Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1798/18.5BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:07/04/2019
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS.
INIDONEIDADE DO MEIO PROCESSUAL USADO CONHECIDA NA SENTENÇA E CONVITE À CONVOLAÇÃO PARA O MEIO ADEQUADO.
Sumário:I) -Concluindo-se que, face ao alegado na petição inicial e para tutela dos interesses aí invocados, sempre seria suficiente e adequado o meio processual "normal", ou seja, a acção administrativa [sem prejuízo de, logo que surja alguma situação urgente carecida de tutela, poder ser intentado, por apenso, um processo cautelar].

II) -Estando em causa um direito, liberdade ou garantia ou direito fundamental de natureza análoga mas falhando o requisito “urgência” depois de realizada a instrução, por isso não tendo o tribunal a quo julgado verificada “uma excepção inominada” que poderia identificar-se como a de impropriedade do meio processual utilizado porque, nas circunstâncias do caso, se mostra suficiente a utilização de uma forma de processo não-urgente, acompanhada da adopção de uma providência cautelar, o tribunal a quo não deveria deixar de promover a convolação do processo de intimação num processo cautelar, convidando, para o efeito, o autor a substituir o requerimento da intimação que tinha apresentado pelo requerimento cautelar necessário para desencadear um processo cautelar, isso por accionamento do princípio pro-actione.
Votação:MAIORIA COM VOTO DE VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1ª SECÇÃO DO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I – Relatório

Vem interposto recurso jurisdicional pelo Autor VALERIAN ........., visando a revogação da sentença de 29/03/2019, do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que julgou improcedente a presente intimação, absolvendo-se a Entidade Demandada da instância.

Irresignado, nas suas alegações, formulou o recorrente as seguintes conclusões:

“I. Devem ser aditado os seguintes factos, todos provados documentalmente e por acordo:
H) Dá‐se por integralmente reproduzido o teor das Orientações Internas n.º 1/2015, 12/2015, 1/2016, 6/2016 e 4/2017 (cfr. Docs n.ºs 1, 2, 4, 5 e 6 juntos com a Resposta da Entidade Requerida);
I) Em 29/05/2018, o Consulado Geral de Portugal em Goa enviou e‐mail ao Ilustre Mandatário da Requerente com o seguinte teor:
Ex.mo Senhor Dr. Bernardo ......... Muito obrigado pela sua mensagem.
Relativamente às questões constantes das alíneas a) a d) e que mereceram toda a atenção, informo V.Exa do seguinte:
a) Os procedimentos correspondem, grosso modo, à descrição apresentada nos pontos 1 a 6 devendo ainda ter‐se em conta (referência ao ponto 2 da actual tramitação) que toda a correspondência diplomática com o MEA indiano tem de ser feita via Embaixada Portugal em Deli.
b) Encontra‐se em vigor desde 19/07/17, mas só se iniciou a sua aplicação a partir de Setembro/Outubro de 2017.
c) Até à presente data, foram expedidos para Nova Deli cerca de 4.100 pedidos de verificação.
d) Até à presente data não foi ainda satisfeito qualquer pedido de verificação solicitado ao MEA indiano.
(cfr. Doc. n.º 5, junto com o R. I., que ora se dá por integralmente reproduzido);
II. Deve ainda ser aditados aos Factos Provados os seguintes:
J) Em 29/3/2017 o Reino Unido decidiu retirar‐se da União Europeia, nos termos do disposto no art. 50º do TUE.
K) Em 27/3/2019 os Estados Membros da União Europeia acordaram em prorrogar o prazo previsto no art. 50º nºs 2 e 3 do TUE até ao próximo dia 12/04/2019.
L) Em 11/4/2019 os Estados Membros da União Europeia acordaram em prorrogar o prazo previsto no art. 50º nºs 2 e 3 do TUE até ao próximo dia 31/10/2019.
III. Tais factos - apesar de novos – são essenciais para a boa decisão da causa, nomeadamente do julgamento acerca do prazo de saída do Reino Unido – e da inerente urgência na obtenção de tutela jurisdicional efetiva, que é a questão central do presente recurso.
IV. Acresce que tais factos são públicos e notórios que, como tal, não carecem de alegação ou prova e são de conhecimento oficioso. Como tal devem ser admitidos artº 412º nºs. 1 e 2 ex vi artº 1º CPTA.
V. Ao contrário do que concluiu o Tribunal a quo, o recorrente não esperou 50 anos para exercer o seu direito, mas apenas o pode fazer a partir de final de outubro de 2016, pois só então pode provar, nos termos do disposto nos arts. 1º nº 1 al. c) e 21º nº 1 da Lei da Nacionalidade, que era filho de cidadã portuguesa nascida no estrangeiro e assim exercer o direito à atribuição da nacionalidade portuguesa.
VI. Não se afigura excessivo o lapso de tempo decorrido desde o registo do nascimento e casamento dos progenitores – essencial para prova do direito do recorrente – e que foi concluído em 31/10/2016 e a data em que constituiu mandatário para promover a inscrição do seu nascimento no registo civil português (24/7/2016), sobretudo tendo em conta que o recorrente reside noutro continente e que a informação não está disponível com a mesma facilidade que está em Portugal ou mesmo na Europa.
VII. Não existe qualquer fundamento para considerar que o recorrente foi desleixado: a urgência não decorre do atraso do recorrente, mas de circunstâncias alheias à sua vontade, nomeadamente i) a paralisação do procedimento de verificação consular ii) no processo de saída do Reino Unido da União Europeia (BREXIT) e consequente aplicação das regras estabelecidas nos Tratados da União Europeia.
VIII. Desde que o recorrente apresentou o seu pedido de inscrição do assento de nascimento, a Conservatória dos Registos Centrais alterou os procedimentos, sujeitando, por decisão ad hoc e indo além da ordem de serviço já de si ilegal e discriminatória, a confirmação consular da autenticidade do conteúdo da certidão de nascimento do recorrente, a qual era suspensiva do procedimento.
IX. Ou seja, conforme consta da matéria provada documentalmente, em 29/5/2018 o Consulado-Geral de Portugal em Goa não havia recebido qualquer resposta aos mais de 4100 pedidos de confirmação enviados às autoridades indianas, onde se incluía o pedido relativo à certidão de nascimento da ora recorrente.
X. Como é evidente, nem o atraso no envio do pedido de verificação consular, nem a alteração do procedimento de verificação consular são imputáveis à ora recorrente. Todos os atrasos supra referidos são, na sua maioria, imputáveis aos serviços de registo civil portugueses, aos serviços consulares e às autoridades indianas.
XI. Pelo exposto, não existiu ao longo do procedimento nenhum atraso imputável à recorrente, sendo certo que, não tivessem existido os atrasos supra documentados, o pedido do recorrente já estaria satisfeito, uma vez que é estritamente vinculado e não está sujeito a qualquer juízo de discricionariedade.
XII. Mesmo admitindo que, em alguns casos, pode ser negada a tutela urgente quando a urgência resulta de atraso do interessado, é forçoso concluir que não é essa a situação do ora recorrente que não se colocou numa posição em que, por causa da sua omissão, passou a carecer de tutela urgente.
XIII. A necessidade de tutela urgente decorre, por um lado, de inúmeros atrasos ao longo do processo, os quais são imputáveis sobretudo aos serviços de registo civil do recorrido IRN e também aos serviços consulares portugueses e autoridades indianas. Por outro, a necessidade de tutela urgente decorre ainda da alteração de regras e procedimentos por parte dos serviços de registo civil portuguese e das autoridades consulares portuguesas e correspondentes autoridades indianas que inviabilizaram a confirmação consular de assentos e, com isso, a possibilidade de conclusão do processo do recorrente.
XIV. Finalmente, a urgência decorre ainda na necessidade de emigrar e fixar residência antes da saída do Reino Unido da União Europeia ou do decurso do prazo previsto no art. 50º do Tratado de Lisboa, o que ocorrerá no próximo dia 31/10/2019.
XV. A prova da intenção de emigrar é, com o devido respeito, uma prova diabólica.
XVI. É inegável que, nos termos do disposto nos arts. 43º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, 3º do Tratado da União Europeia, 20º e 21º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e 15º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, o recorrente está a ver o seu direito à nacionalidade e à emigração, circulação e residência, coartado. Tal é prova suficiente para efeitos da presente intimação.
XVII. Ao contrário do que entendeu o Mmº Juiz a quo, a cessação da vigência dos Tratados comunitários – e dos direitos e deveres dele decorrentes – no Reino Unido não depende de nenhum acordo entre as partes; a cessação da aplicação dos Tratados resulta do mero decurso de prazos processual que só podem ser neutralizados mediante acordo unânime de todos os Estados Membros da União Europeia.
XVIII. É, pois, o oposto do que resulta da decisão do Tribunal a quo, que considerou que não haveria urgência por ser necessário o acordo do Reino Unido e da União Europeia para que houvesse BREXIT.
XIX. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quando decidiu que o recorrente não demonstrou quaisquer factos que demonstrem que se encontra numa situação de urgência que justifique a intimação da entidade requerida e que tampouco se vislumbra a urgência invocada pela requerente.
XX. O acordo que o Tribunal a quo refere ter que ser votado pelo Parlamento Britânico não diz respeito à ocorrência ou não do BREXIT, mas antes aos termos de saída negociada e de relação futura com a União Europeia.
XXI. Caso o acordo submetido à aprovação do Parlamento Britânico seja rejeitado, ao invés da não ocorrência do BREXIT (como entendeu o Mmº Juiz a quo), os britânicos e europeus deparar-se-ão com um BREXIT sem acordo, também chamado de Hard Brexit (“BREXIT Duro”). Tal significaria a saída do Reino Unido sem qualquer acordo sem estarem previstas e acordadas as relações (económicas, aduaneiras, piscatórias, etc.) entre União e Reino Unido.
XXII. E, conforme já foi por diversas vezes afirmado pelos líderes políticos do Reino Unido – e como foi alegado pelo recorrente no art. 91º do r.i. - a política imigratória britânica assentará numa forte restrição à entrada de cidadãos estrangeiros menos qualificados, como é o caso do recorrente, sem que haja qualquer discriminação positiva face a cidadãos europeus. A situação do recorrente é, então, muito simples:
iii. Caso obtenha a nacionalidade portuguesa (e consequentemente a cidadania europeia) até 31/10/2019, poderá fixar livre e potestativamente a sua residência no Reino Unido;
iv. Caso não obtenha a nacionalidade portuguesa (e consequentemente a cidadania europeia) após 31/10/2019, perderá esse direito potestativo, vendo o seu direito a fixar residência no Reino Unido subordinado à definição de políticas imigratórias restritivas que, com toda a probabilidade (e indício disponíveis), resultarão na rejeição da sua pretensão.
XXIII. Assim, o direito que o recorrente pretende exercer está limitado a um prazo ou data fixa: 31/10/2019.
XXIV. E, contrariamente ao que o Tribunal a quo entendeu, o recorrente não pretende uma decisão imediata. O recorrente apenas pretende que seja proferida decisão de mérito antes dessa data limite. Dado que o recurso a medidas cautelares se encontra afastada pela própria natureza do direito invocado (porque não é possível o registo provisório do nascimento do recorrente que é essencial para a prova da nacionalidade, nos termos do disposto no art. 21º da Lei da Nacionalidade), o recurso à tutela jurisdicional urgente é o único meio ao dispor do recorrente.
XXV. A sentença recorrida violou o disposto no art. 109º do CPTA, 20º nº 5, 26º da CRP,
Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, a decisão recorrida anulada e substituída por outra que julgue a intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias, procedente, declarando nula a decisão de suspensão do procedimento e condenando o recorrido IRN a proferir decisão do pedido nos termos requeridos no r.i.
Assim farão V. Ex.ªs a sempre esperada, JUSTIÇA.”

Foram apresentadas contra-alegações que ostentam as seguintes conclusões:

“I- Deve o recurso apresentado ser declarado improcedente e manter-se na ordem jurídica a sentença recorrida, porque é válida, inexistindo qualquer vício de violação da lei que possa ser imputado à Sentença/Decisão;
II- Tudo com as demais e legais consequências, só assim se fazendo a Costumada Justiça!”

Neste Tribunal Central Administrativo, o Exmo. Procurador -Geral Adjunto, notificado nos termos do art. 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

Os autos vêm à conferência com dispensa de vistos em razão da natureza urgente do processo.
*

2. FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. - Dos Factos:

Com relevância para a decisão, atendendo aos documentos juntos aos autos e não impugnados e à posição processual das partes, consideram-se assentes os seguintes factos:
A. O Autor nasceu em 11.11.1959, em Kavadi, Udupi, Estado de Karnataka, Índia.
Cfr. Doc. 2 junto com a petição inicial (PI).
B. Tendo aí sido registado o seu nascimento.
Cfr. Doc. 2 junto com a PI.
C. Em 12.12.2017 o Autora apresentou requerimento junto da Conservatória dos Registos Centrais (CRC), em Lisboa, a que foi atribuído o n.º........., pedindo a inscrição do seu registo de nascimento, efectuado no ano de 1959 na Conservatória de Karnataka, Índia, no registo civil português.
Cfr. fls. 1 a 14 do Processo Administrativo (PA).
D. Em 03.01.2018 o Autor requereu à CRC a junção da certidão de nascimento e a respectiva tradução.
Cfr. fls. 15 a 20 do PA.
E. Em 30.07.2018 a CRC solicitou à Secção Consular da Embaixada de Portugal em Nova Deli, Índia, colaboração no sentido de, junto da entidade local, ser obtida a informação sobre a conformidade dos elementos constantes da referida certidão de nascimento, encontrando-se o procedimento, desde então, suspenso.
Cfr. fls. 15 a 20 do PA.
F. Em 11.09.2018, em resposta ao pedido de informação sobre o estado do processo, a mandatária do Autor foi notificada da realização daquela diligência junto da Embaixada de Portugal em Nova Deli, Índia.
Cfr. fls. 22 a 23 do PA.
G. A presente intimação deu entrada neste Tribunal em 04.10.2018.
Cfr. fls. 1 dos autos.
*

2.2.- Motivação de Direito

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA e dos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC novo (aprovado pela Lei n.º 41/013, de 26 de Junho) ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA (correspondentes aos artigos 660º nº 2, 664º, 684º nºs 3 e 4 e 690º do CPC antigo).
No caso, em face dos termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso pela recorrente, a questão que cumpre decidir subsume-se a saber se a decisão vertida na sentença incorreu em erro de julgamento quanto à questão de saber se existe urgência do Recorrente para obter o direito fundamental à cidadania portuguesa, e se o mesmo está ou não ameaçado, e necessitado de tutela jurisdicional efectiva, para o fazer exercer através do processo de intimação previsto nos artigos 109º do CPTA.
Vejamos.
Em primeiro lugar, independentemente da resposta que for dada a tal questão, o fundamento do recurso atinente ao aditamento da matéria de facto, tal como propugnado pelo EPGA no seu douto Parecer, será de indeferir nos termos do art. 640º do CPC, dado que o Recorrente não cumpre o ónus previsto no nº1 desse preceito legal.
A nosso ver, os concretos meios de prova constantes do processo e os agora indicados não impunham decisão diversa de recorrida, sendo que, em matéria de recurso, o respectivo objecto é dado pelas conclusões (artºs. 637º nº 2 e 639º nºs. 1 e 2 CPC) e o erro de julgamento em matéria de facto tem um leque de causas muito vasto, sendo que nem todas implicam a observância do ónus estabelecido no artº 640º nºs. 1 e 2 CPC).
De todo o modo, a incorrecção do julgado há-de revelar-se pelos próprios termos da decisão proferida, pela incapacidade jurídica de uma dada fonte probatória formar e sustentar de modo juridicamente válido a convicção expressa pelo julgador no específico sentido consignado, o que vale por dizer que é necessário concluir que o probatório e respectivos meios de prova não constituem suporte jurídico da decisão do caso concreto declarada na sentença e/ou que outros há que impunham a ampliação do probatório – tal como pretende o recorrente.
Ora, no ponto, entendemos que na circunstância toda a matéria de facto que o recorrente pretende que seja aditada ao probatório, contrariamente ao que ele sustenta, não se trata de factos essenciais e imprescindíveis para a boa decisão da causa, isso sem embargo de os mesmos poderem ser considerados plenamente provados pelos documentos que os suportam.
É consabido que o facto jurídico, comummente, é o acontecimento ou evento que produz efeitos jurídicos; num sentido mais estrito, dinâmico, compreende só os eventos ou acontecimentos, troços do devir ou suceder; em sentido lato, compreende também circunstâncias, troços do ser ou existir; porém, devem considerar-se factos jurídicos não só os jurígenas, mas todos os juridicamente relevantes – nesse sentido, Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, III-4 a 8).
Ora, os factos cujo aditamento é pretendido na conclusão I, são factos jurídicos irrelevantes para a decisão.
Mas cabe aqui falar em factos jurídicos complexos de formação sucessiva na medida em que interessa a seriação e diferenciação cronológica dos elementos elencados em I e, fundamentalmente, em II das conclusões pois, relativamente a tais “factos”, enquanto não se produzir o último elemento da série legalmente necessária dizem-se incompletos, imperfeitos ou em formação- mesmo Autor, pág. 22.
Além de que a factualidade discriminada em II não assume qualquer relevância pois não passará de meras conjecturas ou apreensões sobre o destino do Brexit e das suas consequências…não cabendo falar em factos notórios a tal respeito pois só estamos perante uma afirmação notória quanto o “quantum” da convicção do juiz acerca da mesma for suficiente para a decisão, o que vale por dizer que até lá não passam de factos impertinentes por não interessarem directamente para a solução do pleito segundo as várias soluções legalmente plausíveis, o que não ocorre no caso concreto como passamos a demonstrar.
Assim:
O processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias destina- se a obter, em curto prazo, uma decisão de mérito que imponha à Administração a adopção de uma conduta positiva ou negativa que “se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no art.º 131.º [do CPTA]”. – cfr. n.º 1 do art. 109.º do CPTA.
Este meio processual vem concretizar, no domínio do contencioso administrativo, a garantia consagrada no art. 20°, n.º 5, da CRP, “para a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos” e que pode assumir particular acuidade em situações em que seja urgente a obtenção de uma pronúncia definitiva sobre o mérito da causa. Será igualmente aplicável na protecção de direitos de natureza análoga (cfr. art.17.º da CRP).
Ou seja, o processo de intimação não é a via normal de reacção contra a lesão, ou a ameaça de lesão, dos direitos, liberdades e garantias e que o seu uso só é admissível nas situações cujo acautelamento não pode ser feito de outro modo e, por isso, que haja a necessidade da prolação de uma decisão de mérito que imponha à Administração uma conduta que evite, em tempo útil, a lesão ou inutilização do direito, liberdade ou garantia pois que, sem a urgência e sem a indispensabilidade desta decisão, o meio mais adequado para os referidos efeitos será a propositura de uma acção administrativa, comum ou especial, visto ela ser o meio normal de defesa contra os actos administrativos ilegais.
Existe, assim, uma relação genérica de subsidiariedade entre este processo e os processos não urgentes (acção administrativa comum e acção administrativa especial), bem como do regime de tutela cautelar, por se entender que o processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias só deve intervir quando os processos não urgentes não se mostrem capazes de assegurar uma protecção adequada, mesmo considerando a protecção cautelar a eles associada.
Face ao exposto, Doutrina e Jurisprudência têm extraído do n.º 1 do citado artigo 109.º, os seguintes pressupostos de admissibilidade deste meio processual:
(i) -Necessidade iminente de assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia através de uma decisão de mérito «célere emissão de uma decisão de mérito (…) se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia (…)- art. 109.º, n.º 1 do CPTA»;
(ii) -Impossibilidade ou insuficiência do decretamento (provisório) de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa comum ou especial («(…) por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar(…)- art. 109.º, n.º 1 do CPTA»).
Analisemos o caso em apreço.
Como bem denota a sentença recorrida, o requerente não concretiza, na sua alegação, qualquer situação da qual resulte a indispensabilidade de que a decisão de mérito seja proferida num processo urgente (e não numa acção administrativa), não dando, por conseguinte, satisfação ao ónus de alegação e de prova que lhe estava cometido, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, no sentido de demonstrar a imprescindibilidade do recurso ao presente meio processual e não ser possível em tempo útil o recurso a uma acção administrativa.
Com efeito, o requerente nada alegou - e, portanto, nada provou - no sentido de que, se a decisão de mérito não for proferida num processo urgente, haverá:
- uma perda irreversível de faculdades de exercício do direito em causa (direito à cidadania portuguesa);
- uma qualquer situação de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a imediata e directa sobrevivência pessoal de alguém.
Do exposto decorre que o requerente não alega um único facto concreto que permita concluir que o invocado direito à cidadania portuguesa e a residir (legalmente) em Portugal e a ser portador do respectivo título de residência não terá utilidade se for concedido através de decisão a proferir em acção administrativa, isto é, que esta acção não é suficiente para assegurar o exercício em tempo útil desse direito.
Dito por outras palavras, o requerente não invoca qualquer facto concreto do qual resulte que, pela circunstância da sua pretensão ser apreciada no âmbito da acção administrativa, ficará sem qualquer utilidade:
- o eventual reconhecimento que venha a ser efectuado nessa acção do alegado despacho de deferimento da sua pretensão;
- a eventual condenação que aí venha a ocorrer do recorrente a emitir o competente título de residência.
Como se assevera na sentença recorrida " (...) o Autor, não deu, portanto, satisfação ao ónus de prova que lhe estava cometido, no sentido de [demonstrar a imprescindibilidade da tutela judicial a que recorreu para garantir o seu direito, donde, não provou a indispensabilidade do recurso a este meio processual. Além disso, é necessário não perder de vista que a satisfação da pretensão do ora Autor não se apresenta, contrariamente ao que implicitamente vem alegado, como automática, inserindo-se num procedimento administrativo complexo. Se é verdade que terá direito a requerer o ingresso do seu assento de nascimento no registo civil português, é também certo que a Administração, com competência para a prática dos atos registrais e demais procedimentos previstos no artigo 1º do Decreto-Lei nº249/77, de 14 de junho, pode solicitar, suspendendo-se o procedimento em causa (como, in casu, sucedeu), oficiosamente ou através dos interessados, meios de prova complementares (…).”
Lapidar é a asserção da Entidade Recorrida de que «O Requerente dá a entender nas suas alegações que o único interesse, que tem em ser nacional português é o interesse de fixar residência no Reino Unido, querendo isto significar, que se o procedimento for decidido após a saída do Reino Unido da União Europeia, esse interesse desaparece, LOGO, a atribuição da nacionalidade portuguesa, que pretende, estaria sujeita a condição, sabendo-se que não existe norma jurídica, no contexto da nacionalidade, que permita "nacionalidade portuguesa sob condição", seja suspensiva ou resolutiva;» (cfr. art.º 14º das contra-alegações).
Conclui-se, assim, que a questão para a qual é solicitada tutela não pode ser resolvida através do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, visto que não é invocada qualquer situação concreta de urgência a exigir uma decisão de fundo no âmbito desse processo.
Mesmo que, assim, não se entenda, também não se verifica o pressuposto supra enunciado - impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa -, dado que é possível e é suficiente o decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa.
Com efeito, o requerente poderá intentar uma acção administrativa, sendo-lhe possível obter a tutela urgente dos direitos que invoca através de um processo cautelar.
Conclui-se, assim, que, face ao alegado na petição inicial e para tutela dos interesses aí invocados, sempre seria suficiente e adequado o meio processual "normal", ou seja, a acção administrativa [sem prejuízo de, logo que surja alguma situação urgente carecida de tutela, poder ser intentado, por apenso, um processo cautelar].
Em sede de despacho liminar o tribunal a quo não considerou a existência de "excepção dilatória inominada”, a qual consiste na falta de urgência e de subsidiariedade inerente a este meio processual, o que obstaria ao conhecimento do mérito da causa, com a rejeição liminar da intimação.
Como se disse já, os pressupostos estabelecidos têm de verificar-se cumulativamente, os direitos abrangidos são os incluídos no Título II da Parte I da Constituição da República Portuguesa, tratando-se de um meio processual principal urgente e não de um processo cautelar.
Assertivamente, a nosso ver, discorre-se na sentença recorrida que “…não vindo demonstrada a apontada imprescindibilidade, terá que concluir-se que não pode dar-se por verificado que a situação em presença reivindique uma urgência tal que seja merecedora de uma célere emissão de uma decisão e que o art.109º, nº1 do CPTA exige.
O processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, como vimos, não se basta com a circunstância de a tutela do direito fundamental exigir a prática de um acto administrativo ilegalmente recusado ou omitido, pois que terá que ser preenchido, para além de outros, o pressuposto da urgência de que depende a sua utilização.
A utilização da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias só é admissível quando a emissão urgente de uma decisão de fundo do processo seja indispensável para a protecção de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível em tempo útil o recurso a um outro meio processual - situação que os autos não permitem revelar.
Conclui-se, assim, que a questão para a qual é solicitada tutela não pode ser resolvida através do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, visto que não ficou demonstrada qualquer situação concreta de urgência a exigir uma decisão de fundo no âmbito desse processo.
Assim, considerando a falta de comprovação no que se refere ao pressuposto em questão após instrução da causa - o que é distinto da sua falta de alegação e que se prende com a excepção dilatória inominada de inadequação do meio processual – há que julgar improcedente a presente intimação.”
Vê-se, pois, que sobre o caso presente a sentença considerou que está em causa qualquer direito, liberdade ou garantia ou direito fundamental de natureza análoga e que falhava o requisito “urgência” depois de realizada a instrução, por isso não tendo o tribunal a quo julgado verificada “uma excepção inominada” que poderia identificar-se como a de impropriedade do meio processual utilizado.
Aliás, a decisão recorrida perfilhou o entendimento, que temos como correcto, mas com uma nuance que vem sendo adoptada na nossa jurisprudência e que consta dos Acórdãos deste TCA Sul proferidos nos processos n°s 1453/16.0BELSB e 2482/17.2BELSB em 15/12/2016 e 15-02-2018, respectivamente.
Naquele Acórdão, secundando Mário Aroso de Almeida (cfr. Manual de Processo Administrativo, 2.a ed., 2016, p. 142-143) perfilha-se, também, o entendimento segundo o qual na hipótese de se entender que não está preenchido o pressuposto de que depende a utilização desta intimação porque, nas circunstâncias do caso, se mostra suficiente a utilização de uma forma de processo não-urgente, acompanhada da adopção de uma providência cautelar, o tribunal a quo não deveria deixar de promover a convolação do processo de intimação num processo cautelar, convidando, para o efeito, o autor a substituir o requerimento da intimação que tinha apresentado pelo requerimento cautelar necessário para desencadear um processo cautelar.
Ora, no caso presente, deveria ter-se considerado, em nosso entender, aquele hipótese e, nessa perspectiva, considerando-se que o requerente utilizou indevidamente um meio processual, mas considerando-se que os direitos que invoca carecem e são merecedores de tutela, deveria o tribunal a quo por accionamento do princípio pro-actione ter determinado a notificação do requerente para, querendo, requerer, no prazo que lhe fosse concedido o processo cautelar adequado.
Adoptando de pleno esse entendimento, procede o recurso e impõe-se alterar o decidido no segmento em que não pondera a convolação dos autos para a forma de processo adequada, o que deve ser feito por via da procedência do recurso nos termos acabados de definir.
*

3. Decisão:
Termos em que se decide conceder provimento ao recurso revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se a baixa dos autos à 1ª Instância para que se aquilate da convolação do pedido de Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias, em requerimento de processo cautelar adequado à tutela dos direitos invocados.

Sem custas.

*

Lisboa, 04-07-2019
(José Gomes Correia)
(António Vasconcelos)
(Sofia David) – com voto de vencido.

________________
Voto vencida, por entender que, no caso, não será possível o recurso à tutela cautelar, pelo que manteria a decisão recorrida.
Na PI o Recorrente pede para que seja lavrado o assento de nascimento atributivo da nacionalidade portuguesa. Tal como se aduz na decisão recorrida e se confirma em recurso, no caso em apreço, não estão preenchidos os pressupostos para o uso da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, porque na PI o A. nada alegou em termos fácticos, que permita preencher o requisito da urgência que vem exigido no art.° 109.°, n.° 1, do CPTA. Apesar de estar em causa a defesa de um direito, liberdade e garantia, o direito à atribuição da nacionalidade portuguesa ao Recorrente, na PI não vêm alegados quaisquer factos que permitam concluir pela necessidade imediata da atribuição daquele direito ao A., que já detém a cidadania indiana e que vive legalmente no Reino Unido, enquanto cidadão indiano.
Sem embargo, consideramos que, no caso, o uso da tutela cautelar, designadamente antecipatória, também se mostra inviável, por desadequada, por não se preencherem os requisitos da instrumentalidade e da provisoriedade que se exigem em tal tutela. Ou seja, não nos parece possível atribuir provisória e cautelarmente a nacionalidade portuguesa ao Recorrente, pelo iter processual do processo principal sem que, em simultâneo, também se provoquem efeitos de facto e de Direito irreversíveis e se consumam os efeitos que a decisão a proferir no processo principal, caso seja de procedência, irá garantir. Na verdade, uma vez atribuída cautelarmente a nacionalidade portuguesa ao A. e Recorrente pelo tempo em que demore a acção principal - que tendo recurso para o STA ou para o TC, pode demorar mais de 6 anos - a atribuição de tal direito por esse mesmo tempo será um facto irreversível. Quanto aos actos jurídicos que o A. e Recorrente praticar durante tal período como cidadão português, terão também efeitos irreversíveis, de facto ou de Direito, dependendo dos concretos actos que se praticarem. Por último, a atribuição da nacionalidade ao A. e Recorrente durante o tempo da acção principal irá consumir o próprio pedido que é feito na acção principal, pelo menos durante o tempo em que esta perdure.
Em suma, manteria a decisão recorrida por entender que, no caso, não pode ocorrer a convolação para um processo cautelar por não estarem preenchidos os pressupostos da instrumentalidade e da provisoriedade que se exige a tal tutela.
Mais se indique, que consideramos que a omissão de tutela cautelar em situações deste tipo não põe em causa o direito à tutela jurisdicional efectiva porque o CPTA concede uma válvula de escape que deve ser utilizada nestas situações: o poder-dever do art.° 121.° do CPTA, que permite ao juiz antecipar o conhecimento da causa principal (cumprindo às partes, numa atitude avisada, procederem à interposição do processo principal em simultâneo com o pedido cautelar).