Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:390/20.9BEBJA
Secção:CT
Data do Acordão:09/16/2021
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores:RECLAMAÇÃO DO ART. 276.º,
INVOCAÇÃO DE FUNDAMENTOS NÃO CONSTANTES DA FUNDAMENTAÇÃO DO ATO RECLAMADO
Sumário: Em sede de reclamação do ato do órgão da execução fiscal (art. 276.º do CPPT), se o ato sindicado tiver natureza administrativa, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori na pendência do meio impugnatório.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 2.ª SUBSECÇÃO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I. RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, que julgou procedente a Reclamação deduzida por P... - A..., contra o despacho de 13/11/2020, proferido pelo Diretor de Finanças de Beja, nos termos do qual foi indeferido o pedido de suspensão do processo de execução fiscal com o n° 02482020010... mediante a prestação de garantia por si formulada consubstanciada em entrega em penhor de obras de arte.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as conclusões seguintes:

«A - Constituem princípios basilares do processo tributário, os princípios da oficiosidade, do inquisitório e da verdade material, como aliás resulta do disposto nos artigos 99° da Lei Geral Tributária (LGT) e 13° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT);
B - Tal não significa que ao Juiz incumba realizar todas a provas requeridas pelas partes, cumprindo-lhe sim, indeferir aquelas que julgue desnecessárias ou dilatórias mas também, e inversamente, determinar oficiosamente as que repute de essenciais para a descoberta da verdade material;
C - No caso sob recurso, requereu a Representação da Fazenda Pública a realização de diligências de prova que reputava de essenciais para aquilatar da idoneidade da garantia oferecida, com vista à suspensão de processo executivo.
D - Como resulta do exposto anteriormente, não se encontra o Juiz vinculado à realização das requeridas diligência de prova, mas, convenhamos, ao recusá-las, deve fazê-lo expressa e fundamentamente, porque só assim permitirá o contraditório da decisão de recusa do requerido.
E - E ao não fazê-lo, isto é, ao não se pronunciar sobre a necessidade das diligencias requeridas, aliás, em dissonância com a apreciação que fez das diligências requeridas pela autora, inquinou a decisão prolatada de nulidade, de harmonia com as disposições do artigo 125° do CPPT;
F - Reconduzindo-se tal comportamento ao previsto na segunda parte do n° 1 do artigo 195° do Código de Processo Civil (CPC), porquanto, a realização das diligências requeridas por esta Representação são essenciais para a aferição da idoneidade da garantia oferecida e da susceptibilidade desta ser apta a produzir a suspensão do processo executivo,
Termos em que, e desde já, sempre com o devido e necessário respeito, se requer que seja proferido douto Acórdão revogatório da sentença emanada, com a consequente baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, para que sejam realizadas as diligências requeridas, a fim de aquilatar a real idoneidade da garantia oferecida, assim se fazendo a costumeira JUSTIÇA.»

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A recorrida, devidamente notificada para o efeito, não contra-alegou.

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O Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Com dispensa dos vistos legais, atento o carácter urgente dos autos, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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A questão invocada pela Recorrente nas suas conclusões das alegações de recurso, que delimitam o objecto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir consiste em aferir se a sentença recorrida enferma de nulidade por omissão de pronuncia nos termos do art. 125.º do CPPT ao não se ter pronunciado sobre a necessidade das diligências de prova requeridas nos autos.

II. FUNDAMENTAÇÃO
A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:


A) A Reclamante, P... - A..., é entidade beneficiária do financiamento da "Ação 3.2.1 Conservação e valorização do Património Rural", objeto do contrato de financiamento n° 02023680/0 - por acordo;

B) Por ofício do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P. (IFAP, IP), com a referência 004154/2018 DAI-UREC relativo ao assunto "Decisão Final - PRODER - Ação 3.2.1/ Conservação e valorização do Património Rural, operação n° 020000904230" foi a Reclamante notificada sobre a decisão final proferida sobre o procedimento de reposição das quantias pagas ao abrigo do contrato de financiamento n° 02023680/0, no valor de € 74.487,78 - cfr processo administrativo instrutor;

C) Em 16/11/2018 foi instaurada pela ora Reclamante no TAF Beja, ação administrativa na qual peticionava a anulação ou declaração de nulidade da decisão de reposição da importância de €74.487,78 referente a ajudas indevidamente recebidas - por acordo;

D) Em 13/07/2020 o IFAP, IP extraiu certidão de dívida relativa ao Reclamante por incumprimento do dever de reposição da importância de €74.487,78 referente a ajudas indevidamente recebidas e de juros vencidos no valor de €5.975,35, num total de € 80.463,13 - cfr processo administrativo instrutor;

E) Em 23/07/2020 foi autuado na Direção de Finanças de Beja o processo de execução fiscal n° 02482020010..., para cobrança da quantia exequenda de €74.487,78 e juros vencidos no valor de €5.975,35, num total de € 80.463,13, sendo executado a ora Reclamante P... - A... - cfr processo administrativo instrutor;

F) Em 11/08/2020 a Reclamante remeteu por email ao Serviço de Finanças de Beja, pedido de suspensão do processo de execução fiscal n° 02482020010... por pendência de ação judicial e pedido de prestação de caução mediante penhor de bens móveis, a saber,
- Escultura de J... avaliada em €57.000,00;
- Fotografia original de F... avaliada em €13.800,00;
- Cartoon Original de L... avaliado em €15.600,00;
- Pintura de J... avaliada em €28.500,00;
- cfr processo administrativo instrutor e documentos juntos com a Petição Inicial;

G) Em 24/08/2020 foi elaborada Informação técnica pelo Serviço de Finanças de Beja da qual ressalta,
«Imagem no original»


- cfr processo administrativo instrutor;

H) Por email de 07/09/2020 do Serviço de Finanças de Beja dirigido ao IM da Reclamante, foi solicitada a junção ao processo de execução fiscal, cópia da Petição Inicial da ação administrativa e cópia da decisão proferida na providência cautelar - cfr processo administrativo instrutor;

I) Por email de 14/09/2020 o IM da Reclamante remeteu os elementos solicitados pelo Serviço de Finanças de Beja no email de 07/09/2020 - cfr processo administrativo instrutor;

J) Em 12/11/2020 foi elaborada pela Direção de Finanças de Beja, Informação Técnica relativa ao assunto "Apreciação de garantia bancária para efeitos de suspensão de PEF" da qual ressalta,
«Imagem no original»


«Imagem no original»


«Imagem no original»

- cfr processo administrativo instrutor;

K) Em 13/11/2020 foi proferido Despacho pelo Diretor de Finanças de Beja com o seguinte teor, 
«Imagem no original»


- cfr processo administrativo instrutor;

L) Mediante ofício n° 1148, de 17/11/2020 do Serviço de Finanças de Beja relativo ao assunto "Suspensão de processo executivo - Garantia" foi a Reclamante notificada a 23/11/2020 do teor do Despacho do Diretor de Finanças proferido em 13/11/2020 (ato reclamado) - por acordo;

M) O processo foi instaurado neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja via SITAF em 22/12/2020 pela Autoridade Tributária e aduaneira - cfr. fls. 76 SITAF.

Com interesse para a decisão a proferir nada mais se provou de relevante.

Motivação 

A convicção do tribunal assenta no conjunto da prova documental junta aos autos quer pela sociedade Reclamante e bem assim da certidão do processo de execução fiscal constantes dos mesmos. De tal acervo probatório não coube impugnação e inexistem indícios que coloquem em causa a sua genuinidade.»
*

Conforme resulta dos autos, com base na matéria de facto supra, a Meritíssima Juíza do TAF Beja que julgou procedente a reclamação.

A Recorrente não se conforma com o decidido invocando nulidade da sentença por omissão de pronúncia nos termos do art. 125.º do CPPT, ao não se ter pronunciado sobre a necessidade das diligências de prova requeridas nos autos.

Apreciando.

Nos termos do disposto no art. 125.º do CPPT constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia “a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar”.

Sucede que a não tomada de posição no processo, pela Meritíssima Juíza a quo, sobre as diligências instrutórias que a Fazenda Pública requereu na sua resposta à reclamação, não consubstancia uma nulidade da sentença, pois não se trata de uma questão suscitada na contestação, mas antes de um requerimento de diligências instrutórias que poderá ter influência para a resolução do dissídio, e assim sendo, tal omissão poderá conduzir à anulação da sentença por défice instrutório, mas não à sua nulidade.

Ou seja, o invocado pela Fazenda Pública não consubstancia uma nulidade da sentença, nos termos do art. 125.º do CPPT, por não estarmos perante uma questão que a juíza devesse apreciar. A não realização da diligência requerida, encerra o entendimento implícito da sua irrelevância para a decisão da causa, e nessa medida, tal omissão de diligências instrutórias poderá ter influência na decisão da causa, e a ser assim, estaremos perante um erro de julgamento de facto, que a se verificar, conduz à anulação da decisão recorrida.

Considerando que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. n.º 3, do art. 5.º do CPC), o que é uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão (jura novit curia), vejamos se a não realização da diligência requerida pela Fazenda Pública consubstancia um erro de julgamento de facto.

Resulta dos autos que a Reclamante apresentou um pedido de prestação de garantia para suspensão do processo de execução fiscal, na sequência de apresentação de meio contencioso judicial, nos termos dos artigos 52.º da LGT e art. 169.º do CPPT.

Aquele pedido foi indeferido pelo órgão de execução fiscal com os seguintes fundamentos:
i) A executada não referiu quais os motivos que a impedem de apresentar garantia sob a forma de garantia bancária, caução, e seguro caução, entendendo o órgão de execução fiscal que estas são “as garantias privilegiadas pelo legislador no art. 199.º, n.º 1, do CPPT, em função do seu maior grau de liquidez e segurança, sendo que é sobre si que recai o ónus de invocar e demonstrar esse impedimento, dificuldade ou excessiva onerosidade (art. 74.º da LGT)”;

ii) A executada não refere no pedido que formulou, em que se baseia o valor atribuído às obras elencadas, nomeadamente, o órgão de execução fiscal entendeu que seria necessário saber: se se trata de uma avaliação realizada por si ou por terceiros; se a avaliação resulta de critério mensurável; se se trata de uma mera expectativa; se foi o valor de aquisição das obras.

É com base nesses fundamentos do indeferimento do pedido de prestação de garantia formulado pela Reclamante que deverá ser aferida a necessidade das diligências instrutórias requeridas pela Recorrente Fazenda Pública, pois constitui jurisprudência reiterada que em sede de reclamação do ato do órgão da execução fiscal (art. 276.º do CPPT), se o ato sindicado tiver natureza administrativa, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori na pendência do meio impugnatório – v., acórdão do STA de 20/12/2018, proc. n.º 0559/18.6BEALM. Nesse sentido, v. também, acórdão do STA de 15/10/2014, proc. 0918/14, e acórdão do TCA Norte de 12/12/2014, proc. n.º 276/14.6BEVIS, acórdão do TCAS de 22/10/2015, proc. n.º 09035/15, e acórdão do TCAS de 10/07/2015, proc. n.º 08813/15, acórdão do STA de 27/01/2016, proc. n.º 043/16, e acórdão do TCAS de 17/03/2016, proc. n.º 09405/16, acórdão do TCAS de 19/09/2017, proc. n.º 576/17.3BESNT, acórdão do TCAS de 03/05/2018, proc. n.º 926/17.2BELRS.

Analisado o requerimento de diligências de prova que a Recorrente Fazenda Pública apresenta na sua resposta à reclamação, constata-se que pretende com tais diligências aferir “a prova concreta da disponibilidade dos bens oferecidos em garantia pela autora”.

Nesse contexto requereu o seguinte: “Requerendo ao douto Tribunal, que sejam realizadas as necessárias diligências de prova, com vista ao apuramento de tal fato, nomeadamente que:
- Relativamente a todas elas, seja inquirida a Diocese de Beja, enquanto entidade responsável pelos Museus de Arte Sacra de Santiago do Cacém e Museu Episcopal de Beja, se se arroga de algum direito de propriedade ou de retenção, ou se reconhece a propriedade da autora sobre as obras de arte oferecidas em garantia;
- Relativamente às 3 primeiras obras, cuja localização indicada é o Museu de Arte Sacra de Santiago do Cacém, seja inquirida a Camara Municipal de Santiago do Cacém, sobre se colaborou na aquisição das mesmas e, se assim foi, se destinando as mesmas ao Museu de Arte Sacra de Santiago do Cacém ou à autora, e
- Que relativamente à obra de L..., “cartoon” denominado “Caminhos de Santiago”, seja solicitada informação ao autor, sobre se a obra foi alienada a titulo gratuito ou oneroso e, bem assim, a qual foi a entidade a que a obra foi cedida, bem como se existe ficheiro informático da obra e quem é o seu detentor.”

Ou seja, às diligências instrutórias requeridas subjaz o entendimento da Fazenda Pública de que aquelas são necessárias para obter “a prova concreta da disponibilidade dos bens oferecidos em garantia pela autora”. Por outras palavras, a Recorrente pretendia provar que os bens oferecidos pela Reclamante, em garantia, não estavam na sua disponibilidade.

Por isso, entende que a realização dessas diligências era essencial para “aquilatar da idoneidade da garantia oferecida” (conclusão C) das alegações de recurso).

Contudo, em momento algum a decisão do órgão de execução fiscal de indeferimento se fundou no entendimento de que os bens oferecidos em garantia não estavam na disponibilidade da Reclamante. Ou seja, a decisão reclamada não assentou de modo algum nesse fundamento, antes assentou no entendimento de que, por um lado, a executada não referiu quais os motivos que a impedem de apresentar garantia sob a forma de garantia bancária, caução, e seguro caução, e por outro lado, aquela não referiu no pedido que formulou, em que se baseia o valor atribuído às obras elencadas.

Portanto, a Recorrente Fazenda Pública pretende fazer prova de factos que nada têm a ver com os fundamentos em que assentou a decisão de indeferimento da prestação de garantia, o que de per se é suficiente para concluir que é manifesta a desnecessidade da realização das diligências requeridas, uma vez que, conforme supra referido, em sede de reclamação do ato do órgão da execução fiscal (art. 276.º do CPPT), se o ato sindicado tiver natureza administrativa, como sucede no caso dos autos, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato, e assim sendo, está impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação.
Na verdade, in casu, ainda que se provasse que os bens oferecidos em garantia não estavam na disponibilidade da Reclamante, ainda assim, o tribunal não os poderá considerar para aferir a legalidade do ato reclamado, por essa razão de facto não constituir sua fundamentação.

Pelo exposto, no caso dos autos é manifesto que não se verifica défice instrutório por não realização das diligências requeridas pela Fazenda Pública na sua resposta à reclamação, e nessa medida é de negar provimento ao recurso.

Em matéria de custas o artigo 527.º do CPC consagra o princípio da causalidade, de acordo com o qual paga custas a parte que lhes deu causa. vencida nesta instância a Recorrente Fazenda Pública, esta deu causa às custas do presente processo (n.º 2), e, portanto, deve ser condenada nas respetivas custas (n.º 1, 1.ª parte).

Sumário (art. 663.º, n.º 7 do CPC)

Em sede de reclamação do ato do órgão da execução fiscal (art. 276.º do CPPT), se o ato sindicado tiver natureza administrativa, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori na pendência do meio impugnatório.


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DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da 2.ª Subsecção, da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.


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Custas pela Recorrente.

D.n.

Lisboa, 16 de setembro de 2021.


A Juíza Desembargadora Relatora

Cristina Flora


A Juíza Desembargadora Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo art. 3.º do DL n.º 20/2020, de 01/05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, os Juízes Desembargadores Tânia Meireles da Cunha e Susana Barreto