Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:63/14.1 BEFUN
Secção:CA
Data do Acordão:03/31/2022
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:ÓNUS DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO; MUNICÍPIO
ILUMINAÇÃO PÚBLICA; UTENTE DE SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
FACTOS ESSENCIAIS
Sumário:I - Ao impugnar a matéria de facto em sede de recurso, recai sobre o recorrente o ónus de indicar (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e (ii) os concretos meios probatórios que impõem decisão distinta, mais devendo identificar precisa e separadamente os depoimentos caso se trate de meios probatórios gravados.
II - Um município com encargos atribuídos no domínio da iluminação pública não pode ser visto como utente de serviços públicos essenciais, no quadro da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, que criou no ordenamento jurídico mecanismos destinados a proteger tais utentes.
III - O tribunal não pode conhecer de factos essenciais que não foram alegados pelo réu, nos quais funda exceção que visa extinguir parcialmente o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
E...., S.A., intentou ação administrativa comum contra o Município de Santa Cruz, na qual invoca conta-corrente de débitos emergentes de fornecimento de eletricidade e prestação de serviços conexos no quadro de uma relação jurídica de colaboração administrativa, pedindo a final a condenação do réu a pagar-lhe os seguintes montantes: (i) € 1.440.994,96 (um milhão, quatrocentos e quarenta mil, novecentos e noventa e quatro euros e noventa e seis cêntimos) acrescido da quantia de (ii) € 264.609,05 (duzentos e sessenta e quatro mil, seiscentos e nove euros e cinco cêntimos) a título de juros moratórios vencidos até ao dia 26/02/2014, e ainda dos (iii) juros moratórios vincendos até integral e efetivo pagamento.
Por sentença de 30/05/2016, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal julgou a ação procedente e, nessa medida, condenou o réu no pagamento de € 1.133.265,60 (um milhão, cento e trinta e três mil, duzentos e sessenta e cinco euros, e sessenta cêntimos), correspondente ao capital em dívida por conta do fornecimento de energia elétrica entre os anos de 2004 e 2012, acrescida de juros de mora.
Inconformado, o réu interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“(…)
a. O ora Recorrente não se conforma com a decisão proferida na sentença, alegando, em síntese, erro de julgamento, quer na valoração da prova produzida, quer na aplicação do direito no caso concreto.
b. No âmbito dos presentes autos, a Recorrida peticionou a condenação do Recorrente no valor de € 1.133.265,60 (um milhão, cento e trinta e três mil, duzentos e sessenta e cinco euros, e sessenta cêntimos), já após a redução do pedido, referente a faturas vencidas e não pagas pelo fornecimento de energia elétrica entre 2004 e 2012.
c. O Recorrente invocou a prescrição de todas as facturas vencidas e não exigidas extrajudicialmente há mais de seis meses, com base no regime exposto na Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, designada Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
d. Realizada a audiência prévia, fixaram-se como temas de prova: i) a gestão e a titularidade das infra-estruturas que compõem a rede de transporte de electricidade em BT; e ii) a conduta e a posição assumida pelo Município relativamente ao fornecimento de electricidade pela E.... (para efeitos de prescrição);
e. Foi sobre esta matéria que recaíram as preocupações de produção de prova do Recorrente, e que foram erroneamente valoradas pelo Tribunal a quo:
f. Quanto à primeira questão, a prova produzida, mormente a testemunhal, foi uniforme ao afirmar que existe uma diferença no sistema de gestão e fornecimento de energia eléctrica entre a RAM e Portugal continental.
g. Com efeito, em Portugal continental, a actividade de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão continua a ser desenvolvida ao abrigo de contratos de concessão outorgados pelos Municípios, os quais implicam o pagamento ao respectivo Município concedente de uma renda anual pela exploração da concessão.
h. A concessão administrativa é um modo de gestão de um serviço público, pelo qual a pessoa titular de um serviço público atribui a outra pessoa o direito de esta, no seu próprio nome, organizar, explorar e gerir aquele serviço público; realidade que difere, em tudo (natureza, pressupostos, vicissitudes contratuais, etc.), do experienciado na RAM.
i. Na prática, significa que um qualquer Município situado em Portugal continental, enquanto titular do serviço de fornecimento de energia eléctrica, pode ou não concessionar numa empresa privada a organização, exploração e gestão desse serviço (essencialmente, porque detém esse domínio, ao contrário do Recorrente);
j. No âmbito daquela concessão, o tal Município transfere para o concessionário o exercício dos direitos e poderes do Município necessários à gestão e exploração do serviço público. Paralelamente, as redes de distribuição (físicas) e as redes de iluminação pública, são propriedade plena dos Municípios do continente (ou da EDP, caso o Município tenha preferido transferir o património afecto à concessão).
k. Ora, na RAM, mormente no Recorrente, o serviço público essencial de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica vem historicamente ligado à Recorrida, conforme decorre do texto preambular do DLR n.º 2/2007/M;
l. Temos assim um diploma legislativo que prevê a transferência da atribuição relativa à iluminação pública rural e urbana para os Municípios da RAM, mas que apenas o faz no plano formal/jurídico/legislativo.
m. Por outro lado, convém ainda referir o artigo 3.º, n.º 2 da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro (lei que estabelecia, à data, o quadro de transferências de atribuições e competências para as autarquias locais), e que estabelece expressamente que essa transferência tem de ser acompanhada dos meios humanos, dos recursos financeiros e do património adequados ao desempenho da função transferida.
n. Ora, nada disto sucedeu no caso do Município Recorrente, ao contrário do que sucedeu nos Municípios do continente (e daí a necessidade da compensação advir da cobrança da taxa de ocupação do domínio público prevista no DLR n.º 2/2007/M).
o. Juridicamente, seria forçoso concluir/reconhecer (ao contrário do que fez a sentença em apreço), que ao Recorrente incumbe a atribuição no domínio da energia e que os encargos decorrentes de tal atribuição passaram do Governo Regional para os municípios, mas, no plano dos factos, nunca houve uma transferência efectiva de tal atribuição da Recorrida para os municípios.
p. Num cenário hipotético, se o Recorrente pretendesse, num acto de gestão, que a iluminação em determinado arruamento fosse suspensa por um qualquer motivo, não conseguiria fazê-lo. A prova testemunhal, mormente a arrolada pela Recorrida (Presidente do Conselho de Administração da Recorrida e Dr. J....., à data simultaneamente consultor do CA da Recorrida e vogal do Conselho Directivo da Ass. De Municípios da Iluminação Pública da Madeira), quando questionada acerca da questão, referiu que não sabia se seria exequível a gestão destas redes pelo Recorrente, reiterando a posição da Recorrida de monopólio. Explicaram ainda ao Tribunal que as atribuições só passaram, por lei, para as autarquias locais porque o Governo Regional já apresentava um endividamento cifrado em milhões, e, por outro lado, a Recorrida não podia fazer face aos encargos do sector. Foi então criado o mecanismo de escape para os Municípios, que traduziu um verdadeiro “cheque em branco” responsabilizador dos mesmos (por serem os únicos, à data, capazes de tal).
q. Em suma, a gestão e a exploração da rede de distribuição de energia eléctrica em BT sempre esteve no domínio da Recorrida, não podendo o Recorrente, como também ficou provado, chamar a si a exploração de tal rede (como sucede no Continente).
r. Também a Entidade Reguladora do Sector Energético acompanha o entendimento do Recorrente, porquanto atesta as dissemelhanças verificadas entre a RAM e o continente, que deverão ser reflectidas no tarifário de forma desigual, sob pena de discriminação sem motivo razoável.
s. Feita esta incursão, outra não poderá ser a conclusão de que o Recorrente deverá ser considerado “utente” para efeitos do disposto na Lei dos Serviços Públicos Essenciais, beneficiando assim do prazo aí previsto.
t. O Tribunal a quo apreciou de forma errada a prova produzida, tendo aplicado o direito de forma igualmente incorrecta: o Recorrente insere-se no âmbito de aplicação da Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
u. O próprio escopo da Lei citada, que se pode retirar desde logo da Exposição de Motivos da Proposta de Lei, é o de salvaguardar o utente das entidades com as quais se vê obrigado a contratar, mas também o de defendê-lo de si próprio relativamente à possibilidade de sobre-endividamento por consumo de bens que visam a satisfação de necessidades primárias, básicas e essenciais dos cidadãos – trecho aplicável no caso em análise.
v. No que concerne ao reconhecimento da dívida, e renúncia à prescrição, o único momento em que – erradamente – pode considerar-se haver reconhecimento de dívida, foi o email de 14 de Novembro de 2013, enviado pela coordenadora técnica da divisão financeira Sr.ª M..... (Doc. n.º 28 junto à petição inicial); no entanto, não poderá o momento ser relevado como renúncia à prescrição, porquanto, nos termos do disposto no artigo 302.º, n.º 3 do Código Civil, esta, para ser admitida, tem de ser invocada por quem tem legitimidade para dispor do benefício que a prescrição tenha criado.
w. Ou seja, decorre do artigo 18.º do DL n.º 197/99, de 8 de Junho, que a competência para a autorização da despesa sem limite de valor pertence à Câmara Municipal, não podendo uma funcionária do Recorrente vincular o mesmo em tal decisão (tão pouco o seu Presidente podia).
x. A prescrição operou, produziu os seus efeitos plenos na ordem jurídica, tendo sido devidamente alegada pelo Recorrente.
y. Admitindo (como faz parte da doutrina e jurisprudência nacionais), por mera hipótese, que a referida Lei não se aplica à “relação interadministrativa” em questão, é ainda necessário destrinçar as duas qualidades do Município:
z. Se não é certo que enquanto pessoa coletiva de direito público, a quem incumbe a realização da prestação de serviços essenciais como o fornecimento de energia eléctrica, o Recorrente possa ser considerado ‘utente’ para efeitos legais, porquanto possui com a Recorrida uma relação especial de colaboração administrativa, é certo que parte do montante invocado pela Recorrida diz respeito ao próprio consumo de energia elétrica pelo Recorrente e respetivos Departamentos.
aa. Quanto a essa parcela do valor, o Recorrente figurará como consumidor final, não havendo quaisquer dúvidas acerca da aplicabilidade da Lei, nesse caso.
bb. Neste segmento, o Mmo. Juiz a quo decide pela não pronúncia, porquanto o Tribunal não tem de se colocar na posição de “adivinhar quais as facturas que se reportam” a esse fornecimento.
cc. Sucede, porém, que incorre na violação dos concretos deveres de colaboração do Tribunal com as partes, uma vez que o Recorrente trouxe aos autos esses factos logo no momento da apresentação da sua contestação, as facturas foram devida e inicialmente juntas, sendo possível identificar de forma clara a morada do consumo (e por conseguinte, as que pertencem ao Recorrente enquanto consumidor final), e que seria sensato o convite ao aperfeiçoamento do pedido, especificando o Recorrente as facturas em que figura como consumidor final.
dd. Não se trata da falta de alegação e/ou de prova dos factos essenciais pelo Recorrente (conforme refere a sentença), porque essa consta dos autos; trata-se, sim, de esclarecimento que deveria ter sido solicitado no desencadeamento do processo.
ee. Nada disto foi levado a cabo pelo Mmo. Juiz a quo, antes reservando para o momento da sentença, em claro erro de julgamento.
ff. Em suma, a sentença em análise enferma de vício, porque desfasada da realidade da Região, e sem alicerce na legislação em vigor aplicável ao caso, mostrando-se infundadas as considerações feitas em sede de sentença, merecendo a decisão de primeira instância ser revogada, deixando de permanecer na ordem jurídica.”
A recorrida apresentou contra-alegações, nas quais alcança as seguintes conclusões:
“(…)
1ª. O MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ veio interpor recurso da Sentença proferida pelo Tribunal a quo, sustentando que esta enferma de erro no julgamento da matéria de facto e na aplicação do direito
2ª. Concretamente, o RECORRENTE sustenta que a sentença recorrida padece de vício por erro na apreciação da prova produzida.
3ª. O RECORRENTE alega ainda que a sentença a quo padece de vício por erro na aplicação do Direito, aparentemente com três fundamentos distintos: (i) porque se imporia concluir que a disciplina jurídica aplicável ao presente caso é a que consta da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (ii) porque não teria ocorrido qualquer reconhecimento da dívida pelo RECORRENTE, com efeito interruptivo do prazo de prescrição; (iii) finalmente, porque a invocação, pelo RECORRENTE, da prescrição prevista na Lei dos Serviços Públicos Essenciais não se revelaria inoperante à luz do instituto jurídico do abuso do direito.
4ª. Não assiste a menor razão ao RECORRENTE quanto a qualquer dos fundamentos de recurso que invoca, devendo manter-se a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo.
5ª. Caso assim não se entenda – o que, sem conceder, se admite apenas por dever de patrocínio –, sempre deverão ser julgadas procedentes as contra-exceções invocadas pela ora RECORRIDA, condenando-se o RECORRENTE no pedido, com esse fundamento.
6ª. Apesar de anunciar pretender impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, o RECORRENTE não dá cumprimento ao ónus que para o efeito sobre si legalmente impendia, nos termos do artigo 640.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 140.º do CPTA.
7ª. Desde logo, o RECORRENTE não identifica, quer no corpo das Alegações, quer nas respetivas conclusões, os concretos pontos de facto da sentença que considera incorretamente julgados, em evidente incumprimento do previsto no artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
8ª. Considerando que a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento foi objeto de registo através de gravação, incumbia adicionalmente ao RECORRENTE, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do CPC, aplicável ex vi do artigo 140.º do CPTA, indicar as passagens da gravação dos depoimentos testemunhais que, no seu entender, imporiam uma decisão sobre a matéria de facto distinta da proferida pelo Tribunal a quo, o que também não fez.
9ª. Em face do incumprimento evidente, pelo RECORRENTE, dos requisitos previstos no artigo 640.º do CPC, aplicáveis na presente sede ex vi do artigo 140.º do CPTA, deve o recurso sobre a matéria de facto ser imediatamente rejeitado, conforme tem sido reiteradamente decidido na jurisprudência dos Tribunais administrativos superiores (cfr., neste sentido, os Acórdãos proferidos pelo TCA Norte, em 4 de dezembro de 2015, no processo n.º 00418/12.6BEPRT, e em 22 de maio de 2015, no processo n.º 132/10.7BEPNF).
10ª. Caso, todavia, não se conclua pela imediata rejeição do recurso sobre a matéria de facto – o que, sem conceder, se admite apenas por dever de patrocínio –, dando-se, ao invés, a possibilidade ao RECORRENTE de proceder ao respetivo aperfeiçoamento, a RECORRIDA desde já requer que lhe seja concedida a possibilidade, ao abrigo do princípio do contraditório e da igualdade de armas e por aplicação do regime previsto no artigo 146.º, n.º 5, do CPTA, se vir a pronunciar sobre o Recurso aperfeiçoado.
11ª. No que respeita ao recurso sobre a matéria de Direito, o RECORRENTE parece pretender discutir, antes de mais, a questão de saber, se, em face do enquadramento jurídico da atividade de distribuição de eletricidade na Madeira, os Municípios da RAM devem ou não ser qualificados como utentes para efeitos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
12ª. Nenhum dos argumentos apresentados pelo RECORRENTE logra, contudo, afastar a conclusão a que corretamente chegou a douta Sentença recorrida, no sentido de que o MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ não pode ser qualificado como utente para os efeitos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais, não se aplicando, como tal, in casu o prazo de prescrição previsto no artigo 10.º, n.º 1, deste diploma.
13ª. Sem prejuízo das especificidades da organização e do funcionamento da distribuição de energia elétrica na RAM, nesta, como em Portugal Continental, é forçoso concluir que os Municípios são os titulares do serviço público em questão, razão pela qual não constituem, para efeitos da aplicação da Lei dos Serviços Públicos Essenciais, utentes relativamente ao fornecimento de energia elétrica que contratem.
14ª. Com efeito, à luz da legislação nacional e regional em vigor, e à semelhança do que sucede no território continental, na RAM, a distribuição de energia elétrica em baixa tensão e a iluminação pública constituem atribuições municipais.
15ª. Nos termos da atual legislação estadual (cfr. Decreto-Lei n.º 29/2006 e Decreto-Lei n.º 172/2006) que regula a estrutura organizativa do setor elétrico, as atividades de transporte e distribuição de eletricidade em alta e média tensão constituem atribuição do Estado, enquanto a distribuição de energia em baixa tensão constitui atribuição dos municípios.
16ª. Assim, no território continental, não subsistem dúvidas de que a distribuição de eletricidade em baixa tensão configura uma atribuição municipal, que pode ser explorada diretamente pelos municípios ou por estes entregue, em regime de concessão de serviço público, a um terceiro.
17ª. No que respeita à titularidade municipal da tarefa de distribuição de eletricidade em baixa tensão, a legislação nacional do setor elétrico está, de resto, em conformidade com o quadro legal regulador da repartição de competências entre Estado e municípios, resultante, primeiro, da Lei n.º 159/99 e, posteriormente, da Lei n.º 73/2013.
18ª. Não obstante as especificidades que se reconhecem ao setor elétrico na RAM, a análise do quadro legal em vigor no que toca à matéria em apreço, conduz hoje à conclusão de que a distribuição de energia elétrica em baixa tensão e a iluminação pública constituem, também naquela Região Autónoma, atribuições municipais.
19ª. Apesar de, historicamente, os municípios da RAM não terem tido uma participação relevante no exercício da atividade de distribuição de energia elétrica, a verdade é que a publicação da Lei n.º 159/99 veio introduzir uma alteração neste status quo, devendo concluir-se que, após a entrada em vigor deste diploma, a atividade de distribuição de energia elétrica em baixa tensão no território na RAM passou a constituir (à semelhança do que sucedia no Continente desde 1982) um serviço público de cariz municipal.
20ª. De resto, o Decreto Legislativo Regional n.º 2/2007/M, que procedeu à transferência dos encargos com a atribuição relativa à iluminação pública para os municípios da RAM apenas se compreende neste quadro, dissipando quaisquer dúvidas sobre a municipalização do referido segmento do setor elétrico na RAM.
21ª. Em suma, a atividade de distribuição de energia elétrica em baixa tensão no território na RAM constitui, tal como no Continente, um serviço público municipal, radicando na transferência de atribuições definitivamente operada pelo artigo 17.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 159/99 (e mantida pela vigente Lei n.º 73/2013) a fonte constitutiva da titularidade desse serviço por parte dos municípios madeirenses.
22ª. A conclusão precedente em nada resulta prejudicada pela circunstância, julgada provada, de que “a Autora é proprietária das infra-estruturas de distribuição de energia elétrica na área do Município de Santa Cruz” (cfr. Facto provado n.º 21, p. 6 da Sentença).
23ª. Com efeito, também quanto a este ponto não se registam dissemelhanças significativas entre o que sucede em Portugal Continental e na RAM.
24ª. Na verdade, as infraestruturas que compõem as redes de distribuição de eletricidade em baixa tensão não constituem atual e necessariamente, no território de Portugal Continental, bens integrados na esfera de propriedade dos municípios, rectius, não são bem que integram, em todos os casos, o domínio municipal.
25ª. Também não procede o argumento do RECORRENTE segundo o qual a natureza, pressupostos e âmbito de aplicação das taxas cobradas à E.... pelos Municípios da RAM são distintos dos das rendas cobradas pelos Municípios às concessionárias da distribuição de eletricidade em baixa tensão.
26ª. O Governo Regional da Madeira veio, através do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2007/M, transferir para os Municípios da RAM a obrigação de prover iluminação pública rural e urbana nos respetivos territórios, incluindo o pagamento dos respetivos encargos ao respetivo fornecedor, a E.... (cfr. artigo 1.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2007/M).
27ª. Simultaneamente, e aproveitando a possibilidade, entretanto prevista na Lei das Finanças Locais, de os municípios cobrarem taxas pela utilização do seu domínio público, veio aquele Decreto Legislativo Regional n.º 2/2007/M consagrar, sob manifesta inspiração da legislação vigente no Continente, um mecanismo traduzido na cobrança de uma taxa única «de direitos de passagem» (ocupação dominial) à E...., como forma de os municípios se dotarem das verbas necessárias para fazer face aos encargos com a iluminação pública.
28ª. Assim, o mecanismo da taxa por ocupação privativa do domínio público foi construído, na RAM, à semelhança do das rendas pagas no Continente aos municípios pela (concessionária hoje designada) EDP Distribuição, ao abrigo da Portaria n.º 437/2001 e do Decreto-Lei n.º 17/92.
29ª. Note-se, adicionalmente, que a evolução legislativa recente veio eliminar o tratamento diferenciado dado, a nível tarifário, entre as duas prestações financeiras analisadas (taxas e rendas), pagas pela E.... na RAM e pela concessionária da distribuição de eletricidade em baixa tensão no Continente, demonstrando inequivocamente a existência de uma equivalência material entre ambas.
30ª. Com efeito, a situação anteriormente existente foi formalmente corrigida, com efeitos a partir do início do ano de 2016, por via da aprovação, com a Lei do Orçamento do Estado para 2016, de alterações ao Decreto-Lei n.º 172/2006 e ao Decreto-Lei n.º 230/2008.
31ª. Em face do exposto, deve concluir-se que os serviços públicos de distribuição de eletricidade em baixa tensão e de iluminação pública são da titularidade dos municípios madeirenses, posicionando-se a RECORRIDA E.... como entidade delegatária destes municípios, donos do serviço, na gestão daquele serviço público.
32ª. Por esta razão, inexistem quaisquer razões ligadas com a especificidade da organização e funcionamento do setor elétrico na RAM que imponham um tratamento distinto dos municípios da RAM relativamente aos municípios do Continente, designadamente para efeitos de aplicação da Lei dos Serviços Públicos Essenciais no domínio do fornecimento de eletricidade.
33ª. Considerando que os municípios, sejam eles continentais ou regionais, são os titulares do serviço público de distribuição de eletricidade e da tarefa de promoção da iluminação pública, não se vislumbra na relação entre estes e as entidades responsáveis pela distribuição de energia elétrica em baixa tensão uma relação jurídica de utente-fornecedor, no âmbito do fornecimento de eletricidade e prestação de serviços conexos.
34ª. No específico caso da RAM, este fornecimento de eletricidade e prestação de serviços conexos ocorre no quadro de uma relação jurídica interadministrativa de colaboração entre a E.... – que integra a administração regional indireta – e os municípios, sendo tal relação dominada por uma lógica de cooperação e preocupação de interesse público e, concretamente, pela consideração do interesse público prosseguido pelas autarquias.
35ª. À luz das considerações precedentes, impõe-se concluir que os municípios não podem – quer no Continente, quer no plano da RAM – ser considerados utentes do fornecimento de eletricidade para efeitos de aplicação do artigo 10.º, n.º 1, da Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
36ª. A Lei dos Serviços Públicos Essenciais visa instituir mecanismos de proteção dos utentes de serviços públicos de especial relevância, sendo certo que, apesar de o conceito de utente não se identificar com o conceito de consumidor final, é este o destinatário primacial das medidas de proteção consagradas pelo legislador.
37ª. O regime em questão visa essencialmente diminuir o crescente desequilíbrio criado pela falta de poder negocial dos consumidores em face das entidades prestadoras daquele tipo de serviços, considerados básicos, universais e essenciais à vida moderna, possibilitando uma maior transparência e equidade, num mercado em crescente globalização e dominado pela figura das cláusulas contratuais gerais potencialmente mais lesivas dos direitos dos consumidores.
38ª. No caso do fornecimento de eletricidade em baixa tensão e para iluminação pública, os municípios (no Continente e na RAM) não se relacionam com as entidades fornecedoras desse serviço na qualidade de meros utentes do mesmo, mas antes na qualidade de entidades titulares do serviço público e responsáveis e, em última análise, garantes, da atribuição em causa.
39ª. A posição ora propugnada tem sólido apoio jurisprudencial (cfr. Acórdão de 3 de novembro de 2004, proferido no processo n.º 033/04, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 19 de janeiro de 2012, proferido no processo n.º 06933/10, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 14 de março de 2013, proferido no processo n.º 00192/11.3BEVIS, e Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 9 de dezembro de 2014, proferido no conflito n.º 024/14 todos disponíveis em www.dgsi.pt).
40ª. A jurisprudência citada deve aplicar-se, mutatis mutandis, ao caso ora em apreço: embora a relação que intercede entre os dois entes não se situe no âmbito de um contrato de concessão (mas de um esquema delegatário paralelo), é manifesto que o fornecimento de eletricidade feito pela E.... ao MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ não preenche o paradigma legal da relação prestador de serviço-utente pressuposto na letra e espírito da Lei dos Serviços Públicos Essenciais, na medida em que entre ambas as entidades de desenha um esquema jurídico de colaboração administrativa, sendo o MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ ele próprio titular do serviço público em causa.
41ª. Pelo exposto, e confirmando a douta sentença proferida pelo tribunal a quo, deve julgar-se inaplicável à dívida do MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ à E.... o prazo prescricional contido no artigo 10.º, n.º 1, da Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
42ª. Deve, ainda, ser julgada totalmente improcedente a argumentação do RECORRENTE no sentido de que o prazo prescricional previsto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei dos Serviço Públicos Essenciais se aplicaria aos chamados ‘consumos próprios’ do MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ.
43ª. Na verdade, não se vislumbra que a relação jurídica estabelecida entre este Município e a E.... se descaracterize – perdendo a sua natureza de relação de colaboração interadministrativa – em função dos concretos fins visados para os quais seja utilizada a energia elétrica fornecida pela ora RECORRIDA.
44ª. Afigura-se assim desnecessário apurar com exatidão quais os valores do fornecimento de energia elétrica,objeto de cobrança nos autos, referentes a «consumos próprios» do RECORRENTE, porquanto inexiste qualquer fundamento jurídico para sujeitar os mesmos a tratamento diferenciado relativamente aos fornecimentos de eletricidade para iluminação pública, designadamente no que respeito ao prazo prescricional previsto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
45ª. A Sentença recorrida não se pronunciou sobre as contra-exceções invocadas pela E...., porquanto o conhecimento das mesmas resultou prejudicado em face da decisão dada ao litígio quanto à inaplicabilidade in casu da exceção de prescrição invocada pelo RECORRENTE.
46ª. Por esta razão, nenhum vício na aplicação do Direito pode ser imputado à Sentença recorrida quanto a estas questões.
47ª. Acautelando uma eventual procedência do presente Recurso – o que, sem conceder, se admite apenas por dever de patrocínio – requer-se subsidiariamente e ao abrigo do artigo 636.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi do artigo 140.º do CPTA, a ampliação do objeto do Recurso para efeitos de apreciação da matéria das contra-exceções invocadas pela RECORRIDA.
48ª. Assim, ainda que se considerasse que o prazo prescricional previsto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei dos Serviços Públicos Essenciais é aplicável ao fornecimento de eletricidade pela E.... ao MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ, sempre se teria de concluir o RECORRENTE teria tacitamente renunciado, nos casos em que a prescrição já tivesse ocorrido, a este benefício, tendo, nos demais casos, reconhecido a dívida existente e, dessa forma, interrompido o prazo prescricional que se se encontrasse em curso.
49ª. Resultou demonstrado em sede de audiência de julgamento que, nos contactos correntes mantidos com a E.... e com terceiras entidades, o MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ veio consistentemente a reconhecer e a aceitar a existência da dívida objeto dos autos.
50ª. Em face dos Factos Provados, não pode senão concluir-se que se não verifica a prescrição dos créditos emergentes do fornecimento de energia elétrica e serviços conexos, atendendo a que, como se viu, o MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ nunca contestou a existência e exigibilidade daqueles direitos.
51ª. O RECORRENTE foi sempre, no período temporal considerado, confirmando regularmente os valores da existência conta-corrente com os responsáveis da E.... e, adicionalmente, foi programando e prometendo regularizações da dívida, candidatando-se, inclusivamente a um programa de apoio financeiro (PAEL I).
52ª. Os referidos comportamentos não podem deixar de ser qualificados como atos (reiterados) de reconhecimento dos direitos de crédito que assistem à E.....
53ª. A factualidade provada evidencia ainda à saciedade que, ao longo de 2013, o montante da dívida de eletricidade do MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ à E.... sempre foi perfeitamente pacífico entre as Partes, assim como era inquestionada e expressamente reconhecida a necessidade de proceder à sua regularização.
54ª. Foi este, aliás, o sentido que resultou reunião que se realizou, a solicitação do próprio RECORRENTE, no dia 19 de novembro de 2013 nas instalações da E...., em que estiveram presentes o Presidente do Conselho de Administração da E.... e o Presidente da Câmara MUNICIPAL DE SANTA CRUZ, e da posterior troca de emails com acerto (de pormenor) dos valores em dívida, em que mais uma vez ficou evidenciada que este Município não só não contestava a existência do crédito em causa nos presentes autos, como manifestou inequívoca intenção de a regularizar.
55ª. Considerando que, como resulta dos Factos Provados, nos contactos correntes mantidos com a E...., o MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ veio consistentemente a reconhecer e a aceitar a existência da dívida objeto dos autos, deve concluir-se que tal prescrição teria vindo a ser objeto de sucessivas declarações tácitas de renúncia por parte do RECORRENTE, nos termos previstos no artigo 302.º do Código Civil.
56ª. Em face das sucessivas declarações tácitas do MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ, das quais decorre inequivocamente o reconhecimento da dívida à E.... e, outrossim, a disponibilidade do ora RECORRENTE para proceder à respetiva regularização, deve, adicionalmente, entender-se que tais declarações teriam determinado, nos termos do artigo 325.º do Código Civil, a interrupção dos prazos prescricionais que se encontrassem em curso.
57ª. Acresce que a E.... nunca recorreu aos tribunais para obter a satisfação dos seus créditos, pela razão de que o MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ adotou, de forma reiterada, comportamentos que criaram, na E...., a confiança e expectativa legítimas de que o ora RECORRENTE aceitava a dívida e pretendia proceder à respetiva regularização.
58ª. A situação descrita configura, pois, um caso típico de abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium e, em particular, de supressio, caracterizados pelo facto de o devedor, pela sua atitude, induzir o credor a não exercer o respetivo direito, aproveitando-se, depois, daquela inação para se liberar sem cumprir.
59ª. Assim, sempre se deveria concluir que a invocação da exceção de prescrição pelo ora RECORRENTE configuraria, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, um exercício jurídico ilegítimo de tal faculdade, i.e., uma situação de abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, impondo, em suma, a manutenção da decisão condenatória do MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o Recurso sobre a matéria de facto ser imediatamente rejeitado, julgando-se inaplicável in casu o prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei dos Serviços Públicos Essenciais, e mantendo-se, em consequência, na íntegra a Sentença recorrida. Subsidiariamente, requer-se a ampliação do âmbito do Recurso, julgando-se procedentes, por provadas, as contra-exceções suscitadas pela ora RECORRIDA.”

Perante as conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir:
- do erro de julgamento da decisão de facto;
- dos erros de julgamento da decisão de direito (i) por não considerar aplicável ao presente caso a Lei dos Serviços Públicos Essenciais; (ii) ao considerar ter ocorrido reconhecimento da dívida pelo recorrente; (iii) ao considerar inoperante a prescrição prevista na Lei dos Serviços Públicos Essenciais à luz do instituto jurídico do abuso do direito; (iv) assim não se entendendo, ao não ser considerado utente relativamente aos seus consumos de energia elétrica e dos seus departamentos..

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*

II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. Na candidatura que o Réu apresentou ao Programa I de Apoio à Economia Local – PAEL I – lançado pelo Governo da República, com base na Lei n.º 43/2012, de 28 de Agosto e na Portaria n.º 281-A/2012, de 14 de Setembro, da qual deu conhecimento à Autora, o mesmo mencionou no passivo a ser liquidado com recurso a apoio financeiro, no Quadro VI, do Anexo II da candidatura, “Lista de pagamentos em atraso (PA) a financiar com o empréstimo a contratar” as facturas de fornecimento de electricidade e prestação de serviços conexos devidas à Autora, entre 2004 e 2011, com o valor total de €1.026.846,20 (quanto à dívida protocolada em 2000, com prestações vencidas entre 2004 e 2011) e de €1.392,686,28 (quanto à dívida de fornecimento de electricidade e serviços facturados entre 2004 e 2011 e no Quadro VII, do Anexo II da candidatura, como dívidas a liquidar através de uma linha alternativa de financiamento, as facturas emitidas no ano de 2012, com o valor total de €129.386,56.
2. Por e-mail, enviado em 7 de Setembro de 2010, a Autora informou o Réu que o “mecanismo dos direitos de passagem” permitira liquidar facturas de 2006 a 2009, num valor global de €1.350.000,00, sendo a dívida vencida de fornecimento de electricidade e serviços conexos à da ta de 31.12.2009 de €754.730,19 quanto à parte não protocolada e de €431.407,10 quanto à parte abrangida pelo protocolo de 19 de Janeiro de 2000.
3. Por e-mail, enviado em 2 de Agosto de 2011, a Autora informou o Réu que os mecanismos do direito de passagem relativo a 2010 permitira compensar dívida no montante de €267.762,65, sendo a dívida não protocolada, em 31.12.2009, de €937.010,56.
4. Por e-mail, enviado em 2 de Julho de 2012, a Autora informou o Réu que o encontro de contas relativo ao ano de 2011 permitira compensar dívida no montante de €227.429,53, propondo a celebração de um novo protocolo que permitisse a regularização da dívida anteriormente contraída no montante de €1.550.030,12.
5. Por e-mail, enviado em 10 de Julho de 2013, a Autora indicou que a última parcela do excedente do Réu sobre os direitos de passagem relativa a 2012 fora apurada no montante de €30.456,73, solicitando que esse montante fosse aplicado especificamente no ano de 2013, uma vez que a dívida acumulada até ao final de 2012 (quer protocolada, quer não protocolada), no valor total de €1.645.109,11 viria expectavelmente a ser liquidada com a apoio do PAEL I.
6. No dia 19 de Novembro de 2013, realizou-se nas instalações da Autora uma reunião entre o seu Presidente do Conselho de Administração, Sr. Dr. R..... e o Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz, Senhor F....., que se fez acompanhar da sua chefe de gabinete.
7. A reunião foi solicitada pelo Réu, através de fax de 6 de Novembro de 2013, enviado pelo Vice-Presidente do Município ao Presidente do Conselho de Administração da Autora, “no sentido de abordar assuntos de relevante interesse para o município de Santa Cruz.”
8. A Autora respondeu por ofício de 12 de Novembro de 2013, assinado pelo Sr. Dr. R....., tendo manifestado total disponibilidade para a realização da reunião, sugerindo a data de 19 de Novembro de 2013, às 11:00 horas, na sede da Autora e acrescentando que a oportunidade poderia ser aproveitada concretamente “para dar seguimento ao processo já em curso de regularização da dívida de energia eléctrica e serviços conexos.”
9. Na reunião, ocorrida em 19 de Novembro de 2013, foi abordado o tema da regularização das dívidas da electricidade e serviços conexos do Réu à Autora, tendo o Sr. Dr. R..... referido que tinha conhecimento da integração da dívida em causa no PAEL I, esperando a regularização da mesma.
10. O Senhor F..... respondeu que a regularização da dívida estava a ser avaliada e tratada no contexto da globalidade da dívida do Réu.
11. A Autora comprometeu-se a enviar aos responsáveis da área financeira do Réu informação detalhada sobre a dívida, o que fez nesse próprio dia, por e-mail, enviado às 15h50, pelo Senhor Dr. B....., da Autora, aos Senhores J....., Vice -Presidente do Município e Dr. N....., responsável pela área financeira do Réu.
12. No e-mail foi efectuada referência à reunião ocorrida, tendo sido referido que a dívida de capital, à data de 2013.09.30, não protocolada, atingia o valor de €1.473.827,39.
13. Em 19 de Setembro de 2013, a coordenadora técnica da divisão financeira do Réu – Senhora D. M.....– enviou um e-mail ao responsável da Autora no sentido de “solicitar com a brevidade possível, a conta corrente do município até 31.08.2013.”
14. O Senhor Dr. B....., da Autora, respondeu através de e-mail de 26 de Setembro de 2013, ao qual anexou a informação pedida e solicitou a confirmação dessa informação pelo Réu.
15. No excel anexo ao referido e-mail foram listados diversos elementos das facturas em dívida protocolada e não protocolada e, por outro lado, foram apresentadas duas tabelas de resumo dos valores dessa dívida, delas se podendo concluir que, de acordo com as informações da Autora, à data de 31.08.2013, a dívida do Réu não protocolada atingia o montante de €1.476.188,00 e a dívida vencida, protocolada e não protocolada, €1.572.056,24.
16. O Réu respondeu a esta informação através de e-mail de 14 de Novembro de 2013 e, nele, confirmou no essencial a informação da Autora, apresentando apenas alguns reparos de expressão financeira, os quais foram logo resolvidos pelas partes.
17. Em 13 de Janeiro de 2014, O Réu enviou à Autora, por fax, um ofício assinado pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal, Senhor J....., no qual invocou a prescrição, por terem decorrido seis meses sobre o seu fornecimento, e o consequente não pagamento das facturas de electricidade emitidas pela Autora ao Réu entre 2005 e 2012 no valor de €1.185.112,80.
18. A Autora respondeu por carta de 17 de Janeiro de 2014, na qual considerou manifestamente improcedente a prescrição invocada e, ademais, a sua frontal contradição com a atitude que sempre viera sendo manifestada, nesta matéria, pelo Réu, assim como a relação de cooperação e de confiança mútua que sempre fora estabelecida entre as duas partes.
19. O Réu reafirmou a sua posição através de ofício de 31 de Janeiro de 2014.
20. A Autora emitiu as facturas descriminadas no documento n.º 38 e juntas ao processo no documento n.º 39, referentes a energia e serviços prestados ao Réu, nos anos de 2004, 2005, 2009, 2010, 2011 e 2012, que, pela sua extensão, aqui se dão por integralmente reproduzidas, no valor total de €1.440.994,96.
21. A Autora é proprietária das infra-estruturas de distribuição de energia eléctrica na área do Município de Santa Cruz.”

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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, as questões a decidir cingem-se a saber se ocorrem erros de julgamento:
- da decisão de facto;
- da decisão de direito (i) por não considerar aplicável ao presente caso a Lei dos Serviços Públicos Essenciais; (ii) ao considerar ter ocorrido reconhecimento da dívida pelo recorrente; (iii) ao considerar inoperante a prescrição prevista na Lei dos Serviços Públicos Essenciais à luz do instituto jurídico do abuso do direito.


a) do erro de julgamento de facto

Vem o recorrente impugnar a decisão da matéria de facto, pretendendo o aditamento de factualidade ao probatório.
Dispõe como segue o artigo 640.º do CPC, sob a epígrafe ‘ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto’:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Daqui decorre que, ao impugnar a matéria de facto em sede de recurso, recai sobre o recorrente o ónus de indicar (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e (ii) os concretos meios probatórios que impõem decisão distinta, mais devendo identificar precisa e separadamente os depoimentos caso se trate de meios probatórios gravados.
E cabe-lhe alegar o motivo pelo qual os meios probatórios que indica impõem decisão diversa e também porque motivo os meios probatórios tidos em conta pelo tribunal não permitem se considere provado determinado facto.
Há que ter ainda em consideração que é em função da definição do objeto do processo e das questões a resolver nos autos que deve ser apreciada a relevância da matéria fáctica alegada pelas partes. Assim, nem toda a matéria fáctica que se possa considerar provada deve ser levada, sem mais, ao probatório.
E como é consabido, os factos respeitam à ocorrência de acontecimentos históricos, afastando-se de tal qualificação os juízos de natureza valorativa, que comportam antes conclusões sobre factos.
Outrossim, deve ter-se em consideração que no novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, se optou por reforçar os poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada, incrementados os respetivos poderes e deveres, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material, conforme consta da exposição dos motivos e se consagra no atual artigo 662.º, n.º 1, “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Isto sem que, nesta reapreciação, especificamente quando se trate de analisar a gravação dos depoimentos prestados em audiência, como ocorre no caso, se olvide a livre apreciação da prova obtida em primeira instância, assente nos princípios da imediação e da oralidade, cf. artigos 396.º do Código Civil e 607.º, n.º 5, do CPC.
Vejamos então se tem fundamento o invocado.
As conclusões da alegação de recurso delimitam as questões a apreciar, sendo que na impugnação da matéria de facto dali deverá pelo menos constar a indicação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados.
Assim delimitada a matéria da impugnação e percorridas todas as conclusões, com digressões sobrepostas e indistintas sobre a matéria de facto e a de direito, podemos dali retirar que pretende o recorrente que se dê como provado:
(i) que existe uma diferença no sistema de gestão e fornecimento de energia elétrica entre a RAM e Portugal continental;
(ii) que as atribuições só passaram, por lei, para as autarquias locais porque o Governo Regional já apresentava um endividamento cifrado em milhões, e, por outro lado, a recorrida não podia fazer face aos encargos do sector, pelo que foi criado o mecanismo de escape para os Municípios, que traduziu um verdadeiro ‘cheque em branco’ responsabilizador dos mesmos.
É patente que o recorrente não cumpriu os ónus que sobre si recaíam, supra indicados, com o que a presente impugnação necessariamente claudica.
Com efeito, é patente a falta de identificação precisa e separada dos concretos meios probatórios que impõem decisão distinta da matéria de facto.
Pelo exposto, improcede totalmente a impugnação da decisão de facto.


b) do erro de julgamento de direito

Nesta sede, vem sustentar o recorrente que a sentença padece de erro, porquanto (i) não considerou aplicável ao presente caso a Lei dos Serviços Públicos Essenciais; (ii) considerou ter ocorrido reconhecimento da dívida pelo recorrente; (iii) considerou inoperante a prescrição prevista na Lei dos Serviços Públicos Essenciais à luz do instituto jurídico do abuso do direito; e (iv) ainda assim não se entendendo, ao não ser considerado utente relativamente aos seus consumos de energia elétrica e dos seus departamentos.
Consta da sentença recorrida a fundamentação que segue:
[N]os termos dos arts. 1.º e 5.º deste diploma legal [Decreto Legislativo Regional n.º 2/2007/M, de 8 de Janeiro] e em consonância com a legislação nacional, com efeitos desde o início do ano fiscal de 2006, foi transferida para os municípios da Região Autónoma da Madeira a obrigação de prover a iluminação pública rural e urbana e, nomeadamente, a obrigação de suportar os encargos inerentes a essa atribuição.
Em contrapartida, nos termos do art. 2.º, o montante da taxa de ocupação do domínio público municipal passou a ser livremente fixado pelos órgãos competentes de cada município ou pelos órgãos competentes da entidade para a qual os municípios tenham transferido as competências em causa, em função do consumo de energia eléctrica em baixa tensão na área geográfica da Região Autónoma da Madeira, tendo como limite máximo a percentagem de 7,5% do valor anual das vendas de energia eléctrica em baixa tensão na Região Autónoma da Madeira ou no município, consoante os municípios tenham, ou não, transferido as competências para outra entidade.
A partir desta data, deixou de constituir atribuição do Governo Regional a iluminação pública municipal.
Deste modo, a tarefa de garantir o funcionamento de uma rede de iluminação pública urbana e rural passa a estar conformada, no ordenamento jurídico nacional e regional, como uma atribuição municipal.
É neste quadro que a Autora fornece energia eléctrica e presta serviços conexos ao Réu.
A Autora é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, conforme decorre do art. 1.º do Decreto Legislativo Regional 14/94/M, de 3 de Junho, que tem por objecto a produção, transporte e distribuição de energia eléctrica em todo o território na Região Autónoma da Madeira.
De acordo com o quadro jurídico delineado, o Réu é o responsável pelo serviço público de fornecimento de energia eléctrica para iluminação pública, tendo delegado tal função na Autora.
Contudo, alega o Réu que a relação jurídica que estabelece com a Autora é distinta da relação estabelecida entre os municípios de Portugal Continental e as concessionárias do serviço público de distribuição de electricidade.
Em Portugal Continental, ao contrário da Região Autónoma da Madeira, a actividade de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão continua a ser desenvolvida ao abrigo de contratos de concessão outorgados pelos municípios, os quais implicam o pagamento ao respectivo município concedente de uma renda anual devida pela exploração da concessão.
Este regime, que estabelece a renda devida aos municípios pela exploração da concessão de distribuição de electricidade em baixa tensão, encontra-se previsto no Decreto-Lei n.º 230/2008, de 27 de Novembro.
Apesar de na Região Autónoma da Madeira a actividade de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão não ser desenvolvida nos mesmos moldes do que em Portugal Continental, através da celebração de contratos de concessão, há uma identidade substancial ou material entre a relação jurídica estabelecida pelo município Réu e pelo prestador do serviço, a Autora.
Quer em Portugal Continental, quer na Região Autónoma da Madeira, as atribuições dos municípios no domínio da energia resultam directamente da lei, sendo que é esta atribuição legal que lhes permite concessionar ou delegar a distribuição de energia eléctrica em baixa tensão em entidades terceiras.
Contudo, não é pelo facto de ser uma entidade terceira a executar esta actividade que o município perde a sua caracterização de entidade pública, sujeita à prossecução do interesse público na gestão referente a tal domínio.
É que, apesar da relação jurídica existente entre a Autora e o Réu, certo é que este mantém a titularidade dos direitos e poderes relativos à organização e gestão do serviço público, como o poder de regulamentar e de fiscalizar a gestão que a Autora efectua, aplicando-se aqui, no essencial, os princípios da tutela administrativa. O serviço público em causa nunca deixa, pois , de ser uma atribuição e um instrumento do Réu, que continua dono do mesmo, sendo a Autora que recebe o encargo de o gerir por sua conta e risco.
Tal regime é assim quer na Região Autónoma da Madeira, quer em Portugal Continental.
Deste modo, o Réu é o titular do serviço público. O Réu mantém a competência para planear, gerir e realizar investimentos no domínio da energia eléctrica, sendo ele próprio o garante e responsável pela prestação do serviço de fornecimento de energia eléctrica pública.
Mas, para além disso, a taxa que é cobrada pelo Réu, directa ou indirectamente, na Região Autónoma da Madeira é material e funcionalmente equivalente às rendas cobradas pelos municípios em Portugal Continental (cfr. Decreto-Lei n.º 230/2008, de 27 de Novembro).
Ambas constituem contra-prestações pelos direitos de passagem, estabelecidas por lei a favor dos municípios, visando dotar os mesmos das verbas necessárias para fazerem face ao encargo de iluminação pública.
E ambas legitimam a ocupação do domínio público municipal com as infra-estruturas de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão, ficando, em ambos os casos, o devedor dispensado de pagar qualquer outra contrapartida pela utilização dos bens dominiais (cfr. art. 3.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 230/2008, de 27 de Novembro e art. 3.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2007/M, de 8 de Janeiro).
Atenta esta análise, o facto de a Autora ser a proprietária das infra-estruturas de distribuição de energia eléctrica, nos termos alegados pelo Réu, revela-se inócuo para a qualificação do município como utente nos termos e para os efeitos da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.
Face a todo o exposto, não se concebe que o diferente regime de exploração da actividade de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão que, por razões históricas, vigora na Região Autónoma da Madeira, legitime um tratamento distinto ou diferenciado a nível da prescrição relativamente aos municípios desta Região em comparação com os de Portugal Continental, tal como pretende o Réu.
Tal não decorre directamente da letra da lei, nem do seu espírito.
Mas mais ainda, qualquer interpretação nesse sentido levaria à admissão de um tratamento diferenciado e injustificado na gestão municipal regional face à gestão municipal em Portugal Continental.
Saliente-se ainda que a própria Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, no art. 10.º, referente às organizações representativas de utentes na definição do enquadramento jurídico dos serviços públicos, estabelece uma clara diferenciação entre os utentes dos serviços públicos abrangidos pelo diploma e as entidades obrigadas à satisfação desses serviços públicos essenciais, designadamente as autarquias.
Resumindo, o Réu não é o utente e muito menos o consumidor final do serviço público de fornecimento de energia eléctrica para iluminação pública, prestado pela Autora, cfr. neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 03/11/2004, Processo n.º 033/04, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 19/01/2012, Processo n.º 06933/10, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 14/03/2013, Processo n.º 00192/11.3BEVIS-B e Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 08/10/2015, Processo n.º 0755/15, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Deste modo, concluo que não é aplicável ao presente caso o regime previsto na Lei n.º 23/96, de 26 de Julho e, consequentemente, não se verifica a prescrição invocada pelo Réu.
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Alega ainda, o Réu, que deverá ser considerado utente para efeito de aplicação da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho relativamente aos seus consumos de energia eléctrica e dos seus departamentos.
Nos termos do art. 572.º alínea c) do Código de Processo Civil, na contestação deve o Réu expor os factos essenciais em que se baseiam as excepções deduzidas.
Analisando a alegação do Réu constante da contestação apresentada, e sem prejuízo da análise jurídica que viesse a ser efectuada, verifica-se desde logo que este não discrimina/concretiza, como lhe competia, quais as facturas que se referem aos seus consumos de energia eléctrica e dos seus departamentos, limitando-se a alegar de forma genérica a prescrição, utilizando a fórmula da lei.
Ao alegar nos termos em que o fez, o Réu coloca o Tribunal na posição de ter de adivinhar quais as facturas que se reportam aos fornecimentos de electricidade efectuados aos seus serviços e/ou departamentos.
Contudo, a tal obsta desde logo o princípio do dispositivo, expres so no art. 5.º, n.º 1 do CPC, expresso como o ónus de alegação das partes, não cabendo ao Tribunal fazer a averiguação dos factos essenciais para a causa que aquelas não tragam ao processo.
A indicação do pedido e da causa de pedir, bem como a alegação dos factos essenciais correspondentes são da inteira responsabilidade do Autor, ou do Réu no caso das excepções ou reconvenção que efectue, não podendo o Juiz substituir-se às partes. Não assiste ao Juiz o poder/dever de dizer ao Autor ou ao Réu qual deve ser o pedido formulado para a causa de pedir alegada ou qual deve ser a causa de pedir que deve alegar.
Refira-se ainda que, a exacta formulação do pedido e dos factos essenciais que o fundamentam é determinante, pois o tribunal apenas pode conhecer daquilo que se lhe pede e na medida em que se lhe pede, de acordo com o disposto no art. 609.º, n.º 1 do CPC.
Assim, por falta de alegação dos factos genéticos da excepção alegada, não se analisa a mesma nesta vertente.
Ao que contrapõe o recorrente, em síntese:
- o DLR n.º 2/2007/M prevê a transferência da atribuição relativa à iluminação pública rural e urbana para os Municípios da RAM, mas apenas no plano formal/jurídico, sem que a transferência fosse acompanhada dos meios humanos, recursos financeiros e património adequados, como impõe o art. 3.º, n.º 2, da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro;
- a gestão e a exploração da rede de distribuição de energia elétrica sempre esteve no domínio da recorrida, não podendo o recorrente chamar a si a exploração da rede;
- o recorrente deve ser considerado ‘utente’ para efeitos do disposto na Lei dos Serviços Públicos Essenciais, beneficiando do prazo de prescrição aí previsto;
- o reconhecimento da dívida e renúncia à prescrição assentam em declaração de quem não tem legitimidade para dispor do benefício que a prescrição cria;
- pelo menos parte do montante invocado pela recorrida diz respeito ao consumo de energia elétrica pelo recorrente e respetivos departamentos, aí figurando como consumidor final, não havendo quaisquer dúvidas acerca da aplicabilidade da Lei.
Vejamos então.
Conforme descrito, a recorrente entende ser-lhe aplicável a Lei n.º 23/96, de 26 de julho, que criou no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais.
Este diploma abrange os serviços de fornecimento de energia elétrica aos utentes, entendidos como pessoa singular ou coletiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo, cf. artigo 1.º, n.º 2, al. b), e n.º 3.
Por seu turno, o Decreto Legislativo Regional n.º 2/2007/M, de 8 de janeiro, como se assinala na sentença recorrida, transferiu a atribuição relativa à iluminação pública rural e urbana para os municípios da Região Autónoma da Madeira, com a contrapartida de passarem a fixar livremente o montante da taxa de ocupação do domínio público municipal, cf. artigos 1.º, 2.º e 5.º.
Assim cumprindo o desiderato da Lei 159/99, de 14 de setembro (que se manteve com a Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro), segundo a qual os encargos com a iluminação pública são atribuídos aos municípios, e da Lei das Finanças Locais, segundo a qual é o município que tem competência para cobrar taxas pela utilização do domínio público municipal.
Afigura-se, pois, como inequívoco ser o recorrente o responsável pelo serviço público de fornecimento de energia elétrica para iluminação pública, atribuição delegada na recorrida no quadro de uma relação jurídica de colaboração administrativa.
Como se salienta na decisão recorrida, não obstante a atividade de distribuição de energia elétrica em baixa tensão na Região Autónoma da Madeira não ser desenvolvida nos mesmos moldes do que em Portugal Continental, através da celebração de contratos de concessão, há uma identidade substancial na respetiva relação jurídica. E isto porque, tanto num caso como no outro, as atribuições dos municípios no domínio da energia resultam expressamente da lei, podendo concessionar ou delegar a distribuição em entidades terceiras, mantendo-se o município como titular do serviço público e podendo cobrar taxas, que constituem contraprestações pelos direitos de passagem, estabelecidos por lei a favor dos municípios, visando dotar os mesmos das verbas necessárias para fazerem face ao encargo de iluminação pública.
Como bem se vê, e constitui jurisprudência consensual desta jurisdição, os entes públicos na situação jurídica da aqui recorrente não podem ser vistos como utentes de serviços públicos essenciais, no quadro da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, cf. os citados acórdãos do STA de 03/11/2004, proc. n.º 033/04, e de 08/10/2015, proc. n.º 0755/15, do Tribunal dos Conflitos de 09/12/2014, proc. n.º 024/14, deste TCAS de 19/01/2012, proc. n.º 06933/10, e do TCAN de 14/03/2013, proc. n.º 00192/11.3BEVIS (disponíveis em www.dgsi.pt).
Como tal, não se verifica o erro de julgamento da decisão de direito identificada em (i), quedando necessariamente prejudicadas as questões suscitadas em (ii) e (iii).
Finalmente, entende a recorrente que deverá ser considerado utente para efeito de aplicação da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, relativamente aos seus consumos de energia elétrica e dos seus departamentos.
Está em causa matéria de exceção, em que cabia ao réu, aqui recorrente, expor na contestação os factos essenciais em que se baseia, cf. artigo 572.º, al. c), do CPC.
Sendo inelutável, como se assinala na sentença, que na contestação não são identificadas as faturas que se referem aos seus consumos de energia elétrica e dos seus departamentos, limitando-se a alegar de forma genérica a respetiva prescrição.
Com isto se afigura patente a bondade do decidido em primeira instância.
Segundo o artigo 5.º, n.º 1, do CPC, “[à]s partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.”
No n.º 2 deste artigo é enunciado o regime legal quanto ao conhecimento dos factos instrumentais e dos factos que sejam complemento ou concretização dos alegados:
“Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”
Como entender não estar em causa factualidade essencial?
Nas palavras de Lopes do Rego (Comentário ao Código de Processo Civil, 1999, págs. 200/201), “[o]s factos essenciais são os que concretizando, especificando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor ou do reconvinte, ou a exceção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, se revelam decisivos para a viabilidade ou procedência da ação”, enquanto os factos instrumentais se destinam “a realizar a prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa”.
Estão em causa factos que não foram alegados pelo réu/recorrente, a identificação das faturas que se referem aos seus consumos de energia elétrica e dos seus departamentos, que fundam evidentemente a pretensão de ser considerado utente e verificação da presunção do respetivo pagamento.
Estamos, pois, perante factos essenciais, que o réu/recorrente não alegou.
Como tal, não podia o tribunal dos mesmos conhecer.

Em suma, será de negar provimento ao presente recurso e manter a decisão recorrida.
Com o que queda necessariamente prejudicada a pretendida ampliação do objeto do recurso.

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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao presente recurso e manter a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 31 de março de 2022
(Pedro Nuno Figueiredo)

(Ana Cristina Lameira)

(Ricardo Ferreira Leite)