Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 2796/19.7BELRS |
Secção: | CT |
Data do Acordão: | 06/25/2020 |
Relator: | MÁRIO REBELO |
Descritores: | NÚMERO DE IDENTIFICAÇÃO FISCAL. SIGILO. |
Sumário: | 1. O Número de Identificação Fiscal a atribuir automaticamente é um elemento de identificação do contribuinte e como tal, encontra-se protegido pelo dever de sigilo fiscal, previsto no artigo 64.º/1 da LGT. 2. Poderá ser revelado pela AT, entre outras, nas situações previstas na alínea d) do n.º 2 do art. 64º da LGT, em colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil. |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: |
1 |
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
RECORRENTE: CONDOMÍNIO .................
CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES: O Recurso não tem qualquer fundamento sendo que, está previsto na lei o segredo profissional ou de funcionário, cfr. artigo 182.° do CPP. 31.° A recusa com fundamento em segredo profissional é legítima, conforme preconiza o artigo 417.°, n.° 3, al. c) do CPC. 32.° O artigo 64.° da LGT obriga os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária a guardarem segredo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado. 33.° A consulta e transmissão de dado pessoal em resposta a pedido de entidade externa à AT, configura tratamento de dados nos termos do artigo 3.° da LPDP, não bastando haver legitimidade para a realização de um tratamento para que seja justificação suficiente para a sua execução, devendo o tratamento ser justificado dentro dos pressupostos determinados pela Lei da Protecção de Dados Pessoais. 34.° A circunstância de se reconhecer que o conhecimento deste dado pessoal é necessário para satisfação do interesse (privado), não é suficiente para que se derrogue o sigilo profissional exigível aos funcionários do Estado, existindo na lei, meios para que se obtenha o dado solicitado (artigo 749.° do CPC). Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis, sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., deve a sentença prolatada manter-se na ordem jurídica uma vez que a sua revogação violará o previsto no artigo 64.° da LGT conjugado com a Lei da Protecção dos Dados Pessoais, Lei 58/2019, de 8 de Agosto, e ainda o previsto no artigo 35.°, n.° 4 e artigo 266.°, ambos da CRP, absolvendo-se a Intimada do pedido, com as legais consequências.»
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste TCA foi devidamente notificado, pronunciando-se pela improcedência do recurso apresentado.
II QUESTÕES A APRECIAR. O objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões formuladas (artigos 635º/3-4 e 639º/1-3, ambos do Código de Processo Civil, «ex vi» do artº 281º CPPT), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º/ 2, in fine), consiste em saber se a sentença errou quanto ao julgamento da matéria de facto, pela omissão de prova em relação a factos alegados, e bem assim quanto à aplicação do direito na medida em que a decisão recorrida inibe o conteúdo essencial do direito da Recorrente no aceso aos tribunais. III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO. A sentença fixou os seguintes factos provados e respetiva motivação: 1) Pelo registo postal RH…………., de 23 de Agosto de 2019, foi endereçado à Direcção de Serviços do Registo de Contribuintes, requerimento pelo qual “venho junto de V.as Ex.as solicitar informação relativa aos números de identificação fiscal de: [...] todos proprietários das fracções designadas pelas letras "G" e H", conforme Doc.s n ° 1 e 2 acima referidos" - cfr. requerimento, a págs. 14 a 16SITAF; 2) Pelo registo postal RH………….., de 06 de Novembro de 2019, foi endereçado à Direcção de Serviços do Registo de Contribuintes, requerimento onde consta “Serve a presente para reiterar o pedido de informações enviado a esses serviços no passado dia 23 de Agosto, também por carta registada com aviso de recepção, que deu entrada nos serviços de V.as Ex.as no dia 28 do mesmo mês, solicitando, pelas razões então expostas, nformação relativa aos números de identificação fiscal de: [...]"- cfr. requerimento, a págs. 17 a 18SITAF; 3) Pelo ofício G21173 da Direcção de Serviços de Registo de Contribuintes, de 07 de Novembro de 2019, foi o Intimante informado que “Em referência ao V/pedido de 22 de agosto de 2019, informo que, sendo o Número de Identificação Fiscal um dado pessoal, abrangido pelo regime de confidencialidade previsto no n° 1 do artigo 64° da Lei Geral Tributária (LGT), os mesmos não poderão ser fornecidos. Nestes termos o dever de sigilo fiscal só poderá cessar quando se esteja perante as circunstâncias referidas no n° 2 do artigo 64° da LGT, designadamente em caso de "cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas na medida dos seus poderes” - cfr. ofício, a págs. 20SITAF; 4) Por mensagem de correio electrónico de 12 de Novembro de 2019 foi o Intimante informado que "Em referência ao V/pedido de 06/10/2019, nosso Prc°109817/19, informo que, sendo o domicilio fiscal um dado pessoal, abrangido pelo regime de confidencialidade previsto no n0 1 do artigo 64° da Lei Geral Tributária (LGT), os mesmos não poderão ser fornecidos a essa entidade. Nestes termos o dever de sigilo fiscal só poderá cessar quando se esteja perante as circunstâncias referidas no 2° do artigo 64° da LGT, designadamente em caso de "cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas na medida dos seus poderes" - cfr mensagem, a págs. 21SITAF; 5) No dia 28 de Novembro de 2019 foi inserida, na plataforma SITAF, a petição inicial que origem ao presente processo - cfr. comprovativo de entrega, a págs. 1 a 3SITAF. Factos não provados Não se deram como não provados quaisquer factos com relevância para a decisão da lide. Motivação da decisão sobre a matéria de facto Ao declarar quais os factos que considera provados, o juiz deve proceder a uma análise crítica das provas, especificar os fundamentos que foram decisivos para radicar a sua convicção e indicar as ilações inferidas dos factos instrumentais. A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto provada baseou-se na prova documental constante dos autos e indicada a seguir a cada um dos factos, dando-se por integralmente reproduzido o teor dos mesmos. IV FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO. A Administração do CONDOMÍNIO ................ requereu à Direção de Serviços do Registo de Contribuintes a prestação de informação relativa ao número de identificação fiscal de (alguns) proprietários de frações necessário para contra eles intentar ação executiva, por força do disposto no art.º 724º/1 do CPC. O pedido foi recusado com fundamento em que o Número de Identificação Fiscal constitui um dado pessoal, abrangido pelo regime de confidencialidade previsto no n.º´1 do art.º 64º da LGT, pelo que não poderia ser fornecido. A Requerente deduziu, então, pedido de intimação para prestação de informações alegando a necessidade de obtenção de tal número uma vez que sem ele é impossível intentar a ação executiva para obter o pagamento das quotas de condomínio em atraso relativa às frações em causa (“G” e “H” do prédio referido). Respondendo, a Autoridade Tributária e Aduaneira referiu que o art.º 64º da LGT impõe um dever de sigilo aos dirigentes funcionários e agentes da administração tributária relativamente aos dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e aos elementos de natureza pessoal que sejam obtidos no decurso do procedimento tributário. E que nos termos do art.º 5º do Decreto-Lei n.º 14/2013 de 28/1 (diploma que revogou o Decreto-Lei n.º 463/79, de 30 de novembro, que instituiu o número fiscal) o número de identificação fiscal é um dado identificativo de uma pessoa singular, ou coletiva, e por força do artigo 37º daquele diploma a informação constante da base de dados de registo de contribuintes da AT só pode ser transmitida nas condições previstas no art.º 64º da LGT. O pedido de intimação foi julgado improcedente com fundamento em que a informação pretendida se encontra protegida pelo sigilo fiscal e pelo regime, reforçado, de proteção de dados sensíveis, não podendo sem mais, ser facultada. Decidiu ainda que tal não viola “...os princípios da legalidade, da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da proporcionalidade, da justiça e da razoabilidade, da colaboração com os particulares e da administração aberta, ou o princípio da tutela jurisdicional efetiva, na medida em que, no estabelecimento da referida proteção, foram ponderados os sobreditos princípios, tendo a balança pendido para o lado do titular dos dados em questão”. A Recorrente não se conforma. Impugna a seleção da matéria de facto por considerar não terem sido provados os factos relevantes para a decisão alegados na petição inicial como sejam os vertidos nos artigos 3º, 5º e 13º e discorda da fundamentação jurídica que na sua tese impõe o dever de facultar a informação pretendida. Enunciados os contornos da questão, avancemos para a análise do recurso debruçando-nos agora sobre o invocado erro de julgamento de facto. No artigo 3º da douta petição inicial, alega a Requerente que para intentar a correspondente ação executiva para cobrança dos montantes em dívida ao condomínio por conta das referidas frações, e dar cumprimento a um dos – mais importantes – deveres que integram as suas funções, a administração necessita dos números de identificação fiscal dos respetivos proprietários. No art.º 5º alega que a fim de obstar tal facto, num primeiro momento a administração procurou obter essa informação junto do Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 2, onde, informalmente, e após explicação da situação em apreço, lhe foi transmitido pela funcionária que tinham orientações para não fornecer tais dados. E no artº 13º do mesmo articulado alega que dada a antiguidade do último registo constante das certidões do registo predial das frações em apreço, das mesmas não constam os números de contribuinte dos seus proprietários, como aconteceria caso se tratasse de um registo mais recente. São estes os factos cujo aditamento ao probatório a Recorrente pretende. Mas como muito bem diz a Recorrente nas suas alegações, os factos referidos nos dois parágrafos anteriores não careciam de ser dados como provados, porquanto decorrem da lei. Como resulta da cópia do registo junto aos autos, a aquisição por sucessão por morte, encontra-se registada com data de 10/7/1991. Nesta data a alínea e) do n.º 1 art.º 93º do Código do Registo Predial, não exigia a menção ao número de identificação fiscal para identificação dos sujeitos inscritos, exigência que só veio a verificar-se com a redação que foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 116/2008 de 4 de julho. Assim, datando a inscrição do ano de 1991 resulta claro que não continha o número de identificação fiscal. Quanto à necessidade de o requerimento executivo conter o número de identificação fiscal ela constitui um requisito legal previsto na alínea a) do n.º 1 do art.º 724º do CPC. Correspondendo estes dois “factos” a uma previsão legal, não têm - nem devem - de constar do probatório. O que não quer dizer que não tenham de ser levados em linha de conta na fundamentação da decisão. Já quanto à matéria alegada no art.º 5º do Requerimento inicial a mesma não reveste qualquer interesse para a decisão. Não está em causa que o pedido tenha sido formulado, mas sim saber se a sua divulgação colide, ou não, com as regras do sigilo fiscal vigentes. E com esta conclusão julgamos improcedente o pedido de aditamento dos factos, considerando estabilizada a respetiva matéria de facto, podendo agora avançar para a questão nuclear que é saber se o número de identificação fiscal está protegido pelo sigilo fiscal e em que condições pode ser revelado. O sigilo fiscal integra-se no princípio constitucional da reserva da intimidade da vida privada referido no Art.º 26.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (1), cujos arts. 7º e 8º consagram precisamente o respeito pela vida privada e familiar (art. 7º/1) bem como à proteção de dados pessoais que lhe digam respeito, os quais devem ser objeto de um tratamento leal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento legítimo previsto por lei. (art. 8º/1-2) Os interesses que se pretendem proteger com o segredo fiscal, enquadram-se numa dimensão da privacidade do cidadão que, no entanto, não entra no núcleo da sua intimidade privada e familiar que a lei protege para proporcionar «garantias efectivas contra a utilização abusiva ou contrária à dignidade humana» (n.ºs 1 e 2 do Art.º 26º da CRP), como são o caso do segredo médico ou religioso – cfr., neste sentido, Saldanha Sanches, «Segredo Bancário, segredo fiscal uma perspetiva funcional»(2). Por sua vez, o artigo 37.º do mesmo diploma sob a epígrafe "Comunicação de dados" dispõe que "Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, a informação constante da base de dados do registo de contribuintes da AT só pode ser transmitida nas condições previstas no artigo 64.º da Lei Geral Tributária." E o artigo 41.º do mesmo Decreto-Lei sob a epígrafe "Sigilo", menciona que "Os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais, bem como todas as pessoas que, no exercício das suas funções, tomem conhecimento daqueles dados, ficam estritamente vinculados ao dever de sigilo fiscal e profissional, mesmo após o termo das suas funções." E conforme alínea m) do art. 3º da Lei n.º 59/2019, de 8 de agosto, que transpôs para o Direito Português a Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, (que nos termos do art. remete para o seu regime todas as referências à lei de Proteção de Dados Pessoais - art. 67º/3) considera «Violação de dados pessoais», uma violação da segurança que provoque, de modo acidental ou ilícito, a destruição, a perda, a alteração, a divulgação não autorizada de dados pessoais transmitidos, conservados ou tratados de outro modo, ou o acesso não autorizado a esses dados; sendo dados pessoais, segundo a mesma lei, as informações relativas a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados») – alínea c) do mesmo art. 3º. Por sua vez, acrescenta o n.º 2 do mesmo art.º 3º que para os efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, considera-se identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador como o nome, o número de identificação, dados de localização, identificadores em linha ou um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa. Ou seja, também por aplicação desta Lei, o número de identificação (fiscal) é uma informação pessoal, cuja divulgação ilícita é punível com pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias (art. 58º/1). Resulta do exposto que embora alguma jurisprudência e doutrina tenham entendido que o número de identificação fiscal não é um dado sujeito a sigilo fiscal, a verdade é que as normas atuais supra referidas indicam claramente que é. Mas há mais. Nos termos do artigo 64.º n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT) "Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado." Este dever de sigilo cessa, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, designadamente em caso de: "a) Autorização do contribuinte para a revelação da sua situação tributária; b) Cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes; c) Assistência mútua e cooperação da administração tributária com as administrações tributárias de outros países resultante de convenções internacionais a que o Estado Português esteja vinculado, sempre que estiver prevista reciprocidade; d) Colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil e mediante despacho de uma autoridade judiciária, no âmbito do Código de Processo Penal; e) Confirmação do número de identificação fiscal e domicílio fiscal as entidades legalmente competentes para a realização do registo predial ou automóvel.(itálico nosso). Ou seja, se dúvidas houvesse, a redação da alínea e) do n.º 2 do art.º 64º LGT dada pela Lei n.º 83-C/2013 de 31/12, pressupõe que o legislador considera o NIF como um dado sujeito a sigilo, o que está em perfeita sintonia com os conteúdos normativos acima referidos. Tendo em conta o enquadramento jurídico sumariamente exposto, concluímos que o número de identificação fiscal é considerado, nos termos legais, um elemento de identificação do contribuinte e encontra-se abrangido pelo dever de sigilo fiscal, previsto no artigo 64.º, n.º 1, da LGT. Poderá ser derrogado nas circunstâncias previstas no n.º 2 do mesmo preceito mas que no caso concreto não se verificam. Assim, podemos concluir que a informação solicitada pelo Intimante se encontra coberta pelo sigilo fiscal e não estão verificadas nenhumas das situações em que a LGT admite a sua derrogação. Daí que a Recorrente não possa ver satisfeito o seu pedido de intimação para revelação do número de identificação fiscal. Não ignoramos a doutrina do Ac do STA n.º 0838/11 de 16/11/2011 que admite a revelação dos dados pessoais livremente cognoscíveis (dados públicos ou dados pessoais constantes de documento público oficial, como acontece, por exemplo, com o número de identificação fiscal, com a identificação dos bens inscritos na matriz predial ou no registo predial e comercial) bem como os dados fiscais que não reflitam nem denunciem a situação tributária dos contribuintes(3), mas cremos que, em face do que deixámos exposto, esta doutrina é hoje intransponível para o quadro legislativo actual.
Termos em que acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso Tributário deste TCAS em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida. Custas pelo Recorrente. Lisboa, 25 de junho de 2020. (Mário Rebelo) (2) Consultável em http://www.saldanhasanches.pt/pdf2/2005,%20Fiscalidade,%2021,%2033-42.pdf. |