclusivos resultantes das patentes. É que – prossegue o mesmo Autor – o facto de toda a Administração estar sujeita à lei e aos direitos fundamentais não significa que todos os órgãos administrativos sejam igualmente competentes na totalidade das matérias respeitantes à regulação e ao controlo do exercício dos diferentes direitos fundamentais. Isto mesmo decorre do artigo 3º/1 do Código de Procedimento Administrativo, onde se consagra o princípio da legalidade. De acordo com esta disposição, “ [o]s órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos.” A exigência de obediência à lei – conclui o mesmo Autor – não constitui, em si mesma, uma norma genérica de atribuição de competências para o controlo de todas as ilegalidades, à margem das próprias normas legais definidoras de competências e das considerações de adequação institucional e funcional que lhes estão subjacentes.»
E a improcedência da alegação das recorrentes, quanto à pretendida invalidade dos impugnados actos de AIM, estende-se à parte em que nela se defende a ilegalidade do acto de fixação de PVP dos medicamentos em causa. Desde logo, vale para este acto o essencial do que antes se afirmou quanto à AIM. Pois que também nenhuma dúvida existe de que tal acto, atento o seu tipo legal, sentido e alcance, nada tem a ver com a defesa de direitos de propriedade industrial titulados por patente. Veja-se, a este propósito, o então vigente DL 65/2007, de 14.3, máxime os seus arts. 2, al. b), 4, 5 e 6, bem como a Port. 312-A/2010, de 11.6. Depois, porque, como notou o acórdão recorrido, a condenação da DGAE a abster-se de fixar tais PVP’s decorreu, exclusivamente, da invalidação das AIM’s, não podendo vingar na ausência dela.
Do exposto resulta claro, em nosso entender, que, mesmo na ausência da Lei 62/2011, de 12.12, deveria ser julgada improcedente a acção proposta pelas ora recorrentes. E, com a publicação e vigência desse diploma, em que directamente se baseou o acórdão recorrido, mais clara e indiscutível se tornou, a nosso ver, essa improcedência.
Com efeito, a Lei 62/2011 veio, para além do mais, modificar o já referenciado DL 176/2006, de 30.8, de modo a definir que a AIM de um medicamento é um acto que não pode nem deve considerar quaisquer «direitos de propriedade industrial» (cfr. arts. 4 e 5, enquanto redactores dos actuais arts. 25, nº 2, 179, nº 2 e 23-A, do DL 176/2006). E, ex vi do art. 9, nº 1 da mesma Lei 62/2011, foi atribuída «natureza interpretativa» à sobredita definição.
Ora, «A lei interpretativa integra-se na lei interpretada» (art. 13°, n.º 1, do Código Civil).
Sendo assim, é presentemente indiscutível a improcedência da alegação das recorrentes de que são inválidas as impugnadas AIM’s, por desconsideração do seu direito de propriedade industrial. Pois o INFARMED, ao emitir a AIM sem considerar a patente invocada nos autos, agiu secundum legem – como já resultava das suas atribuições e agora se confirma pela interpretação autêntica, que a Lei 62/2011 deu às normas então aplicáveis. E, do que antes já expendemos, resulta que uma tal solução não fere quaisquer princípios ou normas constitucionais.
As recorrentes alegam, ainda, que o indicado art. 9°, n.º 1, da Lei 62/2011, é inconstitucional por conferir retroactividade a normas que restringiriam direitos, liberdades e garantias (art. 18°, n.º 3, da CRP).
Mas, sem razão.
Antes de mais, importa reter que a «natureza interpretativa» das leges novae trazidas pela Lei n.º 62/2011, relacionada com a desconsideração de patentes na emissão de AIM's, é insusceptível de controvérsia. É que tal índole interpretativa, para além de afirmada expressis verbis pelo legislador, corresponde à efectividade das coisas, pois que, sobre esse assunto, havia dúvidas manifestadas em duas correntes jurisprudenciais opostas. Sendo assim, aquela «natureza interpretativa» prevista no art. 9, n.º 1, da Lei 62/2011, de 12/12, é real, em vez de furtivamente acobertar uma intenção inovadora e uma simultânea, e dissimulada, cláusula de retroactividade.
Por outro lado, as leis interpretativas, embora tendam a vigorar ex ante, não são retroactivas proprio sensu, porque se limitam a fixar um regime já aplicável no passado (Cfr. Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, ed. de 1968, pág. 285, em nota.). Por isso mesmo, a proibição constitucional de que se atribua retroactividade a leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (art. 18°, n.° 3) só abrange as leis inovadoras, como este STA já teve a oportunidade de dizer (Vd. o acórdão de 1/7/99, no recurso n.º 44.642.). Quanto às leis deveras interpretativas, a sua retroactividade imprópria está sujeita aos limites previstos no art. 13°, n.° 1, do Código Civil: a salvaguarda dos «efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza». Todas essas hipóteses traduzem situações juridicamente estabilizadas, que nada têm a ver com o caso discutido na acção a que respeitam os autos, em que estava em causa aferir da legalidade da AIM, por falta de ponderação da patente. Ora, o que a lei interpretativa indirectamente nos diz é que o INFARMED andou bem ao desconsiderar a patente, pois era assim que a legislação a convocar para a emissão dos impugnados actos devia ser interpretada ab initio. O que, como vimos, implica a improcedência da acção proposta, como decidiu o acórdão recorrido.
Portanto, a inconstitucionalidade que as recorrentes atribuem ao art. 9º, n.º 1, da Lei 62/2011 não tem razão de ser. Inseria-se seguramente nas prerrogativas do legislador emitir uma lei interpretativa em matéria controversa.
E a emissão de tal lei não fere qualquer direito das recorrentes em sede de propriedade industrial. Pois, seja ou não de reconhecer natureza de direito fundamental ao direito delas à patente, a lei interpretativa, precisamente por sê-lo, não restringiu o direito de propriedade industrial, limitando-se a esclarecer que a consideração e a defesa dele não podem ocorrer no procedimento administrativo de AIM, mas alhures, onde o direito é, aliás, susceptível de uma tutela jurisdicional efectiva, como antes já se viu.
Assim sendo, temos que, mesmo antes do surgimento da Lei n.º 62/2011, já deveria entender-se que os pressupostos das AIM's não integravam a consideração de eventuais direitos de propriedade industrial – ideia essa que imediatamente ressaltava das atribuições do INFARMED e era corroborada por outras normas vigentes nesse domínio. Mas, com a Lei n.º 62/2011, dada a interpretação autêntica que ela fez do regime pretérito, tudo isso se tornou mais claro, afastando quaisquer dúvidas, que pudessem persistir.
A alegação das recorrentes é, em suma, totalmente improcedente” (sombreados nossos) – também neste sentido, entre muitos outros, Acs. do STA de 15.1.2013, proc. n.º 1026/12, 15.1.2013, proc. n.º 1124/12, 17.1.2013, proc. n.º 749/12, 17.1.2013, proc. n.º 1054/12, 17.1.2013, proc. n.º 1082/12, 17.1.2013, proc. n.º 1228/12, 30.1.2013, proc. n.º 1121/12, 30.1.2013, proc. n.º 1122/12, 30.1.2013, proc. n.º 1253/12, 30.1.2013, proc. n.º 1259/12, 5.2.2013, proc. n.º 1178/12, 7.2.2013, proc. n.º 1255/12, 14.2.2013, proc. n.º 1353/12 (“I - Já antes da Lei nº 62/2011, de 12 de Dezembro, devia entender-se, em face das atribuições do INFARMED e do tipo legal das AIM’s de medicamentos, a inviabilidade da acção em que se impugnasse uma autorização para introdução no mercado com base na ideia de que ela desconsiderava um direito de propriedade industrial. II - Essa solução tornou-se mais clara com a emergência daquela Lei 62/2011, cujo artigo 9, número 1 atribuiu, expressamente, efeito interpretativo a preceitos que deveras o são, por natureza. III - As AIM’s não privam os titulares das patentes dos seus direitos de propriedade industrial, nem a dita lei enferma de inconstitucionalidade por suposta retroactividade ofensiva de direitos relacionados com aquelas patentes”), 21.3.2013, proc. n.º 1486/12, 4.4.2013, proc. n.º 1401/12, 24.4.2013, proc. n.º 68/13, 20.6.2013, proc. n.º 462/13, 24.10.2013, proc. n.º 562/13, 27.11.2013, proc. n.º 1306/13, e 18.12.2013, proc. n.º 430/13.

Cumpre esclarecer que este Ac. do STA de 9.1.2013, proc. n.º 771/12, foi impugnado junto do Tribunal Constitucional, o qual, pelo Ac. n.º 216/2015, de 8 de Abril de 2015, pronunciou-se nos seguintes termos:
II – Fundamentação

4. Antes de mais, deve sublinhar-se que as questões de constitucionalidade objeto do presente recurso se interligam, necessariamente. Porém, por uma questão de facilidade de exposição, vamos tratá-las em separado.

Assim, a primeira questão versa sobre a norma extraída do artigo 9.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, que determina a natureza interpretativa das normas cuja inconstitucionalidade se alega na segunda questão suscitada pelas recorrentes. É a seguinte a redação do referido preceito legal:


«Artigo 9.º

Disposições transitórias


1 – A redação dada pela presente lei aos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Decreto -Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, bem como o aditamento introduzido ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos e o disposto no artigo anterior, têm natureza interpretativa.
(…)»

A segunda questão de constitucionalidade incide sobre uma interpretação extraída de vários preceitos do Estatuto do Medicamento (e da lei que o alterou) segundo a qual o Infarmed não detém poderes para aferir de uma alegada violação de direitos de propriedade industrial, por parte do medicamento objeto de procedimento de concessão de “Autorização de Introdução do Medicamento” (de ora em diante, apenas AIM) ou de fixação do “Preço de Venda ao Público” (PVP), encontrando-se obrigado a deferir esse pedido ou permanecendo impedido de alterar, suspender ou revogar uma AIM ou um PVP. Os preceitos a partir dos quais foi extraída esta interpretação encontram-se vertidos nos artigos 25.º, n.ºs 1 e 2, e 179.º, n.ºs 1 e 2, do Estatuto do Medicamento (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, com a redação que lhes foi conferida pela Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro), que ora se transcrevem:

(…)

Tal interpretação normativa resulta ainda da conjugação daqueles preceitos legais com o artigo 8º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, cuja inconstitucionalidade também é invocada. O preceito tem o seguinte teor:
(…)
Circunscritas as questões de inconstitucionalidade normativa invocadas, desde já avançamos que começaremos por esta última, deixando a apreciação do artigo 9.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, para um segundo momento.
Antes, contudo, importa proceder ao enquadramento do regime jurídico do medicamento.
5. O regime jurídico da introdução em mercado de medicamentos foi, pela primeira vez, consolidado num só instrumento jurídico, através do Decreto-Lei n.º 72/91, de 08 de fevereiro, que veio transpor várias diretivas comunitárias sobre a matéria – entre as quais a Diretiva 65/65/CEE, de 26 de janeiro de 1965 – e que fundiu vários diplomas legais dispersos que remontavam (em alguns casos) ao ano de 1931. Assim sendo, o Decreto-Lei n.º 72/91 corresponde, assim, ao primeiro “Estatuto do Medicamento”, pleno e sistematizado, a vigorar no ordenamento jurídico português.
Com efeito, já esse diploma legal tomava em consideração a necessária relação entre a decisão administrativa de introdução em mercado do medicamento – isto é, uma AIM – e a proteção da propriedade industrial resultante de um direito de patente em vigor. Por exemplo, o artigo 7º do Decreto-Lei n.º 72/91 erigia, precisamente, o respeito por esse direito de patente como uma condição necessária da dispensa de realização de ensaios laboratórios, em alguns casos expressamente identificados:
(…)
Além disso, o artigo 9.º do mesmo diploma legal – ao contrário do que sucede com o regime jurídico vigente – fazia expressa referência à necessidade de produção de prova, perante o Ministro da Saúde, de que o pedido de registo da marca do medicamento havia sido apresentado ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (de ora em diante, designado apenas por INPI), dentro do prazo de 12 (doze) meses, fixado para a introdução do medicamente no mercado:
(…)
Mais tarde, por força da entrada em vigor do novo “Estatuto do Medicamento”, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, o regime de AIM de medicamentos foi profundamente alterado, tendo as competências para concessão daquelas autorizações administrativas sido legalmente transferidas para o órgão máximo do Infarmed (cfr. artigo 14.º). Ora, entre os fundamentos de indeferimento dos pedidos de AIM não figurava, de nenhum modo, a verificação da eventual violação de direitos de propriedade industrial (cfr., a contrario, artigo 25º, n.º 1). Acresce que já se depreendia deste novo regime jurídico que a referida AIM estaria, forçosamente, dependente da não ofensa a outros preceitos legais que impedissem essa comercialização. O n.º 1 do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 176/2006 determinava que o prazo de validade daquela autorização – de 5 (cinco) anos, eventualmente renovável – ficaria sempre condicionado ao respeito pelo “disposto na lei relativamente à comercialização efetiva do medicamento”. Isto é, mesmo a redação originária do Decreto-Lei n.º 176/2006 salvaguardava que a AIM não prejudicava a necessidade de verificação – por outro órgão administrativo ou jurisdicional competente – de outras vinculações legais que, eventualmente, impedissem a efetiva comercialização do medicamento beneficiário de uma AIM.
Precisamente para obviar aos inúmeros litígios emergentes de direitos de propriedade industrial sobre patentes de medicamentos, a Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, veio criar um regime especial de composição extrajudicial de litígios, quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, procedendo à quinta alteração ao Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto. A partir de então, o artigo 19.º, n.º 8, do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, passou a ter a redação seguinte:

«Artigo 19º

Ensaios


8 – A realização dos estudos e ensaios necessários à aplicação dos n.ºs 1 a 6 e as exigências práticas daí decorrentes, incluindo a correspondente concessão de autorização prevista no artigo 14.º, não são contrárias aos direitos relativos a patentes ou a certificados complementares de proteção de medicamentos.»

Acrescente-se que, além das novas redações conferidas aos artigos 25.º, n.º 2, e 179.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 176/2006, a Lei n.º 62/2011 aditou, expressamente, um novo preceito legal, que especificou o âmbito das competências a exercer pelo Infarmed, quando pondere uma eventual AMI:


«Artigo 23º-A

Objeto do procedimento


1 - A concessão pelo INFARMED, I. P., de uma autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento de uso humano, bem como o procedimento administrativo que àquela conduz, têm exclusivamente por objeto a apreciação da qualidade, segurança e eficácia do medicamento.

2 - O procedimento administrativo referido no número anterior não tem por objeto a apreciação da existência de eventuais direitos de propriedade industrial.»

No que diz respeito às vinculações normativas decorrentes do Direito da União Europeia, deve notar-se que, quer a versão originária do Decreto-Lei n.º 176/2006, quer a que resultou da Lei n.º 62/2011, visaram transpor a Diretiva n.º 2001/83/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 06 de novembro de 2001, que determina o seguinte, quanto aos fundamentos de recusa de AIM de medicamentos:


«Artigo 26º

A autorização de introdução no mercado é recusada quando, após verificação das informações e documentos enumerados no artigo 8.º e no n.º 1 do artigo 10.º, se revelar:

a) Que a especialidade é nociva em condições normais de emprego; ou

b) Que falta o efeito terapêutico da especialidade ou está insuficientemente comprovado pelo requerente; ou

c) Que a especialidade não tem a composição qualitativa e quantitativa declarada.

A autorização será igualmente recusada se a documentação e as informações apresentadas em apoio do pedido não estiverem conformes com o disposto no artigo 8.º e no n.º 1do artigo 10.º»


«Artigo 126.º

A autorização de introdução no mercado apenas pode ser recusada, suspensa ou revogada pelas razões enumeradas na presente diretiva.»

6. Uma vez terminado o excurso pelo regime jurídico da introdução em mercado de medicamentos, importa agora centrar-nos nas alegadas inconstitucionalidades.

Para facilitar a realização desta tarefa, comecemos pela interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 25.º, n.ºs 1 e 2, e 179.º, n.ºs 1 e 2, do Estatuto do Medicamento, tal como consta do requerimento inicial, no sentido de que a mesma proíbe que o INFARMED afira, no contexto do processo de concessão de AIM, da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento, obrigando-o, desse modo, a deferir o requerimento de concessão de AIM para medicamento violador desses direitos ou impedindo-o de alterar, suspender ou revogar uma AIM, com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto, por violação dos artigos 17.°, 18.°, 42.°, 62.°, n.º 1, e 266.° da CRP.

Acrescente-se ainda que – porque se trata de questão que exige o mesmo tipo de ponderações – analisaremos, em simultâneo, a invocada inconstitucionalidade da norma constante do artigo 8.°, n.ºs 1. 3 e 4, da Lei n.º 62/2011, interpretada no sentido de que a mesma proibir que o INFARMED afira, no contexto do processo de autorização do preço de venda ao público ("PVP"), da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento, obrigando-o a deferir requerimentos de aprovação de PVP para medicamento violador desses direitos ou impedindo-o de alterar, suspender ou revogar um PVP, com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto, por violação dos mesmos preceitos constitucionais anteriormente invocados (artigos 17.°, 18.°,42.°,62.°, n.º 1 e 266.° da CRP).

Note-se que, em sede de alegações, as recorrentes vieram aditar aos parâmetros constitucionais, acima referidos, outros, designadamente, os artigos 2.º, 3.º, 9.º, alínea b), todos da CRP, o que é perfeitamente admissível, ao abrigo do princípio da cooperação leal com este Tribunal.

Vejamos se lhes assiste razão.

Antes de mais, cumpre notar que a invocação – como parâmetro de constitucionalidade – dos artigos 2.º, 3.º e 9.º, alínea b), da CRP ocorre apenas a título de reforço argumentativo, enquanto preceitos genéricos, os quais não são portadores de uma vinculatividade normativa especificamente dirigida para a questão normativa em apreço nos presentes autos.

Acresce que a invocação do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP) também não constitui o cerne da argumentação esgrimida pelas recorrentes. Aliás, apesar de, nas alegações para este Tribunal, afirmarem que “a interpretação oferecida pelo STA no acórdão recorrido vem colocar os titulares de direitos fundamentais emergentes de patentes farmacêuticas numa situação, perante a Administração, diferente daquela em que se situam os titulares de direitos de propriedade industrial relativos a produtos de outros domínios da técnica e da actividade económica”, não demonstram minimamente onde se situa essa diferença, nem indicam qual o termo comparativo entre posições jurídicas concretas, no qual baseiam a sua afirmação. De qualquer modo, sempre se dirá que não se vislumbra qualquer violação do princípio da igualdade, na medida em que, por um lado, independentemente da AIM, a protecção do direito de propriedade industrial se mantém e, por outro lado, os medicamentos gozam de características que os individualizam dos produtos de outros domínios da técnica e da actividade económica e, além disso, destinam-se a produzir efeitos em sede de saúde humana, o que não sucede com outros produtos.

Assim sendo, centremos a nossa análise no cerne da argumentação esgrimida pelos recorrentes, ou seja, a determinação acerca de uma eventual violação da proibição de restrição desproporcionada de direitos fundamentais.

Recapitulando, de acordo com as alegações das recorrentes, a opção legislativa – decorrente da transposição da opção normativa decorrente da Diretiva n.º 2001/83/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 06 de novembro de 2001, afeta, de modo desproporcionado, o “conteúdo essencial” dos seus direitos fundamentais à proteção da criação científica (artigo 42º, da CRP) e da propriedade privada (artigo 62º, da CRP), por permitir que sejam adotadas decisões administrativas de AMI, sem averiguação de uma alegada violação de direitos de propriedade industrial.

7. Antes de avançar, importa começar por caraterizar a natureza jurídico-constitucional do próprio “direito à propriedade industrial”, para dele discernir (ou não) a sua específica tipologia de direito fundamental. Neste caso, as recorrentes não só o qualificam como um “direito, liberdade e garantia”, por via direta – por decorrer diretamente da proteção que é conferida à liberdade de criação científica (cfr. artigo 42º da CRP) –, como por via indireta, por configurar uma manifestação do “direito à propriedade privada” (cfr. artigo 62º, da CRP), que – na sua ótica – se deve considerar um “direito análogo a direitos, liberdades e garantias” (cfr. artigo 17º, da CRP).

Anote-se, desde já, porém, que – quer se qualifique tal direito de um ou de outro modo –, certo é que a sua eventual restrição sempre implicaria ponderar se ela afronta, ou não, o “princípio da proporcionalidade”. É certo que a fonte jusconstitucional desse princípio poderia variar consoante se qualifique o direito em causa como “direito, liberdade e garantia” (ou como “direito análogo”) ou como “direito económico”. No primeiro caso, a exigência de proporcionalidade resultaria diretamente do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, enquanto no segundo caso, essa mesma exigência extrair-se-ia, essencialmente, do “princípio do Estado de Direito” (cfr. artigo 2º, da CRP) – neste sentido, ver Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, 2004, p. 264; Paulo Otero, Direito Constitucional Português, Volume I, 2010, p. 104.

Antes de mais, importa averiguar se o direito de propriedade industrial se deve, ou não, incluir no direito de propriedade privada.

A jurisprudência constitucional tem vindo a densificar o conceito de “propriedade privada” nele incluindo “tanto o direito de propriedade – a propriedade stricto sensu e qualquer outro direito patrimonial – como o direito à propriedade, ou direito de acesso a uma propriedade” (cfr. Acórdão n.º 257/92, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, com sublinhado nosso). Daqui decorre que o próprio direito de propriedade privada tanto protege a propriedade privada previamente consolidada na ordem jurídica, como um potencial direito de aceder, “ex novo”, a essa propriedade – de onde se poderia, extrair, de alguma medida, a própria proteção constitucional às empresas produtoras de medicamentos genéricos, que pretendem aceder ao conteúdo patrimonial decorrente do uso e comercialização de medicamento anteriormente patenteado, em função de determinada descoberta científica positivamente valorada pelo Estado, que a reconhece.

Mas, especificamente sobre o “direito de propriedade industrial”, este Tribunal também já o incluiu no âmbito de proteção do “direito à propriedade privada” previsto no artigo 62º da CRP. Por exemplo, no Acórdão n.º 491/2002 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) expressamente se afirmou que:

«Resulta, assim, claro que o direito de propriedade a que se refere aquele artigo da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os "direitos sociais" – incluindo, portanto, partes sociais como as ações ou as quotas de sociedades (na doutrina, no sentido de que o conceito constitucional de propriedade tem de ser equivalente a património, cfr. Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998, pp. 548 e 559).»

Seguindo orientação similar, referindo-se ao direito de propriedade intelectual, fazendo apelo não só ao direito de propriedade mas igualmente à liberdade de criação científica, tal como consagrada no artigo 42º da CRP, ver ainda o Acórdão n.º 577/2011 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
(…)

Por último, o Acórdão 123/15 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), precisamente a propósito do direito de patente sobre um medicamento de referência, o qual está em causa nos presentes autos, afirma o seguinte:

(…)

No mesmo sentido – ou seja, no sentido da inserção deste tipo de direitos autorais numa conceção ampla de “propriedade privada” –, também se tem pronunciado a doutrina: Fausto de Quadros, A Proteção da Propriedade Privada pelo Direito Internacional Público, 1998, pp. 190-220; Miguel Nogueira de Brito, A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, 2007, pp. 905-907, p. 935 e pp. 947-951.

Porém, a aceitação da jusfundamentalidade do “direito à propriedade industrial”, por via da proteção simultânea dos artigos 42.º e 62.º da CRP não determina, necessariamente, que a interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida seja contrária à Constituição, nem tão pouco que tal direito fundamental não possa ser objeto de restrição, desde que respeitando o “conteúdo essencial” do direito e o princípio da proporcionalidade para prossecução de outros valores constitucionalmente protegidos.

Assim sendo, importa averiguar se a interpretação normativa adotada comporta uma ofensa ao “conteúdo essencial” daquele direito fundamental (artigo 18º, n.º 3, da CRP), seja ele configurado como um “direito, liberdade e garantia”, seja ele configurado como um “direito análogo”. Isto porque, conforme o Tribunal tem notado, nem todas as faculdades extraídas do “direito à propriedade privada” integram o núcleo intrinsecamente caraterístico daquele direito, sendo que apenas as faculdades por ele abrangidas beneficiam da aplicação análoga do regime dos “direitos, liberdades e garantias”. Assim o afirmou o Acórdão n.º 329/99, sem qualquer margem para dúvidas:

«(...) apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no acórdão n.º 373/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 7 de novembro de 1991), cabem na reserva legislativa parlamentar ‘as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a atuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias’.»

Ora, conforme demonstra a decisão recorrida, a circunstância de as normas extraídas dos artigos 25º, n.ºs 1 e 2 e 179º, n.ºs 1 e 2, do Estatuto do Medicamento, e do artigo 8º, n.º 3, da Lei n.º 62/2011 (que lhe deu a atual redação), determinarem que o competente órgão do Infarmed, ao ponderar uma decisão administrativa de AIM, não pode incluir, como fundamento de indeferimento (ou de futura suspensão ou revogação), a comprovação – por via meramente administrativa – de uma alegada violação de direitos de propriedade industrial nem sequer afeta o “conteúdo essencial” do direito fundamental em causa. Assim é porque não só a lei reserva para outras entidades – administrativas (no caso, o INPI) e jurisdicionais (os tribunais arbitrais, previstos pela Lei n.º 62/2011) – a competência para conhecer de litígios quanto aos “direitos de propriedade industrial”, como uma mera decisão administrativa de AIM não implica qualquer lesão daqueles direitos, simplesmente porque ela só produz efeitos plenos, quando tenha expirado o prazo decorrente do “direito de patente” respetivo. É, aliás, isso mesmo que se verifica quando se procede à leitura do artigo 77º, n.º 3, do Estatuto do Medicamento, que determina:


«Artigo 77.º

Regime de comercialização


(…)

3 – A não comercialização efetiva do medicamento durante três anos consecutivos, por qualquer motivo, desde que não imposto por lei ou decisão judicial imputável ao INFARMED ou por este considerado como justificado, implica a caducidade da respetiva autorização ou registo, após a notificação prevista no n.º 3 do artigo seguinte.»

Ou seja, daqui decorre que a mera concessão de uma AIM não confere, por si só e automaticamente, qualquer direito de comercialização imediata. Pelo contrário, aquele preceito legal expressamente salvaguarda que não se pode proceder à comercialização imediata desse medicamento, salvo quando tenha expirado o prazo de exclusividade que a patente concede a outro fabricante. Só assim se pode interpretar a expressão “desde que não imposto por lei”. Evidentemente, a lei que protege o “direito de propriedade industrial” das recorrentes impede, assim – por si só – a comercialização efetiva do medicamento. De onde se conclui que, em boa verdade, mesmo que o competente órgão do Infarmed concedesse uma AIM, relativa a medicamento cujo “direito de patente” estivesse ainda sob proteção, essa decisão não é apta a afetar, de modo concreto e efetivo, o direito das ora recorrentes (em sentido idêntico, ver Remédio Marques, Direito de patente sobre o medicamento de referência e os procedimentos de emissão de AIM e de fixação do preço respeitantes ao medicamento, in «Medicamentos Versus Patentes – Estudos de Propriedade Industrial», 2008, p. 146). De certo modo, pode mesmo afirmar-se que a referida decisão de concessão de AIM pode ser configurada como um verdadeiro “ato administrativo sob condição suspensiva (de fonte legal)”. Apenas findo o prazo de proteção da patente, ficam os beneficiários daquela AIM autorizados a exercê-la plenamente.

Por essa razão, a interpretação acolhida pela decisão recorrida não ofende o “direito à propriedade industrial”.

E ainda que houvesse tal afetação – o que se pondera por mera exaustão de fundamentação –, sempre se diria que ela não entra em colisão com o “conteúdo essencial do direito à propriedade industrial”” nem com “princípio da proporcionalidade” (cfr. artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da CRP). Assim sendo, mesmo que se admitisse que a mera concessão de uma AIM, sem comercialização efetiva, já seria apta a comprimir o “direito à criação científica” (cfr. artigo 42º, da CRP) e o “direito à propriedade privada” (cfr. artigo 62º da CRP) – na medida em que permitiria prognosticar, de forma bem mais concretizável, a perda da exclusividade da patente de que beneficiariam, fazendo, por essa via, diminuir o valor económico da mesma –, impor-se-ia reconhecer que essa compressão (mínima) do âmbito máximo daquele “direito à propriedade privada” estaria justificada pela necessidade de proteção de outros bens jurídicos constitucionalmente protegidos. Desde logo, o “direito à iniciativa privada” das empresas concorrentes – e, em particular, as empresas produtoras e comercializadoras de medicamentos genéricos –; e igualmente, o próprio “direito à saúde” por parte dos indivíduos que carecem do acesso a medicamentos a preços mais baixos.

Isto é, nenhum direito fundamental se deve configurar como absoluto e irrestringível, face a outros direitos fundamentais igualmente tutelados pela Constituição. Ora, se assim é, a interpretação normativa, ora em análise, ao determinar que não cabe ao Infarmed o controlo, em sede de procedimento administrativo de concessão de AIM, de uma alegada violação do “direito de propriedade industrial” não está a amputar, de modo definitivo, o exercício desse mesmo direito de defesa.

Em primeiro lugar, porque a circunstância de o titular de um direito a patente não poder discutir a alegada violação do seu “direito de propriedade industrial” naquela sede não o impede de reagir, jurisdicionalmente, contra os potenciais infratores, designadamente através de um pedido de constituição de tribunal arbitral, tal como previsto, precisamente, pelo artigo 2.º da Lei n.º 62/2011 (1), que optou – ao abrigo da liberdade de decisão política do legislador – por prever um mecanismo extrajurisdicional de litígios relativos à determinação da propriedade industrial de medicamentos. Em segundo lugar, o próprio artigo 321º do Código da Propriedade Industrial (CPI) tipifica como crime essa ofensa ao referido “direito de propriedade industrial”, facultando o Estado ao titular do direito de patente os meios indispensáveis à defesa dos seus direitos, designadamente, através da apresentação de queixa criminal e da eventual constituição como assistente no referido procedimento criminal. E aliás, em terceiro lugar, deve notar-se que a alínea c) do artigo 102.º do CPI expressamente exclui da proteção do direito de exclusividade resultante da patente “os atos realizados exclusivamente para fins de ensaio ou experimentais, incluindo experiências para preparação dos processos administrativos necessários à aprovação de produtos pelos organismos oficiais competentes, não podendo, contudo, iniciar-se a exploração industrial ou comercial desses produtos antes de se verificar a caducidade da patente que os protege (com sublinhado nosso).

Daqui decorre que tais atos de ensaio – com vista a posterior pedido de AIM – não configuram o ilícito típico penal previsto e punido pelo artigo 321º do CP, precisamente porque não ofendem o bem jurídico “propriedade industrial”. E é também por isso que o n.º 8 o artigo 19º do Estatuto do Medicamento expressamente determina, em sentido idêntico, que os ensaios necessários a instruir o procedimento administrativo de concessão de uma nova AIM não são passíveis de ser configurados como uma ofensa ao “direito de propriedade industrial” de terceiros. Mais uma vez, só a comercialização efetiva desse medicamento lograria esse efeito ofensivo.

Com efeito, nem a mera submissão de requerimento de concessão de uma AIM, nem sequer o próprio ato autorizativo final são aptos a afetar a esfera jurídica dos titulares de alegado “direito de propriedade industrial”, pela simples circunstância de que tal ato só incide sobre a verificação das caraterísticas técnicas do medicamento, mas não já sobre a sua aptidão para ser alvo de comercialização (assim, ver Remédio Marques, Direito de patente sobre o medicamento de referência e os procedimentos de emissão de AIM e de fixação do preço respeitantes ao medicamento, cit., p.77). E, aliás, como os artigos 19º, n.º 1, e 20º, n.º 1, bem ressalvam – determinando: “Sem prejuízo dos direitos de propriedade industrial” –, o requerente de uma nova AIM encontra-se proibido de encetar os actos associados à comercialização ou (muito menos) de comercializar efetivamente o medicamento que (ainda) se encontre protegido pelo direito de exclusividade concedido pela patente (assim, ver Remédio Marques, cit., p. 92).

Tudo visto, o requerente de uma nova AIM mantém-se adstrito a um dever de respeito desse exclusivo, que não é afetado pela mera apresentação de um pedido de concessão de AIM ou, tão pouco, pela efetiva concessão dessa autorização. Aliás, mal se perceberia – e, essa sim, poderia configurar uma solução normativa inconstitucional – que os potenciais interessados em comercializar um medicamento cujo direito de exclusividade estivesse prestes a esgotar-se não pudessem iniciar o procedimento administrativo tendente à obtenção de AIM, antes de esse direito de exclusividade ter efetivamente caducado. É que, recorda-se, o exclusivo decorrente da patente tem uma duração de 20 anos (cfr. artigo 99º do CPI), e o prazo máximo para a comercialização efetiva de um medicamento, após concedida uma AIM, é de 3 anos (cfr. 77º, n.º 3, do Estatuto do Medicamento). Ora, é perfeitamente racional – e compreensível, no plano da eficiência económica – que um interessado em comercializar um medicamento genérico possa dar início ao procedimento administrativo tendente à obtenção de uma AIM antes que o referido prazo de 20 anos tenha expirado. Em boa verdade, sujeitar esses interessados a aguardar o esgotamento do prazo do direito de exclusividade é que se configuraria como uma restrição desproporcionada do seu “direito à iniciativa privada” (cfr. artigo 61º da CRP) e, reflexamente, do “direito à saúde” (cfr. artigo 64º da CRP) dos potenciais interessados em adquirir esse medicamento a preços mais baixos.

Aliás, o regime jurídico da autorização de introdução no mercado de medicamento parece até ter bastante em conta a necessidade de compatibilizar os direitos conflituantes dos vários interessados. Isto porque, na alínea a) do n.º 1 do artigo 29º do Estatuto do Medicamento, se esclarece que cabe ao titular da AIM, “[a]lém de outras obrigações impostas por lei” – isto é, incluindo as que são fixadas pelo regime jurídico da propriedade industrial –, comercializar o medicamento e assumir “todas as responsabilidades legais pela introdução do medicamento no mercado, no respeito pela lei (com sublinhado nosso). Além disso, a concessão de uma AIM não isenta o respetivo titular de qualquer responsabilidade civil ou criminal, por violação de outros deveres jurídicos (cfr. artigo 14º, n.º 4, do Estatuto do Medicamento).

Em suma, a interpretação normativa extraída da conjugação entre os artigos 25.º, n.ºs 1 e 2 e 179.º, n.ºs 1 e 2, do Estatuto do Medicamento, no sentido de o órgão administrativo competente – v.g., o Infarmed – não dispor de poderes legais para recusar a concessão de AIM a um medicamento, com fundamento numa alegada violação de direitos de propriedade industrial, não afeta o conteúdo essencial do direito à criação científica (cfr. artigo 42º da CRP) nem do direito à propriedade privada (cfr. artigo 62º da CRP), nem tão pouco comporta uma restrição desproporcionada desses mesmos direitos.

Como atrás se disse, as mesmas ponderações são válidas para o artigo 8.º, n.º 3, da Lei n.º 62/2011, quando interpretado no sentido de proibir que o INFARMED' afira, no contexto do processo de autorização do preço de venda ao público ("PVP"), da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento, obrigando-o, desse modo, a deferir requerimentos de aprovação de PVP para medicamento violador desses direitos ou impedindo-o de alterar, suspender ou revogar um PVP com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto.

8. As recorrentes retiram ainda que a interpretação normativa que temos vindo a apreciar seria inconstitucional, por ofensa ao artigo 266º da CRP, na medida em que dele pretendem extrair um “direito à tutela administrativa efetiva”, de modo tal que a administração pública estivesse obrigada a proteger os seus (alegados) “direitos de propriedade industrial”, mesmo contra a lei expressa. Ora, além da garantia genérica de “respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” (cfr. n.º 1 do artigo 266º, da CRP), as recorrentes invocam igualmente o n.º 2 do artigo 266º da CRP, que determina que a “[o]s órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei”.

Tendo chegado à conclusão que não se verifica a violação de qualquer direito, liberdade e garantia, ou de direito de natureza análoga, a discussão desta questão mostra-se prejudicada.

9. Somente aqui chegados, pensamos estar em condições de apreciar a primeira questão de inconstitucionalidade invocada pelas recorrentes, no seu requerimento inicial, ou seja, a de que o artigo 9º da Lei n.º 62/2011, por se tratar de uma norma interpretativa, incorporada por via da nova redação dos artigos 19º, 25º e 179º do Estatuto do Medicamento, também seria inconstitucional, quer por constituir uma restrição retroativa de “direitos, liberdades e garantias”, quer por “representar uma ingerência do poder legislativo no poder judicial” (sic), na medida em que – na perspetiva das recorrentes – inviabilizaria o direito a impugnar, jurisdicionalmente, a decisão administrativa proferida em matéria de AIM.

Deve começar por notar-se que, por força do n.º 1 do artigo 13.º do Código Civil, a norma interpretativa integra-se na lei interpretada, formando com ela um todo de sentido prescritivo. Nesse sentido, pode mesmo afirmar-se que o sentido interpretativo revelado – ou, antes, reforçado – pela norma interpretativa já se encontrava presente no espírito da norma interpretada (ainda que imperfeito ou duvidoso), sendo ele passível de ser extraído do próprio “sentido possível das palavras” anteriormente contidas na lei interpretada (assim, ver Batista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, 1968, p. 285, nota). É esse também o entendimento de Oliveira Ascensão, quando a qualifica como um mecanismo privilegiado de “interpretação autêntica” (cfr. O Direito – Introdução e Teoria Geral, 9.ª edição, 1995, pp. 500-501).

Ora, precisamente por esse sentido interpretativo já se encontrar, originariamente, impresso na norma interpretada, a própria lei portuguesa (cfr. artigo 13º, n.º 1, do Código Civil), determina a sua retroatividade, mediante a sua integração na primeira e assim operando uma novação da fonte normativa originária (nesse sentido, ver Oliveira Ascenção, O Direito – Introdução e Teoria Geral, cit., pp. 502-503; Pires de Lima/Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição – reimpressão, 2010, p. 62). Acresce que o próprio n.º 1 do artigo 13.º do Código Civil ressalva os efeitos jurídicos entretanto já produzidos, quer por força do cumprimento da obrigação, quer por sentença já transitada, quer por transação, ainda que não homologada. Daqui resulta que o próprio regime jurídico da lei interpretativa denota uma intensa preocupação em salvaguardar (e salvaguarda) o princípio da segurança jurídica, garantindo que essa retroatividade não é plena, afetando toda e qualquer situação passada.

Partindo deste enquadramento, importa notar que, de acordo com o que atrás se disse, nem sequer se pode afirmar que a redação conferida aos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Estatuto do Medicamento se deva considerar como ofensiva do “conteúdo essencial” do direito à liberdade de criação científica e do direito à propriedade privada. O que, desde logo, afastaria a proibição de retroatividade desfavorável que as recorrentes extraem do n.º 3 do artigo 18º da CRP.

Mas, mesmo que tal se admitisse – o que não sucede, mas por mera exaustão de fundamentação se pondera –, importaria sempre aferir se a medida legislativa em causa é verdadeiramente ofensiva do “princípio da segurança jurídica” e, como tal, da proibição de retroatividade desfavorável.

Tem vindo a ser entendido que o “princípio da segurança jurídica” se pode desdobrar numa “dimensão apriorística” e numa “dimensão aposteriorística”. Na sua “dimensão apriorística”, o princípio é entendido enquanto elemento de “certeza na orientação” (ou “certitudo”) das condutas humanas (assim, ver Theodor Geiger, Vorstudien zu einer Soziologie des Rechts, 1987, 63-66; Reinhold Zippelius, Filosofia do Direito, 2010, 215). Na sua “dimensão aposteriorística”, ele impõe uma “segurança na implementação” (ou “securitas”) das situações da vida já ocorridas, dentro de uma determinada ordem jurídica (assim, ver Theodor Geiger, Vorstudien zu einer Soziologie des Rechts, cit., 63-66; Reinhold Zippelius, Filosofia do Direito, cit., 216). Através da “certeza na orientação”, cabe aos poderes públicos adotar normas jurídicas suficientemente claras, precisas e esclarecedoras, que possam servir de parâmetro de reflexão e decisão pelo indivíduo, bem como garantir a estabilidade no método e conteúdo de tomada de decisões jurídico-públicas, sejam elas “atuações administrativas” ou “decisões jurisdicionais”. Nesse sentido, ver, ver Andreas von Arnauld, Rechtssicherheit, 2006, 167-270; Christian Tietje, Internationalisiertes Verwaltungshandeln, 2002, 617-621; Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2002, 258; Eberhard Schmidt-Aâmann, La Teoría General del Derecho Administrativo como Sistema, 2003, 205-206; Emanuel Towfigh, Komplexität und normenklarheit, in «Preprints of the Max Planck Institute for Research ond Collective Goods», Berlin, 2008/22, 4-6; Reinhold Zippelius, Filosofia do Direito, cit., 215-217; Freitas Rocha, Direito pós-moderno, patologias normativas e proteção da confiança, in «RFDUP», VII – Especial (2010), 384; Maria Lúcia Amaral, A proteção da confiança, in «V Encontro dos Professores de Direito Público», ICJP, Lisboa, 2012, 21.

Mas, o “princípio da segurança jurídica” exige ainda uma “segurança na implementação”, de tal modo que o seu beneficiário possa estar seguro de que os poderes público intervirão, para garantia dos seus direitos subjetivos e interesses normativamente protegidos, em momento subsequente à consolidação da sua posição jurídica. No caso das decisões administrativas previamente tomadas, estas geram um efeito de consolidação jurídico-administrativa – mais ou menos intensa, consoante as suas especificidades – gerando um efeito de tendencial estabilidade da posição jurídica do interessado (por todos, ver Ernst Forsthoff, Traité de Droit Administratif Allemand, 1969, p. 247; Judith Martins-Costa, A ressignificação do princípio da segurança jurídica na relação entre o Estado e os cidadãos, in «RCEJ-B», 27 (2004), p. 113).

Ora, no presente caso, nem uma nem outra dimensão do “princípio da segurança jurídica” se encontra afetada. Por um lado, começando pela “segurança na implementação”, já se demonstrou que a entrada em vigor da nova redação do Estatuto do Medicamento não afeta, de modo algum, a concreta posição jurídica vantajosa das recorrentes, na medida em que o seu exclusivo de patente permanecerá em vigor até ao termo do prazo legal, não afetando a AIM de que beneficiam, por força de decisão administrativa anterior. Como já supra demonstrado (cfr. § 6), a nova AIM conferida à recorrida B. não a habilita a comercializar efetivamente o medicamento patenteado pelas recorrentes, salvo quando esse prazo de exclusividade decorrente do “direito de propriedade industrial” se tiver esgotado. Até lá, a administração pública e os tribunais portugueses garantem todos os meios procedimentais e processuais adequados à proteção de tal direito.

Por outro lado, nem sequer a “certeza na orientação” fica prejudicada por força da aplicação retroativa da lei interpretativa à redação dos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Estatuto do Medicamento. É que, mesmo em momento anterior à sua entrada em vigor, aquela já era a interpretação acolhida, de modo reiterado e consolidado, quer pela atuação quotidiana do Infarmed, quer pela jurisprudência administrativa portuguesa. Com efeito, a jurisprudência mais recentemente consolidada nos tribunais administrativos salienta que, já anteriormente à entrada em vigor das normas interpretativas constantes da Lei n.º 62/2011, se podia entender que a aferição de alegada violação de “direitos de propriedade industrial” não constituía fundamento de indeferimento de pedido de AIM de medicamentos, ainda que houvesse controvérsia jurisprudencial sobre a matéria. Precisamente por subsistirem posições divergentes, a Lei n.º 62/2011, mediante recurso a normas interpretativas, optou por clarificar qual a “interpretação autêntica” a conferir ao regime de AIM. Nesse sentido, já se pronunciaram quer o Supremo Tribunal Administrativo (para além da decisão ora recorrida, ver ainda os acórdãos proferidos em 09 de janeiro de 2013, Proc. n.º 0771/2012, e em 07 de fevereiro de 2013, Proc. n.º 1256/12), quer o Tribunal Central Administrativo Sul (para além da decisão proferida nos autos recorridos, ver ainda os acórdãos proferidos em 07 de fevereiro de 2013, Proc. n.º 1255/12 e Proc. n.º 09581/12, e em 21 de fevereiro de 2013, Proc. n.º 08914/12).

Face a esta divergência jurisprudencial não podem as recorrentes invocar qualquer situação de afetação da “certeza na orientação”, por parte da norma interpretativa extraída do artigo 9.º da Lei n.º 62/2011, precisamente porque ela veio fixar como autêntica determinada interpretação já anteriormente acolhida pelos tribunais administrativos portugueses, ainda que não unanimemente. Nesse sentido, pode afirmar-se – com Batista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, 1968, p. 285, nota – que a norma em causa nem sequer se apresenta como retroativa “proprio sensu”, já que se limitou a fixar como autêntica uma interpretação normativa já aplicável no passado, visto que se coadunava com o “sentido possível das palavras” inscritas na lei interpretada.

Não pode, portanto, sequer falar-se em retroatividade “proprio sensu”, visto que o parâmetro normativo clarificado e reafirmado pela norma interpretativa contida no artigo 9.º da Lei n.º 62/2011 já podia ser, legitimamente, extraído do Estatuto do Medicamento, tal como vigente na redação do Decreto-Lei n.º 176/2006. E, mais do que isso, tratando-se este último ato legislativo de um ato interno de transposição da Diretiva n.º 2001/83/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 06 de novembro de 2001, mais razões havia para que não se tivesse consolidado, na esfera jurídica das recorrentes, qualquer expetativa jurídica (ou, muito menos, um interesse normativamente protegido) de que o Infarmed estive obrigado a apreciar uma alegação de violação de “direitos de propriedade industrial”, no procedimento administrativo de concessão de uma AIM de medicamento. É que o texto de tal diretiva é inequívoco ao determinar que essas questões controvertidas não são objeto de apreciação quando o competente órgão administrativo ponderar a concessão de uma AIM.

Acresce ainda que, desde o Regulamento n.º 1993/2309/CEE, de 22 de julho de 1993, que estabeleceu procedimentos comunitários de autorização e fiscalização de medicamentos de uso humano e veterinário e que institui uma Agência Europeia de Avaliação dos Medicamentos, o Direito da União Europeia adotou o princípio – constante do preâmbulo daquele ato legislativo – que, com vista à proteção da saúde pública, é necessário que as decisões relativas à autorização dos referidos medicamentos assentem em critérios científicos objetivos de eficácia, qualidade e segurança do medicamento em questão, independentemente de questões de caráter económico ou outro”. Ou seja, determinou que os procedimentos administrativos com vista à concessão de uma AIM se cingissem à apreciação de aspetos técnicos relativos à segurança para a saúde pública dos medicamentos em causa. Razão adicional para concluir que não existia qualquer proteção de uma expetativa jurídica das recorrentes no sentido de que se adotasse, no ordenamento jurídico português, uma posição oposta.

Por tudo isto, mais não resta do que concluir que não se verifica qualquer violação, por parte do artigo 9.º da Lei n.º 62/2011, do “princípio da segurança jurídica”, seja na sua forma de princípio geral (cfr. artigo 2º da CRP), seja na sua modalidade de proibição de restrição retroativa de direitos, liberdades e garantias ou de direitos análogos (cfr. artigos 17.º e 18.º, n.º 3, da CRP).

III – Decisão

Pelos fundamentos expostos, decide-se:

i) Não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 25º, n.os 1 e 2, e 179º, n.os 1 e 2 do Estatuto do Medicamento (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, com a redação que lhes foi conferida pela Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro) e do artigo 8º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, quando interpretada “no sentido de que a mesma proíbe que o INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (“INFARMED”) afira, no contexto do processo de concessão de AIM ou de PVP, da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento e, desse modo, obrigando-o a deferir requerimento de concessão de AIM ou PVP para medicamento violador desses direitos ou impedindo-o de alterar, suspender ou revogar uma AIM ou um PVP com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto”;
ii) Não julgar inconstitucional o artigo 9º, n.º 1, da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro;

E, em consequência:

iii) Não conceder provimento ao recurso.”.

Do exposto resulta que improcedem todos as violações da lei, da Constituição da República Portuguesa e do Direito Internacional imputadas pela recorrente à decisão recorrida, pelo que bem andou a mesma ao julgar totalmente improcedente a presente acção, razão pela qual deverá ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, confirmando-se o acórdão recorrido.



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Uma vez que a recorrente ficou vencida no presente recurso jurisdicional, deverá suportar as respectivas custas (art. 527º n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA).
III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul o seguinte:

I – Negar provimento ao presente recurso jurisdicional, e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido.

II – Condenar a recorrente nas custas relativas ao presente recurso jurisdicional.
III – Registe e notifique.

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Lisboa, 25 de Junho de 2015

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(Catarina Jarmela - relatora)

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(Carlos Araújo)

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(Cristina dos Santos)

(1) Afigurando-se-nos que, caso não seja aplicável tal norma, poderá o titular de um direito a patente, junto dos tribunais judicias competentes, maxime do tribunal da propriedade intelectual, requerer que se intime o requerente da AIM a não iniciar a comercialização do seu medicamento enquanto a patente e um eventual CCP estiverem em vigor.