Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2207/10.3BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:01/13/2022
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:CRÉDITOS INCOBRÁVEIS
DISSOLUÇÃO
SUPRIMENTOS
Sumário:I. O art.º 39.º do CIRC consagra, como pressupostos para um determinado crédito ser considerado incobrável, que essa incobrabilidade resulte de processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência e que, relativamente aos mesmos, não seja admitida a constituição de provisão ou, sendo-o, esta se mostre insuficiente.

II. Subjacente ao primeiro dos pressupostos mencionados em I. está a certeza da incobrabilidade do crédito

III. Não é admissível a consideração de determinados custos, relativos a créditos de suprimentos, como créditos incobráveis, quando a alegada incobrabilidade resulte de uma deliberação de dissolução da sociedade devedora, participada também pela sociedade credora.

IV. Esta interpretação não colide com o princípio da tributação pelo rendimento real nem com o princípio da igualdade, porquanto o nosso ordenamento consagra expedientes ao dispor do credor de suprimentos, com vista à sua cobrança, permitindo-se, pois, a possibilidade de se dar cumprimento ao disposto no art.º 39.º do CIRC.

Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

C. P., SGPS (doravante Recorrente ou Impugnante) veio apresentar recurso da sentença proferida a 20.09.2019, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada improcedente a impugnação por si apresentada, que teve por objeto a liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) atinente ao exercício de 2005.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“1a) A liquidação impugnada resultou da não aceitação, por parte da Administração Tributária, da perda ou incobrabilidade de um crédito que a recorrente detinha sobre a sociedade S.;

2a) O referido crédito resultou de suprimentos efectuados à S. pela sociedade C., que era a sua única accionista, sendo que, com tais suprimentos, a S. adquiriu um património vultuoso, constituído por acções representativas do capital social do Banco Santander;

3a) As referidas “acções S.” geraram para a S. dividendos de elevado valor;

4a) Para pagamento da dívida que a S. tinha para com a sua sócia C., ela vendeu a esta, a preço de mercado, as referidas “acções S.”, mas o valor assim obtido foi inferior à divida, razão pela qual a C. continuou credora da S.;

5a) A C. veio a ser cindida, dando origem a várias sociedades, entre as quais a recorrente, recebendo esta, como decorre de um processo de cisão, na proporção, parte dos activos e passivos da C.;

6a) Entre os activos recebidos pela recorrente estavam “acções S.”, uma participação na S. e um crédito sobre esta;

7a) A S.r foi dissolvida e liquidada, apurando-se, nesse processo de liquidação, a inexistência total de activos, pelo que o crédito que a recorrente detinha sobre a S. deixou de ser cobrável;

8a) Na não aceitação, como custo fiscal, dessa incobrabilidade do crédito da impugnante sobre a S., a Administração Tributária invocou o n° 1 do art° 23° do CIRC como norma/fundamento da correcção efectuada, considerando não estar provado que a concessão dos suprimentos gerou rendimentos tributáveis;

9a) Trata-se de uma errónea concepção sobre a legal e necessária ligação entre custos e proveitos - os custos fiscalmente aceites não são aqueles que geram proveitos, mas sim aqueles que são potencialmente aptos a gerarem proveitos;

10a) Ora, é evidente que a concessão de suprimentos pode permitir - como, aliás, permitiu - que a S. adquirisse um relevante património (as “acções S.”) potenciador de rendimentos, quer para si, quer para a sua sócia C., seja por via de dividendos, seja por via de mais-valias;

11a) Sendo certo, além de mais, que, efectivamente, as sociedades em causa (a S. e a C.) obtiveram proveitos resultantes dessas acções S.”;

12a) O juízo de conformidade entre proveitos e custos estabelecido no art° 23° do CIRC tem que ser efectuado em relação à C. e à S., na medida em que foi aquela que concedeu os suprimentos a esta;

13a) Tal circunstância não põe em causa a aceitabilidade do custo na esfera jurídica da recorrente, na medida em que esta nasceu de um processo de cisão-dissolução da C., razão pela qual a recorrente, quer em face do regime de cisão estabelecido no art° 119°, i), do Código das Sociedades Comerciais, quer em face do regime de neutralidade fiscal da cisão estatuído no art° 74° do CIRC, é uma “continuidade” da C.;

14a) De qualquer forma, está provado que a recorrente auferiu rendimentos (dividendos e mais-valias) gerados pelas “acções S.” adquiridas com os suprimentos efectuados pela C.;

15a) E, assim, ilegal, a não aceitação do custo com base no n° 1 do art° 23° do CIRC, sendo certo, em qualquer caso, que a decisão da douta sentença recorrida não se fundamentou no art° 23° do CIRC;

16a) A Administração Tributária invocou, também, o art° 39° do CIRC para não aceitar a incobrabilidade do crédito e o seu concomitante reflexo como custo fiscal, fundamento esse considerado legal pela douta sentença recorrida;

17a) Ora a própria Administração Tributária afirma que a S. não tinha activos e, portanto, não podia pagar as suas dívidas;

18a) Sendo certo que, em resultado da dissolução/liquidação da S., “executou- se” todo o seu património, constatando-se, de modo indiscutível, que ele era, de todo em todo, inexistente;

19a) A dissolução/liquidação da devedora é uma forma clara e evidente de diligências para a cobrança de crédito;

20a) À semelhança do que acontece num processo de insolvência, através da dissolução/liquidação de uma sociedade, “executa-se” o seu património para, assim, pagar aos credores - ora, repete-se, no caso, “executou-se” a S. e constatou-se a inexistência de qualquer activo para solver dívidas;

21a) Essa inexistência de bens e, portanto, a indiscutível incobrabilidade do crédito está também demonstrada nas declarações fiscais apresentadas pela S., em relação às quais existe, nos termos do art° 75° da LGT, a presunção de verdade;

22a) A não se entender assim, o sócio credor de suprimentos como era o caso da recorrente - veria, logo à partida, a sua capacidade de beneficiar do regime dos créditos incobráveis amputado, uma vez que, de acordo com o disposto no artigo 245°, n° 2 do Código das Sociedades Comerciais, “os credores por suprimentos não podem requerer, por esses créditos, a falência da sociedade ”

23a) Tal entendimento conduz à “penalização fiscal” dos credores por suprimentos face aos restantes credores sociais, uma vez que, repete-se, os credores suprimentistas não podem requerer a falência da sociedade devedora;

24a) Tal interpretação do art° 39° do CIRC, conduz à violação do princípio constitucional da tributação das empresas pelo lucro real (art° 104°, n° 2, da Constituição;

25a) Tal interpretação do art° 39° do CIRC conduz, também, à violação do princípio constitucional da igualdade (art° 13° da Constituição), porque conduz a um tratamento diferente, sem justificação, entre perdas em empréstimos com a natureza de suprimentos e perdas em outro tipo de empréstimos;

26a) Assim, a douta sentença recorrida não pode manter-se”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não apresentou contra-alegações.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa dos vistos legais (art.º 657.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, porquanto os créditos resultantes de suprimentos feitos a sociedade que veio a ser dissolvida com balanço negativo são incobráveis, ao abrigo do art.º 39.º do Código do IRC (CIRC), além de indispensáveis ao abrigo do art.º 23.º do mesmo código, sendo que interpretação contrária colide com o princípio da tributação pelo rendimento real e com o princípio da igualdade?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) A Impugnante é uma SGPS, tendo por objeto a gestão de participações sociais, e iniciou a sua atividade em 28/12/2004, tendo sido criada nessa mesma data, em resultado da cisão-dissolução da sociedade denominada C., Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A.. – cfr. fls. 64 a 74 do PA;

B) Entre o ativo da C. que foi transferido para a Impugnante, em razão da cisão referida em A), encontravam-se 9.556.366 ações representativas do capital social do B. S. C. H., 5 ações representativas do capital social da sociedade S. – C. e I. S.A., pessoa coletiva n.º 511 ….; e um crédito de suprimentos sobre a sociedade S. no valor de € 10.063.001,94 e respetiva provisão de € 10.063.001,94 – cfr. fls. 90 do PA;

C) A sociedade S. – C. E I. S.A. foi constituída em 30/06/1999, com o objeto social de «comércio de importação e exportação; comissões e consignações; prestação de serviços de consultadoria económica e administrativa e elaboração de estudos de desenvolvimento, gestão e marketing; gestão da sua carteira de títulos e exploração de complexos turísticos, hoteleiros e similares.». – cfr. fls. 39 dos autos;

D) Entre 08/01/2002 e 02/08/2004 a sociedade S. – C. E I. S.A auferiu dividendos do B. S. C. H. – cfr. fls. 57 a 66 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

E) Em 19/11/2004, a S. vendeu à C., 102 088 705 ações representativas do capital social e dos direitos de voto da sociedade B. S. C. H., pelo preço de € 980 051 568, cujo pagamento seria feito por compensação de créditos de suprimentos de igual montante detidos pela C. sobre a S. – cfr. fls. 54 a 56 dos autos;

F) Em 22/12/2005 foi deliberado pelos sócios da S., entre os quais, a ora Impugnante, a sua dissolução e liquidação – cfr. fls. 32 a 34 dos autos;

G) Do Balanço da sociedade S. em 07/12/2005, o total do ativo era “sem valor e do passivo era de € 106 994 635,39 – cfr. fls. 35 e 36 dos autos;

H) Em face do resultado da dissolução/liquidação da S., a impugnante considerou como custo o valor do crédito que detinha sobre a S., no montante de € 10 063 001,94 – alegado e não contestado;

I) Ao abrigo da ordem serviço n.º 200908433, datada de 18/11/2009, os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da Direção de Finanças de Lisboa, realizaram uma ação de inspeção, de âmbito geral, à sociedade ora Impugnante, na qual foi elaborado o Relatório Final a fls. 40 a 113 do PA, que ora se dá por integralmente reproduzido.

J) Do Relatório referido em I) destaca-se o seguinte: «III.1.5 Crédito de Suprimentos sobre a Sociedade S., no valor de € 10 063 001,94 e respetiva provisão de € 10 055 332,72.

Da Análise aos ativos recebidos pela C., destaca-se um crédito de suprimentos no montante de € 10 063 001,94 sobre a S. e respetiva provisão no montante de € 10 055 332,72 (Anexo I, fls. 29).

O valor do crédito de suprimentos que a C. detinha sobre a S. foi considerado custo no exercício de 2005, pelo valor de € 10 055 332,72 (…)

Quanto ao montante da provisão associada a este crédito, a mesma foi anulada (…)

III.1.6.1 – Análise do valor de € 10 020 592,27 considerado como custo do exercício – conta 69882 – Custos e Perdas Extraordinárias – O. Custos e P. Extraord. – Liquidação S.

Na data da cisão da C., esta detinha um crédito de suprimentos na S., no valor de € 107 501 103,74.

Na sequência da partilha da C., a C. ficou com um crédito de € 10 063 001,94, sobre a S., crédito este que considerou como custo no exercício de 2005, no montante de € 10 020 592,27, conforme descrito anteriormente.

Da análise à declaração anual de informação contabilística e fiscal, constante do sistema informático da DGSI, verificou-se que foi contabilizado na conta 69 – Custos e Perdas Extraordinárias, o montante de € 14 750 424,17.

Para verificar a proveniência destes custos e comprovar a sua indispensabilidade para a obtenção dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, foi notificado o sujeito passivo (Anexo I, fls. 43 e 44) para apresentar os seguintes elementos e esclarecimentos relativos ao exercício de 2005 (…)» - cfr. fls. 53 e 54 do PA;

K) Do Relatório referido em J) destaca-se também:

«III.1.6.2 Análise da situação de facto”

Importa salientar, em que termos é que uma perda associada aos suprimentos pode ser enquadrada como custo fiscal do exercício, de acordo com o art.º 23.º do CIRC.

Nos termos do n.º 1 do art.º 243.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), o contrato de suprimento é (…)

Os suprimentos constituem créditos exigíveis (art.º 245.º CSC).

A anulação de um crédito implica uma perda, sendo que para a sua aceitação fiscal, nos termos do n° 1 do art.º 23. ° do CIRC, é indispensável que os custos gerados sejam, comprovadamente, «indispensáveis para a realização de proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.»

(…)

Dado os suprimentos serem créditos que não resultam da atividade normal da empresa não seriam de considerar fiscalmente dedutíveis as provisões constituídas pelo sujeito passivo, nos termos do artigo 34.º, n.º 1, alínea a), do CIRC. No entanto, estas provisões foram anuladas desconsiderando, assim, o custo antes contabilizado.

Contudo, os suprimentos foram de novo anulados por contrapartida de um custo extraordinário (conta 69882), razão pela qual se deverá verificar se foram cumpridas as condições referidas no artigo 39.º do CIRC.

Nos termos do disposto no referido artigo, (…), as perdas por anulação de suprimentos não são dedutíveis sem o preenchimento dos pressupostos exigidos para a sua consideração como créditos incobráveis, apenas nessa eventualidade se pode considerar preenchido o requisito da indispensabilidade.

Pelo exposto, para que se possa aceitar a dedutibilidade fiscal das perdas resultantes da anulação de suprimentos, é necessário, nos termos do n.º 1 do artigo 23.º em conjugação com o artigo 39.º, ambos do CIRC, que o crédito seja incobrável, tal como resulte de processo de execução, falência ou insolvência.

O sujeito passivo (Anexo I, fls. 47), justifica a incobrabilidade do crédito sobre a S. com o resultado da liquidação desta, uma vez que os ativos recebidos eram inferiores ao passivo.

Na realidade, analisando por grandes rubricas o Balancete Analítico antes de Apuramento de Resultados da S., em 2005.12.31, verifica-se que a mesma não detinha ativos para cumprir as suas obrigações para com terceiros. [quadro]

O sujeito passivo não apresentou quaisquer outros elementos que suportem a tentativa de obter por parte da S. o reembolso dos suprimentos, nem este crédito resulta de qualquer processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência.

Por outro lado, para efeitos da justificação da indispensabilidade do custo, nos termos do artigo 23.º do CIRC, o sujeito passivo não juntou qualquer documento comprovativo que demonstre que os valores dos suprimentos efetuados foram indispensáveis à realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou à manutenção da fonte produtora.» - cfr. fls. 55 a 58 do PA;

L) Consta do Relatório referido em J) a seguinte conclusão:

«III.1.2.3. Conclusão

De facto, atendendo à justificação apresentada pelo sujeito passivo e aos condicionalismos previstos no artigo 39.º do CIRC, para efeitos da aceitação do custo, nos termos do artigo 23.º do CIRC, resulta que a justificação mencionada não cumpre com os requisitos do artigo 39.º do CIRC.

Face a tudo quanto foi exposto, verifica-se que, para que a anulação do crédito seja aceite como custo fiscal, têm de se verificar, cumulativamente, os requisitos impostos pelo n.º 1 do art. 23.º, bem como os do art. 39.º do CIRC.

Neste sentido, na medida em que o sujeito passivo:

- Não apresenta prova de existência do(s) fluxo(s) financeiro(s);

- Não apresenta prova da motivação da operação, da indispensabilidade da mesma na obtenção de proveitos ou manutenção da fonte produtora;

- Não demonstra como os suprimentos, obtidos por partilha, contribuem para a atividade desenvolvida pela C.;

- Os valores em saldo nos diversos documentos são divergentes;

- Não apresenta comprovativos de quaisquer meios acionados no sentido de obter o reembolso dos suprimentos;

- Não apresenta comprovativos de que a S. se encontrava em processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores, ou de processo de execução, falência ou insolvência, requisitos expressos pelo artigo 39.º do CIRC para que um custo derivado de um crédito incobrável seja fiscalmente dedutível;

Logo, o custo extraordinário contabilizado na conta 6988 – Custos e perdas extraordinários – Outros não especificados, no valor de € 10 020 592,27 não poderá ser aceite fiscalmente, pelo que terá de ser acrescido no Campo 225 do Quadro 07 da Modelo 22 do exercício de 2005.

Desta forma, a correção proposta origina que:

Exercício de 2005:

Prejuízo Fiscal Declarado - € 9 827 073,84

Correções Propostas - € 10 020 592,27

M) Em 06/05/2010, foi emitida a liquidação adicional de IRC n.º 2010 8610002640, que apurou um valor a reembolsar de € 135 542,51 – cfr. fls. 30 dos autos;

N) Segundo a demonstração do acerto de contas relativo ao exercício de 2005, ora a fls. 31 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o saldo a pagar até 16/06/2010 foi de € 19 969,60;

O) O valor referido em N) foi pago em 15/06/2010 – cfr. fls. 67 dos autos;

P) A petição inicial da presente impugnação foi remetida por correio em 13/09/2010 – cfr. fls. 68 dos autos”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Com interesse para a decisão, atentas as soluções plausíveis de direito, inexistem factos invocados que devam considerar-se como não provados”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A decisão da matéria de facto resultou do exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam, conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que o crédito que esteve na origem da correção sob escrutínio não só se configura como um custo indispensável, nos termos constantes do art.º 23.º do CIRC, mas também não pode deixar de ser considerado como crédito incobrável, atento o disposto no art.º 39.º do mesmo código. Entende, ademais, que a interpretação advogada pelo Tribunal a quo atenta contra os princípios da tributação do rendimento real e da igualdade.

A sentença sob apreciação, fundando-se no entendimento plasmado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11.04.2018 (Processo: 0939/14), relativo a outra das sociedades criadas na sequência da cisão da C., considerou que, in casu, não se tratava de crédito incobrável, atento o disposto no art.º 39.º do CIRC, o que afastaria a sua dedutibilidade.

Vejamos então.

Em termos de disciplina atinente especificamente aos custos (gastos), e considerando que estamos a analisar o exercício de 2005, há que desde logo atentar no art.º 23.º do CIRC (redação à época), nos termos do qual:

“Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora…”.

Decorre, pois, que entre custo (gasto) contabilístico e custo (gasto) fiscal não existe uma absoluta coincidência.

Quanto aos custos que sejam fiscalmente relevantes, para que os mesmos sejam considerados, é necessário, neste quadro normativo, que se demonstre a sua efetiva existência e a sua indispensabilidade.
No tocante ao requisito da efetiva existência, para aferir da mesma é preciso que tais custos estejam suficientemente documentados/comprovados. Tal resulta, desde logo, do corpo do n.º 1 do art.º 23.º do CIRC, que utiliza o advérbio “comprovadamente." (1)

Sendo certo que, em regra, a efetiva existência de um custo é aferida e comprovada pela fatura respetiva, que faz com que haja uma presunção de veracidade do custo que documenta, a mesma pode ser comprovada por outro documento, que, se dotado de algumas insuficiências, poderá ser complementado através de recurso a outros meios de prova, designadamente meios complementares de prova documental e testemunhal. (2)


Como referido por António Moura Portugal, (3) “… para efeitos de IRC, a exigência de prova documental nesta sede não se confunde com a exigência de factura, bastando, para comprovação de que o custo foi incorrido, a existência de simples documento interno (…), acompanhada por outros meios de prova que inculquem no julgador a convicção que a operação material teve lugar e que efectivamente foi necessária para a obtenção dos proveitos”.

Por outro lado, o art.º 23.º do CIRC remetia, à época, para o conceito de indispensabilidade do custo. O juízo de comprovada indispensabilidade é um juízo casuístico, pois só analisando em concreto cada custo poder-se-á aferir da respetiva indispensabilidade, para “… a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.

A noção de indispensabilidade pode ser construída, desde logo, pela negativa, nos seguintes termos:

¾ Não pode associar-se ao êxito de gestão, dado que são os riscos da própria atividade empresarial, que não podem retirar o caráter de indispensabilidade a um determinado custo, não abrangendo, pois, o juízo de razoabilidade (consagrado no pretérito art.º 26.º do Código da Contribuição Industrial);
No mesmo seguimento, a indispensabilidade de um custo não se confunde com a sua oportunidade ou conveniência: “O poder da Administração é rigorosamente vinculado, não existindo margem de livre apreciação por parte da mesma, visto que não há aqui que formular juízos de oportunidade mas de tipo cognoscitivo. Pelo que tal indispensabilidade é rigorosamente controlada pelo Tribunal, não estando em causa qualquer especial saber técnico, juízo de imediação ou valoração pessoal daqui emergente ou quaisquer outros elementos imponderáveis." (4)

A indispensabilidade associa-se, pois, ao facto de um custo ser necessário, de se apresentar como habitual à obtenção de proveitos ou ganhos ou à manutenção da unidade produtiva.
A noção de indispensabilidade não pode ser encarada como abrangendo apenas custos que direta e imediatamente conduzam à obtenção de ganhos ou à manutenção da unidade produtiva (nexo causal), (5) abarcando igualmente custos que mediatamente visam esse fim. Portanto, mais do que uma análise objetiva do custo, tem de se aferir subjetivamente a sua indispensabilidade.

Não sendo indispensável um custo, não integra a previsão normativa do n.º 1 do art.º 23.º do CIRC, podendo, pois, ser por esta via desconsiderado.
Em termos de ónus da prova, há ainda que sublinhar que, sendo certo que cabe ao contribuinte o ónus da prova de que os custos são indispensáveis, a montante, cabe à administração tributária (AT) o ónus de fundadamente pôr em causa essa indispensabilidade, (6) sendo o ónus do contribuinte balizado pelos termos em que a AT funde a sua posição. (7)

Por outro lado, nos termos do então art.º 39.º do CIRC, sob a epígrafe “Créditos incobráveis”:

“Os créditos incobráveis podem ser diretamente considerados custos ou perdas do exercício na medida em que tal resulte de processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência, quando relativamente aos mesmos não seja admitida a constituição de provisão ou, sendo-o, esta se mostre insuficiente”.

Da análise desta disposição legal verifica-se, pois, a consagração de dois pressupostos:

a) A incobrabilidade resultar de processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência;

b) Relativamente aos mesmos, não ser admitida a constituição de provisão ou, sendo-o, esta mostrar-se insuficiente.

Cumpre ainda referir que, estando nós perante créditos resultantes de contratos de suprimento, há que considerar a disciplina constante do Código das Sociedades Comerciais (CSC) a este respeito.
A figura dos suprimentos encontra-se prevista no art.º 243.º do CSC, cujo n.º 1 os define como “o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência”, podendo os mesmos ser retribuídos com juros quando tal seja estipulado. (8)

Consubstanciam um verdadeiro empréstimo dos sócios à sociedade, integrando e influindo no passivo desta, (9) detendo, pois, o sócio a posição de credor perante a sociedade.

Assim, contabilisticamente, os suprimentos são reconhecidos no passivo da sociedade.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

In casu, como resulta do relatório de ação inspetiva (RIT), a AT fundou a correção sob dois prismas: o primeiro, de que o custo em causa não era indispensável, nos termos exigidos no art.º 23.º do CIRC; o segundo, de que não estavam preenchidos os pressupostos para que se pudesse falar em crédito incobrável, nos termos consignados no art.º 39.º do CIRC.

Começando pela indispensabilidade do custo, vista isoladamente, a AT refere que a Recorrente não juntou qualquer documento comprovativo que demonstre que os valores em causa foram indispensáveis à realização de proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou à manutenção da fonte produtora.

Este fundamento, isoladamente, não tem a consequência extraída pela AT.

Relembremos, para melhor apreensão do que está ora em causa, o contexto fático pertinente.

A sociedade C. tinha efetuado suprimentos à sua participada S., parte dos quais vieram a ser pagos, por venda à primeira pela segunda, de ações representativas do capital social e dos direitos de voto da sociedade B. S. C. H. [cfr. facto E)].

Ulteriormente, ocorreu a cisão da sociedade C., tendo a Recorrente, sociedade gestora de participações sociais (SGPS), sido criada nessa sequência [cfr. facto A)].

Do ativo da C. transferido para a Recorrente constavam, designadamente, 9.556.366 ações representativas do capital social do B. S. C. H., 5 ações representativas do capital social da sociedade S. e um crédito de suprimentos sobre esta última, no valor de 10.063.001,94 Eur. [cfr. facto B)].

Em momento posterior, foi deliberado pelos sócios da S. a sua dissolução e liquidação, sendo que o seu balanço era negativo [cfr. factos F) e G)].

Ou seja, estando nós perante SGPS, não sendo posto em causa o alegado em sede de ação inspetiva, no sentido de os suprimentos concedidos terem-no sido para a aquisição das participações sociais ali mencionadas, que, por seu turno, geraram rendimentos, não se alcança que documento adicional necessitaria a AT para concluir ser o custo indispensável. No entanto, a verdade é que nem foi sob este prisma que o Tribunal a quo considerou não lhe assistir razão, centrando-se, sim, na articulação entre o art.º 23.º e o art.º 39.º, ambos do CIRC (fundamento este basilar no RIT).

Como já referimos, em matéria de créditos incobráveis, a leitura do art.º 23.º não pode ser feita isoladamente, sendo, pois, imprescindível a sua análise concatenada com as exigências do já referido art.º 39.º do CIRC.

Esta última disposição legal, como mencionado, exigia o preenchimento de dois requisitos.

Quanto ao segundo requisito, relativo à impossibilidade de constituição de provisão, o preenchimento do mesmo nos autos não é controvertido.

Já quanto ao primeiro, como resulta provado, a S. foi dissolvida por deliberação dos seus sócios (onde se inclui a Recorrente). A questão que se coloca é a de saber se essa dissolução, mencionada em F) do probatório, pode ser enquadrada no âmbito do art.º 39.º do CIRC.

De uma interpretação literal da norma, desde logo a resposta tem de ser negativa, porquanto tal procedimento não integra nenhum dos casos referidos na mesma (processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência).

Assim, cumpre, antes de mais, atentar na motivação do legislador fiscal, subjacente à previsão dos específicos processos previstos no art.º 39.º do CIRC.

Ora, subjacente à previsão normativa em causa está a certeza da incobrabilidade (ou situações especificamente relacionadas com medidas tendentes à recuperação das empresas). Aliás, nesse âmbito, é inclusivamente considerada suficiente a existência de documento no âmbito dos processos em causa que ateste a inexistência de bens, ainda que não seja a decisão final (cfr. a este respeito o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.10.2012 – Processo: 0782/12).

Especificando, no âmbito dos processos elencados no art.º 39.º do CIRC, há toda uma tramitação que permite aferir da existência de bens na esfera do devedor.

Assim:

¾ No âmbito do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF, aprovado pelo DL n.º 132/93, de 23 de abril), para além de toda a tramitação atinente à relação dos créditos, em vários momentos dos diversos processos ali mencionados é possível concluir-se pela incobrabilidade desses mesmos créditos (v., v.g., os art.ºs 186.º e 187.º do CPEREF);

¾ No âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de março, e que revogou o CPEREF), no qual o processo de insolvência é configurado como um processo de execução universal, tal situação ocorre igualmente (cfr. v.g., art.ºs 39.º, 172.ºa 184.º);

¾ Ao nível do processo de execução, e considerando a disciplina constante do CPC/1961, atento o exercício em apreciação, há toda uma disciplina atinente à localização de credores e de bens, que permite concluir pela incobrabilidade (cfr. v.g. os art.ºs 808.º, n.ºs 1 e 2, 872.º e ss.).

Por outro lado, todos estes procedimentos têm subjacente uma atuação do credor no sentido de tentar ver satisfeito o seu crédito.

Ora, tal objetivo não se encontra evidenciado em situações de dissolução decidida pelos sócios (e simultaneamente credores) da sociedade em causa.

Nesse sentido se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, no já mencionado Acórdão de 11.04.2018 (Processo: 0939/14), do qual se extrai:

“Vista a lei, a primeira nota que deve ser aposta é a de que, resulta da letra do artigo 39º do CIRC que a consideração de custos ou perdas pela entidade credora, na circunstância de ocorrer um crédito incobrável, está condicionada a que tais créditos resultem de um processo judicial de entre os tipificados na norma. No reverso, não é admissível a consideração desses custos quando resultem de uma deliberação, como sucedeu no caso dos autos, de dissolução da sociedade devedora, participada também pela sociedade credora agora recorrente. Existe no preceito uma exigência específica de “existência de um processo judicial” condicionante da possibilidade de serem relevados na contabilidade da credora os créditos desta considerados incobráveis, que foi afirmada no preceito de forma inequívoca o que se compreende para evitar abusos ou arbítrio dos sujeitos passivos credores impondo-se a estes uma atitude activa, com vista à cobrança do seu crédito (…).

Cremos ser esta a melhor interpretação a efectuar ao abrigo do disposto no artº 9º do C. Civil e que tem na lei a correspondência verbal suficiente sendo pois a base do processo hermenêutico que agora se impõe efectuar (quanto à melhor forma de efectivar este processo remetemos para a lição de Batista Machado em Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina,1983 pags 182 e 188/189).
De resto, o ora Relator, no acórdão de 18/06/2014 tirado no recurso 01463/12, já havia considerado, quanto ao artº 39º do CIRC na redacção do D.L. 198/2001 de 3 de Junho, que este preceito estipula, claramente, a verificação de dois pressupostos, cumulativos, para que os créditos incobráveis possam ser directamente considerados custos ou perdas do exercício, no caso de 2005.

Um: que a incobrabilidade resulte (no caso concreto) de processo de insolvência.

Outro: que não seja admitida a constituição de provisão (casos do então artº 35º nº 3 do CIRC, designadamente os créditos sobre o Estado, regiões autónomas, autarquias locais e que não resultem da actividade normal da empresa).

Ou sendo admitida a constituição de provisão (todos os demais casos não previstos no nº 3 do artº 35º do CIRC) esta se mostre insuficiente.

E, em tal arresto sumariou-se: I - Para que o crédito em causa nos autos, pudesse ser directamente considerado como custo ou perda do exercício de 2005 tinha de ser incobrável, qualidade que devia resultar de processo especial de recuperação de empresa e protecção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência, o que no caso não se verifica.

II - Se o credor tinha a possibilidade legal de constituir provisão para créditos de cobrança duvidosa mas não o fez no exercício de 2005 nem nos anteriores também não se verificam os pressupostos para aceitação do crédito como custo fiscal do exercício de 2005, ao abrigo do estatuído, à data, no artigo 39.° do CIRC.

Ora, ressalvadas as devidas distâncias, designadamente por nos presentes autos não se discutir a constituição ou não de provisão para o crédito da ora recorrente a verdade é que este crédito nunca podia ser considerado como custo ou perda do exercício de 2005 porquanto não integrava o conceito de crédito incobrável, entendidos estes créditos como aqueles que não podem ser recebidos pelo credor ou porque o devedor não queira pagar ou não tenha realmente com que pagar e relativamente aos quais se reconhece a perda, sem esperança de boa cobrança, designadamente por inexistência de bens penhoráveis evidenciada judicialmente (quanto a esta última asserção vide o Ac. deste STA de 10/07/2012 tirado no rec. 0782/12 disponível no site da DGSI). Ao invés, a ora recorrente participou na assembleia Geral Extraordinária de 22/12/2005 que deliberou a dissolução da devedora B……….. SA conforme acta nº 38 cuja cópia consta de fls. 47 e 48 dos autos e nessa medida pode afirmar-se que contribuiu para a incobrabilidade do crédito o que contraria o espírito do citado artigo 39º do CIRC que pressupõe uma actividade do credor através de via judicial para cobrança do seu crédito e o inêxito dessa acção por, devido a circunstâncias alheias à sua vontade, se constatar, no próprio processo, que tal crédito passou a incobrável”.

No mesmo sentido, veja-se o Acórdão deste TCAS, de 05.06.2019 (Processo: 2168/10.9BELRS), no qual a ora Relatora interveio na qualidade de 2.ª adjunta (e, bem assim, o Acórdão deste TCAS, de 15.12.2021, tirado no processo n.º 1126/10.8BELRS, relatado pela aqui Relatora), relativo, também ele, a outra das sociedades criadas na sequência da cisão da C., onde se refere:

“É certo que a Recorrente alega que a dissolução/liquidação da devedora é uma forma clara e evidente de diligência para cobrança do crédito e bem assim que à semelhança do que sucede num processo de falência, através da dissolução/liquidação “executa-se” o seu património para, dessa forma, se pagar aos credores, sendo que, no caso vertente, se constatou a inexistência de qualquer ativo para solver dívidas, mas a verdade é que o legislador foi claro e evidenciou, de forma expressa e taxativa, os processos judiciais que poderiam atribuir relevância para efeitos de dedutibilidade fiscal direta enquanto custos incobráveis.

Com efeito, em ordem ao consignado no artigo 9.º, nº2, do CC e seguindo os ensinamentos de BAPTISTA MACHADO, ter-se-á de ter como assente que o texto da lei, constitui o ponto de partida do processo hermenêutico e também um seu limite, na medida em que não é possível considerar aqueles sentidos que não tenham nas palavras da lei qualquer apoio, “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. (…)

Note-se que se fosse intenção deliberada do legislador subsumir no normativo o processo de dissolução e liquidação tê-lo ia feito de forma expressa e inequívoca, o que, como visto não logrou fazê-lo. Nessa medida, havemos de concluir que não quis, deliberadamente, contemplar o processo de dissolução e liquidação (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do CC), e não quis porque o mesmo não contempla uma incobrabilidade, de per si.

(…) Mais importa relevar que não assiste razão à Recorrente quando aduz que os meios de prova contemplados no artigo 39.º do CIRC só fazem sentido para os casos em que a sociedade devedora existe, tem a sua atividade e não para as situações de dissolução e liquidação da sociedade devedora, em que esta se extingue, não se retirando, de todo, da letra e do espírito do legislador a assunção que a Recorrente faz.

Aduza-se, em abono da verdade, que subjacente à previsão normativa em causa está a certeza da incobrabilidade (situações especificamente relacionadas com medidas tendentes à recuperação das empresas). (…)

Ademais, a existência dos processos enumerados no artigo 39.º do CIRC, tem subjacente a ideia de evitar abusos ou arbítrio dos sujeitos passivos credores”.

Assim, face ao explanado, não se acompanha o entendimento da Recorrente, considerando-se que, in casu, não se está perante crédito incobrável, nos termos exigidos no art.º 39.º do CIRC.

Não se acompanha igualmente o entendimento da Recorrente no sentido de que esta interpretação colide com o princípio da tributação pelo rendimento real e, bem assim, com o princípio da igualdade.

Concretizando.

É desiderato constitucionalmente consagrado o de que a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real (cfr. art.º 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa – CRP).

Com efeito, nos termos do art.º 104.º, n.ºs 1 e 2, da CRP:

“1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.

2. A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”.

O princípio da igualdade, evidenciado, desde logo, nos n.ºs 1 e 2 do supracitado art.º 104.º da CRP, abrange quer a vertente da igualdade perante a lei fiscal, no sentido de não haver discriminação dos cidadãos face à referida lei, quer a vertente da igualdade tributária ou igualdade de sacrifícios; esta encontra-se estreitamente ligada ao princípio da capacidade contributiva, enquanto reflexo da igualdade material.

Como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 127/2004, de 03.03.2004:

“A tributação segundo o rendimento real é, numa certa dimensão, uma decorrência necessária do princípio da capacidade contributiva. É ele que justifica que a Constituição estabeleça que o sistema fiscal não pode deixar de assegurar “uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza” (art.º 103º, n.º 1) e que especifique, posteriormente, que os impostos devem ter em conta as “necessidades e os rendimentos [concretos] do [de cada] agregado familiar” e, finalmente, que a “tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”.

Mas o rendimento real fiscalmente relevante não é, em si próprio, uma realidade de valor fisicamente apreensível, mas antes um conceito normativamente modelado e contabilisticamente mensurável, sendo constituído, simpliciter, “pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas [previstas na lei e] verificadas no mesmo período” (…) - o saldo entre os proveitos ou ganhos provenientes das mais diversas fontes, como vendas, bónus, comissões, rendimentos de imóveis, rendimentos de carácter financeiro, prestações de serviços, mais-valias realizadas, subsídios, etc., menos os custos ou perdas, como os encargos relativos à produção, distribuição e venda, encargos de natureza financeira e de natureza administrativa, encargos fiscais e parafiscais, reintegrações e amortizações, etc., acrescido das variações patrimoniais positivas ou diminuído das variações patrimoniais negativas, previstas na lei”.

Não obstante, não se considera que, in casu, este princípio esteja posto em causa.

Com efeito, como resulta do regime atinente à tributação de sociedades, nem todos os custos suportados pelas mesmas são custos para efeitos fiscais, circunstância ditada desde logo pela necessidade de apenas serem considerados como custos aqueles que têm relação (mais ou menos imediata) com a atividade da empresa e de serem de alguma forma limitadas situações relativas a custos que podem ser desviados para fins pessoais, por exemplo. Por outro lado, são definidos critérios para que determinados custos possam ser considerados custos fiscais, justamente para assegurar algum nível de controlo sobre os mesmos, de que é exemplo o regime a que nos temos vindo a referir.

Ora, in casu, o que sucede é que, para consideração dos créditos como incobráveis, o legislador previu as exigências a que já fizemos referência, para efeitos de garantia da efetiva incobrabilidade dos créditos. É certo que, como refere a Recorrente, os credores suprimentistas não podem requerer a falência da devedora (cfr. o art.º 245.º, n.º 2, do CSC). No entanto, é também certo que esses mesmos credores podem executar a devedora com base no contrato de suprimento [cfr. exemplificativamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 28.04.2010 (Processo: 7715/08.3TBBRG-A.G1), onde, entre outras questões, estava em causa a qualificação do contrato de suprimento como título executivo]. Ou seja, ao contrário do que parece resultar das alegações da Recorrente, não estamos perante situação em que fosse impossível dar cumprimento ao disposto no art.º 39.º do CIRC.

Como tal, não tendo sido cumpridas as exigências desta disposição legal, não se pode considerar violado o princípio da tributação pelo lucro real, porquanto tratou-se de situação que a própria Recorrente não acautelou.

O mesmo se refira quanto à alegada violação do princípio da igualdade.

Concretizemos.

A CRP determina, desde logo, no art.º 13.º, que:

“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.

Como referido por Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Vol. I, 14.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 336 e 337):

“O princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes do sistema constitucional global, conjugando dialecticamente as dimensões liberais, democráticas e sociais inerentes ao conceito de Estado de direito democrático e social (art . 2°) . Na sua dimensão liberal, o princípio da igualdade consubstancia a ideia de igual posição de todas as pessoas, independentemente do seu nascimento e do seu status, perante a lei, geral e abstracta, considerada subjectivamente universal em virtude da sua impessoalidade e da indefinida repetibilidade na aplicação. A dimensão democrática exige a explícita proibição de discriminações (positivas e negativas) na participação no exercício do poder político, seja no acesso a ele (…) seja na relevância dele (…), bem como no acesso a cargos públicos (…). A dimensão social acentua a função social do princípio da igualdade, impondo a eliminação das desigualdades fácticas (…). Com estas três dimensões, o princípio da igualdade é estruturante do Estado de direito democrático e social, dado que: (a) impõe a igualdade na aplicação do direito, fundamentalmente assegurada pela tendencial universalidade da lei e pela proibição de diferenciação de cidadãos com base em condições meramente subjectivas (igualdade de Estado de direito liberal); (b) garante a igualdade de participação na vida política da colectividade e de acesso aos cargos públicos e funções políticas (igualdade de Estado de direito democrático); (c) exige a eliminação das desigualdades de facto para se assegurar uma igualdade material no plano económico, social e cultural (igualdade de Estado de direito social)”.

A igualdade na aplicação do direito vai para além da igualdade formal, implicando sim igualdade material, que tem subjacente a ideia de tratamento igual do que é igual e tratamento diferente do que seja diferente.

Especificamente ao nível tributário, como já mencionado, há que atentar ao disposto no já citado art.º 104.º da CRP.

Como referimos, o princípio da igualdade, evidenciado nos n.ºs 1 a 3 do supracitado art.º 104.º, da CRP, no âmbito do direito tributário, abrange quer a vertente da igualdade perante a lei fiscal, no sentido de não haver discriminação dos cidadãos face à referida lei, quer a vertente da igualdade tributária ou igualdade de sacrifícios; esta encontra-se estreitamente ligada ao princípio da capacidade contributiva, enquanto reflexo da igualdade material.

Neste último sentido, fala-se em igualdade horizontal e igualdade vertical, sendo a primeira aquela que determina que os titulares das mesmas formas de riqueza sejam tributados de forma igual e a segunda a que determina que o sacrifício fiscal seja repartido em função dos rendimentos de cada um.

Ora, não se pode considerar que aqui esteja em causa o respeito pelo princípio da igualdade, desde logo, porque suprimentos e outro tipo de empréstimos feitos a sociedades são realidades distintas, reclamando, portanto, análises e abordagens distintas.

Por outro lado, como referimos, reconhecendo a limitação constante do CSC, no tocante à impossibilidade de os credores suprimentaristas poderem, eles mesmos, requerer a então falência da devedora, não lhe estava coartado, por exemplo, o direito de reclamar créditos nesse mesmo processo, nem tão pouco o direito de exigir judicialmente o reembolso de suprimentos, através, designadamente, da competente ação executiva, como já referido supra.

Aliás, a esse propósito, no caso de suprimentos para cujo reembolso não tenha sido definido prazo, o CSC, no n.º 1 do já referido art.º 245.º prevê que “… é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 777.º do Código Civil; na fixação do prazo, o tribunal terá, porém, em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade, podendo, designadamente, determinar que o pagamento seja fracionado em certo número de prestações”.

Como tal, não se considera violado o princípio da igualdade, porquanto existiam mecanismos à disposição da Recorrente que permitiriam concluir nos termos legalmente exigíveis pela incobrabilidade da dívida.

Assim, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 13 de janeiro de 2022

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)











1) Cfr., a título exemplificativo, os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 16.03.2005 (Processo: 00340/03) e de 23.04.2015 (Processo: 06468/13).
2) Cfr. Tomás de Castro Tavares, «Da relação de dependência parcial entre a contabilidade e o direito fiscal na determinação do rendimento tributável das pessoas colectivas: algumas reflexões ao nível dos custos», Ciência e Técnica Fiscal, 396, p. 123.
3) A Dedutibilidade dos Custos na Jurisprudência Fiscal Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 204.
4) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23.09.1998 (Processo: 021515). V. igualmente os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 28.06.2017 (Processo: 0627/16) e de 24.09.2014 (Processo: 0779/12).
5) Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28.06.2017 (Processo: 0627/16), e jurisprudência no mesmo citada
6) V., v.g., os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 30.11.2004 (Processo: 07375/02) e do Tribunal Central Administrativo Norte, de 11.01.2007 (Processo: 00070/01 – PORTO).
7) Sobre o ónus do contribuinte, v. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 16.10.2012 (Processo: 05014/11).
8) Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial – Volume II – Das sociedades, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2007, p. 340.
9) António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades – II – Das Sociedades em Especial, 2.ª Ed., 3.ª Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 293 a 300.