Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2796/19.7BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:06/25/2020
Relator:MÁRIO REBELO
Descritores:NÚMERO DE IDENTIFICAÇÃO FISCAL.
SIGILO.
Sumário:1. O Número de Identificação Fiscal a atribuir automaticamente é um elemento de identificação do contribuinte e como tal, encontra-se protegido pelo dever de sigilo fiscal, previsto no artigo 64.º/1 da LGT.

2. Poderá ser revelado pela AT, entre outras, nas situações previstas na alínea d) do n.º 2 do art. 64º da LGT, em colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

RECORRENTE: CONDOMÍNIO .................
RECORRIDOS: MINISTÉRIO DAS FINANÇAS
OBJECTO DO RECURSO:
Sentença proferida pelo MMº juiz do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou improcedente a INTIMAÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES, nos termos dos artigos 104.° e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos [CPTA], intentada pelo CONDOMÍNIO .................

CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES:
«1. O tribunal a quo não considerou provados os factos vertidos no artigo 4.° e 5.° do requerimento de intimação, referentes à impossibilidade de intentar acção executiva sem o preenchimento, no formulário disponível para o efeito pela plataforma informática Citius, do campo relativo número de identificação fiscal dos executados.
2. O tribunal a quo também não considerou provado o facto vertido no artigo 13.° do requerimento de intimação, relativo à impossibilidade, dada a antiguidade do último registo aí constante, de obter tal informação pela via da consulta da certidão do registo predial relativa à fracção cujos proprietários, identificados em 2.° daquele requerimento, se pretende executar.
3. Os factos referidos em 1° e 2.° são de conhecimento notório.
4. Para além do mais, ambos resultam da lei.
5. O facto constante da 1.a conclusão resulta do disposto no artigo 724.°, n° 1, alínea a) do C.P.C., que determina que, no requerimento executivo, o exequente tem de identificar as partes, indicando os seus nomes, domicílios ou sedes e números de identificação fiscal - ao contrário do que se sucedia no âmbito do antigo C.P.C. em que o artigo 810.°, n° 1, alínea a) em que tal indicação era eventual.
6. Por seu turno, o facto constante da 2.a conclusão decorre da redacção vigente à data do último registo ocorrido do artigo 93.°, n.° 1, alínea e) do C.R.Pred., que não previa a identificação do sujeito do facto inscrito pela menção do número de identificação fiscal - contrariamente ao que se sucede na redacção actual, introduzida pelo Decreto-Lei n° 116/2008, de 4 de Julho.
7. O recorrente não tem outro meio para obter a informação relativa aos números de identificação fiscal dos sujeitos em questão por outra via.
8. O conhecimento de tal facto é essencial para a concretização do direito do recorrente de acesso aos tribunais, constitucionalmente previsto no artigo 20.° do C.R.P.
9. Tal direito implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange, entre outros, o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional.
10. Paralelamente, a divulgação dos números de identificação fiscal das pessoas indicadas em 2.° do requerimento de intimação contende com a proibição de acesso a dados pessoais de terceiro, previsto no artigo 35.°, n° 4 da C.R.P.
11. Assim, está-se perante um conflito de direitos, liberdades e garantias, que deverá ser resolvido por apelo ao disposto no artigo 18.° da C.R.P.
12. Por um lado, o artigo 18.° da C.R.P., no seu n° 1, prevê que os direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam entidades públicas e privadas,
13. Só sendo admissível a sua restrição nos casos previstos na C.R.P., devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos, liberdades e garantias,
14. Sendo certo que essas restrições não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do seu conteúdo essencial.
15. Ora, ao impossibilitar-se ao ora recorrente o acesso a tal informação, não estando a mesma disponível pelos meios de que habitualmente disporia, esvazia-se por completo o seu direito de acesso aos tribunais,
16. Porquanto, repita-se, sem essa informação não lhe é possível intentar a correspondente execução contra os condóminos relapsos.
17. Pelo contrário, caso as normas contidas nos artigos 64.° da L.G.T., 37.° e 41.° do Decreto-Lei n° 14/2013, de 28 de Janeiro de 2013 e 3.° da Lei n° 59/2019, de 8 de Agosto de 2019, interpretadas e aplicadas de acordo com o disposto no artigo 18.° da CRP, permitiriam apenas ao ora recorrente obter uma informação a que, caso os últimos registos relativos às fracções em apreço fossem ulteriores a 2008, este facilmente poderia aceder por via de uma simples consulta junto dos serviços de registo predial,
18. Dado que a sua função primordial é, de facto, “dar publicidade à situação jurídica dos prédios”, conforme disposto no artigo 1.° do C.R.Pred.
19. A verdade é que, exigindo o artigo 724.°, n° 1, alínea a) do C.P.C. a identificação do executado por referência também ao seu número de identificação fiscal, sendo este um dado pessoal, a obtenção de tal informação, tratando-se de uma execução para o pagamento de quotas de condomínio em dívida, seria, de acordo com o disposto no artigo 93.°, n° 1, alínea e) do C.R.Pred., na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 116/2008, de 4 de Julho, seria algo corriqueiro e que tornaria desnecessária qualquer das démarches levadas a cabo pelo ora recorrente e que aqui o trazem.
20. Deste modo, o problema em questão surge somente porque a aplicação do Regulamento Geral de Protecção de Dados, quer por via da interpretação dada ao disposto no artigo 64.° da L.G.T., quer por via da sua concretização em diplomas avulsos como Decreto- Lei n.° 14/2013, de 28 de Janeiro de 2013 e a Lei n° 59/2019, de 8 de Agosto de 2019, ambos referidos pelo tribunal a quo, não contemplou, certamente entre outras, a possibilidade de existirem registos que, dada a sua antiguidade, não reúnem os elementos constantes do artigo 93.°, n.° 1, alínea e) do C.R.Pred., na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 116/2008, de 4 de Julho, e a articulação desta situação com o disposto no artigo 724.°, n° 1, alínea a) do C.P.C.
21. Assim, com todo o respeito por opinião diversa, a interpretação dada ao artigo 64.° da L.G.T. pela Direcção de Serviços do Registo de Contribuintes e ao vertido nos artigos 64.° da L.G.T., 37.° e 41.° do Decreto-Lei n.° 14/2013, de 28 de Janeiro de 2013 e 3.° da Lei n° 59/2019, de 8 de Agosto de 2019, pelo tribunal a quo, que secunda a primeira, é inconstitucional por desrespeitar de fronte o disposto no artigo 18.° da CRP,
22. Na medida em que consente a compressão, até ao esvaziamento, do direito de acesso aos tribunais, contido no artigo 20.° da C.R.P., do recorrente, para proteger, sem lugar a qualquer compressão, os números de identificação fiscal dos visados no artigo 2.° do requerimento de intimação, ao abrigo do disposto no artigo 35.°, n° 4 do mesmo diploma, que, repita-se, se não fosse a especificidade da situação em apreço, seria até de fácil conhecimento,
23. Colocando o ora recorrente perante um nó górdio, aparentemente impossível de desfazer que não por apelo a expedientes informais e ilegais — e que têm sido verdadeiramente a válvula de escape do nosso sistema quando confrontados com situações tuteladas de maneira injusta, como a presente.
24. Por outro lado, o ora recorrente não se pode conformar com o decidido pelo tribunal a quo, ao dizer que: “De igual forma não se mostram violados os princípios da legalidade, da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, da proporcionalidade, da justiça e da razoabilidade, da colaboração com os particulares e da administração aberta, ou o princípio da tutela jurisdicional efectiva, na medida em que, no estabelecimento da referida protecção, foram ponderados os sobreditos princípios, tendo a balança pendido para o lado do titular dos dados em questão”.
25. Porquanto, essa ponderação até pode ter ocorrido quanto a esses princípios, mas não aconteceu certamente quanto às exigências decorrentes da reforma da acção executiva.
26. Assim é que, independentemente das transformações legais operadas por ocasião da implementação e concretização do Regulamento Geral de Protecção de Dados, o regime da acção executiva continua a exigir que o exequente indique o número de identificação fiscal do executado bem como a respectiva morada (ainda que no que a esta respeita, seja, efectivamente, fácil contornar a situação), dados pessoais a que o agente de execução, uma vez intentada a correspondente acção executiva, tem acesso por via das pesquisas que legalmente está obrigado a efectuar.
27. Assim, das duas uma:
a. Ou o legislador entendeu que, para efeitos da acção executiva, se mantinha o entendimento anterior de que o número de identificação fiscal não está abrangido pelo disposto no artigo 64.° da L.G.T., dada a sua natureza pública por serem livremente cognoscíveis por recurso a outras vias jurídico- institucionais, como sejam os registos predial, comercial e civil, conforme vertido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de Novembro de 2011, no âmbito do processo n.° 0838/11, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9c83ee66d375 b29580257953003a2d44?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1,

b. Ou o legislador não contemplou, de facto, como é aliás mais provável, todas as consequências dos regimes decorrentes da protecção de dados pessoais e a sua aplicação tem que se fazer sempre por apelo às circunstâncias decorrentes do caso concreto.
28. O que o legislador certamente não quis foi, para proteger dados pessoais - sobretudo quando esses não contendam de forma alguma com a situação patrimonial dos sujeitos passivos da obrigação de imposto -, impossibilitar qualquer pessoa, singular ou colectiva, de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n° 462/2016, disponível para consulta em https://dre.pt/web/guest/home//dre/75521111/details/maximized?serie=n&parte_filter= 32&dreId=75503430).
29. A admitir-se, o que não se concede, que o legislador, com a adopção dos artigos 37.° e 41.° do Decreto-Lei n° 14/2013, de 28 de Janeiro de 2013 e 3.° da Lei n° 59/2019, de 8 de Agosto de 2019 - com os inerentes reflexos na aplicação do disposto no artigo 64.° da L.G.T. - pretendeu, nas situações como a presente, impedir o acesso aos tribunais, protegido pelo artigo 20.° da C.R.P., serão aquelas normas inconstitucionais elas próprias também por violação do disposto no artigo 18.° da C.R.P., pelas mesmas razões acima referidas.
30. Quer a inconstitucionalidade resida na interpretação dada às normas referidas na conclusão anterior, quer resida nas normas em si, aceitar-se esta situação equivale a admitir que um cidadão que consiga garantir que ninguém para além da Administração Tributária conheça o seu número de identificação fiscal está coberto por um manto de invisibilidade que o impede de ser accionado em sede executiva.
31. Por último, com respeito por opinião diversa, mal se compreende a referência na douta sentença à Lei n.° 59/2019, de 8 de Agosto, na medida em que a mesma se refere ao tratamento de dados pessoais para efeitos de prevenção, deteção, investigação ou repressão de infrações penais ou de execução de sanções penais, o que não ocorre na presente situação.

Pelo exposto e pelo douto suprimento que se pede e espera na procedência do presente recurso, revogando-se a sentença recorrida nos termos acima expostos e condenando a ora recorrida a fornecer informação relativa aos números de identificação fiscal dos cidadãos identificados em 2.° do requerimento de intimação. Tudo como é de JUSTIÇA


CONCLUSÕES DAS CONTRA-ALEGAÇÕES DO MINISTÉRIO DAS FINANÇAS:

«30.°

O Recurso não tem qualquer fundamento sendo que, está previsto na lei o segredo profissional ou de funcionário, cfr. artigo 182.° do CPP.

31.°

A recusa com fundamento em segredo profissional é legítima, conforme preconiza o artigo 417.°, n.° 3, al. c) do CPC.

32.°

O artigo 64.° da LGT obriga os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária a guardarem segredo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.

33.°

A consulta e transmissão de dado pessoal em resposta a pedido de entidade externa à AT, configura tratamento de dados nos termos do artigo 3.° da LPDP, não bastando haver legitimidade para a realização de um tratamento para que seja justificação suficiente para a sua execução, devendo o tratamento ser justificado dentro dos pressupostos determinados pela Lei da Protecção de Dados Pessoais.

34.°

A circunstância de se reconhecer que o conhecimento deste dado pessoal é necessário para satisfação do interesse (privado), não é suficiente para que se derrogue o sigilo profissional exigível aos funcionários do Estado, existindo na lei, meios para que se obtenha o dado solicitado (artigo 749.° do CPC).

Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis, sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., deve a sentença prolatada manter-se na ordem jurídica uma vez que a sua revogação violará o previsto no artigo 64.° da LGT conjugado com a Lei da Protecção dos Dados Pessoais, Lei 58/2019, de 8 de Agosto, e ainda o previsto no artigo 35.°, n.° 4 e artigo 266.°, ambos da CRP, absolvendo-se a Intimada do pedido, com as legais consequências.»

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste TCA foi devidamente notificado, pronunciando-se pela improcedência do recurso apresentado.

II QUESTÕES A APRECIAR.

O objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões formuladas (artigos 635º/3-4 e 639º/1-3, ambos do Código de Processo Civil, «ex vi» do artº 281º CPPT), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º/ 2, in fine), consiste em saber se a sentença errou quanto ao julgamento da matéria de facto, pela omissão de prova em relação a factos alegados, e bem assim quanto à aplicação do direito na medida em que a decisão recorrida inibe o conteúdo essencial do direito da Recorrente no aceso aos tribunais.

III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A sentença fixou os seguintes factos provados e respetiva motivação:

1) Pelo registo postal RH…………., de 23 de Agosto de 2019, foi endereçado à Direcção de Serviços do Registo de Contribuintes, requerimento pelo qual “venho junto de V.as Ex.as solicitar informação relativa aos números de identificação fiscal de: [...] todos proprietários das fracções designadas pelas letras "G" e H", conforme Doc.s n ° 1 e 2 acima referidos" - cfr. requerimento, a págs. 14 a 16SITAF;

2) Pelo registo postal RH………….., de 06 de Novembro de 2019, foi endereçado à Direcção de Serviços do Registo de Contribuintes, requerimento onde consta “Serve a presente para reiterar o pedido de informações enviado a esses serviços no passado dia 23 de Agosto, também por carta registada com aviso de recepção, que deu entrada nos serviços de V.as Ex.as no dia 28 do mesmo mês, solicitando, pelas razões então expostas, nformação relativa aos números de identificação fiscal de: [...]"- cfr. requerimento, a págs. 17 a 18SITAF;

3) Pelo ofício G21173 da Direcção de Serviços de Registo de Contribuintes, de 07 de Novembro de 2019, foi o Intimante informado que “Em referência ao V/pedido de 22 de agosto de 2019, informo que, sendo o Número de Identificação Fiscal um dado pessoal, abrangido pelo regime de confidencialidade previsto no n° 1 do artigo 64° da Lei Geral Tributária (LGT), os mesmos não poderão ser fornecidos. Nestes termos o dever de sigilo fiscal só poderá cessar quando se esteja perante as circunstâncias referidas no n° 2 do artigo 64° da LGT, designadamente em caso de "cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas na medida dos seus poderes” - cfr. ofício, a págs. 20SITAF;

4) Por mensagem de correio electrónico de 12 de Novembro de 2019 foi o Intimante informado que "Em referência ao V/pedido de 06/10/2019, nosso Prc°109817/19, informo que, sendo o domicilio fiscal um dado pessoal, abrangido pelo regime de confidencialidade previsto no n0 1 do artigo 64° da Lei Geral Tributária (LGT), os mesmos não poderão ser fornecidos a essa entidade. Nestes termos o dever de sigilo fiscal só poderá cessar quando se esteja perante as circunstâncias referidas no 2° do artigo 64° da LGT, designadamente em caso de "cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas na medida dos seus poderes" - cfr mensagem, a págs. 21SITAF;

5) No dia 28 de Novembro de 2019 foi inserida, na plataforma SITAF, a petição inicial que origem ao presente processo - cfr. comprovativo de entrega, a págs. 1 a 3SITAF.

Factos não provados

Não se deram como não provados quaisquer factos com relevância para a decisão da lide.

Motivação da decisão sobre a matéria de facto

Ao declarar quais os factos que considera provados, o juiz deve proceder a uma análise crítica das provas, especificar os fundamentos que foram decisivos para radicar a sua convicção e indicar as ilações inferidas dos factos instrumentais.

A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto provada baseou-se na prova documental constante dos autos e indicada a seguir a cada um dos factos, dando-se por integralmente reproduzido o teor dos mesmos.

IV FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

A Administração do CONDOMÍNIO ................ requereu à Direção de Serviços do Registo de Contribuintes a prestação de informação relativa ao número de identificação fiscal de (alguns) proprietários de frações necessário para contra eles intentar ação executiva, por força do disposto no art.º 724º/1 do CPC.

O pedido foi recusado com fundamento em que o Número de Identificação Fiscal constitui um dado pessoal, abrangido pelo regime de confidencialidade previsto no n.º´1 do art.º 64º da LGT, pelo que não poderia ser fornecido.

A Requerente deduziu, então, pedido de intimação para prestação de informações alegando a necessidade de obtenção de tal número uma vez que sem ele é impossível intentar a ação executiva para obter o pagamento das quotas de condomínio em atraso relativa às frações em causa (“G” e “H” do prédio referido).

Respondendo, a Autoridade Tributária e Aduaneira referiu que o art.º 64º da LGT impõe um dever de sigilo aos dirigentes funcionários e agentes da administração tributária relativamente aos dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e aos elementos de natureza pessoal que sejam obtidos no decurso do procedimento tributário. E que nos termos do art.º 5º do Decreto-Lei n.º 14/2013 de 28/1 (diploma que revogou o Decreto-Lei n.º 463/79, de 30 de novembro, que instituiu o número fiscal) o número de identificação fiscal é um dado identificativo de uma pessoa singular, ou coletiva, e por força do artigo 37º daquele diploma a informação constante da base de dados de registo de contribuintes da AT só pode ser transmitida nas condições previstas no art.º 64º da LGT.

O pedido de intimação foi julgado improcedente com fundamento em que a informação pretendida se encontra protegida pelo sigilo fiscal e pelo regime, reforçado, de proteção de dados sensíveis, não podendo sem mais, ser facultada.

Decidiu ainda que tal não viola “...os princípios da legalidade, da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da proporcionalidade, da justiça e da razoabilidade, da colaboração com os particulares e da administração aberta, ou o princípio da tutela jurisdicional efetiva, na medida em que, no estabelecimento da referida proteção, foram ponderados os sobreditos princípios, tendo a balança pendido para o lado do titular dos dados em questão”.

A Recorrente não se conforma. Impugna a seleção da matéria de facto por considerar não terem sido provados os factos relevantes para a decisão alegados na petição inicial como sejam os vertidos nos artigos 3º, 5º e 13º e discorda da fundamentação jurídica que na sua tese impõe o dever de facultar a informação pretendida.

Enunciados os contornos da questão, avancemos para a análise do recurso debruçando-nos agora sobre o invocado erro de julgamento de facto.

No artigo 3º da douta petição inicial, alega a Requerente que para intentar a correspondente ação executiva para cobrança dos montantes em dívida ao condomínio por conta das referidas frações, e dar cumprimento a um dos – mais importantes – deveres que integram as suas funções, a administração necessita dos números de identificação fiscal dos respetivos proprietários.

No art.º 5º alega que a fim de obstar tal facto, num primeiro momento a administração procurou obter essa informação junto do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 2, onde, informalmente, e após explicação da situação em apreço, lhe foi transmitido pela funcionária que tinham orientações para não fornecer tais dados.

E no artº 13º do mesmo articulado alega que dada a antiguidade do último registo constante das certidões do registo predial das frações em apreço, das mesmas não constam os números de contribuinte dos seus proprietários, como aconteceria caso se tratasse de um registo mais recente.

São estes os factos cujo aditamento ao probatório a Recorrente pretende.

Mas como muito bem diz a Recorrente nas suas alegações, os factos referidos nos dois parágrafos anteriores não careciam de ser dados como provados, porquanto decorrem da lei.

Como resulta da cópia do registo junto aos autos, a aquisição por sucessão por morte, encontra-se registada com data de 10/7/1991. Nesta data a alínea e) do n.º 1 art.º 93º do Código do Registo Predial, não exigia a menção ao número de identificação fiscal para identificação dos sujeitos inscritos, exigência que só veio a verificar-se com a redação que foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 116/2008 de 4 de julho.

Assim, datando a inscrição do ano de 1991 resulta claro que não continha o número de identificação fiscal.

Quanto à necessidade de o requerimento executivo conter o número de identificação fiscal ela constitui um requisito legal previsto na alínea a) do n.º 1 do art.º 724º do CPC.

Correspondendo estes dois “factos” a uma previsão legal, não têm - nem devem - de constar do probatório. O que não quer dizer que não tenham de ser levados em linha de conta na fundamentação da decisão.

Já quanto à matéria alegada no art.º 5º do Requerimento inicial a mesma não reveste qualquer interesse para a decisão. Não está em causa que o pedido tenha sido formulado, mas sim saber se a sua divulgação colide, ou não, com as regras do sigilo fiscal vigentes.

E com esta conclusão julgamos improcedente o pedido de aditamento dos factos, considerando estabilizada a respetiva matéria de facto, podendo agora avançar para a questão nuclear que é saber se o número de identificação fiscal está protegido pelo sigilo fiscal e em que condições pode ser revelado.

O sigilo fiscal integra-se no princípio constitucional da reserva da intimidade da vida privada referido no Art.º 26.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (1), cujos arts. 7º e 8º consagram precisamente o respeito pela vida privada e familiar (art. 7º/1) bem como à proteção de dados pessoais que lhe digam respeito, os quais devem ser objeto de um tratamento leal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento legítimo previsto por lei. (art. 8º/1-2)

Os interesses que se pretendem proteger com o segredo fiscal, enquadram-se numa dimensão da privacidade do cidadão que, no entanto, não entra no núcleo da sua intimidade privada e familiar que a lei protege para proporcionar «garantias efectivas contra a utilização abusiva ou contrária à dignidade humana» (n.ºs 1 e 2 do Art.º 26º da CRP), como são o caso do segredo médico ou religioso – cfr., neste sentido, Saldanha Sanches, «Segredo Bancário, segredo fiscal uma perspetiva funcional»(2).

O número fiscal do contribuinte foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 463/79 de 30 de novembro, com alterações legislativas sucessivas, o qual foi entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28 de janeiro, que na sua versão atualizada, refere no artigo 9.º/ 2 que "O NIF a atribuir automaticamente é considerado igualmente um elemento de identificação do interessado."

Por sua vez, o artigo 37.º do mesmo diploma sob a epígrafe "Comunicação de dados" dispõe que "Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, a informação constante da base de dados do registo de contribuintes da AT só pode ser transmitida nas condições previstas no artigo 64.º da Lei Geral Tributária."

E o artigo 41.º do mesmo Decreto-Lei sob a epígrafe "Sigilo", menciona que "Os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais, bem como todas as pessoas que, no exercício das suas funções, tomem conhecimento daqueles dados, ficam estritamente vinculados ao dever de sigilo fiscal e profissional, mesmo após o termo das suas funções."

E conforme alínea m) do art. 3º da Lei n.º 59/2019, de 8 de agosto, que transpôs para o Direito Português a Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, (que nos termos do art. remete para o seu regime todas as referências à lei de Proteção de Dados Pessoais - art. 67º/3) considera «Violação de dados pessoais», uma violação da segurança que provoque, de modo acidental ou ilícito, a destruição, a perda, a alteração, a divulgação não autorizada de dados pessoais transmitidos, conservados ou tratados de outro modo, ou o acesso não autorizado a esses dados; sendo dados pessoais, segundo a mesma lei, as informações relativas a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados») – alínea c) do mesmo art. 3º.

Por sua vez, acrescenta o n.º 2 do mesmo art.º 3º que para os efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, considera-se identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador como o nome, o número de identificação, dados de localização, identificadores em linha ou um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa.

Ou seja, também por aplicação desta Lei, o número de identificação (fiscal) é uma informação pessoal, cuja divulgação ilícita é punível com pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias (art. 58º/1).

Resulta do exposto que embora alguma jurisprudência e doutrina tenham entendido que o número de identificação fiscal não é um dado sujeito a sigilo fiscal, a verdade é que as normas atuais supra referidas indicam claramente que é.

Mas há mais. Nos termos do artigo 64.º n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT) "Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado."

Este dever de sigilo cessa, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, designadamente em caso de:

"a) Autorização do contribuinte para a revelação da sua situação tributária; b) Cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes;

c) Assistência mútua e cooperação da administração tributária com as administrações tributárias de outros países resultante de convenções internacionais a que o Estado Português esteja vinculado, sempre que estiver prevista reciprocidade;

d) Colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil e mediante despacho de uma autoridade judiciária, no âmbito do Código de Processo Penal;

e) Confirmação do número de identificação fiscal e domicílio fiscal as entidades legalmente competentes para a realização do registo predial ou automóvel.(itálico nosso).

Ou seja, se dúvidas houvesse, a redação da alínea e) do n.º 2 do art.º 64º LGT dada pela Lei n.º 83-C/2013 de 31/12, pressupõe que o legislador considera o NIF como um dado sujeito a sigilo, o que está em perfeita sintonia com os conteúdos normativos acima referidos.

Tendo em conta o enquadramento jurídico sumariamente exposto, concluímos que o número de identificação fiscal é considerado, nos termos legais, um elemento de identificação do contribuinte e encontra-se abrangido pelo dever de sigilo fiscal, previsto no artigo 64.º, n.º 1, da LGT.

Poderá ser derrogado nas circunstâncias previstas no n.º 2 do mesmo preceito mas que no caso concreto não se verificam.

Assim, podemos concluir que a informação solicitada pelo Intimante se encontra coberta pelo sigilo fiscal e não estão verificadas nenhumas das situações em que a LGT admite a sua derrogação. Daí que a Recorrente não possa ver satisfeito o seu pedido de intimação para revelação do número de identificação fiscal.

Não ignoramos a doutrina do Ac do STA n.º 0838/11 de 16/11/2011 que admite a revelação dos dados pessoais livremente cognoscíveis (dados públicos ou dados pessoais constantes de documento público oficial, como acontece, por exemplo, com o número de identificação fiscal, com a identificação dos bens inscritos na matriz predial ou no registo predial e comercial) bem como os dados fiscais que não reflitam nem denunciem a situação tributária dos contribuintes(3), mas cremos que, em face do que deixámos exposto, esta doutrina é hoje intransponível para o quadro legislativo actual.


Contudo, este quadro normativo não inibe a Recorrente do direito de acesso à justiça, o que redundaria numa interpretação manifestamente inconstitucional das normas em apreço, pois uma vez que a alínea a) do art. 724º do CPC exige que na identificação das partes se mencione o número de identificação fiscal e a Recorrente não pode obter tais dados através da certidão do registo predial, a impossibilidade de obtenção deste dado não pode significar o sacrifício do direito de acesso à justiça.

Todavia, o que está em causa é saber se a AT pode ser obrigada a divulgar o número de identificação fiscal dos sujeitos em causa fora das condições em que tal é legalmente permitido.
E concluímos que não pode, evidentemente, sob pena violação do dever de sigilo a que está vinculada.

Mas uma das condições em que a AT pode divulgar algum dos elementos sujeitos a sigilo está precisamente prevista na alínea d) do n.º 2 do art. 64º LGT, na qual se prevê a colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil (e, acrescenta o preceito, mediante despacho de uma autoridade judiciária, no âmbito do Código de Processo Penal).

Este preceito não é invocável nos presentes autos, evidentemente. Mas sê-lo-á no âmbito do Código de Processo Civil em conformidade aliás, com o disposto no art.º 418º do CPC em articulação com o referido art. 64º/2-d) LGT, salvaguardando-se assim, o princípio da proporcionalidade e do direito à tutela jurisdicional efetiva.

Ou seja, concluindo, como a presente intimação não tem subjacente qualquer dever de colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil, a pretensão dos Requerentes não possa proceder.
O que necessariamente conduz à improcedência do recurso, sem que daí resultem violados os princípios da legalidade, da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da proporcionalidade, da justiça e da razoabilidade, da colaboração com os particulares e da administração aberta ou o princípio da tutela jurisdicional efetiva, considerando a via processual aberta pela alínea d) do art. 64º n.º 2 da LGT.

V DECISÃO.

Termos em que acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso Tributário deste TCAS em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 25 de junho de 2020.

(Mário Rebelo)
(Patrícia Manuel Pires)
(Cristina Flora)

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(1) Em vigor com a adoção do Tratado de Lisboa, em 1 de dezembro de 2009, tal como previsto no artigo 6.º/1 do TUE, passando a ser, assim, uma fonte vinculativa de Direito primário.

(2) Consultável em http://www.saldanhasanches.pt/pdf2/2005,%20Fiscalidade,%2021,%2033-42.pdf.

(3) Ac. do STA n.º 0838/11 de 16-11-2011 Relator: DULCE NETO
Sumário: I - O direito à informação encontra expressão normativa na Constituição da República Portuguesa e foi transposto para a lei ordinária através do Código de Procedimento Administrativo. Todavia, face ao reconhecimento, também constitucional, do direito à privacidade, o legislador foi obrigado a estabelecer restrições ao direito à informação e a criar instrumentos jurídicos que funcionem como garantias do direito à privacidade.
II - A consagração da regra do sigilo fiscal, constante do artigo 64.º da Lei Geral Tributária, corresponde, precisamente, à extensão e reconhecimento do direito à privacidade no âmbito da actividade tributária, estando por ele abrangidos os dados de natureza pessoal dos contribuintes (pessoa singular ou colectiva) e os dados expressivos da sua situação tributária, os quais só podem ser revelados a terceiros - outros sectores da Administração ou particulares - nos casos expressamente previstos na lei, para responder a um motivo social imperioso, e só na medida estritamente necessária para satisfazer o equilíbrio entre os interesses em jogo.
III - Podem, contudo, ser revelados os dados pessoais livremente cognoscíveis (dados públicos ou dados pessoais constantes de documento público oficial, como acontece, por exemplo, com o número de identificação fiscal, com a identificação dos bens inscritos na matriz predial ou no registo predial e comercial) bem como os dados fiscais que não reflictam nem denunciem a situação tributária dos contribuintes.