Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:05249/09
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:02/26/2015
Relator:CRISTINA DOS SANTOS
Descritores:EXECUÇÃO DE JULGADO ANULATÓRIO – JUROS DE MORA - RECONSTITUIÇÃO DO STATU QUO ANTE –
Sumário:1.O cumprimento do dever de executar o efeito repristinatório da anulação circunscreve-se à reconstituição do statu quo ante, isto é, da situação inicial que existia no momento da intervenção ilegal, e concretiza-se na remoção da situação de agressão que a alterou no plano dos factos, nomeadamente, na remoção das consequências “directas ou imediatas” do acto anulado.

2.Em execução de julgado anulatório de acto de exoneração de funcionário, são devidos juros de mora pelos vencimentos que o funcionário deveria ter auferido se o acto de exoneração anulado não tivesse sido praticado.

3.Os juros de mora têm como momento constitutivo a interpelação judicial da Administração, e não a data (mês e ano) em que as retribuições exequendas deveriam ter sido pagas não fora o acto de exoneração – cfr. artºs. 805º nº 1 ex vi 806º nº 1 C. Civil.

4.Os juros de mora são calculados sobre a dívida exequenda em montante líquido, em resultado da aplicação dos descontos legais e deduções por eventuais retribuições auferidas pelo exequente.

5.Não há lugar a juros de mora se o crédito for ilíquido e a falta de liquidez não for imputável à entidade administrativa na causa – cfr. artº 805º nº 3 C.Civil.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Luís ………………, com os sinais nos autos, inconformado com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa dela vem recorrer, concluindo como segue:

1. Segundo ensina o Prof. Freitas do Amaral o conteúdo da execução de uma sentença anulatória consubstancia-se em três operações: "1° A substituição do acto anulado por outro que seja válido sobre o mesmo assunto; 2° A suspensão dos efeitos do acto anulado, sejam eles positivos sejam negativos; 3° A eliminação dos actos consequentes do acto anulado."
2. O reconhecimento do direito aos vencimentos (ainda que a diferença entre os vencimentos auferidos e aqueles que deveriam ter sido abonados), é a concepção que melhor se amolda ao princípio da execução integral das sentenças administrativas anulatórias. Tendo esse direito sido reconhecido na douta sentença recorrida significa que tal corresponde ao cumprimento de uma obrigação pecuniária em mora, devendo também o Executado e ora recorrido condenado a cumprir o pagamento dos juros moratórios legais, nos termos do disposto nos arts 550°, 805° e 806° do Código Civil, disposições afrontadas pela douta sentença.
3. Tal cumprimento de obrigação pecuniária deve corresponder tal como se refere no AC. do STA de 09-01-93, A.D. n° 379, p. 761, ao pagamento de juros, citamos, "devidos relativamente a cada vencimento de cada mês e ano, á taxa legal, e a partir do momento em que deveriam ter sido abonados ". Cfr. Portarias 263/99, de 12/04 e 291/03 de 8/04.

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O Município do Barreiro, ora Recorrido, contra-alegou concluindo como segue:

1. A recorrida não se constituiu em mora.
2. Sendo ilíquida a obrigação de pagar uma quantia substitutiva só após a sua fixação judicial poderiam ser devidos juros.
3. Em homenagem pelo princípio do pedido, nunca o Tribunal poderia acolher a pretensão de condenar a recorrida em juros porquanto o recorrente não alegou qual o termo inicial da contagem pretendida

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Colhidos os vistos legais dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos e entregues as competentes cópias, vem para decisão em conferência.

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Pelo Senhor Juiz foi julgada provada a seguinte matéria de facto.

A. Em 20/05/2005 foi proferida sentença, no âmbito do recurso contencioso de anulação sob n° 160/2001, 2a Secção, do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que o julgou procedente, anulando o acto recorrido, datado de 20/12/2000, por falta de fundamentação - doe. de fls. 9-18 dos autos e cfr. proc. apenso;
B. Interposto recurso jurisdicional, por acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 27/04/2006 foi a sentença recorrida confirmada - cfr. fls. 20-25 dos autos;
C. Em Outubro de 2006 o ora Exequente instou o Executado a dar execução ao julgado - Acordo;
D. A partir de 04/11/2002 o ora Exequente passou a desempenhar funções como Arquitecto de 2a classe na Câmara Municipal de Setúbal, como contratado -Acordo e cfr. does. de fls. 53 e 73 dos autos;
E. Em 04/11/2005 o ora Exequente celebrou com a Câmara Municipal de Setúbal contrato administrativo de provimento, como arquitecto estagiário de 2a classe -Acordo e cfr. doe. de fls. 53;
F. Em 02/11/2006 o ora Exequente ingressou no quadro de pessoal da Câmara Municipal de Setúbal - Acordo e doe. de fls. 53;
G. Entre Novembro de 2002 a Novembro de 2005, o ora Exequente foi abonado no valor ilíquido de € 46.899,46; entre Dezembro de 2005 a Novembro de 2006 o ora Exequente auferiu o no valor ilíquido de 14.160,71 e de Dezembro de 2006 a Janeiro de 2007 auferiu o valor ilíquido de € 2.575,36 -cfr. doe. de fls. 73 dos autos;
H. O Exequente intentou os presentes autos de execução de sentença em 29/01/2007 - doe. de fls. 2 dos autos;



DO DIREITO


No caso trazido a recurso a densificação específica do dever de executar de acordo com o regime substantivo do artº 173º CPTA traduz-se nas duas vertentes de tutela integrativa e reparatória, sendo que nesta segunda as partes divergem quanto à condenação em juros de mora sobre os vencimentos.


1. objecto da acção de execução de sentença;


Como nos diz a doutrina especializada, o processo de execução de sentenças de anulação regulado nos artºs. 173º a 179º CPTA “(..) funciona como um complemento de natureza declarativa da acção administrativa especial, nos termos do nº 3 do artº 47 CPTA (..)” cujo objecto processual “(..) inclui a averiguação da existência de causa legítima de inexecução, a especificação do conteúdo do dever de executar a sentença de anulação proferida por referência ao artº 173º CPTA, a apreciação jurídica dos actos praticados durante a fase de execução espontânea e a fixação de indemnização por inexecução. (..)
(..) no processo de execução de sentença de anulação não é o autor que delimita livremente o objecto e o fim processual; estes estão pré-delimitados pelo conteúdo da sentença de anulação exequenda … apesar da sua estrutura declarativa, o processo de execução de sentenças de anulação sempre foi nomeado como um processo executivo, com o argumento de que o seu objecto visa densificar os limites e os deveres de actuação administrativa que decorrem de uma sentença, e não apenas da lei. (..)”(1)

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De acordo com o probatório o acto anulado (acto de exoneração do Presidente da Câmara do Barreiro) é de 21.12.2000, de modo que desde 21.12.2000 até 03.11.2002, como expresso na sentença, “(..) deve o Exequente ser abonado das remunerações e abonos que deveria ter auferido … procedendo o Executado aos respectivos descontos legais e para efeitos de aposentação.(..)” – fls. 85 dos autos.
Entre 04.11.2002 a 29.01.2007 período em que o ora Recorrente passou a desempenhar funções como Arquitecto de 2a classe na Câmara Municipal de Setúbal, primeiro como contratado e no quadro de pessoal a partir de 02/11/2006 (inclusive), cabe proceder às deduções em função de “(..) aquilo que efectivamente auferiu no âmbito da Câmara Municipal de Setúbal. (..)” – fls. 85 dos autos.
Portanto, cumpre saber se os juros de mora requeridos cabem no objecto do dever de executar.


2. efeito repristinatório da anulação - reconstituição do statu quo ante;


Em ordem a delimitar o âmbito da reconstituição da situação actual hipotética que existiria se o acto anulado (despacho de 21.12.2000) não tivesse sido praticado (artº 173º nº 1 CPTA), conforme o enquadramento doutrinário que vimos seguindo importa ter presente que “(..) Ao nível do conteúdo, a execução do efeito repristinatório da anulação concretiza-se na recolocação do interessado na posição da qual o acto anulado o tinha retirado, restabelecendo a situação que existiria no momento em que esse acto foi praticado.
O cumprimento do dever de executar o efeito repristinatório da anulação circunscreve-se, deste modo, à reconstituição do statu quo ante, isto é, da situação inicial que existia no momento da intervenção ilegal, e concretiza-se na remoção da situação de agressão que a alterou no plano dos factos.
(..) a tutela de conteúdo repristinatório, pressupondo a existência de uma situação prévia cuja integridade se trata de restabelecer, não tem a função de reparar eventuais lucros não produzidos, efeitos que não integravam a situação inicial e que só com o decurso do tempo e o desenvolvimento da situação inicial se teriam formado.
(..) poderá dizer-se que [nos deveres de conteúdo repristinatório nos quais a Administração pode ficar automaticamente constituída por efeito da anulação] do que se trata é de remover as consequências “directas ou imediatas” do acto anulado, no sentido de que, desde o início, se apresentavam como efeitos típicos da prática desse acto, por ele estatuídos como efeitos próprios decorrentes do seu “conteúdo regulador” – nisso se distinguindo das consequências “indirectas ou mediatas”, das quais a modificação que o acto introduziu também tenha sido causa adequada, mas cuja produção não se apresentava, à partida, como efeito típico desse acto, nem, por isso, a respectiva remoção como consequência automática da sua anulação. (..)” (2)

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Por outro lado, a execução do efeito repristinatório em cumprimento do julgado anulatório do acto de demissão de funcionário traduzido nos actos e medidas que deveriam ter sido adoptados, assumem natureza jurídica diversa e têm um alcance distinto relativamente ao acto anulado.
Efectivamente, em situações deste tipo “(..) não está em causa o exercício do mesmo poder, nem tão-pouco de um qualquer poder de definição conformadora da situação jurídica … do funcionário.
A definição jurídica que tais actos contêm pode dizer-se que é uma definição secundária, na medida em que toma por pressuposto o quadro jurídico resultante da anulação, sem nele introduzir uma verdadeira inovação. Nas palavras de Freitas do Amaral, uma vez “obtida a incontestabilidade da decisão jurisdicional, é natural que surja o dever de executar, pois a sentença exprime já definitivamente a vontade concreta da lei .
Por este motivo, aqueles actos não constituem substituição do acto anulado, mas execução do efeito repristinatório da anulação. (..) não está em jogo um poder de dar nova definição às situações jurídicas existentes, mas de, pelo contrário, extrair consequências de um quadro jurídico que já se encontra prévia e heterónomamente determinado pela sentença de anulação. (..)” (3)


3. momento constitutivo dos juros de mora sobre as remunerações exequendas;


De quanto vem de ser dito decorre que os juros de mora pelos vencimentos que o ora Recorrente deveria ter auferido se o acto de exoneração anulado não tivesse sido praticado, têm como momento constitutivo a interpelação judicial para cumprir, no caso, a citação do Município Recorrido para execução, regime estatuído nos artº 805º nº 1 ex vi 806º nº 1 C. Civil (salvo se o crédito for ilíquido e a falta de liquidez não for imputável à entidade administrativa na causa, vd. artº 805º nº 3 C.Civil) e não a data (mês e ano) em que as retribuições exequendas deveriam ter sido pagas ao ora Recorrente não fora o acto de exoneração de 20.12.2000 anulado por sentença de 20/05/2005 confirmada por acórdão de 27/04/2006.
A razão de reportar o momento constitutivo dos juros de mora à citação do Município Recorrido é esta: a situação dos autos não se reporta a vencimentos em atraso de pagamento, ou seja, a obrigações de prazo certo e em atraso, porque entre o momento do não pagamento e o momento em que a Administração tem de pagar se interpõe a sentença de 20/05/2005, anulatória do acto de exoneração de 20.12.2000, entretanto confirmada, como vem sendo dito, por acórdão de 27/04/2006.
Tal significa que o quadro jurídico de referência não é o poder administrativo de redefinir a situação jurídica de exoneração de 20.12.2000 do ora Recorrente mas, como dito acima, “o quadro jurídico resultante da anulação” de 20/05/2005.
De acordo com esta lógica, a execução do efeito repristinatório não traduz o reexercício do poder administrativo manifestado no acto de exoneração de 20.12.2000, antes é consequência da pronúncia jurisdicional em sede da sentença constitutiva (anulação) de 20/05/2005, com efeito eliminatório dos efeitos jurídicos e materiais por ele produzidos na esfera jurídica do ora Recorrente, retroagidos à data da prática do acto.
Exactamente por isso os juros de mora sobre os vencimentos exequendos não são “consequência directa ou imediata do acto anulado”, não constituem um “efeito típico da prática do acto” de exoneração, usando a terminologia do Autor que vem sendo citado, pelo contrário, configuram-se como efeito jurídico em razão da interpelação judicial da Administração para pagar, ex vi artºs. 805º nº 1 e 806º C. Civil.

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Neste sentido, na medida em que a sentença sob recurso procedeu à especificação das vinculações que traduzem uma dívida exequenda líquida, são devidos juros de mora desde a citação do Recorrido Município do Barreiro nos presentes autos, calculados sobre a dívida exequenda em montante líquido em resultado da aplicação dos descontos legais e deduções por retribuições auferidas pelo ora Recorrente na Câmara Municipal de Setúbal.
Pelo exposto procede parcialmente a questão trazida a recurso nos itens 1 a 3 das conclusões.



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Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em via de revogação parcial da sentença proferida,

A. julgar o recurso parcialmente procedente e,
B. condenar o ora Recorrido Município do Barreiro no pagamento ao Recorrente Luís Manuel Azevedo Monteiro de juros de mora, desde a sua citação nos presentes autos, calcula dos sobre a dívida exequenda em montante líquido em resultado da aplicação dos descontos legais e deduções por retribuições auferidas pelo ora Recorrente na Câmara Municipal de Setúbal.


Custas a cargo do Recorrido; valor da causa – o montante líquido da dívida exequenda.


Lisboa, 26.Fev.2015


(Cristina dos Santos) ……………………………………………………………

(Paulo Gouveia) …………………………………………………………………

(Nuno Coutinho) ………………………………………………………………….




(1)Cecília Anacoreta Correia A tutela executiva dos particulares no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina/2013, págs. 407/408,411.
(2) Mário Aroso de Almeida, Anulação…, Almedina/2002, págs. 459, 460 e 467.
(3) Mário Aroso de Almeida, Anulação…, Almedina/2002, págs. 480-481.