Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:372/10.9BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:04/29/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IVA
ATOS PREPARATÓRIOS
ÓNUS DA PROVA
REEMBOLSO
Sumário:
I. O exercício do direito à dedução em sede de IVA abrange o imposto suportado relativo aos atos preparatórios de uma atividade económica.

II. Cabe ao sujeito passivo provar que as condições para beneficiar dessa dedução estão preenchidas.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 29.09.2014, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por –A....., S.A. (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto o indeferimento do pedido de reembolso de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) de 19.02.2010.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“1. A presente Impugnação refere-se ao indeferimento do pedido de reembolso do IVA.

2. A douta sentença julgou a Impugnação procedente, anulando o acto de indeferimento do pedido de reembolso do IVA relativo ao 2º trimestre de 2009, decisão com a qual a FP não se conforma, pelas seguintes razões:

3. O pedido de reembolso, solicitado na DP de 0906T, foi analisado em acção inspectiva de âmbito parcial relativa àquele trimestre e imposto.

4. Verificou-se, no entanto, que a Recorrida não havia efectuado qualquer operação activa, nem possuía estrutura capaz de as realizar, pelo que não tem direito à dedução do IVA no valor de € 44.070,93, tendo sido efectuadas as respectivas correcções de natureza meramente aritmética.

5. A Recorrida declarou o início de actividade em 01/01/2002, tendo-se registado pelo exercício da actividade de “Estabelecimentos Hoteleiros”, sendo o objecto social a exploração, administração e gestão de aparthotéis, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim.

6. No entanto, nunca chegou a realizar qualquer operação activa nem tão pouco qualquer acto preparatório em seu nome.

7. Situação que se manteve até à data da audiência de inquirição de testemunhas, a qual se realizou em 2012, mais de 10 anos decorridos desde a data de início formal de actividade.

8. O sujeito passivo informou que, desde 2002, aguardava o desenrolar do empreendimento denominado por “A.....”, cuja promoção está a cargo da empresa A....., Ld.ª.

9. E ainda, que o IVA deduzido diz respeito a custos associados com a aquisição de serviços de âmbito de engenharia, arquitectura e consultoria jurídica e tributária, por forma a implementar as insfraestruturas necessárias ao desenvolvimento da actividade societária.

10.Invocou a existência de um acordo não reduzido a escrito, segundo o qual cabia à sociedade-mãe A....., Ld.ª promover os licenciamentos necessários à instalação do empreendimento e ao desenvolvimento da actividade das sociedades participadas.

11.Da prova testemunhal não foi possível compreender a forma como os custos associados seriam repartidos. Não ficou provado o critério da sua repartição, nem a sua necessidade.

12.A sociedade dominante suportou os custos dos licenciamentos necessários à construção e exploração do empreendimento, mas imputou os mesmos, através da emissão de facturas suas, das quais consta IVA liquidado, às sociedades-filhas, como bem entendeu, imputação esta que originou pedidos de reembolso em todas as sociedades do grupo.

13.Os terrenos, licenças e alvarás encontram-se em nome da sociedade dominante e nunca em nome da ora Recorrida.

14.Também não ficou provado por que motivo a actividade nunca chegou a ser exercida, se foi ou não por facto a si imputável.

15.Não demonstrou, igualmente, a eventual intenção de vir a exercer a actividade.

16.Nos termos do disposto no art. 20º n.º 1 do CIVA, só confere direito à dedução o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos ou utilizados pelo sujeito passivo para a transmissão de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas.

17.O que implica a necessidade de uma relação directa e imediata com as operações sujeitas a imposto a jusante, principio subjacente ao funcionamento do IVA.

18.Salienta-se em suma que: a Recorrida não exerceu a actividade para a qual foi criada; não praticou actos preparatórios da mesma; não possuía estrutura que o possibilitasse; o reembolso resulta de facturas emitidas directamente pela sociedade dominante; desconhece-se os termos do acordo entre as sociedades do grupo; desconhece-se o critério e a necessidade de repartição destas despesas pelas participadas; desconhece-se a razão pela qual a actividade nunca chegou a ser exercida, decorridos mais de 10 anos, nem, tão pouco, se a mesma foi imputável à Recorrida; não ficou demonstrada a intenção de a vir a exercer.

19.As circunstâncias concretas e os factos supra descritos não foram devidamente valorados pela douta sentença recorrida, tendo incorrido em erro de julgamento e violado o já referido art. 20º n.º 1 do CIVA.

Face ao exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente revogada a sentença recorrida, que deverá ser substituída por acórdão que mantenha o indeferimento do pedido de reembolso de IVA, de acordo com o alegado só assim se fazendo JUSTIÇA”.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:
a) Verifica-se erro de julgamento, porquanto, da factualidade provada, não resulta que o IVA em questão seja dedutível?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

A) A Impugnante iniciou a atividade em 01.01.2002, encontrando-se coletada pela atividade de “Estabelecimentos hoteleiros” – CAE 055100 – com o objeto social a administração e gestão de aparthotéis, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim – por acordo.

B) A Impugnante é uma sociedade participada pela sociedade “A....., Lda.” – por acordo e prova testemunhal.

C) Entre a Impugnante e sociedade “A....., Lda.” existia um acordo, nos termos do qual, uma vez reunidas todas as condições que permitam a efetiva exploração do empreendimento turístico na parte respeitante ao aparthotel, designadamente no que respeita aos licenciamentos necessários à construção e desenvolvimento da atividade, esta procederá à transmissão do mesmo para a Impugnante – prova testemunhal.

D) O acordo que antecede não se encontra reduzido a escrito – por confissão.

E) A Impugnante tem aproveitado os meios técnicos, os recursos humanos e serviços contratados pela sociedade “A....., Lda.” para promover os atos preparatórios da sua atividade, assumindo os encargos inerentes na parte que proporcionalmente lhe cabe, em relação à parte do empreendimento que virá a explorar, o aparthotel – prova testemunhal.

F) Para além das faturas emitidas pela “A....., Lda.”, referentes à utilização pela Impugnante dos meios técnicos, humanos e serviços daquela, existiam faturas de outros prestadores de serviços emitidas diretamente à Impugnante, designadamente os respeitantes aos serviços do ROC e contabilidade – prova testemunhal.

G) Na declaração de IVA do segundo trimestre de 2009, a Impugnante apurou reembolso de imposto no valor de € 44.070,93 – por acordo e cfr. doc. 1 junto com a petição inicial.

H) Na sequência do requerimento que antecede a Impugnante foi objeto de uma ação inspetiva externa por parte dos Serviços de Inspeção da Direção de Finanças de Faro, a coberto da ordem de serviço n.º ....., de 19.10.2009 – cfr. doc. 3 junto com a petição inicial.

I) Em 27.11.2009 e 03.12.2009 a Impugnante prestou esclarecimentos aos Serviços e Inspeção nos termos constates dos documentos n.ºs 4 e 5 juntos com a petição inicial – cfr. os referidos docs. n.ºs 4 e 5 juntos com a petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

J) Por ofício n.º ....., de 28.12.2009, a Impugnante foi notificada do “Projeto de Correções do Relatório de Inspeção” para, querendo, exercer o direito de audição prévia, encontrando-se as correções propostas fundamentadas no seguintes termos:

«(...) o S.P. (...) não exerce, nunca exerceu nem comprovou com qualquer documento oficial que indicie a intenção de exercer uma actividade prevista no artigo 1.º do CIVA, pois, todas as licenças camarárias, custos efectuados com estudos de engenharia, topografia, jurídico-tributários, etc. encontram-se em nome da sociedade A....., Lda. e não existe qualquer acordo contratual ou qualquer justificação legal para esta debitar os custos ao sujeito passivo em análise, sendo que ainda não foi adquirido sequer o terreno onde o aparthotel vai ser construído, nem existe acordo a curto/médio perspectivas para tal. Concluindo, a dedução do imposto suportado nas operações a montante é uma das componentes essenciais do apuramento do IVA, contudo, pressupõe sempre operações a jusante (…). Acresce ainda, que o princípio do direito à dedução do IVA assenta no destino que será dado às aquisições, estas terão de ser projectadas (sem dúvidas) à realização de operações sujeitas a imposto e delas não isentas (…)» – cfr. doc. 6 junto com a petição inicial.

K) Em 07.01.2010 a Impugnante exerceu o direito de audição prévia – cfr. doc. 7 junto com a petição inicial.

L) Por ofício n.º ....., de 24.02.2010, a Impugnante foi notificada do Relatório Final, sancionado superiormente por despacho de 19.02.2010, que conclui do seguinte modo:

«(…) embora o S.P. A....., S.A. esteja registado em IVA desde 2002 com a actividade Estabelecimentos Hoteleiros, não exerce, nunca exerceu nem comprovou com qualquer documento oficial que indicie a intenção de exercer uma atividade prevista no artigo 1.º do CIVA, todas as licenças camarárias, custos efectuados com estudos de engenharia, topografia, jurídico-tributários, etc. encontram-se em nome da sociedade A....., Lda. e não existe qualquer acordo contratual ou qualquer justificação legal para esta debitar os custos ao sujeito passivo em análise, sendo que ainda não foi adquirido sequer o terreno onde o aparthotel vai ser construído, nem existem a curto/médio perspectivas para tal.

Concluindo, a dedução do imposto suportado nas operações a montante é uma das componentes essenciais do apuramento do IVA, contudo, pressupõe sempre operações sujeitas a jusante. Assim, só conferem o direito à dedução os bens e serviços adquiridos: Para utilização efectiva na atividade tributável do Sujeito Passivo; Para exportar;

Ou, no âmbito das operações assimiladas a exportações e dos transportes internacionais, previstas no artigo 14.0 do CIVA.

Acresce ainda, que o princípio do direito à dedução do IVA assenta no destino que será dado às aquisições, estas terão que ser projectadas (sem dúvidas) à realização de operações sujeitas a imposto e delas não isentas, ou seja transmissões de bens e prestações de serviços previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do CIVA.

Pelo exposto, verifica-se que não assiste legitimidade da situação de crédito versus reembolso, (…)» – cfr. doc.8 junto com a petição inicial.

M) Até 31.05.2010 a Impugnante, só teve operações passivas – por acordo.

N) A presente impugnação judicial foi apresentada em 31.05.2010 – cf. fls. 3 dos autos”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão do mérito da causa e que importe dar como provados ou não provados”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“O julgamento de facto assentou nos documentos referidos em cada uma das alíneas, que não foram impugnados pelas partes, bem como na posição assumida pelas partes nos seus articulados no que respeita aos factos provados por acordo.

No que tange aos factos provados com base na prova testemunhal, foi determinante na formação da convicção do Tribunal o depoimento de H....., Revisor Oficial de Contas (ROC) da Impugnante e das demais sociedades anónimas do grupo, que afirmou perentoriamente não ter qualquer dúvida sobre a existência do acordo existente entre a Impugnante e a sua participante “A....., Lda.”, acerca da transmissão do aparthotel desta para a Impugnante, após obtenção de todos os licenciamentos necessários à construção e exploração do mesmo, acrescentando que se trata de uma opção empresarial que não é isolada, que existe noutras situações. Mais explicitou, de modo absolutamente convicto e objetivo, que foi a “A....., Lda.”, enquanto sociedade dominante do grupo (empresa mãe), quem assumiu a promoção do empreendimento nas suas diversas valências, atenta a existência de infraestruturas comuns, procurando obviar à complexidade que resultaria de numerosos intervenientes nos diversos processos de licenciamento com as entidades públicas competentes para o efeito, debitando, a posteriori, a cada uma das cinco empresas do grupo, os custos inerentes à atividade de promoção na parte proporcional aos interesses de cada uma, atenta a valência que viriam a explorar no futuro. Esclareceu ainda que a Impugnante ainda não está a exercer a sua atividade porque o licenciamento final ainda não está concluído, mas tem já a sua estrutura própria, com os órgãos sociais constituídos, apesar de não lhes conhecer funcionários próprios.

O depoimento da testemunha C....., relevou, no essencial, para dar como provado o facto identificado em F)”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que não resulta demonstrado que o IVA em questão seja dedutível.

Vejamos então.

O IVA é um imposto plurifásico, que assenta numa estrutura de entrega e respetiva dedução, pelos vários intervenientes na cadeia, até ao consumidor final, que o suporta, sem o poder deduzir.

O direito à dedução do IVA é um direito que assiste aos sujeitos passivos deste imposto, desde que os bens e os serviços, a que respeita tal imposto a deduzir, sejam utilizados para os fins das próprias operações tributáveis[1].

O IVA funciona, pois, pelo método indireto subtrativo, de acordo com o qual o sujeito passivo deduz, ao imposto liquidado nos seus outputs, o imposto liquidado nos respetivos inputs.

Trata-se de um reflexo do princípio da neutralidade, subjacente a este imposto, que, no que toca ao direito à dedução em específico, se reflete na necessidade de o IVA não condicionar os produtores a alterar o seu processo produtivo.

Assim, o exercício do direito à dedução, em sede de IVA, revela-se de importância fundamental na mecânica do imposto, sendo o mesmo que permite assegurar o respeito pelo princípio da neutralidade[2].

O Código do IVA (CIVA), a este respeito, prevê as regras inerentes à dedução de IVA, que passam pela definição das suas linhas gerais nos art.ºs 19.º e 20.º e pela consagração expressa de situações de exclusão do direito à dedução (art.º 21.º).

Assim, chamando à colação o art.º 19.º do CIVA, especificamente o n.º 1, al. a), do mesmo, decorre que os sujeitos passivos de IVA podem deduzir, ao imposto incidente sobre as suas operações tributáveis, o imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos de IVA.

Por seu turno, previa o então art.º 20.º do CIVA:

“1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:

a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;

b) Transmissões de bens e prestações de serviços que consistam em:

I) Exportações e operações isentas nos termos do artigo 14.º;

II) Operações efetuadas no estrangeiro que seriam tributáveis se fossem efetuadas no território nacional;

III) Prestações de serviços cujo valor esteja incluído na base tributável de bens importados, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 17.º;

IV) Transmissões de bens e prestações de serviços abrangidas pelas alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 e pelos n.ºs 8 e 10 do artigo 15.º;

V) Operações isentas nos termos dos n.ºs 27) e 28) do artigo 9.º, quando o destinatário esteja estabelecido ou domiciliado fora da Comunidade Europeia ou que estejam diretamente ligadas a bens, que se destinam a ser exportados para países não pertencentes à mesma Comunidade;

VI) Operações isentas nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de dezembro.

2 - Não confere, porém, direito à dedução o imposto respeitante a operações que deem lugar aos pagamentos referidos na alínea c) do n.º 6 do artigo 16.º”.

Refira-se que, para efeitos de IVA, o exercício de uma atividade económica é interpretado em sentido amplo, sendo que a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a esse respeito, tem incluído em tal conceito os chamados atos preparatórios de uma atividade económica[3].

Assim, no seu Acórdão de 14.02.1985, Rompelman/Minister van Financiën, C-268/83, EU:C:1985:74, o TJUE considerou ser dedutível o IVA suportado em atos preparatórios do exercício de uma atividade, mesmo que ela ainda não se tivesse iniciado.

Também no Acórdão de 11.07.1991, Lennartz/Finanzamt München III, C-97/90, EU:C:1991:315, n.ºs 13 a 15, o TJUE afirma:

“… [D]eve recordar-se que, de acordo com o acórdão do Tribunal de Justiça de 14 de Fevereiro de 1985, Rompelman, n.° 22 (268/83, Recueil, p. 655), as actividades económicas referidas no artigo 4.°, n.° 1, da Sexta Directiva podem consistir numa sucessão de vários actos, como sugere a própria letra do n.° 2 nesta mesma disposição. Entre esses factos, as actividades preparatórias, como a aquisição de meios de exploração, devem ser consideradas actividades económicas na acepção desse artigo.

(…) Resulta deste acórdão que um particular que adquire bens para os fins de uma actividade económica, na acepção do artigo 4.°, actua na qualidade de sujeito passivo, mesmo que os bens não sejam imediatamente utilizados para essas actividades económicas.

(…) Em consequência, é a aquisição de bens por um sujeito passivo agindo nessa qualidade que determina a aplicação do regime do IVA e, portanto, do mecanismo da dedução. A utilização que é dada às mercadorias, ou a que lhes é destinada, apenas determina o montante da dedução inicial a que o sujeito passivo tem direito, nos termos do artigo 17.°, e o âmbito dos eventuais ajustamentos durante os períodos seguintes”.

No Acórdão de 19.02.1996, Inzo/Belgische Staat, C-110/94, EU:C:1996:67, n.ºs 15 a 18, o TJUE seguiu a mesma jurisprudência, considerando dedutível o IVA de atos preparatórios, mesmo que os mesmos visem aferir do interesse em efetivar a atividade. Ali se refere:

“No n.° 22 do acórdão Rompelman (…) o Tribunal de Justiça considerou que as actividades económicas referidas pelo artigo 4.°, n.° 1, podem consistir em vários actos consecutivos e que as actividades preparatórias (…) devem já ser imputadas às actividades económicas.

(…) [O] princípio da neutralidade do IVA quanto à carga fiscal suportada pela empresa impõe que as primeiras despesas de investimento efectuadas tendo em vista a formação de uma empresa sejam consideradas actividades económicas, e seria contrário a esse princípio que as referidas actividades só tivessem início no momento em que um bem imóvel é efectivamente explorado, quer dizer, no momento em que surge o rendimento tributável. Qualquer outra interpretação do artigo 4.° da directiva oneraria o operador económico com a despesa do IVA no âmbito da sua actividade económica sem lhe dar a possibilidade de o deduzir, nos termos do artigo 17.°, e faria uma distinção arbitrária entre despesas de investimento efectuadas antes e durante a exploração efectiva de um bem imóvel.

(…) [M]esmo as primeiras despesas de investimento efectuadas para a formação de uma empresa podem ser consideradas actividades económicas na acepção do artigo 4.° da directiva e que, nesse contexto, a administração fiscal deve ter em consideração a intenção declarada da empresa.

(…) No caso de a administração fiscal ter admitido a qualidade de sujeito passivo do IVA de uma sociedade que declarou a sua intenção de iniciar uma actividade económica que daria origem a operações tributáveis, a realização de um estudo sobre os aspectos técnicos e económicos da actividade projectada pode, assim, ser considerada uma actividade económica na acepção do artigo 4.° da directiva, mesmo que esse estudo tenha por objectivo analisar em que medida a actividade projectada é rentável”.

Como se refere no Acórdão do TJUE de 21.03.2000, Gabalfrisa e o., C-110/98 a C-147/98, EU:C:2000:145, n.ºs 45 a 47:

“45. Como o Tribunal de Justiça já afirmou nos acórdãos Rompelmann (…) (n.° 23), e de 29 de Fevereiro de 1996, INZO (C-110/94, Colect., p. I-857, n.° 16), o princípio da neutralidade do IVA quanto à carga fiscal suportada pela empresa impõe que as primeiras despesas de investimento efectuadas tendo em vista a formação de uma empresa sejam consideradas actividades económicas, e seria contrário a esse princípio que as referidas actividades só tivessem início no momento em que a empresa é efectivamente explorada, quer dizer, no momento em que surge o rendimento tributável. Qualquer outra interpretação do artigo 4.° da Sexta Directiva oneraria o operador económico com a despesa do IVA no âmbito da sua actividade económica sem lhe dar a possibilidade de o deduzir, nos termos do artigo 17.°, e faria uma distinção arbitrária entre as despesas de investimento efectuadas antes da exploração efectiva de uma empresa e as efectuadas no decurso da referida exploração.

46. O artigo 4.° da Sexta Directiva não se opõe, no entanto, a que a administração fiscal exija que a intenção declarada de iniciar as actividades económicas que dão origem a operações tributáveis seja confirmada por elementos objectivos. Neste contexto, há que sublinhar que a qualidade de sujeito passivo só é definitivamente adquirida se a declaração de intenção de iniciar as actividades económicas projectadas foi feita de boa fé pelo interessado. Em situações fraudulentas ou abusivas, em que, por exemplo, o interessado simulou desenvolver uma actividade económica especial mas procurou, na realidade, fazer entrar no seu património privado bens que podem ser objecto de dedução, a administração fiscal pode pedir, com efeitos retroactivos, a restituição das quantias deduzidas, uma vez que essas deduções foram concedidas com base em falsas declarações (acórdãos, já referidos, Rompelmann, n.° 24, e INZO, n.ºs 23 e 24).

47. Daqui resulta que quem tem a intenção, confirmada por elementos objectivos, de iniciar de modo independente uma actividade económica na acepção do artigo 4.° da Sexta Directiva e para esse fim efectua as primeiras despesas de investimento deve ser considerado um sujeito passivo. Actuando como tal, essa pessoa tem portanto, de acordo com os artigos 17.º e segs. da Sexta Directiva, o direito de deduzir imediatamente o IVA devido ou pago sobre as despesas de investimento efectuadas para os fins das operações projectadas que concedem o direito à dedução, sem ter de esperar o início da exploração efectiva da sua empresa”.

Mais recentemente, veja-se o Acórdão de 12.11.2020, ITH Comercial Timişoara, C-734/19, EU:C:2020:919, onde se diz:

“29      Com a sua primeira questão, alíneas a) a i), o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 167.º, 168.º, 184.º e 185.º da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que o direito a dedução do IVA pago a montante sobre bens, no caso em apreço bens imóveis, e serviços adquiridos com vista a efetuar operações tributáveis se mantém quando os projetos de investimento inicialmente previstos são abandonados ou se, nesse caso, é necessário proceder a uma regularização desse IVA.

(…) 34      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que o direito a dedução se mantém, em princípio, adquirido, nomeadamente, mesmo que, posteriormente, em razão de circunstâncias alheias à sua vontade, o sujeito passivo não faça uso dos referidos bens e serviços que deram lugar a dedução no âmbito de operações tributadas (Acórdão de 28 de fevereiro de 2018, Imofloresmira — Investimentos Imobiliários, C‑672/16, EU:C:2018:134, n.º 40 e jurisprudência aí referida).

35      Quanto às circunstâncias alheias à vontade do sujeito passivo, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que não cabe à Administração Fiscal apreciar o mérito dos motivos que levaram um sujeito passivo a renunciar à atividade económica inicialmente prevista, uma vez que o sistema comum do IVA garante a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados destas, desde que as referidas atividades estejam, em princípio, elas próprias sujeitas ao IVA (v., nomeadamente, Acórdãos de 14 de fevereiro de 1985, Rompelman, 268/83, EU:C:1985:74, n.º 19, e de 17 de outubro de 2018, Ryanair, C‑249/17, EU:C:2018:834, n.º 23).

(…) 37      Assim, é suficiente que o sujeito passivo tenha efetivamente tido a intenção de utilizar os bens e/ou os serviços em questão para realizar as atividades económicas a título das quais exerceu o seu direito de dedução (v., nomeadamente, Acórdãos de 14 de fevereiro de 1985, Rompelman, 268/83, EU:C:1985:74, n.º 24; de 29 de fevereiro de 1996, INZO, C‑110/94, EU:C:1996:67, n.º 17; de 8 de junho de 2000, Breitsohl, C‑400/98, EU:C:2000:304, n.º 39; e de 17 de outubro de 2018, Ryanair, C‑249/17, EU:C:2018:834, n.º 18).

38      É certo que a Administração Fiscal pode pedir ao sujeito passivo que prove que a sua intenção é confirmada por elementos objetivos e pode, em situações fraudulentas ou abusivas em que o sujeito passivo simulou querer desenvolver uma atividade económica concreta, mas procurou, na realidade, fazer entrar no seu património bens que podem ser objeto de dedução, exigir, com efeitos retroativos, a restituição dos montantes deduzidos, pois tais deduções foram obtidas mediante falsas declarações (v., nomeadamente, Acórdãos de 14 de fevereiro de 1985, Rompelman, 268/83, EU:C:1985:74, n.º 24; de 29 de fevereiro de 1996, INZO, C‑110/94, EU:C:1996:67, n.ºs 23 e 24; e de 8 de junho de 2000, Breitsohl, C‑400/98, EU:C:2000:304, n.º 39 e jurisprudência aí referida)”.

Em termos de prova, como se refere no já citado Acórdão do TJUE de 19.02.1996, Inzo/Belgische Staat, C-110/94, EU:C:1996:67, n.º 23: “… compete a quem solicite a dedução do IVA provar que as condições para beneficiar dessa dedução estão preenchidas e que o artigo 4.º não se opõe a que a administração fiscal exija que a intenção declarada de começar actividades económicas que dão origem a operações tributáveis seja confirmada por elementos objectivos”.

Portanto, resulta deste contexto que um sujeito passivo de IVA pode deduzir imposto relativo aos chamados atos preparatórios do exercício da sua atividade, sendo certo que terá de ficar demonstrada, justamente, a efetividade de tal intenção de exercer a atividade em causa.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

In casu, resulta da matéria de facto assente, não impugnada, que a Recorrida deu início formal à sua atividade a 01.01.2002 [cfr. facto A)] e que é participada pela sociedade “A....., Lda.” [cfr. facto N)].

Ficou igualmente provado que ambas as sociedades, por acordo não reduzido a escrito, assentaram que a sociedade A....., Lda., reunidas que estivessem as condições para a efetiva exploração do empreendimento turístico na parte respeitante ao aparthotel, o transmitiria à Recorrida [cfr. factos C) e D)].

Ficou ainda provado (ainda que de forma conclusiva) que a Recorrida tem aproveitado meios técnicos, humanos e serviços contratados pela sociedade A....., Lda para “promover os atos preparatórios da sua atividade, assumindo os encargos inerentes na parte que proporcionalmente lhe cabe, em relação à parte do empreendimento que virá a explorar, o aparthotel”, além de ter suportado custos com os serviços de ROC e contabilidade.

Refira-se que o que se aferiu, em sede de relatório de inspeção tributária (RIT), foi que todos os documentos (licenças camarárias, custos efetuados com estudos de engenharia, topografia, jurídico-tributários, etc.) se encontram em nome da sociedade A....., Lda, e que não existe qualquer acordo contratual ou qualquer justificação legal para esta debitar os custos ao sujeito passivo em análise, sendo que ainda não foi adquirido sequer o terreno onde o aparthotel vai ser construído, nem existem a curto/médio perspetivas para tal.

Face a este quadro factual, consideramos que assiste razão à Recorrente.

Com efeito, sendo certo, como referido, que nada impede que seja deduzido o IVA relativo a atos preparatórios (mesmo que essa atividade não venha a ser desenvolvida, nos termos referidos pelo TJUE), da factualidade provada (e mesmo da alegada) não se consegue, com a segurança que seria exigível em situações como a dos autos, concluir que a faturação emitida pela A....., Lda., referente à utilização pela Impugnante dos meios técnicos, humanos e serviços daquela, e, bem assim, a demais faturação emitida tivessem efetiva relação com atos preparatórios da atividade.

Veja-se que, desde logo, estamos perante uma sociedade cuja atividade formal se iniciou em 2002, mas que até, pelo menos, 2010 nunca teve quaisquer operações ativas em sede de IVA.

Por outro lado, não foram minimamente alegados nem provados de forma densificada, como seria exigível, que atos preparatórios foram esses e em que medida os mesmos se relacionavam com a atividade a exercer. A factualidade assente é, nessa medida, genérica e até conclusiva, sendo certo que o alegado pela Recorrida na sua petição inicial também não contém o nível de densificação exigível.

O próprio acordo existente com a sociedade A....., Lda, não permite concluir no sentido propugnado pelo Tribunal a quo, na medida em que do mesmo só resulta que aquela sociedade iria transmitir à Recorrida parte do empreendimento, “uma vez reunidas todas as condições que permitam a efetiva exploração do empreendimento turístico na parte respeitante ao aparthotel”, nada decorrendo do mesmo que quaisquer despesas atinentes a essa reunião de condições fossem suportadas pela Recorrida.

Não foi, por outro lado, nem alegada nem, consequentemente, provada a efetividade do exercício futuro da atividade ou o seu eventual não exercício ou sequer qualquer factualidade que permitisse perceber o deferimento no tempo do início do exercício efetivo da atividade. Assim, a própria intenção de exercer a atividade, demonstrada através de factos objetivos, não foi alegada nem demonstrada.

Sobre situação com grandes semelhanças com a ora em apreciação já se pronunciou este TCAS, em acórdão de 08.01.2015 (Processo: 08165/14), onde se refere:

“[S]empre se deverá vincar a falta de prova da relação directa e imediata, pelo menos, com o conjunto da actividade económica por si desenvolvida, visto que não era nenhuma até 21/01/2010 (cfr.nº.15 do probatório). Por outro lado, também não pode concluir-se, no caso concreto, pela existência de elementos objectivos que determinem a intenção de exercício da actividade económica identificada no nº.1 do probatório, por parte da mesma sociedade”.

Como tal, não tendo a Recorrida cabalmente demonstrado que o IVA em causa se referia a atos preparatórios com vista ao desenvolvimento da sua atividade, assiste razão à Recorrente.

Vencida a Recorrida é a mesma responsável pelas custas em ambas as instâncias (art.º 527.º do CPC), sem prejuízo de não haver lugar ao pagamento de taxa de justiça na presente instância, por não ter contra-alegado (art.º 7.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais).

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, em consequência, julgar improcedente a impugnação, mantendo o ato impugnado;
b) Custas pela Recorrida em ambas as instâncias;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 29 de abril de 2021


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha


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[1] Sobre o direito à dedução, v., v.g., os acórdãos do TJUE de 08.06.2000, Midland Bank, C-98/98, EU:C:2000:300, de 01.04.2004, Bockemühl, C90/02, EU:C:2004:206, n.º 38, e de 15.07.2010, Pannon Gép Centrum, C368/09, EU:C:2010:441, n.º 37 e jurisprudência aí referida.
[2] V. a este respeito Clotilde Celorico Palma, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, 6.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2014, pp. 228 a 230, Patrícia Noiret da Cunha, Imposto sobre o Valor Acrescentado, Instituto Superior de Gestão, Lisboa, 2004, p. 332.
[3] V. Patrícia Noiret da Cunha, ob. cit., pp. 86 e 87.