Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1663/16.0BELSB
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:02/16/2017
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores: INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
ARTIGO 109º, DO CPTA
TÍTULO DE RESIDÊNCIA
Sumário:I – Do art. 109º n.º 1, do CPTA, resulta que a utilização da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias depende dos seguintes pressupostos:
1) - a necessidade de emissão urgente de uma decisão de mérito seja indispensável para protecção de um direito, liberdade ou garantia;
2) - não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa normal,
os quais se reconduzem aos seguintes critérios práticos:
1) - o juiz do processo (não urgente) principal não chegaria a tempo de ditar a justiça para a situação, isto é, para protecção de um direito, liberdade ou garantia;
2) - o juiz da causa cautelar se ditasse a justiça para a situação teria antecipado ilegitimamente a decisão de mérito.

II – Invocando o recorrente que tem direito à emissão do título de residência, pois o pedido de autorização de residência já foi objecto de despacho de deferimento, a questão para a qual é solicitada tutela não pode ser resolvida através do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias por falta de invocação de qualquer situação concreta de urgência a exigir uma decisão de fundo no âmbito desse processo (pois nomeadamente nada é alegado no sentido de que, se a decisão de mérito não for proferida num processo urgente, haverá uma perda irreversível de faculdades de exercício do direito em causa ou uma qualquer situação de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a imediata e directa sobrevivência pessoal de alguém).

III – Mesmo que, assim, não se entenda, sempre seria inidóneo o meio processual usado (intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias), já que é possível e suficiente o decretamento de uma providência cautelar - no qual seja formulado pedido de intimação do recorrido a emitir, provisoriamente, o título de residência - no âmbito de uma acção administrativa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
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I – RELATÓRIO
Ala ……………… intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa a presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ao abrigo do art. 109º, do CPTA, contra o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, peticionando a condenação do réu a emitir-lhe o título de residência, bem como a aplicação da sanção pecuniária compulsória, prevista no art. 169º, do CPTA, por cada dia de incumprimento da sentença.

Por decisão de 18 de Novembro de 2016 do referido tribunal foi julgada improcedente a excepção inominada de inadequação do meio processual, suscitada pelo réu, e julgada procedente a presente acção e, em consequência, intimado o réu à prática da decisão de autorização de residência e consequente emissão do título de residência e envio do mesmo ao autor, no prazo de 15 dias, sob pena de aplicação de sanção pecuniária compulsória.

Inconformado, o réu interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul dessa sentença, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:
“ « Texto no original»”.

O recorrido, notificado, apresentou contra-alegação na qual pugnou pela manutenção da decisão recorrida, referindo ainda que o recorrente conformou-se com a sentença recorrida, pois emitiu o título de residência conforme nela determinado, carecendo o presente recurso de fundamento.

O Ministério Público junto deste TCA Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do presente recurso jurisdicional, posicionamento esse que, objecto de contraditório, não mereceu qualquer resposta.

II - FUNDAMENTAÇÃO
Na decisão recorrida foi dada como assente a seguinte factualidade:
«A) O requerente apresentou, junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, pedido de concessão de autorização de residência, cfr. p.a., apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
B) No dia 14/1/2016 o Instrutor do processo elaborou proposta de concessão de autorização de residência ao abrigo do regime excepcional previsto no n.º 2 do art.º 88.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, afirmando “estarem reunidas as condições para que V. Ex.ª utilize o poder discricionário previsto no n.º 2 do art.º 88.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na sua actual redacção, e determine que seja concedida autorização de residência para trabalho a favor do cidadão Ala ………….”, cfr. p.a., apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
C) No dia 14/1/2016, no posto de atendimento de Alverca do SEF, o requerente liquidou as taxas/emolumentos pela emissão e envio do título de residência, cfr. doc. 1, junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
D) No dia 30/6/2016, o requerente interpelou a requerida solicitando informação quanto ao estado do seu título de residência e solicitando a emissão e o envio do mesmo, cfr. doc. 2, junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
E) A entidade requerida não respondeu, nem emitiu até à data o título de residência, Acordo.
F) O requerente faz descontos para a Segurança Social e tem contrato de trabalho em Portugal, cfr. p.a., apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
G) O requerente sofre enorme pressão por parte da entidade patronal que quer provas que concluiu o seu processo de regularização em território nacional, sob pena de ser despedido, Acordo».
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Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a decisão recorrida incorreu em erro ao ter julgado improcedente a excepção de inidoneidade do meio processual usado e, em caso negativo, se enferma de erro ao ser julgado procedente o pedido de intimação (cfr. alegação de recurso e respectivas conclusões, supra transcritas).

Quanto à questão levantada pelo recorrido de que o recorrente se conformou com a sentença recorrida, pois emitiu o título de residência conforme nela determinado, motivo pelo qual entende que o presente recurso é destituído de fundamento, cumpre salientar que carece de razão de ser esta questão, pois a emissão do título de residência pelo recorrido decorre do efeito meramente devolutivo fixado ao recurso, nos termos do art. 143º n.º 2, al. a), do CPTA (cfr. art. 160º n.º 2, do CPTA).

Passando, então, à análise das questões suscitadas pelo recorrente.


Erro da sentença recorrida ao julgar improcedente a excepção de inidoneidade do meio processual usado

A decisão recorrida julgou improcedente a excepção de inidoneidade do meio processual suscitada pelo recorrente, o qual defende que a mesma enferma de erro, já que o recorrido não concretizou qualquer situação que permita sustentar uma situação de especial urgência na tomada de decisão, além de não ter demonstrado não ser possível em tempo útil o recurso a outro meio processual.

Passemos, então, à análise do acerto (ou não) da decisão judicial recorrida nesta parte.

Dispõe o art. 109° n.° 1, do CPTA, referindo-se aos pressupostos do pedido de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, o seguinte:
A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adopção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131.°”.

Desta disposição legal resulta que a utilização deste mecanismo processual depende dos seguintes pressupostos:
1) a necessidade de emissão urgente de uma decisão de mérito seja indispensável para protecção de um direito, liberdade ou garantia;
2) não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa normal.

Conforme explicam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, págs. 538, 539 e 541, em anotação a este normativo legal:
“Os requisitos do n.º 1 são, no entanto, os requisitos mínimos indispensáveis para que se possa lançar mão deste processo de intimação. E são formulados em termos que intencionalmente restringem aquele que, à partida, poderia ser o seu campo de intervenção.
Em primeiro lugar, é necessário que esteja em causa o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia e que a adopção da conduta pretendida seja apta a assegurar esse exercício. Mas não basta isto, pois também se exige que a célere emissão da intimação seja indispensável “por não ser possível, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131.°”.
A imposição deste segundo requisito é da maior importância e deve ser realçada, pois, através dela, o Código assume que, ao contrário do que, à partida, se poderia pensar, o processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não é a via normal de reacção a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias. A via normal de reacção é a da propositura de uma acção não urgente (acção administrativa comum ou acção administrativa especial), associada à dedução de um pedido de decretamento de providências cautelares, destinadas a assegurar a utilidade da sentença que, a seu tempo, vier a ser proferida no âmbito dessa acção. Só quando, no caso concreto, se verifique que a utilização da via normal não é possível ou suficiente para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito, liberdade ou garantia é que deve entrar em cena o processo de intimação.
O processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é, assim, instituído como um meio subsidiário de tutela, vocacionado para intervir como uma válvula de segurança do sistema de garantias contenciosas, nas situações – e apenas nessas – em que as outras formas de processo do contencioso administrativo não se revelem aptas a assegurar a protecção efectiva de direitos, liberdades e garantias.
A opção afigura-se compreensível, não parecendo, na verdade, que o âmbito de intervenção desta forma de processo esteja configurado em moldes excessivamente restritivos. Com efeito, cumpre ter presente que o normal e desejável é que os processos se desenrolem nos moldes considerados mais adequados ao cabal esclarecimento das questões, o que exige tempo, o tempo necessário à produção da prova e ao exercício do contraditório entre as partes. Não é, por isso, aconselhável abusar dos processos urgentes, em que a celeridade é necessariamente obtida através do sacrifício, em maior ou menor grau, de outros valores, que, quando ponderosas razões de urgência não o exijam, não devem ser postergados. Afigura-se, pois, justificado recorrer, por norma, aos processos não urgentes, devidamente complementados por um sistema eficaz de atribuição de providências cautelares, efectivamente apto a evitar a constituição de situações irreversíveis ou a emergência de danos de difícil reparação (sobre os processos cautelares, cfr. artigos 112º e segs.), e reservar os processos urgentes para situações de verdadeira urgência na obtenção de uma decisão sobre o mérito da causa, que são aquelas para as quais, na verdade, não é suficiente a utilização de um processo não urgente, ainda que complementado pelo decretamento – se as circunstâncias o justificarem, provisório (quanto a este ponto, cfr. artigo 131.º) – de providências cautelares.
(…) Cumpre, porém, notar que o sentido do preceito é o de afirmar a existência, (…) de uma relação genérica de subsidiariedade entre este processo e os processos não urgentes (acção administrativa comum e acção administrativa especial). A referência específica ao decretamento provisório de providências cautelares, previsto no artigo 131º, compreende-se, entretanto, porque a relação de subsidiariedade em relação aos processos não urgentes se estende, como não poderia deixar de ser, ao recurso à tutela cautelar – e, dentro desta, à mais incisiva das possibilidades que o regime da tutela cautelar oferece, a do decretamento provisório de providências cautelares, previsto no artigo 131º, quando as circunstâncias o justifiquem.
(…)
Pelo contrário, o processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias há-de ser chamado a intervir em situações que não possam ser acauteladas deste modo, porque é urgente a obtenção de uma pronúncia definitiva sobre o mérito da causa.
(…)
O que em situações deste tipo é necessário, é obter, em tempo útil e, por isso, com carácter de urgência, uma decisão definitiva sobre a questão de fundo: a questão tem de ser definitivamente decidida de imediato, não se compadecendo com uma definição cautelar. O processo principal urgente de intimação existe precisamente para suprir as insuficiências próprias da tutela cautelar, que resultam do facto de ela ser isso mesmo, cautelar.(sublinhados e sombreados nossos).

Nesta matéria não podemos também deixar de ter em atenção os ensinamentos colhidos da doutrina expendida por Isabel Celeste M. Fonseca, Dos Novos Processos Urgentes no Contencioso Administrativo (Função e Estrutura), 2004, quando sustenta:
- A págs. 76 e 77, que “Da interpretação e da valoração dos conceitos imprecisos previstos no art. 109.º parece que fica clara a natureza subsidiária da intimação. (…) Ora, a necessidade da intimação urgente, sob a forma de decisão de fundo, afere-se pela impossibilidade ou insuficiência da intimação urgentíssima provisória, sob a forma de decisão cautelar, para assegurar uma protecção eficaz destes direitos.
A indispensabilidade de uma decisão de mérito e a impossibilidade ou insuficiência da medida cautelar urgentíssima provisória constituem, por conseguinte, o centro do conjunto de pressupostos de admissibilidade do processo urgente que cumpre analisar de seguida.
(…)
Quando se pode lançar mão do processo urgente para defesa de direitos, liberdades e garantias?
Em primeiro lugar, como a resposta se pode encontrar por contraste e por oposição das qualidades das categorias de tutela urgente para tutelar direitos, liberdades e garantias, a intimação urgente definitiva tem preferência sobre outros processos comuns (…) e tem primazia na ordem de escolha sobre a intimação urgentíssima provisória, prevista no art. 131º, (…) quando, num caso concreto, em relação às primeiras vias, a intimação urgente definitiva possuir a qualidade do que é absolutamente necessário e, em relação à segunda (à intimação urgentíssima provisória), esta se revelar impossível ou insuficiente.
(…)
A intimação será absolutamente necessária quando não puder ser dispensada, ou seja quando, para proteger direitos fundamentais, a intensidade da necessidade de protecção imediata impeça, por não ser possível em tempo útil, o recurso a um outro meio processual (por exemplo a acção administrativa comum) que seria o meio adequado ou o meio próprio para resolver definitivamente a questão existente.” (sublinhados e sombreados nossos);
- A pág. 79, que “Em suma, parece-nos, pois que para solucionar a questão de quais são os pressupostos de admissibilidade do processo urgente a resposta se encontra não pela avaliação de urgências – basta verificar que o processo de intimação poderá estar sujeito a três tipos de tramitação, com três diferentes tipos de andamentos -, mas pelo contraste entre a indispensabilidade de uma decisão de mérito e a apreciação num caso concreto da impossibilidade ou insuficiência de uma qualquer medida cautelar provisória, seja ela a medida cautelar urgentíssima ou outra (normal) cautelar, para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia.
Sintetizando o já dito: de acordo com a letra da lei, subjacente à necessidade da intimação urgente definitiva existe uma situação de urgência, mas para a qual não servem as vias processuais comuns, porque são lentas demais, nem presta a medida cautelar urgentíssima. E esta não serve por uma razão: porque é uma medida cautelar e, por isso, porque é caracterizada pela provisoriedade. E, não satisfazendo no caso concreto o regulamento provisório, ela deve ser preterida perante o processo urgente que julgue definitivamente o mérito da causa.” (sublinhados e sombreado nossos);
- A pág. 82, que “O «dilema» da antecipação assenta, em suma, no factor tempo: o juiz da causa principal não chegaria a tempo de ditar a justiça para a situação e o juiz da causa cautelar se o fizesse teria antecipado ilegitimamente a decisão de mérito.” (sublinhados e sombreados nossos);
- A pág. 83, que “E poderíamos dar mais exemplos em que as situações de urgência não admitem espera alguma e, em função disso, se pede ao juiz cautelar que em cumprimento do princípio da tutela jurisdicional «efectiva» antecipe os efeitos do hipotético conteúdo da sentença de mérito. Contudo, nem todas as situações de urgência se satisfazem sem que as decisões antecipatórias ultrapassem os limites da técnica da antecipação. São estas que cumpre identificar caso a caso.
E é sempre no caso concreto, através dum juízo de prognose, que estas se identificam: i) são de natureza improrrogável, que reivindica uma composição jurisdicional inadiável; ii) têm uma natureza que não se compadece com a provisoriedade jurisdicional e que obriga o juiz a pronunciar-se de modo definitivo. Definitivo, no sentido de solução fatal, já que ela matará a utilidade posterior de qualquer sentença de mérito que vier a ser emitida no âmbito de um processo principal que conheça sobre essa situação, de modo mais profundo.”;
- A pág. 84, que “Enfim, há situações claras de urgência que são propícias a exigir decisões de fundo. De uma forma generalista, podemos dizer que a situação de urgência pode manifestar-se pela sua configuração em função do tempo: situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam respeito a direitos que devam ser exercitados num prazo ou em datas fixas – questões conexas com uma eleição, incluindo campanhas eleitorais, situações decorrentes de limitações ao exercício de direitos, num certo dia ou numa data próxima, actos ou comportamentos que devam ser realizados numa data fixa próxima ou num período de tempo determinado, como exames escolares ou uma frequência do ano lectivo. Podem configurar igualmente casos de urgência situações de carência pessoal ou familiar, em que esteja em causa a própria sobrevivência pessoal de alguém. Casos relativos à situação civil ou profissional de uma pessoa podem constituir igualmente uma situação de urgência.” (sublinhados e sombreados nossos);
- E a pág. 85, que “Pegando finalmente no fio à meada… tudo isto para dizer e explicar qual é a lógica subjacente ao conceito de subsidiariedade da intimação para tutela de direitos, liberdades e garantias. Este processo de intimação urgente definitiva permite ao juiz, no domínio de direitos, liberdades e garantias, decidir legitimamente a questão de fundo de modo definitivo, nos casos em que as situações concretas de urgência verdadeiramente o mereçam e o exijam (i).
Para compreender os pressupostos de admissibilidade da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, deve partir-se da consideração da absoluta necessidade de emissão de uma decisão de mérito pelo facto de uma medida cautelar se revelar, num certo sentido, como impossível ou insuficiente.(ii).
Já no caso oposto, quando se deva entender que a questão subjacente, ainda que seja relativa a direitos, liberdades e garantias, possa provisoriamente ser composta por via cautelar, esta deve ser a escolha preferida em detrimento da intimação definitiva, podendo actuar cumulativamente com um outro instrumento de tutela principal (iii).
E configurando-se a possibilidade de lesão iminente e irreversível de direitos, liberdades e garantias, a intimação urgentíssima provisória, prevista no art. 131º, constitui a forma especial que tem primazia sobre a utilização do processo cautelar comum. (iv).
Em suma, resultará da análise caso a caso saber quando é que as pronúncias de mérito são necessárias, por contraste com as insuficientes pronúncias cautelares, visto que estas são sempre, na sua globalidade, provisórias, quer sejam emitidas com especial urgência no início do processo cautelar ou não. É na solução deste dilema, nas circunstâncias de cada situação que reside a apreciação da admissibilidade da utilização do processo de intimação para tutela de direitos, liberdades e garantias (v). (…)”.

Do ora exposto decorre que os requisitos de que depende a utilização da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias – e acima enunciados – reconduzem-se aos seguintes critérios práticos:
1) o juiz do processo (não urgente) principal não chegaria a tempo de ditar a justiça para a situação, isto é, para protecção de um direito, liberdade ou garantia;
2) o juiz da causa cautelar se ditasse a justiça para a situação teria antecipado ilegitimamente a decisão de mérito.

Caracterizados os requisitos ou pressupostos importa frisar que não nos encontramos no domínio da tutela cautelar ou provisória visto que o pedido de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias proporciona uma tutela principal, visando a obtenção pelo autor, em tempo útil e por isso com carácter de urgência, duma pronúncia definitiva sobre a relação jurídico-administrativa em questão, formando-se sobre aquela pretensão/pedido caso julgado material.

Na sentença recorrida afirmou-se designadamente que se verifica no caso vertente o primeiro dos requisitos acima enunciados de que depende a utilização da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias - indispensabilidade de uma emissão urgente da decisão de mérito -, mas sem razão, como se passa a demonstrar.

O recorrido afirmou nos articulados apresentados em 1ª instância que o pedido de autorização de residência que formulou, nos termos do art. 88º n.º 2, da Lei 23/2007, de 4/7, foi objecto de acto expresso de deferimento, sublinhando que tem direito à emissão do título de residência, pois o pedido de autorização de residência já foi objecto de despacho de deferimento.

O recorrido não concretiza, no entanto, qualquer situação da qual resulte a indispensabilidade de que a decisão de mérito seja proferida num processo urgente (e não numa acção administrativa), não dando, por conseguinte, satisfação ao ónus de alegação e de prova que lhe estava cometido, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, no sentido de demonstrar a imprescindibilidade do recurso ao presente meio processual e não ser possível em tempo útil o recurso a uma acção administrativa comum.

Com efeito, o recorrido nada alegou – e, portanto, nada provou - no sentido de que, se a decisão de mérito não for proferida num processo urgente, haverá:
- uma perda irreversível de faculdades de exercício do direito em causa (direito a residir (legalmente) em Portugal e a ser portador do respectivo título de residência);
- uma qualquer situação de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a imediata e directa sobrevivência pessoal de alguém [cumpre salientar que o recorrente a este propósito limitou-se a afirmar designadamente que tem de pagar na integralidade as taxas para ter aceso ao sistema de saúde; além disso, do facto dado como provado em G), e tendo em conta que a actual entidade patronal do recorrido (e para a qual terá começado a trabalhar em 1.1.2016 – cfr. fls. 30 a 33, do processo administrativo -, pois anteriormente, e desde Abril de 2015, trabalhou para outra empresa – cfr. fls. 29, do processo administrativo) sabe que este se encontra ilegalmente em Portugal, apenas se pode retirar que tal entidade estará disposta a despedi-lo se o mesmo não diligenciar pela concessão da autorização de residência ou se tal pedido de concessão for indeferido].

Do exposto decorre que o recorrido não alega um único facto concreto que permita concluir que o invocado direito a residir (legalmente) em Portugal e a ser portador do respectivo título de residência não terá utilidade se for concedido através de decisão a proferir em acção administrativa, isto é, que esta acção não é suficiente para assegurar o exercício em tempo útil desse direito.

Dito por outras palavras, o recorrido não invoca qualquer facto concreto do qual resulte que, pela circunstância da sua pretensão ser apreciada no âmbito da acção administrativa, ficará sem qualquer utilidade:
- o eventual reconhecimento que venha a ser efectuado nessa acção do alegado despacho de deferimento do pedido de autorização de residência;
- a eventual condenação que aí venha a ocorrer do recorrente a emitir o competente título de residência.

Acresce que o direito ora em causa (direito a residir em Portugal e ao título de residência) não é relativo à situação civil e profissional do recorrido.

Conclui-se, assim, que a questão para a qual é solicitada tutela não pode ser resolvida através do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, visto que não é invocada qualquer situação concreta de urgência a exigir uma decisão de fundo no âmbito desse processo, ou seja, terá de ser revogada a sentença recorrida.

Mesmo que, assim, não se entenda, sempre seria de revogar a decisão recorrida, já que não se verifica o pressuposto supra enunciado sob o n.º 2) - impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa -, dado que é possível e é suficiente o decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa.

Com efeito, o recorrido poderá intentar uma acção administrativa, sendo-lhe possível obter a tutela urgente dos direitos que invoca através de um processo cautelar, no qual formule pedido de intimação do recorrente a emitir, provisoriamente, o título de residência – neste sentido, Carla Amado Gomes Pretexto, contexto e texto da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, Março de 2003, pág. 21, in www.icjp.pt/sites/default/files /media/291-135.pdf [“O julgador tem, por isso, que se convencer de que, em face das condições concretas de exercício do direito alegadamente ameaçado, a opção pela tutela sumária é inevitável. Ou seja, e de acordo com o princípio da interferência mínima, sempre que o exercício válido do direito não estiver sujeito a qualquer prazo - leia:se: quando o requerente puder voltar a exercer o direito cuja efectividade está comprometida com um resultado equivalente (descontado o natural decurso do tempo) num momento ulterior -, a tutela cautelar prefere à sumária (57 Por exemplo, e aproveitando parcialmente o exemplo de ISABEL FONSECA (O Código..., cit., loc. cit.), a um estrangeiro destinatário de uma ordem de expulsão que requer a concessão de uma autorização de residência, uma vez obtida a suspensão da eficácia da ordem de expulsão (medida de carácter conservatório), basta-lhe o decretamento provisório da obrigação da Administração na emissão da autorização. O juiz pode assegurar a tutela efectiva do direito sem exceder o limite traçado pelo princípio da interferência mínima.) (sublinhados nossos)”], e Acs. do TCA Sul de 10.11.2011, proc. n.º 8059/11 [em cujo sumário consta o seguinte: “I- A emissão do cartão de equiparado a jornalista, decretada por via do uso de tutela cautelar, não constitui um situação irreversível, podendo ser revogada pelo Tribunal (artigo 124º nº1 do CPTA). II- Assim, não deve ser liminarmente indeferido o pedido de emissão do cartão de equiparado a jornalista, com o argumento da manifesta falta de provisoriedade cautelar”; neste acórdão explicitou-se que a concessão a título provisório de cartão de equiparado a jornalista (o qual é concedido por dois anos, sujeito a renovação – cfr. art. 9º n.º 2, do DL 70/2008 (1)) não põe em causa a provisoriedade que caracteriza os processos cautelares, acrescentando-se ainda “não ser aplicável o artigo 109º e seguintes do CPTA (intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias), por constituir um meio que é uma última ratio, só aplicável quando não seja suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar.], e 6.2.2014, proc. n.º 10704/13 [no qual se escreveu designadamente o seguinte: “não se descortina aqui a situação de urgência final pressuposta no artigo 109º do CPTA: o A. sempre poderia (i) interpor uma acção administrativa a pedir a condenação na emissão do visto e (ii) pedir uma providência cautelar imediata (artigo 131º CPTA) ou não imediata (artigos 112º a 120º CPTA) de teor antecipatório”, pois “tal não retiraria a natureza provisória da providência cautelar cit.; esta natureza significa que a decisão cautelar não pode ter efeitos de direito irreversíveis. Ora, aqui o eventual visto provisório obtido em processo cautelar sempre poderá ser revogado, com as legais consequências.].

Conclui-se, assim, que, face ao alegado na petição inicial e para tutela dos interesses aí invocados, sempre seria suficiente e adequado o meio processual “normal”, ou seja, a acção administrativa [sem prejuízo de, logo que surja alguma situação urgente carecida de tutela, poder ser intentado, por apenso, um processo cautelar].

Do exposto resulta que a decisão recorrida violou o disposto no art. 109º n.º 1, do CPTA, ao julgar idóneo o presente meio processual, razão pela qual deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, absolvendo-se o réu, ora recorrente, da instância, por verificação de excepção dilatória inominada – cfr. arts. 278º n.º 1, al. e), 576º n.ºs 1 e 2, e 577º, corpo, todos do CPC de 2013 [neste sentido, Acs. do TCA Norte de 20.3.2015, proc. n.º 2062/13.1 BEPRT (“II) – Esta inidoneidade processual resulta em absolvição da instância, insuprível”), e 4.3.2016, proc. n.º 2931/15.4 BEPRT (“II – A falta de qualquer um dos referidos pressupostos de admissibilidade consubstancia excepção dilatória inominada de inidoneidade do meio processual” (sublinhado nosso))].

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Atento o disposto no art. 4º n.ºs 2, al. b), e 6, do Regulamento das Custas Processuais, o recorrido deverá ser condenado nos encargos do presente recurso jurisdicional.


III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:
I – Conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, julgando procedente a excepção de impropriedade do meio processual utilizado e, em consequência, revogar a sentença recorrida, absolvendo o réu, ora recorrente, da instância.
II – Condena-se o recorrido nos encargos do presente recurso jurisdicional.
III – Registe e notifique.
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Lisboa, 16 de Fevereiro de 2017



_________________________________________
(Catarina Jarmela - relatora)



_________________________________________
(Conceição Silvestre)



_________________________________________
(Carlos Araújo)

(1) De acordo com o estatuído no art. 75º n.º 1, do DL 23/2007, de 4/7, a autorização de residência temporária é válida pelo período de um ano contado a partir da data da emissão do respectivo título e é renovável por períodos sucessivos de dois anos.