Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:841/22.8BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:07/20/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
Sumário:
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. Relatório

O Senhor Juiz do juízo administrativo social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto no artigos 125.º e s. do CPTA, 109.º e s. do CPC e 36.º, n.º 1, al. t) do ETAF, requerer oficiosamente junto deste Tribunal Central Administrativo Sul a resolução do conflito negativo de competência, em razão da matéria, suscitado entre si e a Senhora Juíza do juízo administrativo comum. Ambos os magistrados se atribuem, mutuamente, competência, negando a própria, para conhecer da acção administrativa que M …………………., intentou juízo comum do TAC de Lisboa contra o Instituto dos Registos e Notariado, o Ministério da Justiça, a E ………. Participações …………, S.A., E………….., Lda, a ………….,. Companhia de Seguros, s.a. e o Município de Lisboa.

Neste TCA Sul foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1, do CPC, nada tendo sido dito.

Os autos foram com vista ao Digno. Procurador-Geral Adjunto, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, o qual promoveu que fosse proferida decisão.



I. 1. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o juízo administrativo comum do TAC de Lisboa ou se o juízo administrativo social do mesmo Tribunal.

II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais (documentalmente comprovadas):

1. Em 7.4.2022, M ………………, intentou no juízo comum do TAC de Lisboa contra o Instituto dos Registos e Notariado, o Ministério da Justiça, a E ………….., S.A., …………, Lda, a …………….., a Companhia de Seguros, s.a. e o Município de Lisboa, uma acção administrativa de efectivação de responsabilidade civil extracontratual, na qual pede a condenação solidária dos RR no pagamento da quantia que computa, até 31.2.2022, em EUR 4.038,71, a título de danos patrimoniais, e em EUR 75.000,00, a título de danos não patrimoniais, sofridos em consequência do acidente em serviço, acrescida de juros de mora (cfr. p.i.).

2. Antes da citação dos RR., o Senhor Juiz do juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, em decisão datada de 23.04.2022, excepcionou a incompetência em razão da matéria daquele juízo e determinou a remessa dos autos ao juízo administrativo social do mesmo Tribunal, por entender ser esse o juízo competente para apreciar a presente acção (cfr. despacho no SITAF).

3. As partes foram notificadas da decisão referida em 2. e a Autora remeteu aos autos, em 22.06.2022, requerimento no qual declarou renunciar ao recurso da decisão, Notificado desse requerimento, o MP veio aos autos, em 27.06.2022, dizer que nada tinha a opor (cfr. SITAF).

4. Nessa sequência, os autos foram remetidos ao juízo administrativo social, o qual por decisão datada de 20.06.2022, declarou aquele juízo igualmente incompetente, em razão da matéria, cometendo a competência para apreciar a acção ao juízo administrativo comum. (idem).

5. Em 30.6.2022, o Senhor Juiz do juízo administrativo social do TAC de Lisboa, requereu a este Tribunal Superior a resolução do conflito negativo de competência aberto entre si e a Senhora Juíza do juízo do juízo administrativo comum (ibidem).

6. As decisões em conflito transitaram em julgado (cfr. consulta do SITAF).



II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições se encontram regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44.º-A, aditado pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional. De acordo com o citado artigo 44.º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual: caso as matérias em dissídio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum. A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

Na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo administrativo social, o conhecimento dos litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc.11/2006.

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13.º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Recorde-se que na presente acção administrativa a Autora veio pedir ao tribunal a condenação solidária dos RR., na quantia que computa, até 31.2.2022, em EUR 4.038,71, a título de danos patrimoniais e em EUR 75.000,00, a título de danos não patrimoniais, sofridos em consequência do acidente em serviço, acrescida de juros de mora, contados desde a data de propositura deste acção até integral e efectivo pagamento, bem como no pagamento das custas processuais “incluindo custas de parte”. (cfr. pi, e 47 documentos juntos).

A Autora demanda os RR., com os seguintes e sintéticos fundamentos: O IRN., I.P, por ser a entidade que ocupa/utiliza/possui o edifício em que se encontra instalado o elevador em causa e por ser o outorgante (através da Conservatória dos Registos Centrais) do contrato de manutenção do referido elevador com a S……….; o Ministério da Justiça, apenas por entender que não tendo o IRN autonomia financeira, cabe àquele a responsabilidade pelo pagamento da indemnização; a E……, S.A., por ser a proprietária do edifício onde se encontra instalado o elevador; a S …………, LDA. por ser a outra parte outorgante do contrato de manutenção do elevador e responsável por essa mesma manutenção, tendo actuado ilicitamente ao não proceder à devida e correcta manutenção do elevador, corrigindo as deficiências reportadas nem procedendo à imobilização do mesmo; a CML por violar os seus deveres enquanto entidade fiscalizadora das empresas de manutenção de ascensores, não tendo procedido à selagem do elevador e a A……… por ser a seguradora para a qual a S……….transferiu a responsabilidade civil decorrente da sua actuação enquanto empresa de manutenção de ascensores.

A causa de pedir – o acto ou o facto jurídico em que o autor se baseia para fundamentar o seu pedido - radica no facto de os RR. terem omitido os seus deveres de vigilância, fiscalização e manutenção do elevador n.º 1, instalado na Conservatória dos Registos Central, local de trabalho da autora, pois quando nele entrou para descer do quarto piso para o rés-do-chão e logo após ter premido no botão do piso“0” o elevador desceu em grande velocidade do 4º andar para de “ supetão”, dá “um salto para cima”, imobiliza-se e abre as portas entre os pisos 1 e 0 e, só com a ajuda de uma funcionária de vigilância, consegue descer ao piso de saída. Em consequência dessa descida abrupta de cerca 7,5 metros a Autora sofreu diversos danos que, apesar dos cuidados médicos a que se submeteu, ainda não se encontram consolidados, tais como: danos patrimoniais respeitantes a tratamentos, medicamentos, exames e consultas médicas, a que foi já submetida e às que de futuro será obrigada a submeter-se em decorrência do acidente, valor da pensão de reforma se for forçada a antecipá-la e danos não patrimoniais atinentes ao quantum doloris, angústia e estado depressivo.

Desde já se diga, sem qualquer dissonância com as decisões tomadas neste Tribunal Superior, que os factos invocados para sustentar o alegado direito indemnizatório não impõem uma interpretação e aplicação das normas respeitantes à relação do trabalho em funções públicas e do estatuto de aposentação.

Tem sido entendimento deste Tribunal que a norma vertida na alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A, do ETAF, segundo a qual ao juízo administrativo social compete dirimir, para além das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei, os processos relativos a litígios (i) emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação ou (ii) relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, deve ser interpretada no sentido mais restrito de atribuir competência para dirimir apenas os litígios relacionados apenas com formas públicas ou privadas de protecção social associada ao trabalho. Ou seja, o legislador não pretendeu que o juízo administrativo social fosse o juízo comum de todos os litígios relacionados com questões de protecção social que cabem no âmbito da jurisdição administrativa, mas apenas dos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas em que estejam em causa formas públicas ou privadas de protecção social/sistema previdencial.

Entendimento jurisprudencial este, reiterada e uniformemente seguido pelo TCA Sul e pelo TCA Norte, que os tribunais de 1.ª instância não poderão deixar de conhecer.

Em face do que fica dito, teremos que concluir, em face do teor da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF e tendo presente o objecto do litígio – o qual consiste em apreciar da eventual responsabilidade civil extracontratual dos RR., por violação dos deveres de vigilância, fiscalização e manutenção do elevador n.º 1 instalado na Conservatória dos Registos Centrais que originou danos patrimoniais e não patrimoniais na esfera jurídica da A. - que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito não cabe ao juízo administrativo social do TAC de Lisboa, mas sim ao juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, nºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 9.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e artigo 1.º alínea a) da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio.



III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao juízo administrativo comum do TAC de Lisboa.

Sem custas.
Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques